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at DANCA NA ESCOLA: ARTE E ENSINO tv'B)scola DANcA NA ESCOLA: ARTE E ENSINO. SUMARIO Apresentacao. 3 Rosa Helena Mendonca Introdugao 4 Isabel Marques ‘Texto 1/PGM 1: Danga e cu 9 Karenine de Oliveira Porpino Texto 2/PGM 2: Linguagem da Danca: arte e ensino 16 Isabel Marques Texto 3/PGM 3: As manifestagdes populares da danca e a escola Manifestacdes populares e a educagao: entre o dito e o ndo dito 7 wD Valéria Maria Chaves de Figueiredo APRESENTACAO Danca NA ESCOLA: ARTE E ENSINO Aarte contribui muito para desenvolver o sentido de cidadania, Se vocé conhece culturalmente o seu pais, vocé tem mais chance de respei- té-lo, e isso para mim é cidadania Promovendo um didlogo entre as palavras de Ana Mae Barbosa e as de Isabel Marques (Instituto Caleidos), consultora da série Dan- 4 na escola: arte ¢ ensino, podemos enten- der que “no ambito da danga, isto significa que nao basta dangar o carnaval, 0 pagode, © axé, as dangas urbanas, mas sim conhecer seus processos histéricos, coreograficos, es- téticos e sociais” Afinal, qual é 0 papel da danga na escola? Essa foi a pergunta da qual partimos na re- alizagao dos programas, que apresentam uma problematizacao do tema, a partir de trés elxos: danga e curriculo, linguagem da danga e manifestacdes populares da danca. A resposta a essa pergunta nao é simples, mas a busca de respostas pode ser uma for- ma instigante de se pensar o lugar da Arte Ana Mae Barbosa’ soras e gestores em geral poderao conhecer praticas em curso em algumas escolas e em outros espacos educativos, além de acompa- nnhar, por meio de entrevistas ¢ textos, refle- xées tedricas de profissionais da area. Ainda segundo Isabel Marques, é preciso es- tar “atentos ao fato de que a escola deve dia- logar com a sociedade em transformacao, (j4 quel ela é um lugar privilegiado para que © ensino de danga se processe com qualida- de, compromisso e responsabilidade” 0 objetivo desta série que a TV Escola apre- senta, por meio do programa Salto para o Futuro, é justamente “integrar 0 conheci- mento do fazer danga, ao pensé-la na vida em sociedade”, ou seja, voltando a epigrafe, desenvolvendo, por meio da danga o sentido € de suas miltiplas linguagens nas escolas. de cidadania Nos programas televisivos ¢ nos textos da publicacao eletrénica, professores, profes- Rosa Helena Mendonca’ 1 _httpyjwwwcrodavivafapesp.br/materia/37ojentrevistadosjana_mae_barbosa 3998 htm 2 Supervisora Pedagégica do programa Salto para o Futuro) TV Escola (MEC) Danca NA ESCOLA: ARTE E ENSINO INTRODUGAO Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) do Brasil instituiu 0 ensino obrigatério de Arte em territério nacional e, em 1997, com a publicagao dos Parametros Curriculares Nacionais (PCN), a danga foi incluida ofi- cialmente, pela primeira vez na histéria do pafs, como uma das linguagens artisticas a ser ensinada pela disciplina Arte. Hoje, no Brasil, cresce o ntimero de universi- dades e instituigdes de ensino que vém pro- movendo cursos de Graduagao, Especializa- go e Mestrado em Dancajensino de Danca Ja so muitos € constantes os congressos, simpésios ¢ encontros na Area de Arte que esto incluindo a danga como parte de seus programas. Ainda assim, como em varias partes do mun- do, persistem no Brasil alguns “desentendi- mentos” sobre o campo de conhecimento da danga, Por exemplo, na escola, em que disciplina a danga seria ensinada: nas aulas Isabel Marques * de Arte, ou nas aulas de Educacao Fisica? Sera que deverfamos pensar uma disciplina exclusivamente dedicada & danga? Ou ain- da, sera que deverfamos deixar o ensino de danga a informalidade das ruas, dos trios elétricos, dos programas de auditério, dos terreiros, da sociedade em geral? Mas 0 que é afinal a danga na escola? Area de conhecimento? Recurso educacional? Exercicio fisico? Terapia? Catarse? Quem es- taria habilitado a ensinar danga? 0 bacharel em Danga, ou este bacharel deveria, neces- sariamente, ter cursado a Licenciatura? O licenciado em Arte estaria habilitado a en- sinar danga nas escolas? E 0 licenciado em Educagao Fisica? As pedagogas estariam ap- tas a trabalhar esta disciplina na Educagao Infantil e no Ensino Fundamental? Enfim, que nome dariamos a “danga da escola"? Expressdo Corporal? Danga Educativa? Ou tantos outros que escutamos por ai? 1 Escritora, diretora e coreégrafa de danga. Graduada em Pedagogia pela USP; mestre pelo Laban Centre for Movement and Dance, Londres; doutora pela Faculdade de Educagao da USP em 1996. Redatora dos Parametros Curriculares Nacionais (Danga) e de documento de Danga para América Latina, Fundou e dirige com Fabio Brazil 0 Caleidos Cia. de Danga e o Instituto Caleidos, em Sao Paulo, SP. Autora dos livros Ensine de Danca Hoje (6%. ed), Dangando na Escola (6%. ed.) e Linguagem da Danga: arte e ensino. Consultora da série. Independentemente deste campo minado que, infelizmente, vem se formando ao lon- go dos anos entre profissionais que se con- sideram habilitados a ensinar danca, acima de tudo, é a pluralidade que tem marcado as atividades da danga ensino no pals. Convivem diferentes modalidades e formas de danga, produgdes artisticas e propostas educativas, nos mais diversos locais de re- alizagéo, contando com apoios que ora se inter-relacionam, ora se ignoram, que algu- mas vezes se cruzam e se entreolham, mul- tifacetando tanto 0 mundo da danga quanto o mundo da educagao dedicado a ela. € nesta perspectiva da diversidade e da mul- tiplicidade de propostas e ages que caracte- rizam o mundo contemporaneo que seria in- teressante langarmos um olhar mais critico sobre a dana na escola. Atentos ao fato de que a escola deve dialogar com a sociedade em transformagao, ela é um lugar privilegia- do para que o ensino de danga se processe com qualidade, compromisso e responsabi- lidade. AAs relagdes que se processam entre corpo, danca e sociedade sao fundamentais para a compreensio e eventual transformacao da realidade social. A danga, enquanto arte, tem o potencial de trabalhar a capacidade de criagdo, imaginacao, sensacdo e percep- 40, integrando 0 conhecimento corporal ao intelectual. Desde a década de 1980, a partir das pro- postas de Ana Mae Barbosa, discutese a necessidade de ampliar o conhecimento em Arte, ou seja, Arte na escola nao é mais um sinénimo somente de fazer, mas também de ler e contextualizar trabalhos artisticos. No ambito da danca, isto significa que néo basta danar o carnaval, o pagode, o axé, as dangas urbanas, mas sim conhecer seus pro- cessos histéricos, coreograficos, estéticos e sociais. Na verdade, é este 0 grande papel da esco- la: integrar 0 conhecimento do fazer danga, ao pensé-la na vida em sociedade. £ impres- cindivel que nos preocupemos, atualmente, com a formagao e a educagao continuada de nossos professores nesta 4rea especifica do conhecimento, para que as atividades de danga nas escolas nao sejam meras repeti- des das danas encontradas na midia ou dos repertérios ja conhecidos de nossa tra- digo (as “dancas de passo”). Para tanto, seria relevante discutirmos a danga no curriculo escolar e como vém se processando esas relagGes entre curricu- lo, projetos e programas. Entendida como linguagem (@ ndo como um conjunto de passos), a danga tem uma fungao importan- tissima na educaggo do ser humano com- prometido com a realidade, pois possibilita diferentes leituras de mundo. Das manifes- tages populares 4 danca contemporanea, a danga na escola deve ser capaz de possibi- litar ao aluno conhecer-se, conhecer os ou- tros e inserir-se no mundo de modo compro- metido e critico. A danga nas escolas - e, portanto, em socie- dade -, necessita hoje, mais do que nunca, de professores competentes, critics e cons- ientes de seu papel no que se refere a dia- logar e oferecer a alunos e alunas das redes de ensino que, de outra forma, nao teriam oportunidade de conhecer. A danga nas es- colas necessita de propostas intencionais, sistematizadas e amplas, para que essa lin- guagem possa efetivamente contribuir para a construgao da cidadania. Os debates da série visam também discutir © ensino de danga em projetos sociais, tendo em vista que, hoje em dia, a danca tem es- tado presente em diversas situacdes fora da escola - dos programas de TV aos projetos sociais. A danga da escola deve ser diferente das dangas ensinadas nos projetos sociais? Por qué? 0 que aproxima e/ou afasta a danga nos projetos sociais e a danga na escola? Outro tema relevante é discutir a formacao de professores de danga. Uma das questoes mais cruciais hoje em dia, no que tange ao ensino de danca, é a formacao de profes- sores. A rigor, quem deveria ensinar danca €o licenciado em Danga, mas, na pratica, outros profissionais tém se encarregado dis- so: licenciados em Pedagogia, Arte, Misica ‘ou Educacao Fisica tomam para si a area de Danga, sem que tenham necessariamente formagao e vivéncia em danga. Por outro lado, artistas da danga bastam-se em seus saberes artisticos e, mesmo sem formacao pedagégica, aventuram-se no campo do en- sino, Com a abertura de novos cursos de li- cenciatura em Danca em todo o pais, esse quadro tende a mudar. Como? Para que di- rego? Isso afetard definitivamente o ensino ¢ aprendizagem de danca nas escolas, nas ONGs, nas academias de Danga? TEXTOS DA SERIE DANGA NA ESCOLA: ARTE E ENSINO” A série tem como objetivo debater, na perspectiva da diversidade e da multiplicidade de pro- postas, agdes que caracterizam o mundo contemporadneo, através de um olhar mais critico so- bre a danga na escola. A escola deve dialogar com a sociedade em transformacao e representa um lugar privilegiado para que o ensino de danga se processe com qualidade, compromisso € responsabilidade. As relacdes que se processam entre corpo, danga e sociedade sao fundamen. tais para a compreensao e a eventual transformacao da realidade social. A danga, enquanto 2 Estes textos s#o complementares a série Danga na escola: arte e ensino, com veiculagao no programa Salto para o Futuro/TV Escola (MEC) de 23/04/2012 a 27/04/2012. arte, tem o potencial de trabalhar a capacidade de criacao, imaginagao, sensacao e percepgao, integrando 0 conhecimento corporal ao intelectual. Texto 1/PGM 1 - DANGA E CURRICULO ESCOLAR Discutir o ensino de danca dentro de uma perspectiva curricular ~ a inclusdo da danga como lin- guagem e conhecimento nos programas e projetos. Constantemente a danga tem sido alocada no rol das atividades extracurriculares (ou também chamadas de “contraturno”), ou trabalha da pontualmente como atividade em festividades. Como a danca tem sido inserida nos curri- culos das escolas? Em que disciplina a danca tem sido efetivamente ensinada? Que relagdes a danga pode tragar com as outras areas de conhecimento dentro do curriculo escolar? Texto 2/PGM 2 — LINGUAGEM DA DANGA: ARTE E ENSINO Discutir a danga como linguagem artistica. Nem sempre a danca é entendida como linguagem em situacao escolar. Ao contrario disso, a danga é entendida como repertério (conjunto de passos, “coreografias”). Nesse texto e no programa, discutiremos a danca como linguagem € as contribuigdes de Rudolf Laban para a construcdo de referenciais para 0 ensino de danca nas escolas. Discutiremos esses referenciais na medida em que contribuem para um ensino voltado para o potencial criativo dos alunos e para a possibilidade de eles serem autores de suas préprias dancas. Texto 3/PGM 3 - As MANIFESTACOES POPULARES DA DANGA EA ESCOLA Discutir o lugar das manifestagdes populares da danga em contexto escolar. Considerando-se que a danga esta presente nas mais diversas manifestacGes populares, ou seja, que ela pode ser aprendida nas ruas, eventos, festejos e casas de danca, como se inserem as manifestacdes populares da danca no ambiente escolar (das Festas Juninas as dangas urbanas)? Qual seria 0 papel desses repertérios nos processos de ensino ¢ aprendizagem da danga na escola? Estes textos também sao referenciais para as entrevistas e debates do PGM 4: Outros olhares sobre Danga na escola e do PGM 5: Danca na escola em debate. REFERENCIAS BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte. Séo Paulo: Perspectiva, 1991. FONTANA, Roseli. Como nos tornamos pro- fessoras? 32 ed, Belo Horizonte: Auténtica, 2005, LABAN, Rudolf. Danga educativa moderna Sao Paulo: cone, 1990. MARQUES, Isabel. Dangando na escola. 5* ed. Sao Paulo: Cortez, 2010. MARQUES, Isabel. Linguagem da danca: arte e ensino, Sao Paulo: Digitexto, 2010. MOMMENSOHN, Maria e PETRELLA, Paulo. Reflexdes sobre Laban, o mestre do movimen- to, Sao Paulo: Summus, 2006. Silva, Tomaz Tadeu. Teoria educacional critica em tempos pés-modernos. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993, Texto 1/PGM 1: DANGA E CURRICULO Adanga é uma manifestacdo cultural bastan- te significativa em nosso pais e nao é recen te a sua presenca nos espacos escolares de forma recorrente, seja como festejo, como atividade, ou como conhecimento. Nesse texto, priorizaremos a discussio da danca como um conhecimento presente na orga- nizagdo curricular nas escolas de Educacao Basica, ou seja, a danca ensinada como um contetido. £ preciso enfatizar, ainda nesse Inicio, que as reflexes aqui apresentadas se distanciam da visao de curriculo como uma estrutura rigida, que estipula metodicamen- te o que deve ou nao ser ensinado na escola, © se aproximam da compreensio de que 0 curriculo pode se constituir um espago de organizacao e articulagao dos conhecimen- tos produzidos dentro e fora da escola, as- sim como dos modos de compartilhé-los. Portanto, compreendemos o curriculo como espago de didlogo e de producao de novas formas de perceber e atuar no mundo em que vivemos, advindas do reconhecimento e da reflexao sobre as formas ja consolidadas pelo tempo. Karenine de Oliveira Porpino' No caso do contetido Danca, podemos con- siderar que a Lei de Diretrizes e Bases na Edu: cagao Nacional (LDB), promulgada em 20 de dezembro de 1996, e em seguida, a publica 40 dos Parametros Curriculares Nacionais, em 1997, constituem-se documentos legais que contribuiram de forma significativa para que a danca pudesse ser devidamente reconhecida como um conhecimento a ser considerado na organizacao curricular de nossas escolas (BRASIL, 1998; BRASIL, 2000). Embora ja existissem, naquela época, rela- tos de experiéncias exitosas com o ensino da danga na escola, no contexto do ensino da Arte e da Educacao Fisica, os documentos anteriormente citados passaram a conside- rar esses espacos de aprendizado como com- ponentes curriculares ligados organizacao curricular das escolas e nao apenas como atividades. Esse fato também repercutiu na visibilidade dos conhecimentos dessas areas como contetidos a serem abordados a partir de uma articulagao com outros componen- tes curriculares, e entre esses conhecimen- tos destacamos a danga, que historicamente 1 Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde atua no Curso de Danga (Licenciatura), nna Pés-graduaglo em Educacio e em Artes Cénicas, eno Grupo de Pesquisa em Corpo, Danga e processos de criagio = CIRANDAR, marcou sua presenga nessas duas areas de conhecimento: Arte e Educagao Fisica. Nos cinco iiltimos anos, a discussao sobre © ensino da danga tem sido ampliada com a ctiagdo de novos cursos de licenciatura ‘em Danga no pais, em atendimento as poli- ticas do Ministério da Educagao (MEC) para a formagao de professores no Ensino Supe- rior que atendam as demandas do ensino de Arte na Educagio Basica, A criagdo e o forta- lecimento das licen- ciaturas em Danca, na atualidade, con- tribuem para dar sustentagao ao pro- jeto j4 iniciado com ‘os PCN, em 1997, no que se refere ao en- sino da danga como um contetido pre- sente nos curriculos escolares. No entan- to, embora a danga esteja comumente presente na escola, em situagdes variadas, a abordagem da mesma como um contetido ainda é timida em nosso pats, embora, nos tltimos anos, tenhamos acumulado discussdes em torno do tema danga e educagao, a exemplo de trabalhos de autores como Marques (2003, 2010), Frei- re (2001), Strazzacappa (2002, 2006), Saraiva (2008), Mattos (2011), Rengel (2008), entre outras referéncias que contribuem para que a danca seja pensada na escola como um A danga se faz presente no curriculo por ser um conhecimento produzido pelos individuos em varias culturas e 6 justamente por ser uma manifestagao cultural significativa que se justifica como contetido. campo de conhecimento relevante na edu- cago de criangas e jovens. Mas qual a especificidade da danca na esco- la como um contetido presente na organiza- 40 curricular? Antes de responder a essa questo, é preci- so reconhecer que, apesar de o aprendizado da danga na escola ter suas especificidades, ‘esse nao € 0 dinico espaco social onde a dan- ga se faz presente Portanto, & necessé- rio entender 0 que caracteriza essa es pecificidade sem, no entanto, perder de vista 0 didlogo entre a escola e ou- tros espacos sociais nos quais os alunos vivenciam 0 dan- gar. Ou melhor, essa compreensdo & im- prescindivel para que a danga na escola te- nha reconhecimento como contetido. ‘A danca no curriculo deve fazer parte de um projeto educacional previsto pelas institui- ‘Ges escolares e, para tanto, deve ser con- siderada como uma expressio do ser huma- no, uma producao cultural que pode ensinar muito sobre como os individuos vivem e se organizam em sociedade, como se movi- mentam e comemoram suas realizagoes. A 10 danga se faz presente no curriculo por ser um conhecimento produzido pelos individu- os em varias culturas e é justamente por ser uma manifestagao cultural significativa que se justifica como contetido. Avivéncia da danga como um contetido na escola, portanto, tem suas especificidades € diferente vivenciar a danga na escola e em outros espacos sociais, como num cur so de balé, ou na rua, por exemplo. Nesses contextos, aprender a dangar pode ter ob- jetivos espectficos, como formar bailarinos, integrar-se socialmente ou manter uma tradigao. Na escola, esses contextos sociais podem ser considerados como situacdes em que é possivel reconhecer a danca em suas mais variadas formas de expressao, as quais atendem a fungées sociais especificas. Mas a escola tem também seus prdprios objeti- vos com relagao a dana. £ fungao da escola contribuir para ampliar a compreensao do aluno sobre 0 ato de dangar, uma vez que, além do aprendizado do gesto dancante, ele aprender, também, a apreciar os varios re- pertérios da danga, a conhecer seus diver- sos significados sociais e a discutir a danga como forma de expressao artistica em diver- sas culturas, inclusive no contexto social em que ele vive. Nessa perspectiva, nao é papel da danca no curriculo priorizar a execugao da danga visando a performances artisticas excepcionais ou mesmo a um aprendizado sistematico de uma técnica especifica, mas a sensibilizagao do aluno para que ele pré- prio se reconhega como individuo produtor desse conhecimento na sociedade em que vive, a0 mesmo tempo em que reconhece como se produz a danca em outros lugares. Nesse contexto, é preciso que a escola crie condigdes para que o aluno se reconheca como individuo dangante, a partir da vivén- cia das formas de dancar disponivels, como também da produgao de outras formas de dangar advindas da pesquisa gestual, da apreciacao da danga do outro e das possi- bilidades especificas do contexto vivido. Na escola, a danga, assim como os outros con- tetidos, deve permitir uma visdo mais am- pliada da realidade social e de como intervir nela criativamente. Mas, diante da diversidade do conhecimen- to produzido sobre danca, como este pode ser organizado no contexto escolar de modo que contemple as especificidades até entao comentadas? Passemos a refletir sobre os contetidos, os procedimentos de ensino e as formas de avaliar 0 ensino da danga na escola. Para a organizagao do ensino de danca na escola, é importante considerar algumas referéncias, dessa forma, citaremos trés: os documentos nacionais (PCN, RCNEI, PC- NEM...) € institucionais (Projeto Pedagégi- co) que orientam a organizacao curricular e © ensino nas escolas; 0 contexto social no qual se inserem as priticas de ensino e as experiéncias e vinculagao do professor com un a area de conhecimento. A conexao dessas referencias & imprescindivel para a organi za¢ao de um ensino que esteja adequado as condigdes em que se realiza e que possa re- almente contribuir com a formagao dos in dividuos, Outro dado importante é atentar para o conhecimento produzido na contempora- neidade, 0 qual permitiré uma atualizacao permanente da pratica pedagégica do pro- fessor. No caso da danga, por se tratar de uma linguagem artis- tica, faz-se_imprescin- divel que 0 professor esteja_atento e possa dialogar com os artistas € as varias producdes da danga em seu con- texto social e em outros contextos, assim como ter acesso ao conheci- mento que reflete sobre elas, incluindo aqui o conhecimento produzido nas universidades. A articulagao das trés referéncias comen- tadas anteriormente j4 dé algumas pistas para a organizagao dos contetidos a serem abordados no ensino da danca na escola, no entanto, faz-se também necessério diag- nosticar 0 conhecimento dos alunos sobre a danga, como também os conhecimentos que circulam nas regides em que as escolas estao localizadas, os modos de organizacao O aprendizado do movimento da danca nao se faz somente pela imitagao do gesto dancante ou pelo aprendizado de uma forma especffica de dangar. social das comunidades e de produgao e di- fusdo de suas produgées culturais. A identi ficagao das producGes de danca existentes, assim como de seus produtores, das formas como se organizam para criar dangas e para manté-las e, ainda, dos espacos nos quais as obras coreograficas sao criadas e aprecia~ das sao acées imprescindiveis para que o(a) professor(a) possa vislumbrar contetidos possiveis que possam dialogar com o conhe- cimento prévio dos alunos e com 0 conheci- mento produzido na area. Assim, os conteti- dos do ensino da danga na escola sao os conheci- mentos —_ especi- ficos que carac- terizam a danga como uma pro- dugao da cultura, dizem respeito as diversas formas de dangar (téc- nicas e estéticas das variadas dancas da tradicao, das dangas urbanas e eruditas), as formas de improvi- sagao, as formas de composicao coreografi- ca, 0s elementos constitutivos dos gestos de danga e os géneros de danga jé produzidos nas diversas culturas, entre outros (MAR- QUES, 2003). Esses contetidos caracterizam uma produgao espectfica da danga, que pode ser abordada na escola a partir de vin- culos com os contextos vividos pelos alunos, © interesse que possa despertar neles, abrin- 2 do assim novos horizontes de conhecimento sobre o dangar, mais amplos e aprofunda- dos, Essa perspectiva de delimitagao dos conte- Aidos esté diretamente relacionada aos pro- cedimentos de ensino a serem vivenciados em sala de aula, uma vez que pressupde agées de pesquisa, apreciagao, discussao, reflexio, identificagdo, dentre outras agdes que podem complementar, ampliar e con- textualizar a vivéncia gestual da danga. 0 aprendizado do movimento da dana nao se faz somente pela imitagao do gesto dan- gante ou pelo aprendizado de uma forma especifica de dangar. Embora importantes, essas acdes se complementam e se ressig- nificam com outras agdes como, por exem- plo, a exploracao das possibilidades de no- vos gestos e a organizacdo dos mesmos em novas configuracées estéticas, a partir de agées colaborativas, que possam, inclusive, articular outras formas expressivas além da danga, quando necessario, Nessa perspecti- va de ensino, muitas possibilidades podem ser vividas como essas: vivéncia de diversos ritmos ¢ formas de dangar, aprendizado de gestos técnicos de dangas especificas, apre- ciagao de videos e espetaculos, investigagao de contextos ¢ artistas através das pesquisas de campo ou na internet, visitas a espagos de fomento e difusdo da danga, leituras de textos, andlise do gesto de dana, vivéncia de improvisacéo ou composicao coreografi- caa partir de temas, de objetos, de palavras, de caracteristicas gestuais de dancas ja exis- tentes, de pesquisa de movimento em deter- minados contextos sociais, entre outros pro- cedimentos que ampliem as possibilidades de vivenciar, criar, compreender, refletir e produzir conhecimento sobre danga (TIBUR- Clo, 2006). Podemos refletir que a abordagem do co- nhecimento da danga na escola, nessa pers- pectiva, nao prima pela adequacao do alu- no a modelos estéticos pré-configurados de dangar ou divulgar a danca, mas pela diver- sidade estética de modos de conceber e sig- nificar a danga em varias situacdes social Nesse contexto, a discussao sobre os proce- dimentos de avaliagdo torna-se importante como agao que permita dar continuidade, reformatar ou ampliar as experiéncias de ensino, e sinalizar uma visdo de avaliagao que se contraponha a formas tradicionais de avaliacao do ensino da danga, que primam pela adequacao do corpo aos modelos fixos de beleza e execugao técnica, ou ao contré- rio, que primam pelo livre fazer do aluno diante da auséncia de critérios de avaliacao. Fazemos uma relagao dessas praticas com os estudos de Hoffman (s.d.) sobre avaliacao, para caracterizar tais praticas, respectiva- mente, como reprovativa, por buscar indices abusivos de comparacao e, consequente- mente, de reprovagao; ou como permissiva, por fazer parte de atitudes que raramente reprovam o aluno. No campo da danga, tais praticas conservadoras acontecem na con- 13 tramao das agdes pedagégicas discutidas nesse texto e poderdo reforcar uma ideia de avaliagdo como classificagao dos melhores ‘ou como uma mera formalidade escolar. ‘A organizacao da avaliagao se faz em rela- G0 direta com os objetivos e com a possi- bilidade de dar visibilidade a relacao entre os conhecimentos prévios dos alunos sobre © contetido abordado e suas produgées so- bre 0 mesmo tema. No ensino da danga, os instrumentos de avaliacao podem abranger apresentagdes de composicdes coreografi- cas, relatos orais e/ou escritos de pesquisas, de trabalhos de elaboracao conjunta, bem como de apreciacao de videos ou espetacu- los. Outros instrumentos podem ser confi- gurados com especificidade na delimitacao dos contetidos e dos critérios de avaliagao. Com base nos PCN, ressaltamos que esses critérios podem ser discutidos com os alu- nos como forma de os mesmos participarem. ativamente de um processo avaliativo con- tinuo e contextualizado (BRASIL, 1998, 2000). Assim o professor pode dar condicdes para que o aluno reconhega as formas de obten- a0 de éxito, além de reforcar a compreen- sdo de que o aprendizado é responsabilidade conjunta de professores e alunos. As ideias e sugestées discutidas nesse texto indicam um olhar para a danga que nao se fixa em estéticas especificas ou mais valo- rizadas socialmente, mas permite ao aluno vislumbrar um leque de possibilidades do dangar e reconhecer a danga como uma pro- dugao cultural com suas peculiaridades con- textuais e temporais. Nesse caso, considera: mos que a abordagem da danga na escola, na atualidade, tem muito a dialogar com os modos de producao e difusao da Danga Con- temporanea, que por caminhos diversos e instigantes tem investido na flexibilidade de ideias e atitudes, na diversidade de corpos € gestualidades, para a criagio de configu- rages estéticas abertas e atadas aos seus objetivos artisticos, seus atores e seus con- textos (PORPINO, 2006). Sobre Danca e Curriculo, certamente ainda ha muito que discutir, conforme a diversi- dade das escolas, dos alunos e da prépria danga. Para continuar a conversa, é impor tante pensar a escola como um espago de sensibilizagao do aluno para o conhecimen- to, de reconhecimento da danga como for- ma de produzir arte e de compreensao da arte como um conhecimento imprescindivel para que possamos viver o mundo em pers- pectiva estética REFERENCIAS BARRETO, Débora, Danga...: ensino, sentidos ¢ possibilidades na escola. Campinas: Autores Associados, 2004. BRASIL. Secretaria de Educagao Fundamen- tal, Parametros Curriculares Nacionais: Edu- cacao Fisica. Brasilia: MEC/SEF, 1998. 4 Secretaria de Educagao Fundamen- tal. Parametros Curriculares Nacionais: Arte, Brasilia: MEC/SEF, 2000. FREIRE, Ida Mara. Danga-educagao: 0 corpo € 0 movimento no espaco do conhecimento. Cadernos Cedes, ano XXI, n® 53, 2001. Dispo- nivel em: httpyfwww-scielo.br/scielo.php?pid=So101- 32622001000100003&scriptesci_arttext HOFFMANN, Jussara Maria Lerch. Avaliagao Mediadora: uma relagao dialégica na cons- trugao do conhecimento. Disponivel em: http://www.ufpel.edu.br/crm/pgl/diversos/ avaliacao_mediadora.pdf Acessado em: 29/01/2010. MARQUES, Isabel. Dancando na Escola. S40 Paulo: Cortez, 2003. Linguagem da danga: arte e ensino, Sao Paulo: Digitexto, 2010. PORPINO, Karenine de Oliveira. Danca é edu- cagéo: interfaces entre corporeidade e estéti- ca, Natal: EDUFRN, 2006. STRAZZACAPPA, Marcia e MORANDI, Carla Entre a arte ea docéncia: a formacao do ar- tista da danca. Campinas, SP: Papirus, 2006 STRAZZACAPPA, Marcia. Danca na educagdo: discutindo questoes bésicas ¢ polémicas. Re- vista Pensar a Pratica, 6: 76-85, 2002. RENGEL, Lenira. Os temas de movimento de Rudolf Laban: modos de aplicacao e referén- cias i, ii, iii, iv, v, vi, vii e viii. So Paulo: An- nablume, 2008. SARAIVA, Maria do Carmo, Elementos para uma concepgao do ensino da danga na esco- la: a perspectiva da educacao estética. Revis- ta Brasileira de Ciéncias do Esporte, v. 30, n® 03, p. 157-171, 2009. 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Chamo de repertérios as “coreogra- fias” jé estabelecidas de danga: eles vao de Giselle, repertério famoso do balé classico, as dangas das bandas de axé, televisionadas. Sao repertérios conhecidos do universo das escolas a Quadrilha, 0 Maracatu, 0 Coco, a Ca- poeira, 0 Frevo, o Samba, o Forr6. Introduzidos Isabel Marques’ pelos alunos, ha dezenas de fragmentos de dancas cujas origens se encontram em DVDs, programas de TV ou em bandas de misica. Além desses, ainda existem os repertérios de companhias ligados a coreégrafos espect- ficos ou a tradigao da danca cénica: Lamen- tation € um repertério da Martha Graham Dance Co., dos Estados Unidos; Parabelo é um repertério do Grupo Corpo, companhia de danga brasileira, e assim por diante Do ponto de vista do senso comum, coreo- grafias so sequéncias, conjuntos de passos em uma determinada ordem que acompa- nham uma misica. Isso nao deixa de ser correto, mas podemos ir além do senso co- mum: as “coreografias” sao articulagées de signos, sao escolhas pessoais e/ou da tradi- Ao que sao in(corpo)radas € corporeificadas pelos intérpretes dancantes para produgao de sentidos. As coreografias podem ou nao ser acompanhadas por miisicas, e nem sem- 1 Eseritora, diretora e coreégrafa de danga. Graduada em Pedagogia pela USP; mestre pelo Laban Centre for Movement and Dance, Londres; doutora pela Faculdade de Educagao da USP em 1996, Redatora dos Parametros Curriculares Nacionais (Dan¢a) e de documento de Danga para América Latina, Fundou e dirige com Fabio Brazil © Caleidos Cia. de Danga e 0 Instituto Caleidos, em Sao Paulo, SP. Autora dos livros Ensino de Danga Hoje (6*. ed) Dangando na Escola (6%. ed.) e Linguagem da Danga: arte e ensino. Consultora da série. 16 pre se configuram como sequéncias preesta- belecidas de passos conhecidos ou decora- dos a priori Os diferentes repertérios de danca sao como livros: necessitamos deles para a fruicao da arte, para o aprendizado, para a produ- Gao pessoal e/ou coletiva de novos textos. Conhecemos de longa data o inestimavel valor da leitura de livros, mas nem sempre estamos conscientes da importancia de lei- turas de coreografias, os “textos da danga” Ou seja, ha muito tempo a escola re- jeita a reprodugao (“decoreba”) de tex- tos escritos como processo de ensino © aprendizagem da linguagem verbal Os professores ja nao aceitam mais - pelo menos em tese ~ processos de leitu- ras que ndo estejam voltados para compre- ensGes criticas dos textos lidos e produzidos ‘Ao contrario disso, na grande maioria das escolas em que a danga é ensinada, crian- as, jovens e adultos continuam “decoran- do textos”, ou seja, aprendendo repertérios de danca de forma mecanica, superficial, acritica, por meio de cépia e reproducao de sequéncias de passos preestabelecidas. Por mais significativo que um repertério sejaem Os diferentes repertérios de danga sao como livros: necessitamos deles para a fruigdo da arte, para 0 aprendizado, para a os. producao pessoal e/ou coletiva de novos textos. seu contexto - por exemplo, os repertérios das dangas brasileiras -, se ele for ensinado de forma mec§nica e acritica, pouco esta- 14 de fato contribuindo para a educagao de nossos alunos e alunas. Cada repertério de danca - cada “texto” de danga - é um recorte de uma época em re- lagdo a um dado contexto sociopolitico ¢ cultural, cada “texto” de danca é um modo de ver e entender 0 mundo, Assim, ao danga- los, temos também a oportunidade de com- preender em nossos corpos essas épocas, espacos, pessoas, re- lacdes. Para que isso aconteca, no entan- to, € necessério que repertérios de danga sejam ensina- dos com amplitude, profundidade e cla- reza. Em situagao escolar ou educacional, antes que sejam lidos pelas criancas, jovens e adul- tos, os textos de danca - seus repertérios - devem ser cuidadosamente escolhidos. Essa escolha deveria passar pelos mesmos crité- rios que temos na escolha de livros para os alunos e alunas. Em primeiro lugar, os re- pertérios devem ser escolhidos em funcao de sua importancia e significagao enquanto arte - devem ser ricas fontes de aprendizado da arte da danga. Em segundo, devemos nos 7 questionar 0 quanto os repertérios sugeri- dos permitem que os alunos aprendam no corpo algo sobre si mesmos e também sobre © mundo em que viver. Os repertorios a serem aprendidos e ensina~ dos nas escolas devem também ser ricos le- ques de tempos, espacos e relacdes; devem propiciar a ampliagao de conhecimento e, enfim, ser interessantes fontes de compo- nentes da linguagem. Conversaremos sobre esses componentes e suas contribuicdes nas leituras significativas da danga/mundo a se- guir. Desde que Ana Mae Barbosa, conhecida arte- educadora brasileira, formulou sua “Aborda- gem Triangular para o ensino da Arte” (vide Barbosa 1991, 1992, 2010), 0 ensino de reper- t6rios de danga em algumas escolas passoua considerar também a hist6ria dessas dancas como contetidos a serem trabalhados. Com a inclusao da Histéria da Danga no apren- dizado de repertérios, almeja-se uma con- textualizagao mais ampla daquilo que esta sendo dangado, pretende-se a criagao de re- lacdes entre tempos e espacos das dangas e dos dangantes. Isso, sern diivida, é bastante interessante e amplia consideravelmente os processos de ensino e aprendizagem dos re- pertérios. Sabemos que (..) @ compreensdo da histéria, das origens, das praticas culturais locais Ide repertérios de danga} sem davida acrescentaria ingrediente indispensdvel ao aprendizado das dancas. Na maioria das vezes, no entanto, esta histéria se presta somente para “melhorar” a interpreta- o dos passos (..). Nem sempre o conhecimen- to da histéria da danga ou das dangas garan. te aos alunos tracar caminhos préprios que intervenham e contribuam para participacao critica do individuo na sociedade contempord- nea. A histéria que ndo serve como interlocu- tora entre a danca ea sociedade atual, a danca € a pessoa que danca, entre a danca e 0 meio em que esta danca esté sendo interpretada é indtil em um processo que se pretende critico e transformador (MARQUES, 2003, p. 160). Para realmente aprendermos os repertérios de dana, nao é suficiente que os contextu- alizemos por meio de conversas, pesquisas, investigagées, ainda que isso seja extrema- mente importante, Sabemos que o aprendi- zado da danga passa necessariamente pela incorporagao e pela corporeificagao da mes- ma, ou seja, pelo ato efetivo de dancar. A compreensio corporal daquilo que se danca € ponto fundamental para que nos torne- mos também coautores das dancas que dan- amos, Em outras palavras, compreender teoricamente tempos e espacos das danas 2 ‘A compreensio corporal implica a compreensio mental, da qual 6 indissocivel, pois mente e corpo séo indissociavels (RENGEL, 2008) e nao dever ser entendidos separadamente nos processos de ensino ¢ aprendizagem da danga. 18 € somente uma etapa dessa coautoria nos processos de ensino e aprendizagem da dan- ga nas escolas (MARQUES, 2010). Paulo Freire dizia que “educar é impregnar de sentidos cada ato cotidiano” (In: GADOT- TI, 1998). As dangas de repertério ensinadas € aprendidas de forma mecanica (cépia e reprodugao) sdo geralmente desprovidas de significado e de significago, acabam nao fazendo sentido, portanto, nao estariam, a rigor, educando. Mas, entao, como poderfa- mos impregnar de sentidos os processos de ensino e aprendizagem dos repertérios de dangas trabalhados nas escolas? Para ampliarmos, aprofundarmos e real- mente compreendermos os diferentes re- pertérios de danga em nossos corpos e em nossas vidas, seria necessdrio sabermos como essas dangas se processam nos corpos dos alunos: 0 que sentem? 0 que percebem? © que sabem sobrejna danca em si (e nao somente de seus contextos espaco-tempo- rais)? Como essas dangas foram construidas € que didlogos corporais sao possiveis de se estabelecer com elas? Voltemos a0 conceito inicial de “coreogra- fia” tratado no inicio desse texto: as “coreo- grafias” sao articulagoes de signos, escolhas pessoais e/ou da tradicao que sao incorpora- das pelos intérpretes dangantes. Ou seja, as dangas “prontas” que hoje se apresentam, um dia, foram criadas a partir de elementos da linguagem (signos) escolhidos por coreé- grafos conhecidos ou pela tradicao (muitas vezes, autores andmimos) Para compreendermos melhor esse concei to, tomemos como exemplo inicial as Artes Visuais: para compor uma pintura, artistas deve escolher cores, linhas, texturas, for mas etc. Um artista da danga, ou seja, um coredgrafo, para realizar um repertério (“co- reografia”), deve escolher elementos da dan- Ga que digam respeito ao corpo, ao espaco, as qualidades de movimento etc. Corpo, es- ago, qualidade de movimento sao, entre ou- tros, os elementos da linguagem da danga. Mas 0 conhecimento da linguagem e de seus elementos nao € necessétio somente aos artistas: ele € de extrema importancia também para os fruidores (apreciadores) da dangajarte. Da mesma forma que para compreendermos/lermos uma pintura é necessario que conhecamos as cores, as li- nhas, as formas e que para lermos um livro é necessario que dominemos 0 vocabulério, a ortografia, a gramética, para que compre- endamos com profundidade os repertérios de danca, ou seja, para que possamos “lé- los", precisamos conhecer seus elementos (signos): 0 corpo, o espago, as qualidades de movimento etc. Vejamos, como exemplo, alguns repertorios de balé classico. A tradigao do balé, por di- ferentes razes que nao trataremos aqui, escolheu, entre outros, para compor suas coreografias, um corpo articulado (pernas e 19 bracos), 0 peso leve, o espaco verticalizado (nivel alto do espaco). J4 a capoeira, de ori gem afro-brasileira, tradicionalmente ele- geu para a composicao das dancas um corpo mais integrado, com peso firme, que alcan ca 0s diferentes niveis do espaco. Diferentes repertdrios so compostos por uma selecdo de diferentes signos da linguagem da dan a. Assim, ao compreendermos no corpo (ou seja, efetivamente dancando) as rela- ges entre os elementos/signos da lingua- gem presentes nos diferentes repertérios, estaremos também tendo a possibilida- de de impregnar de sentidos os reperté- rios que dangamos. Em suma, para que possamos dancar compreendendo, percebendo e lendo criticamente os re- pertérios das mais distintas dangas, o aprendizado dos signos da linguagem € extremamente importante. € necessario que nos apropriemos (incor- poremos) os componentes da linguagem da danga, para que possamos compreendé-la de forma critica, consciente, provida de sen- tidos, ‘Aqui entramos em outra seara do ensino de danga: & importante que o ensino da dan- a nas escolas seja focado nos processos de A danga ensinada e aprendida como linguagem pode permitir, além das leituras de repertério pelos intérpretes e pelos apreciadores, a producao de textos de danga ensino e aprendizagem da linguagem, pois a danga nao € s6 repertério, é, sobretudo, linguagem artistica. Nao estamos aqui afir- mando que o ensino de repertdrios nas es- colas deva ser esquecido ou abandonado, seria o mesmo que dizer as criancas que abandonassem os livros. No entanto, a me- os que compreendamos a danga como lin guagem, nossos alunos e alunas sero inca- pazes de realmente compreender, perceber ¢ ler criticamente os repertérios que estdo dangando. A linguagem, por definigao, é um “sis- tema de signos que permite a producao de significados”. Ao pensarmos a danca como um sistema, queremos dizer que “a danga € um con- junto partilhavel de possibilidades de combinagao e arranjo dos campos de signi- ficagdo...” (MARQUES, 2010, p. 102), a danga 6 uma rede de relagdes. 0 signo é tudo aquilo que quer dizer alguma coisa para alguém - a palavra “mesa”, por exemplo, € um signo, Os signos produzem diferentes significados, pois cada ser humano atribui ao signo um ou mais sentidos além do sentido conven- clonal. Por exemplo, no que se refere a pala- vra “mesa”, a depender do momento histé- rico e da sociedade, ha variantes de sentido. 20 Por essa razao, dizemos que a linguagem - qualquer que seja - nao espelha 0 mundo, ela é uma acdo sobre o mundo, A arte, com- preendida como linguagem, portanto, tam- pouco espelha o mundo, ela 6 isto sim, agao sobre ele. Nessa linha de argumentacao, a danga, compreendida como linguagem artis- tica - e nao somente como repertério - tem © potencial de agir sobre 0 mundo. 0 jogo articulado entre os signos da danga é que permite as criangas, jovens e adultos a des- coberta de suas préprias possibilidades cor- porais, em diélogo com as possibilidades do sistema da danga. Se entendermos a danca como linguagem em situagao escolar, esta- remos aprendendojensinando nossos alunos a agir sobre 0 mundo de forma consciente, critica e ética. ‘A danga ensinada e aprendida como lingua- gem pode permitir, além das leituras de re- pertério pelos intérpretes e pelos apreciado- res, a produgao de textos de danca. Ou seja, a0 conhecerem os elementos da linguagem, alunos e alunas podem “escrever seus pré- prios textos”, compor, coreografar. Conhe- cendo os elementos da linguagem, criancas, jovens e adultos serao capazes de criar suas préprias dancas, tornando-se leitores autores, protagonistas dos processos educacionais. Para concluirmos, o importante aqui é en- tendermos que a danca nao pode se resumir a0 aprendizado de repertérios, mesmo que esses sejam escolhidos com critérios e ensi- nados com amplitude e profundidade. Nao podemos, como professores, nos limitar a “repassar” repertérios - precisamos fazer ‘com que nossos alunos e alunas se tornem leitores criticos e, sobretudo, produtores, autores da danga. Com isso, poderdo ser também leitores ¢ cocriadores do mundo (MARQUES, 2010). REFERENCIAS BARBOSA, Ana Mae. A imagem no ensino da arte, Sao Paulo: Perspectiva: 1991. Modernidade e pés-modernidade rno ensino da arte. MAC Revista, v.1, n. 1, p. 6-15, abril, 1992. BARBOSA, Ana Mae; CUNHA, Fernanda (orgs.). Abordagem triangular no ensino da arte e cultura visual. $40 Paulo: Cortez, 2010. GADOTTI, Moacir. Programa de radio “Paulo Freire, andarilho da utopia”, parceria entre a Radio Nederland eo Instituto Paulo Freire, 1998. MARQUES, Isabel. Dancando na escola. Sao Paulo: Cortez Editora, 2003. Linguagem da danca: arte e ensino. Sao Paulo: Digitexto, 2010. RENGEL, Lenira. Os temas de movimento de Rudolf Laban. Sao Paulo: Annablume, 2008. 21 Texto 3/PGM 3: AS MANIFESTAGOES POPULARES DA DANGA E A ESCOLA MANIFESTAGOES POPULARES E A EDUCAGAO: ENTRE O DITO E O NAO DITO INTRODUGAO Este texto apresenta alguns estudos que ve- nho realizando a fim de discutir questées que considero importantes sobre as mani- festacdes populares e seus lugares na esco- la. Venho pesquisando as dancas populares brasileiras a partir de leituras de alguns did- rios de viajantes europeus para o interior do Brasil entre os séculos XIX e XX, especialmen- te para o Centro-Oeste, que revelam habitos, costumes e valores sobre os cédigos e con- dutas corporais e seus olhares civilizatorios sobre este Novo Mundo. Neste texto, apresentarei trechos de minha pesquisa com os didtios e discutiremos as abrangéncias e complexidades desses te- mas. S40 pequenas partes que, aos poucos, mapeiam questdes importantes da nossa historia e da meméria e que revelam dimen- sOes, sensibilidades e significados das ma- nifestagdes populares na vida das pessoas e seus grupos. ENTRE 0 DITO E NAO DITO Registros em didrios, entre o final do sécu- lo XIX e inicio do século XX, descritos por viajantes europeus que se aventuraram em expedigdes pelo interior do Brasil, em espe- cial no Centro-Oeste, revelam habitos, cos- tumes e valores sob os preceitos e cédigos ocidentais, expressos, especialmente, pelos estranhamentos do olhar civilizatério sobre ‘© “Nove Mundo” ‘As marcas e rastros encontrados em anota- Oes apresentam a figura dos bandeirantes, filhos de portugueses ou mamelucos, como importantes desbravadores dos sertoes de Minas Gerais, Mato Grosso e Goids, em bus- ca de alternativas para sanar a pobreza. Em Golds, escravizaram o indio para trabalhar nas cobigadas minas de ouro, como regis- trado por Buarque de Holanda, apud Garcia (2004), O achado do ouro promoveu a fixagao do ho- mem neste territério, contudo, as expectati- 1 Professora adjunta da UFG. Doutora em Educagio pela Unicamp. 22 vas sao transformadas com a decadéncia da garimpagem. Mediante a escassez do metal e com o necessério para sobreviver, a popu- ago ocupa 0 espaco produtivo goiano, se- dimentando o universo da cultura sertaneja, por meio de uma agricultura de subsisténcia € da pecudria de pequeno porte, configuran- do uma sociedade agraria. Neste perfodo, um grande niimero de natu- ralistas estrangeiros integrou os ciclos de expedigdes, uma espécie de conquista do “Brasil adentro”. Entre tais registros, nao podemos deixar de citar, talvez, o mais ilus- tre viajante que visita o Brasil e revela o in- terior do pats, o francés Saint Hilaire, como. acreditam alguns historiadores. Na primeira metade do séc. XIX, viaja durante seis anos, passando por Sao Paulo, Goids, Espirito San- to, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Este viajante minucioso descreve nao sé nossa fauna, flora, geografia, mas também as festas, as dangas, as comidas, os jeitos e gestos e, mesmo sob o olhar do exético e de estrangeiro, deixa uma riqueza de registros e demonstra seu especial encantamento por Minas Gerais, 0 que o leva a lamentar, cons- tantemente, a realidade paupérrima ea vida rude de Goids, bem como revela seu grande estranhamento pelas festas locas. A trés léguas de Laje parei na Fazenda Mandinga... nesta noite (23 de junho) celebrava-se uma grande festa, a de S. Jodo. Todos os anos os agricultores das redondezas tiram a sorte para saberem quem faz a festa, Neste dia era a vez do meu hospedeiro. Como primeira pro- vidéncia, fincou-se no chao um grande mastro, em cujo topo tremulava uma pequena bandeira com imagem do san- to. 0 patio da fazenda foi iluminado, ‘armou-se uma grande fogueira dando tiros para o ar gritando:” “Viva S. Jodo!” Nesse meio tempo, um violeiro cantava fanhosamente algumas modinhas bem tolas num tom plangente, acompanhan- do-se ao violdo. Em geral € a gente do povo que canta modinhas. As letras des- as cangées so muito jocosas, mas ou- vindo-se apenas a misica dir-se-ia que se trata de um lamento. Todavia, logo co- mecaram os batuques, uma danga obs- cena que os brasileiros aprenderam com os africanos. $6 os homens dancaram, € quase que todos brancos. Eles recusa- riam a ir buscar égua ou apanhar Jenha por ser isso atribuigdo dos escravos, e, no entanto ndo se envergonham de imi- tar suas ridiculas e bérbaras contorgées. Os brasileiros devem, sem divida, algu- ma coisa aos seus escravos, aos quais se misturam tao frequentemente, e que talvez the tenham ensinado o sistema de agricultura que adotam e a maneira de extrair 0 ouro dos cérregos. Além do mais, foram os seus mestres de danca. Depois da batucada meus hospedeiros, sem nenhuma transicéo, ajoelharam-se 23 diante de um desses pequenos oraté- rios... e entoaram as preces da noite... a cantoria e os batuques se prolongaram or toda noite, e as mulheres acabaram por participar deles” (SAINT HILAIRE, 1975, p.47). Para Saint Hilaire e outros viajantes que cita, os goianos se deixam dominar pela indoléncia e se entregam desenfreadamen- te aos prazeres dos sentidos. Menciona em nota “so os mesmos costumes, a mesma indoléncia, a mesma apatia, a mesma casa e jardim mal tracados, uma agricultura qua- se inexistente, 0 mesmo carinho e a mesma complacéncia pelos vagabundos que vivem de tocar violdo” (SAINT HILAIRE, 1975, p.55), A fusao de habitos, costumes e crencas her- dados e (re)dimensionados com os negros € indios & interpretada de forma negativa, mas paradoxal, pelos viajantes europeus que, ao terem fortemente engendrado os preceitos higiénicos ocidentais e a moral re- ligiosa crista, definem e classificam nossos valores e habitos. Entendemos que os registros retomam con- ceitos cientificos conhecidos como binarios e marcados pelo sistema de producao capi- talista, Ou seja, ditam regras e normas de convivéncia e subserviéncia, hierarquizam e circunscrevem o homem em relagdo @ na- tureza, A mente sobre 0 corpo, ao sagrado sobre 0 profano, legitimando parametros especificos como verdades ¢ (re)construin- do formas de controle. Saint Hilaire (1975) também deixa importan- tes anotagdes sobre a colonizagao do estado pelos paulistas em guerras travadas com os Caiapés, nome dado pelos portugueses aos indios locais, que viviam sob a regéncia dos Jesuftas, que os consideravam pouco capazes de organizagao e de governo. Este mesmo viajante, ao passar por Santa Cruz, cidade goiana na rota dos bandeirantes, deixa ano- tagdes relevantes sobre o local, referindo-se, por exemplo, a pobreza e as dificuldades que assolavam a regio por causa da devastado- ra exploragao e da ganancia pelo ouro. © olhar estrangeiro que se configurava sobre 0 interior do pafs é contado também por via- Jantes como Georg Wilhelm Freireyss (1982), que em 1813 escreve “Viagem ao interior do Brasil”. Tais registros apresentam relacdes histéricas sobre a escravidao e as tribos in- digenas brasileiras, seus habitos, costumes eas tradigdes que se formaram a partir da constitui¢ao deste “novo povo”, sob o viés de absoluto estranhamento, Numa fazenda fomos muito bem rece- bidos, porém, nao tivemos descanso por causa de muitos escravos que se tinham 2 Estudos sobre instituigdes aprendentes podem ser encontrados na obra de Peter Senge. 24 reunido no terreiro da casa, onde dan- gavam a noite toda, com uma miisica infernal uma gritaria insuportével, tal qual Langgsdorff 0 tinha descrito em Santa Catarina (FREIREYSS, 1982, p. 80). A cultura brasileira revela-se plural, mas singular, Festiva, ociosa, maliciosa, simples e sincrética. A direta relagao com a cultura indigena na raiz do povo brasileiro era retra- tada sob um olhar ocidentalizado que sobre- punha, qualificava e classificava costumes € comportamentos como “primitivos”, como relata Freireyss Os festejos sdo verdadeiras orgias ¢ caem principalmente no tempo em que amadurece 0 milho. As mulheres as- sentam-se em circulo e mastigam com grande presteza o milho que depois de bem triturado é cuspido dentro de um pote grande em pé no meio delas. Du- rante um a dois dias continua esta mas- tigacdo até que a quantidade suficiente esteja preparada, Neste milho mastiga- do e misturado com a saliva, péem ain- da gua e deixam tudo fermentar, depois do que decantam o Ifquido que se parece com cerveja fraca e comega a festanca.. Dizem que nestas bebedeiras hd cantos e dangas, festas que quase sempre aca- bam com zangas e brigas. Numa delas, hd bem pouco, foi morto um portugues, apesar de casado com uma india e ter vivido 10 anos entre eles, sendo as mais das vezes 0 citime causador das desaven- {Gas (FREIREYSS, 1982. p. 102). Oscar Leal (1980) foi considerado o tiltimo dos visitantes do Centro-Oeste e um tipo de repérter romantico que parte de Sao Paulo e ‘embrenha-se pelo sertao percorrendo a rota tracada pelos aventureiros rumo ao ouro. Ele retrata de maneira prosaica seus espantos ¢ vivncias no estado, bem como os modos de ser do sertanejo. Ao chegar a Jatai, cidade do interior de Goids, por volta de 1882, descreve suas impresses, com certo ar de graca e de ingenuidade, mas, sobretudo com olhar de alguém de fora, e se expressa com espanto sobre uma danga realizada no local, em casa de pessoas conhecidas 0 povo de Jatahy € alegre, hospitaleiro € agradével e delle s6 conservo saudo- sa lembranca. Com excepcao de duas ou trés familias mais reconcentradas, ‘as outras vive unidas e durante noites consecutivas a dansa constitue 0 diver- timento, a que mais se entregam os mo- G05 e até os velhos. Talvez pelo motivo hygienico originado no exercicio é que tém uma saide de ferro. Como convi- dado tomei parte em algumas reuniées € notei que na dansa ndo hé méthodo nem estudo, O marcante, em vez de se- ‘guir os preceitos da arte, metamorpho- seia banalmente as partes da quadritha, de modo que um héspede & obrigado a fazer-se de autémato para acompanhar 25 0s mais até o final. As quintas partes du- ram quase sempre muito tempo e o ini co instrumento possivel de sujeitar-se a tal esfrega é a sanfona alli muito usada (OSCAR LEAL, 1980, p. 194) Com a visdo de mundo de um europeu no Novo Mundo, retrata a ideia de corpo higi- nico e a necessidade urgente do exercicio fisico para satide. Tais descrigdes refletem 0 quanto as praticas corporais estavam forte- mente incorporadas na vida das pessoas no século XIX na Europa, revelando um grande incémodo frente & possibilidade das trans- gressdes populares sobre os preceitos de uma importante arte erudita para aquele que é civilizado. Em seus escritos evidenciam-se regras, nor- mas e codificagées da cultura corporal de que a ciéncia se apropriou, bem como no- meou e determinou como apropriadas para © cuidado individual e coletive do corpo, Assim, cientificizar 0s movimentos, conter os gestos, remodelar as formas, sistemati- zar as técnicas e redimensionar a linguagem corporal foram alguns dos conhecimentos clentificos produzidos pelo movimento, de- nominado de higienista SOARES (2001). Este movimento permeou o discurso da satide piiblica, da educagao e da sexualidade, na tentativa de instaurar uma civilidade corpo- ral disciplinada, contida e ao mesmo tempo muito produtiva. Tal ideologia foi amplamente divulgada e (Fe)interpretada no Brasil no final do sécu: lo XIX € inicio do século XX. A danga, como artes do corpo, neste contexto sofre, cer- tamente, fortes influéncias para conten Gao e adequacao dos principios, gestos e condutas, expressos em rigorosos métodos cientificos, e as manifestagdes populares, encontram brechas, lacunas, frinchas para sobrevivéncia, Em outros lugares do estado é certo que a danga era considerada divertimento imo- ral também pela populacio local e néo era permitida as mogas de familia tal exposi¢ao, nem mesmo como exercicio fisico, sendo até mesmo fato impeditivo para se realizar um bom casamento, como registra Leal (1980, p. 195), a0 presenciar dois senhores discutindo o assunto: “Vés, dizia um, como esta a nossa terra? € uma desgraca, meu compadre. Pois atéa filha do senhor major jé esta dansando! Tem razio, Uma menina que ainda podia vir a se casar! Que penal” A forte moral religiosa crista que regia controlava os valores e costumes da época, expressa em didlogos informais, sugere as responsabilidades e atribuigdes femininas, tanto para assegurar um idedrio de familia, quanto de género e sexualidade. Nessa lé- gica conservadora e machista, o ambiente privado é de encargo feminino e sua funcao so 0s cuidados com a familia, a educagao dos filhos e as tarefas domésticas, ou seja, é 26 também uma expressao controlada, contida eservil. E 0 espaco piblico, aqui referendado por eventos festivos, € caracterizado como lu- gar do masculino, vivenciado com maior permissividade, virilidade e prazer, Neste cenario, a mulher é destitulda da sexuali- dade e esta inscrita no campo da moral e da reprodugao, como objeto de controle social, sob rigorosos cédigos punitivos e coerci- vos que asseguravam tal tradigao ocidental (BIRMAN, 2009). De fato, no campo da danga, Mario de ‘Andrade (1982) rela- ta em sua obra Dan- as Dramdticas do Brasil que nao sera H talvez muito dift compreender as ori- gens religiosas e pri- mitivas das nossas dangas draméticas, mas sera sempre bastante complicado determi- nar as influéncias técnicas diversas que as constituem. A pluralidade e a diversidade so marcas e rastros importantes em nossa cultura popular. Constituiram o Brasil popular, em especial © Brasil caipira, portanto, dangas e sons dos cantores de serestas, de bares, vendedores de modinhas, homens do realejo, bandas militares, cafés cantantes, gafieiras, saldes, A pluralidade ea diversidade sao marcas e rastros importantes em nossa cultura popular. planeiros, forrés, entre muitas outras ex: pressGes artisticas. Sao as mtisicas e as dan- ‘gas que nos fazer descobrir, também, mui- tos aspectos da vida popular urbana e rural Certamente sao fontes orais ricas da histé- ria do Brasil e de seu povo e que se perdem quando nao registradas. Tinhordo (2000) revela a meméria da misica brasileira das ruas, as festas inaugurais no Brasil Coldnia, definitivamente. Sabemos que as origens das dangas se perdem na noite e nos tempos mas, como um mosaico com influéncias e convergéncias culturais, vemos nas dangas populares estes sedi- mentos acumulados pelas culturas e suas técnicas. As informagées re- gistradas em didrios de viajanteseuro- peus, que circularam no interior do Brasil, possibilitam ressigni- ficar_histérias nao oficiais da colonizacao, tendo a danca como principal representante da linguagem do corpo na época. Ao expor conhecimentos nao hegeménicos, podemos perceber pequenos rastros e marcas de uma comunidade que, ao tentar manter vivos seus rituais, festas e dangas em meio as sin- gularidades familiares e comunitérias, ex- pressa o melhor de suas resisténcias e lutas. Ao se trazer a experiéncia do mercantil, 7 do consumo e da fragilidade dos modelos, criam-se conjuntos de pedagogias e estéticas da superficialidade. No corpo atual, tem-se a ideia de uma possibilidade da troca cons- tante e urgente, muitas vezes, de uma apa- réncia efémera e limitante. Por entendermos que 0 mundo moderne hierarquiza saberes, impondo as ideias como Gnicas, diluindo as singularidades locais ou, ainda, desqua- lificando 0 outro, pensamos: como fortalecer as sensi- bilidades buscando A danga, como um dos lugares da memoria, cal, esquecido pela racionalidade urbana subestimado pela nogéo de uma dada mo- dernidade, fazendo-se presente, persistente, carregado de vozes e constituindo uma ou- tra cena. Em um universo de resisténcia ao folcloris- mo e ao tratamento da arte popular como uma mercadoria utilitaria, pontuamos que rememorar nao & um ato de acomo- dagio daquilo que se confrontou, mas encontra em cada outros caminhos de se relacionar com os conhecimentos po- pulares? gesto esquecido outras lembrangas a serem procuradas, entendendo sim a possibilidade de um alargamento do sentido do que seja humanidade. que somos constituidos Sem a intencao de fornecer _respostas prontas, buscamos nos estudos sobre meméria alguns espagos, _visando converté-los em conjuntos de diferentes trocas, construcdes miiltiplas e em constante exercicio contra os egos e as hierarquias, os modelos ou 0s colonialismos. A meméria, como eixo de produgo de saberes artisticos, estéti- cos, histéricos e educativos, pode emergir de uma pequena ménada’, um acervo lo- 2 Manada ~ para Walter Benjamin, algo que significa uma minima porcio do universo, @ qual contém toda rmultiplicidade dele, como um DNA. desses emaranhados de lembrangas e de esquecimentos que estao impregnados de poesia. A danga, como um dos lugares da me- méria, encontra em cada gesto esqueci- do outras lembran- as a serem procu- radas, entendendo que somos constituldos desses emaranha- dos de lembrangas de esquecimentos que estdo impregnados de poesia. Sao as me- mérias do corpo e as histérias que se cons- tituem no tempo, no espago, na tensdo e no conflito. Sao mudangas de valores, reinven- ao de lugares e fortalecimento da ética, 28 F a forte ideia das conquistas compartilha- das, algo que ganha forma na experiéncia vivida. Ao invés de acenar apenas para um passado remoto, aponta-se para outras pro- dugées de sentidos e para a producao do conhecimento, pois o conhecimento é uma conquista. Existem perguntas vitais que nao devem ter respostas prontas e acabadas, isto é a arte e a educacao. O que modifica- mos € como lidamos com conhecimento, a quem queremos formar e o porqué acre- ditamos naquilo que fazemos. REFERENCIAS ANDRADE, Mario de. Dancas Dramdticas do Brasil (tomo |, 11 e Ill). Belo Horizonte: Ita- tiaia, 1982. BENJAMIN, Walter. Magia, Técnica, Arte ¢ Po- Iitica: Ensaios sobre Literatura e Historia da Cultura. S40 Paulo: Brasiliense, 1994. BIRMAN, Joel. Entre 0 ptiblico e o privado. Revista Mente e Cérebro. Sao Paulo: Duetto Editorial, n 3, out., p. 6-13, 2009. CHAUL, Nasr Fayad e RIBEIRO, Paulo Rodri- gues. Goids: Identidade, Paisagem e Tradigao Goinia: Ed. UCG, 2001. FREIREYSS, Georg Wilhelm, 1789-1825. Via- ‘gem ao Interior do Brasil. Belo Horizonte: Ita- tiala; Sao Paulo: Ed. USP, 1982. 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Sao Paulo: Editora 34, 2. ed. 2005. 29 Presidéncia da Reptiblica Ministério da Educacao Secretaria de Educacao Basica TV ESCOLAJ SALTO PARA 0 FUTURO Superviséo Pedagégica Rosa Helena Mendonca Acompanhamento Pedagégico Luis Paulo Borges Coordenagao de Utilizagao e Avaliacao Ménica Mufarrej Fernanda Braga Copidesque e Revisao Magda Frediani Martins Diagramacao e Editoragao Equipe do Ntcleo de Producao Gréfica de Midia Impressa - TV Brasil Geréncia de Criagao e Producdo de Arte Consultora especialmente convidada Isabel Marques E-mail: salto@mec.gov.br Home page: www.tvbrasil.org.br/salto Rua da Relacao, 18, 40 andar - Centro. CEP: 20231-110 - Rio de Janeiro (RJ) Abril 2012 30

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