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Barbara Black Koltuv, Ph.D. O LIVRO DE LILITH Psicologia / Mitologia N. Cham.: 159.9:2 K81b =690 9:2 Autor: Koltuv, Barbara Black b Titulo: O livro de Lilith UA 1 10468212 BCE Cultrix O LIVRO DE LILITH Barbara Black Koltuy Lilith, a primeira Eva ou a mulher que tentou Adio com a maga da Arvore do Conhecimento, ¢ figura presente nas mitologias sumeriana, babilénica, assiria, cananéia, hebraica, drabe e teutOnica. Uma das for- mas do Eu feminino, surgiu como personificagdo dos aspectos negligen- ciados e rejeitados da Grande Deusa. Lilith 6 Adamah, 0 aspecto da personalidade feminina com que as mulheres de hoje precisam voltar a se relacionar para poderem viver toda a sua feminilidade. O livro de Barbara Koltuy é uma fascinante antologia de contos mitolégicos, antigos e modernos, interpretados pela autora, que mostra como 0 Jado instintivo da feminilidade tem sido objeto de temor, sendo, conseqiientemente, rejeitado pela cultura e pela religido tradicional e patriarcal. A autora, psicéloga e analista junguiana, demonstra como e por que foram feitos tio grandes esforcos para banir a figura de Lilith da consciéncia humana e por que, apesar desses esforgos, estamos sentindo outra vez a sua ascensdo. EDITORA CULTRIX la Outras obras de interesse: AMOR, CELIBATO E CASAMENTO. INTERIOR John P. Dourley O ARQUETIPO CRISTAO Edward F. Edinger O CASAMENTO DO SOL COM A LUA Raissa Cavaleanti O HEROI DE MIL FACES Joseph Campbell O MITO E O HOMEM MODERNO Raphael Patai O MITO DO SIGNIFICADO NA OBRA DE C. G. JUNG Aniela Jaffé ENSAIOS SOBRE A PSICOLOGIA DE C. G. JUNG John-Raphael Staude JUNG E 0 TARO Sallie Nichols HISTORIA DA PSICOLOGIA MODERNA Duane Schultz COMPLEXO, ARQUETIPO, SIMBOLO Jolande Jacobi CONCEITOS PSICANALITICOS BASICOS DA TEORIA DA LIBIDO Humberto Nagero ——_—_— O Livro de Lilith LIVRARIA E CAFE elas Artes AL. LORENA, 1926 Esmeralda do Patroctnio Lane sp - SAO PAULO Curaga / BA/ BR - Fougerolies / FR oe Atn2 / Cantora Lirica TEL; 883-3992 ib, Doadora de livros Barbara Black Koltuy, Ph.D. O LIVRO DE LILITH Tradugio ae 44 oN Esmeralda do Patrocinio Lane Curaga / BA/ BR Fougerolies ! FR para | Cantra Lica Doadore de livros a EDITORA CULTRIX So Paulo Titulo do original: The Book of Lilith Copyright © Barbara Black Koltuv. Publicado pela primeira vez em 1986 por Nicolas-Hays, Inc., Box 612, York Beach, Maine 03910, U.S.A, Edicdo ‘Ano ens ae 1-2-3-4-5-6-7-8-9 89-90-91-92.93-94-95.96-97 Direitos de tradugio para a lingua portuguesa adquiridos com exclusividade pela EDITORA CULTRIX LTDA. Rua Dr. Mirio Vicente, 374 - 04270 - Sao Paulo, SP - Fone: 63-3141 que se reserva a propriedade literdria desta traducdo. Impresso nas oficinas grdficas da Editora Pensamento, Prefacio Lilith no Talmud Introdugéo Capitulo I: Origens Capitulo II: Vida ¢ Atos Capitulo III: Lilith, a Sedutora Capitulo IV: Lilith e as Filhas de Eva Capitulo V: Expulsa e Redimida Bibliografia 13 17 37 59 83 115 149 Para Salomédo e os pequenos rostos PREFACIO Lilith, o dem6nio feminino noturno de longos cabelos, esqui- vou-se, durante anos, a esta antologia. Finalmente, comecei a enten- der. Ela é uma forga, um poder, uma qualidade, uma renegada. Um Espirito Livre. Odeia ser contida (contada) pelo Verbo. E interes- sante observar que a maioria dos relatos a respeito de Lilith apare- cem no Zohar, o Livro do Esplendor, uma obra cabalistica do século XII, escrita por homens preocupados em acautelar outros homens contra seus poderes. A gravidade de suas palavras, as pesadas cor- rentes de ferro que, aprisionando-a nos amuletos do século VI, pre- tendiam bani-la e 0 peso do corpo de Adao a subjugé-la durante o enlace conjugal, constituem o andtema de Lilith. Obrigam-na a fugir. E cada vez que eu tentava, através das palavras, falar a seu respeito, ela escapava para as margens do Mar Vermelho ou para o deserto, ou entao voava para as alturas, unindo-se aos querubins ¢ a Deus, até que, por fim, do mesmo modo que Saloméo, que Elias e que os trés anjos de Deus, fiz um trato com ela: eu repetiria todas as hist6- rias, mitos e lendas contadas pelos homens e, ao mesmo tempo, Lilith teria o seu Caminho. Ela untou seu corpo com 6leo e, nua, dan- 9 10 —— LILITH NO TALMUD! Lilith, um not6rio deménio noturno, possui longos cabelos (B. Er. 100b). Lilith, deménio feminino da noite, tem um aspecto humano, mas também tem asas (B. Nido 24b). O rabi Jerimia ben Eleazar afirmou ainda: ‘‘Naqueles anos, de- pois de ser expulso do Jardim do Eden, Adio, o primeiro homem, esteve sob banimento; durante esse perfodo ele gerou espiritos, deménios machos e deménios fémeas noturnos, ou Liliths.” O rabi Meir disse: “Addo... rompeu relagées com sua mulher durante 130 anos e cobriu seu corpo com folhas de figueira durante 130 anos... Essa afirmagdo, segundo a qual Adao gerou Lilim, foi feita com re- feréncia ao sémen que ele, acidentalmente, derramou” (B. Er. 18b). O rabi Hanina disse: “Nao se deve dormir sozinho numa casa, pois todo aquele que dorme sozinho numa casa é agarrado por Lilith” (B. Shab. 151b). 1. A edicdo do Talmud citada neste livro é a edicao hebraicae inglesa de The Babylonian Talmud, organizada pelo rabi I. Epstein ¢ publicada pela Socino Press, Londres, 1978, 11 INTRODUCAO & Lilith, um irresistivel deménio feminino da noite, de longos ~ cabelos, sobrevoa as mitologias suméria, babilénia, assiria, ca- » nanéia, persa, hebraica, rabe e teuténica. Durante o terceiro milénio antes de Cristo, na Suméria, ela foi, a principio, Lil, uma tempestade destruidora ou espirito do vento. Entre os semitas da Mesopotamia, ela ficou conhecida como Lilith, que, mais tarde, ao confabular com layil (a palavra hebraica para noite), tornou-se Lilith, um deménio notumo que agarra os homens e as mulheres que dormem sozinhos, provocando-Ihes sonhos eréticos e orgasmo noturno. No século VIII a.C., na Sfria, Lilith, o sticubo, foi associada a uma outra figura de- monfaca que, anteriormente, tivera uma existéncia 4 parte: Lamash- tu, a bruxa assassina de criancas. Sob essa forma, Lilith, a Estrangu- ladora Alada, tornou-se conhecida, em todo o mundo, com os nomes de a Dama de Pernas de Asno, a Diaba Raposa, a Sugadora de San- gue, a Mulher Devassa, a Estrangeira, a Femea Impura, o Fim de To- da Came, o Fim do Dia, bruha, strega, bruxa, feiticeira, raptora e maga. Associada a serpente, ao c4o, ao asno ¢ a coruja, 4 emissao de horriveis sons noturnos, e considerada a alma de todo ser vivo que 13 rasteja, ela foi a primeira mulher de Adao, a fémea do Leviata, a mulher de Samael, 0 Diabo, e do rei Ashmodai, a rainha de Saba e Zamargad, e até mesmo a esposa do préprio Deus, durante o tempo em que Shekhina esteve no exilio. As tentativas no sentido de su- primi-la e de negd-la remontam ao século VI a.C., mas ela sempre re- torna, sedutora e assassina de criangas, e continuard a fazé-lo até o advento do Messias, quando os espiritos impuros serao expulsos da face da Terra. (Zac. 13:2).? Este livro, uma antologia psicolégica, é uma tentativa de contar sua histéria, de evocar sua presenga na consciéncia e de investigar seu significado na psique moderna. 2, As referéncias biblicas que aparecem neste livro so da The Jerusalem Bi- ble (Doubleday, Nova York, 1966) ¢ das The Holy Scriptures According to the Masoretic Text, volumes I II (Jewish Publication Society, Filadélfia, 1955). 14 O Livro de Lilith CAPITULO I Origens As origens de Lilith ocultam-se num tempo anterior ao pré- prio tempo. Ela surgiu do caos. Embora existam muitos mitos acer- ca de seus primérdios, Lilith aparece nitidamente, em todos eles, como uma forga contraria, um fator de equilfbrio, um peso con- traposto a bondade e masculinidade de Deus, porém de igual gran- deza. NO PRINCIPIO De acordo com o Zohar,! 0 livro do esplendor: Deus criou duas grandes luzes. As duas luzes as- cenderam juntas com a mesma dignidade. A Lua, porém, 1. O Zohar € uma obra cabalistica do século XIII que, na esséncia, € uma meditagdo a respeito do Velho Testamento. Assim, “onde apascentas o teu rebanho” é uma citagdo do Cantico dos Cénticos 1:7. As referéncias que nos 17 nao estava 4 vontade com o Sol e, na verdade, cada um se sentia mortificado pelo outro. A Lua disse: “Onde apascentas o teu rebanho?”’ (CAntico dos Canticos, 1:7). O Sol disse: “Onde levas a repousar teu rebanho ao meio-dia?” (Cant. 1:7). “Como pode uma pequena vela brilhar ao meio-dia?” Por isso, Deus disse a ela: “‘Vai e torna-te menor.” Ela se sentiu humilhada e disse: “Por que razfo seria eu como a que se cobre com um véu?” (Cant. 1:7). Deus disse entao: “Segue teu caminho guiando-te pelas pegadas do rebanho.” Por isso, ela di- minuiu a si mesma de tal modo que se tornou a lider das fileiras mais inferiores. Desde ent4o, nunca mais teve luz propria, obtendo sua luz do Sol. A principio, eles conti- nuaram em pé de igualdade; mais tarde, porém, ela foi se tornando a menor de suas préprias fileiras, embora conti- nuasse a lider delas. Quando a Lua estava em conexio com o Sol era luminosa; mas to logo se separou do Sol e foi-lhe atribuido o comando de suas préprias hostes, ela reduziu sua posigao e sua luz, e cascas sobre cascas fo- ram criadas para cobrir o cérebro, ¢ tudo em proveito do cérebro (Zohar I 20a). Depois que a luz primordial foi afastada, criou-se, ali, uma “membrana para a polpa’’, uma k’ lifah ou casca, e esta k’lifah expandiu-se e produziu uma outra, que foi Lilith Zohar I 19b). textos citados do Zohar aparecem entre parénteses sao da Bfblia. As referén- cias entre colchetes sao meus préprios esclarecimentos da tradugdo inglesa do Zohar, enquanto as referéncias no final das citacdes mais Iongas (pot exem- plo, Zohar I 19b) designam a fonte da citagéo. A edicdo do Zohar utilizada neste livro é uma tradugdo inglesa organizada por Harry Sperling e Maurice Simon, publicada pela Rebecca Bennet Publications, Nova York, sem data, ¢ pela Socino Press, Londres, 1984. 18 Vemos assim que, no principio, o Sol ¢ a Lua eram iguais em dignidade. (Ver figura 1.) O Zohar explica como as origens da Lua fizeram-na se esforcar no sentido de fundir-se com 0 Sol: Ele ordenou que, da regido das Trevas, emergisse uma espécie de lua feminina, cujo nome é noite e governa a noite, sendo associada a Adonai, 0 Senhor de toda a Terra (Zohar I 16b)... a Esquerda, o lado das Trevas, Figura 1. Aqui, 0 Sol e a Lua, 0 macho ¢ a fémea, combatem. Um confronto de opostos, onde cada principio oponente detém o secu oposto; por isso, os es- cudos. (Extraido de Aurora Consurgens, final do século XIV. Cortesia da Zentralbibliothek, Zurique, Ms. Rh. 172f. 10.) 19 flamejou com todo 0 seu poder, provocando, por toda parte, uma espécie de reflexo, e dessa chama ardente sur- giu a esséncia feminina, que é semelhante a da lua... As- sim como as Trevas desejam fundir-se com a Luz, a noite também deseja fundir-se com o dia (Zohar I 17a-b). Tudo isso € revelado no Livro de Addo. Nele diz-se que quan- do as Trevas reivindicaram seus direitos, fizeram-no com violéncia (Cnt. 1:7). Mas assim que a célera e a violén- cia abrandaram, surgiu um novo tipo de desavenga, a sa- ber, uma desavenga amorosa... (Zohar I 16b-17b). Para pér um fim na discérdia entre a Lua e o Sol, Deus provo- cou uma separacdo. Ele obrigou a Lua a tornar-se menor e a seguir as pegadas do rebanho, & frente das fileiras mais inferiores: E justo ¢ adequado que as duas luzes governem, a luz maior de dia ¢ a luz menor de noite... Deste modo, o dominio do dia pertence ao macho e o dominio da noite, 4 fémea. Ha dois tipos de luzciros. Os mais distantes chamam-se “‘luzeiros de luz” e os mais prdéximos, “luzei- ros de fogo” (Zohar I 20b). Embora os dois luzeiros continuem a governar, é claro que a Lua se sente inferiorizada. A intervengao de Deus nessa desavenga amorosa priva-a de sua liberdade de escolha. A diminuigéo da Lua tem como resultado a X’lifah (ou casca do mal) da qual nasceu Lilith. Diz-se que, da cabega até o umbigo, o corpo de Lilith é o de uma be- la mulher; porém, do umbigo para baixo, ela é um fogo abrasador.” A partir desses mitos do Zohar, vemos que a energia de Lilith de- 2. Raphael Patai, Gates to the Old City, Nova York, Avon, 1980, p. 464. 20 tiva do ressentimento e da diminuigao da Lua. Ela é sombria, arden- te e noturna. O Zohar fornece minuciosas instrugGes para 0 aprofundamen- to da consciéncia e da individuagao mediante o conhecimento de Li- lith e de sua natureza. No trecho abaixo, faz-se uma analogia entre Lilith e as membranas do mal, ou o lado feminino e sombrio do Eu que se manifesta nos homens e mulheres em seus sonhos noturnos. O trecho explica como os sucessivos encontros com a sombra trans- pessoal, em sua forma feminina e sombria, se fazem necessarios para “a permanéncia do mundo”. Trata-se de um ponto de vista andlogo ao de Jung, segundo o qual “Deus quer nascer, na chama da cons- ciéncia humana, langando-se sempre mais para o alto. Mas como is- so € possfvel se nao hd rafzes na Terra? Se em vez de uma casa de pedra, onde o fogo de Deus pode habitar, houver apenas uma mi- servel palhoga...”> O conhecimento dessa sombra de Lilith é ne- cessario para fortalecer 0 ego do homem e criar um equilfbrio para o eixo do proprio ego, isto é, construir uma casa de pedra para a cons- ciéncia do homem. © rei SalomAo, quando penetrou no profundo jardim das nogueiras (Cant. 6:11), apanhou uma casca de noz, uma k’lifah, e esbogou uma analogia entre suas camadas e esses espiritos [Lilith] que despertam desejos sensuais nos seres humanos... € os prazeres aos quais os homens se entregam na hora do sono... O Senhor, abengoado se- ja, julgou necess4rio criar todas essas coisas no mundo para assegurar sua permanéncia, de modo que devia ha- ver, por assim dizer, um cérebro com muitas membranas a enyolvé-lo. O mundo inteiro é construido segundo esse 3. C. G. Jung, Lewers, Princeton, Princeton University Press, Bollingen Se- ries, 1973, vol. I, p. 65. 21 22 principio, o de cima eo de baixo, desde o primeiro ponto mistico acima até o mais remoto de todos os estdgios. Cada um deles (20a) € um invélucro do outro, cérebro dentro de cérebro e espfrito dentro de espirito, de modo que cada um € a concha do outro. O primeiro ponto é a mais rec6ndita luz, cuja translucidez, tenuidade e pureza ultrapassam qualquer compreensdo. A extenséo desse ponto forma um “‘palacio” (Hekal), que constitui uma vestimenta desse ponto com um esplendor ainda desco- nhecido em virtude de sua translucidez. O “‘palacio”, que € a vestimenta desse ponto desconhecido, é também uma irradiagdo que nao pode ser compreendida, embora menos sutil e translticida do que aquela do primeiro ponto misti- co. Este “‘paldcio” se estende no interior da Luz primor- dial, que é a sua vestimenta. A partir desse ponto, existe extensao apds extensao, cada uma formando uma vesti- menta para a outra, estando uma para a outra na relagao de membrana ¢ cérebro. Embora sendo a princfpio uma vestimenta, cada estégio torna-se um cérebro para o esté- gio seguinte. O mesmo processo ocorre abaixo, de modo que, segundo esse modelo, o homem retine neste mundo cérebro ¢ invélucro, espfrito e corpo, tudo para a melhor ordenagao do mundo. Quando a Lua estava em conexao com o Sol, ela era luminosa, mas assim que se separou dele ¢ foi-Ihe atribuido 0 comando de suas préprias hos- tes, ela reduziu sua posigao e sua luz, e membranas sobre membranas foram criadas para envolver o cérebro, e tudo em proveito do cérebro (Zohar I 19b-20a). O conhecido diagrama quartenio do casamento forma a base de varios mitos cabalisticos a respeito das origens de Lilith. Conta-se que Lilith originou-se daquele aspecto autoritério de Deus, de seu poder de julgar e punir severamente, 0 Gevurah ou Din. Esse aspec- to punitivo ¢ severo de Deus tem, em sua manifestac4o mais inferior, alguma afinidade com o reino do mal, chamado “a borra do vinho”, do qual emergiu Lilith, juntamente com Samael, o Diabo: Mistério dos mistérios: Da poderosa incandescéncia do meio-dia de Isaac [isto €, o Gevurah], da borra do vi- nho, emergiu um rebento entrelacado que compreende tanto o macho como a fémea. Eles eram vermelhos como a rosa e se espalharam em varias diregdes e caminhos. O macho chama-se Samael e sua fémea Lilith esta sempre contida nele. Assim como no lado da Santidade, também no Outro Lado (do Mal) macho e fémea estio contidos um no outro. A fémea de Samael chama-se Serpente, Mu- lher Devassa, Fim de Toda Carne, Fim do Dia (Zohar I 148a, Sitre Torah).4 Os pares sao, acima, Deus e seu aspecto feminino, que nele habita, a Shekhina, e, abaixo, Samael o Diabo, que contém, em seu interior, Lilith. Desse modo, Lilith, proveniente da diminuigéo da Lua, expulsa do céu, a qualidade feminina negligenciada e rejeitada, tomna-se a Noiva do Diabo, a sombra feminina transpessoal. Lilith € como um instinto renegado enviado por Deus para viver nas regides inferiores, isto é, em convivio com a humanidade. Os homens a vi- yenciam como a bruxa sedutora, o sticubo mortal e a mae estrangu- Jadora. Para as mulheres, ela 6 a sombra escura do Eu, casada com 4, Devo confessar 0 quanto sou grata a obra do Dr. Raphael Patai. Seu livro, The Hebrew Goddess, revelou-me a hist6ria, a legitimidade e a realidade do aspecto feminino de Deus, fornecendo-me uma matriz para minha compre- ensdo do verdadeiro significado de Lilith na psique moderna. Esta traducao da parte Sitre Torah do Zohar, elaborada por Patai, aparece em The Hebrew Goddess, Hoboken, Ktav Publishing House, 1967, pp. 218-219. Transcrita com permissio. 23 o Diabo. Mediante o conhecimento de Lilith e de seu esposo nos tornamos conscientes de nés mesmos. Numa obra mais antiga, algumas décadas anterior ao Zohar, conta-se que Lilith e Samael nasceram de uma emanagao por baixo do Trono da Gloria, na forma de um ser andrégino e bifronte, correspondente, no reino espiri- tual, ao nascimento de Adio e Eva, que também nasce- Tam como um hermafrodita. Os dois casais geminados e andréginos eram nao s6 semelhantes entre si mas também “semelhantes 4 imagem do que est4 Acima’’, isto é, re- produziam, numa forma visivel, a imagem da divindade andrégina.> De modo andlogo, ha os pares Deus ¢ Shekhina, no alto, e Sa- mael e Lilith, embaixo. Conta-se que, apds a destruigaéo do templo, Shekhina desceu para seguir as pegadas de seu rebanho, e Lilith, sua criada, subiu para tornar-se a esposa de Deus. Nestas imagens do casamento quartenio, percebe-se a vitalidade de Lilith no processo de individuagao. A ALMA DE TODA CRIATURA VIVA O Zohar apresenta ainda um outro mito das origens primordiais de Lilith, no qual a qualidade divina da natureza e da instintividade previamente atribufda 4 Deusa foi incorporada 4 criagéo, por Deus, dos enormes monstros marinhos: 5. Patai, The Hebrew Goddess, p. 219. Transcrita com permissio. 24 Estes sdo 0 Leviaté e sua fémea. E toda criatura vi- va que rasteja. Esta € a alma da criatura que rasteja nas quatro partes do globo, a saber, Lilith (Zohar I 34a). © Zohar prossegue, explicando que sdo as Aguas que nutrem Lilith e que o vento Sul dissemina sua influéncia, fornecendo-lhe o dominio sobre todas as bestas do campo. Podem-se ouvi-las, em cada uma das trés vigilias notumnas, cantando para ela (Zo- har I 34a). Lilith, a alma de todas as bestas do campo e de “toda cria- tura viva que rasteja”, € 0 nivel vivificante, instintivo e natural do ser. A partir dessa acepgao de Lilith, origina-se 0 mito segun- do © qual Adio, apés dar nome a todos os animais, viu-se inva- dido por um lascivo desejo de ter uma companheira propria. A princfpio, Addo era uno, macho e fémea, mas sua experiéncia da instintividade dos animais, manifestada pelo fato de que cada um tinha um outro com quem se acasalar, tornou-o consciente da sua so- lidao. O Zohar (1 34b) diz que, quando as letras do nome de Adio —aleph, daleth e mim — desceram do alto, o nome Addo compreen- dia, de fato, tanto o macho como a fémea. A fémea estava anexada ao lado do macho até 9 momento em que Addo deu nome a todos os animais. Entio Deus fez cair um sono profundo sobre Adio e dele separou a mulher. Deus a vestiu como uma noiva e, em seguida, le- vou-a até Adao. O rabi Simeao, no Zohar, prossegue: “Encontrei, num livro an- tigo, um relato de que esta fémea nao era outra senéo a prépria Lilith, que esteve com ele e dele concebeu” (Zohar I 34b). Lilith é um aspecto instintivo e terreno do feminino, a personi- ficagdo vivificante dos desejos sexuais de Adao. As mulheres também vivenciam sua sexualidade Lilith como vivificante, esti- mulante e natural. Esse € 0 tipo de sexualidade que elas sentem al- guns dias antes da menstruacao, quando os horménios femininos 25 cessaram seu fluxo e os horménios masculinos encontram-se no auge de sua intensidade. E um estado de ser pulsante, vibrante, primitivo e indescritivel. Nesses mitos da criagao, Lilith emerge como uma qualidade ins- tintiva do feminino, emanado de Deus e do Diabo, e associado, de um modo bastante elementar, 4 humanidade. A CRIACAO DA MULHER O Zohar fala a respeito de Lilith como a primitiva energia fe- minina que se torna separada tanto de Adéo como de Eva: Nas profundezas do grande abismo, h4 um certo espirito feminino, ardente como o fogo, chamado Lilith, o qual, a principio, coabitou com o homem. Pois quando o homem foi criado e seu corpo terminado, mil espiritos do lado esquerdo (0 lado do Mal) se reuniram ao redor da- quele corpo, cada um tentando entrar, até que, por fim, uma nuvem desceu e afugentou-os, e Deus disse: “Que i a Terra dé a luz uma alma vivente”’ (Gén. 1:24), e ela deu a luz um espfrito para respirar no homem, o qual tornou- se assim completo com dois lados, porquanto é dito: “E ele soprou em suas narinas 0 félego da vida, e o homem tornou-se uma alma vivente” (Gén 2:7). Quando o ho- mem surgiu, sua fémea foi fixada ao seu lado e 0 espirito sagrado nele se propagou por ambos os lados, tornando- se assim perfeito. Mais tarde, Deus serrou 0 homem ao meio, formou sua fémea e levou-a até ele, como uma noi- va ao dossel. Lilith, ao ver isso, fugiu e ainda se encontra nas cidades da costa maritima, tentando armar ciladas pa- 26 ra os homens. E quando o Todo-Poderoso destruir a pe- caminosa Roma, Ele depositar4 Lilith entre as ruinas, uma vez que ela é a ruina do mundo, porquanto esta es- crito: “Pois ali Lilith se instalara e encontrard seu lugar de repouso” (Is. 34:14). Diz-se, em livros antigos, que ela fugiu do homem antes disso; mas nés aprendemos de outro modo: que ela uniu-se ao homem até essa alma (ne- shamah) ser nele depositada, quando entao fugiu para a costa maritima, onde tentou fazer mal aos homens (Zohar Til 19a). eca As forcas da sexualidade, do nascimento, da vida e da morte, do mégico ciclo da vida eram, originalmente, governadas pela Deu- sa. Com o advento do patriarcado, o poder de vida e morte tornou-se uma prerrogativa do Deus masculino, enquanto a sexualidade e a mégica foram separadas da procriagao e da maternidade. Neste sen- tido, Deus é Uno, ao passo que a Deusa tornou-se duas. O Velho Testamento fornece dois relatos da criagao da mulher. 3 Lilith nasceu da discrepancia entre esses dois mitos. Historicamente, 2 a discrepancia surge a partir das tentativas de Jeov4 em diminuir 5 suprimir o poder das religides, ainda prevalecentes nos tempos bt blicos, que prestavam culto 4 Deusa. Como no mito da diminuicéo da Lua, Lilith extrai sua fora energética da oposicao e supressao. No primeiro relato do Velho Testamento sobre a criagao da mulher: de Brasilia - Biblio’ de Deus criou o homem & sua imagem, a imagem de Deus 0 criou, macho e fémea os criou (Gén. 1:27). Jeova Deus formou o homem do pé da terra. Em se- guida, soprou em suas narinas 0 félego da vida, ¢ 0 ho- mem tornou-se assim um ser vivente (Gén. 2:7). 27 Aqui, tanto Addo, ou o homem, como Deus si0 andréginos. Os cabalistas® afirmam. que, no momento em que o Senhor criou Adao, 0 primeiro homem, Ele 0 criou como um andrégino com dois rostos, cada um voltado para uma diregfio. Mais tarde, o Senhor serrou Adio em dois ¢ deu-lhe duas costas, uma para cada um dos rostos. Lilith € a fémea de Addo, ou Adamah, a palavra hebraica fe- minina que designa terra ou chéo. Tanto o homem como a mulher provém da mie Terra, moldados por Deus. O segundo relato discrepante da criagéo da mulher no Ve- lho Testamento comega com Adao vivendo s6. A unicidade de Adio € uma afronta a Deus, presumivelmente porque apenas Deus deve ser Uno: Jeova Deus disse: “Nao é bom que o homem esteja 6. Eu the farei uma ajudante’”’. E, da terra, Jeov4 Deus formou todos os animais selvagens e todos os passaros do céu. Ele os conduziu até o homem, para ver como ele os chamaria; cada um receberia 0 nome que o homem lhe desse. O homem deu nomes a todo o gado, a todos os passaros do céu € a todos os animais selvagens. Mas ne- nhuma ajudante adequada para o homem foi encontrada para ele. Entéo Jeovd Deus fez o homem cair num sono profundo. E enquanto ele dormia, tomou uma de suas costelas e envolveu-a com carne. Da costela que tomara de Adio, Jeové Deus fez uma mulher e conduziu-a ao homem, O homem exclamou: “Esta sim € osso dos meus ossos e carne da minha carne! 6. Raphael Patai, Gates to the Old City, pp. 282-283. 28 Esta seré chamada mulher pois foi tomada do homem’’. (Gén. 2:18-24) Depois da Queda: ““O homem chamou sua mulher ‘Eva’ porque ela era a mae de todos os que vivem’’ (Gén. 3:20). Conquanto Lilith seja indiretamente mencionada no Velho Tes- tamento como um “‘mocho’’, um ‘“‘deménio da noite”, nao ha ne- nhuma outra mengao explicita e nominal a seu respeito, exceto uma répida alusao em Isafas 34:14. No entanto, essas imagens existem na psique moderna. Os leitores poderiam se reportar ao Fruit of Knowledge’ ou considerar 0 poema abaixo como uma expresséio das intrincadas origens de Lilith. Podemos observar, nesse poema, a ciso no feminino entre Lilith, enquanto o primitivo, instintivo e li- vre espirito da mulher — “macho e fémea os criou, 4 sua propria imagem os criou” — e Eva, enquanto recém-criada ‘mae de todos os que vivem’’. E ha também Adao como homem, agora consciente de sua instintividade e de sua necessidade de usé-la a servigo do Eu. Eva ainda padecia de um repugnante mau cheiro fetal: pois nascera de um fervilhante titero do pantano. As palmas de suas maos estavam salpicadas de sangue que ainda se precipitava, infantil e teimoso, para fora de seus dutos; em seus tberes os mamilos eram falanges de dedos anulares adultos com um tampao em forma de chifre destinado a se desprender por ocasiao do primeiro leite. 7. Ver “The Fruit of Knowledge”, in The Best of C. L. Moore, Nova York, Ballantine Books, 1975. 29 30 Eva tinha o aspecto de um animal herbfvoro, uma besta de pele, desconfiada e estdlida —coelho ou lebre —, sua desgraciosa boca mantinha-se entreaberta e a ponta de sua lingua (Eva ainda nao falava) exposta feito um verme numa cereja podre. Adao demorava-se indeciso com a construtiva curiosidade de uma toupeira ea triste aparéncia de um cao fulvo: apés copular com um grifo e dar vazao aos seus restantes espasmos no ninho abandonado de um paguro precisava tentar agora — pois estava sob severas ordens — usar seu sexo com a nova criatura. Mas Eva tinha uma pele lisa sem 0 tosao das ovelhas, os ninhos todos dourados, sem o fulgor marinho das conchas sem 0 frenesi anfractuoso das ibis e depois era exasperante o fato de ela nao emitir nenhum som nem mesmo o fraco bramido de uma onda da mais distante praia do Eden. Que época maravilhosa aquela em que ele, Adao, seduzia as panteras pintadas e, na mata de gigantescos cardos, brincava com as ovelhas — como eram pacientes e beatificas suas express6es — ou entao quando ele agarrava as leves e graciosas gazelas e as carregava para o fundo de uma larga e refrescante anémona! Mas agora um Anjo negro com brilhantes asas de gafanhoto (Mzpopiasaiel era seu nome, ele dissera, aquele cuja célera é justa) dera-The Eva decretando — que voz de lenha crepitando no fogo tinha aquele clice de ira sagrada! — decretando que ela nao seria seu alimento mas sua companheira no amor. Mas ele, Addo, passava o tempo contando os miniisculos anéis de um tedioso réptil mordendo péssegos e tirando as espinhas de pequenos salmées pescados com folhas de acanto cuspindo, com o arco mais selvagem possivel, carogos de péssegos e cerejas mijando apdtico em folhas de alface: esperando (e sua vida até agora fora apenas uma espera, uma espera pelas ordens) que da nuvem, da nuvem sem cabega, a direita da macieira surgisse voando — como nos velhos tempos — um novo sinal. Quando ele viu Lilith, o mais encantador dos deménios, em sua reluzente forma feminina encimada por uma instdvel coroa de estrelas alquimicas avangando com uma radiante impetuosidade ptecedida por um incrivel animal — por certo um remanescente de outras criagdes mais meticulosas — 31 32 ostentando um tinico e alto chifre €m sua fronte celestial... Mas a nova eva da sodomia esta a procura de outros dem6nios semelhantes a ela: ndo de fingidos ataques de unhas, nem de uivos festivos: a nova eva mitica magnifica na acrobatica cadéncia de seu caminhar estranha aos outros animais do Eden, atira pedras, encimada por estrelas alquimicas, majestosa, atira Pedras. Filha do homem ela nao é, tampouco, noiva do Anjo: para além dos prolificos pantanos do paraiso a espera de serem drenados © unicérnio conduz Lilith, aquela que j4 conhece a forma misteriosa da raiz da mandragora © o golem que cresce na semente. Ela sabe que o jaspe depositado no meimendro Provoca um sono mortal, mais drido e estranho do que aquele que se abateu sobre Orfeu, que na vulva da estrelada moréia ha um embriao de sereia no Iftio o létex que geraré as Amazonas, e cem divindades femininas estao a espera no imerso abeto sob a forma de patinhos dourados Outras cem divindades femininas sero alimentadas por unic6rnios e seu sangue estard isento de contdgio, presciente do fogo. Quantos léxicos Lilith j4 conhece! Ela fala setenta linguas que despertam em suas cavernas e subjugam mortos alfabetos de criagGes imediatamente aperfeigoados e consumidos! Ela nao negocia com cobras, mercadoras de mesquinhas velhacarias, e dos condescen- dentes e magmaticos abismos aprendeu misticos deleites. Vird o dia em que ela, Lilith... ® A principio, Adao se relacionava sexualmente com Lilith ¢ com os animais? ¢ tinha uma sexualidade natural ¢ instintiva, mas essa inconsciente inteireza urobérica era uma afronta a Deus, que fez com que Adao sacrificasse seus instintos e perdesse o contato com sua anima Lilith e seus modos lunares. A lenda nos conta que, na primeira noite apés a queda, quando o Sol se pés, Adao estava sé e assustado. Por isso, ‘sacrificou o unicérnio, a criatura de unidade primordial, a Deus.'° Eva, destinada a ser a mae de todos os que vivem e feita da costela do préprio Addo, nao era tio poderosa ou primordial quanto Lilith, com quem Adao se encontra agora apenas a noite, através de eregGes noturmas, enquanto est4 adormecido. E ha a cilada armada 8, Rosanna Ombras, “The Song of Lilith”, traduzido por Edgar Pauk, in A Big Jewish Book, organizado por Jerome Rothenberg, Garden City, Anchor Books, 1978, pp. 179-182. Cortesia de Edgar Pauk. 9. Ver Louis Ginzberg, The Legends of the Jews, Filadélfia, Jewish Publica- tion Society of America, 1909, vol. V, p.87. 10. Ginzberg, The Legends of the Jews, vol. V, p.89. 33 pela raiva vingativa e assassina de Lilith, da qual o homem deve sempre se precaver. A CHAMA DA ESPADA GIRATORIA O relato biblico da queda termina assim: “Ele baniu o homem e, defronte do jardim do Eden, postou querubins e a chama de uma espada flamejante para guardar o caminho que leva & arvore da vi- da” (Gén. 3:24). No Zohar, Lilith, a “chama da espada giratéria”, é associada, quanto a pecabilidade, 4 outra primeira mulher, Eva: Acontece que, naquele dia, eles receberam uma or- dem acerca de uma determinada arvore e a desobedece- ram. E porque a mulher pecou primeiro, foi decretado que o marido teria poder sobre ela. E, a partir de entao, sempre que os homens pecam perante Deus, aquelas mu- lheres (Lilith) sao acusadas pelo severo julgamento de exercerem dominio sobre eles — aquelas que sao chama- das de “‘a chama da espada giratéria” (Gén. 3:24) (Zohar Il 196). O Zohar prossegue a histéria afirmando que, depois que Adio e sua mulher pecaram: O Senhor, abengoado seja, retirou Lilith do fundo do mar € outorgou-lhe 0 poder sobre todas aquelas crian- gas, os ‘‘pequenos rostos’’ dos filhos dos homens, que esto sujeitas 4 punigdo pelos pecados de seus pais. Ela andou entao por todos os cantos do mundo. Aproximou- se dos port6es do paraiso terrestre, onde avistou os Que- rubins, os guardides dos portdes do Parafso, e sentou-se 34 nn junto & espada flamejante, cuja origem era semelhante 4 sua. Quando viu a espada flamejante a girar, indicando que o homem havia pecado, fugiu e pds-se a andar pelo mundo, €, ao encontrar criangas sujeitas 4 punigao, mal- tratava-as e matava-as. Tudo isso devido @ acao da Lua de diminuir sua luz primitiva (Zohar I 19b). Portanto, Lilith, originalmente a primeira mulher que Deus criou da terra, é, antes de mais nada, subjugada e, em seguida, reer- guida, para se tornar 0 acoite de Deus. Esta imagem da flamejante espada giratéria capta a qualidade essencial de Lilith, ora Deusa, ora demé6nio, ora tentadora, ora assassina, ora a noiva de Sata, ora a es- posa de Deus, sempre em chamas nos portées do Paraiso. 35 CAPITULO IT Vida e Atos Toda a mitologia a respeito de Lilith é repleta de imagens de humilhagao, diminuigéo, fuga e desolagdo, sucedidas por uma pro- funda raiva e vinganga, na pele de uma mulher sedutora e assassina de criangas. HUMILHAGAO E FUGA O mais antigo material biografico referente a Lilith apa- rece no antigo texto intitulado Alpha Beta Ben Sira. Esta obra é um midrash, uma imaginagao ou meditacdo ativa sobre os mitos biblicos acerca da criagaéo do homem e da mulher. O midrash de Ben Sira analisa as conflitantes histérias do Génesis sobre Lilith (a mulher primordial, a primeira esposa e a outra metade de Adio) e Eva — criada alguns trechos mais adiante. Segundo Ben Sira: 37 Deus criou Lilith, a primeira mulher, do mesmo modo que havia criado Ado, s6 que ele usou sujeira e sedimento impuro em vez de pé ou terra. Adao e Lilith nunca encontraram a paz juntos. Ela discordava dele em muitos assuntos e recusava-se a deitar debaixo dele na re- lagdo sexual, fundamentando sua reivindicagao de igual- dade no fato de que ambos haviam sido criados da terra. Quando Lilith percebeu que Adao a subjugaria, proferiu 0 inefavel nome de Deus e pés-se a voar pelo mundo. Fi- nalmente, passou a viver numa caverna no deserto, as margens do Mar Vermelho. Ali, envolveu-se numa desen- freada promiscuidade, unindo-se com deménios lascivos e gerando, diariamente, centenas de Lilim ou bebés de- moniacos.' Que Lilith discordasse de Adéo em muitos assuntos nao é nem um pouco surpreendente, considerando-se sua natureza sombria, ar- dente, feminina e lunar. Os sentimentos engendrados por essas dife- Tengas s&o expressos pelos versos de uma poetisa moderna: O que gente como eu tinha a fazer com gente como Adao? E no entanto por algum capricho ou mesmo por obra de Seu humor negro fomos atirados juntos, a terra polida e o brilho da lua... Entéo Adao quase me deixou louca — meu primitivo e boquiaberto 1. Ver J. D. Eisenstein, org., Oar Midrashim, dois volumes. Nova York, J. D. Eisenstein, 1915. O mito encontra-se no Alpha Beta Ben Sira, vol. 1, pp. 46-47. 38 homem, décil como pilao e brando como a légica vivia ostentando o direito divino de suas propriedades perante minha ébvia caréncia de bens. A principio, tentei agradar, abri minha caixa de milagres para ele; ele s6 queria mondar as ervilhas. Queria seus passaros em sua mao, Usei, de bom grado, de todos os rodeios. Fiz um abrigo de folhas, trepadeiras e veneno pata anjos; ele nao quis entrar. Nao quis se deitar sob minha improvisada colcha de retalhos. Preferia morrer. Ele tinha a Palavra, recebera-a do alto, enquanto eu, anterior aos alfabetos, imitil como um &, permanecia mergulhada no remoinho do caos. Jardins foram feitos para ordenadores, jardineiros foram feitos para ordenar, mas eu nao sou ordendvel, sou a primeira transgres- sora. Por isso, enquanto Adao cercava cuidadosamente suas bestas e apertava a sebe, ¢ enquanto os anjos guerreavam ¢ buliam com os nervos de Deus, inadaptada e fora de lugar, fugi. 39 Xinguei Adio. E deixei meu primeiro amor chupando 0 dedao.? A amargura e o sentimento do feminino Tejeitado no poema Tepercute o conto da diminuicéo da Lua e o etemmo grito de dor e raiva do feminino ferido. No nfvel humano, percebe-se este sen- timento de irremedidvel privagio e traigéo nas mais profundas re- gides da psicologia feminina. Emma Jung se refere a isso em seu “Essay on Animus Development’? quando diz que uma dificul- dade primdria da mulher em desenvolver uma telagao com seu ani- mus esta no seu sentimento de pouca auto-estima e diminuigio.? Po- de-se também sentir a ferida-Lilith sob o obstinado caréter repreen- sivo da critica de uma mulher dominada pelo animus. A histéria de Addo e Lilith levanta a eterna questo masculina: “O que a mu- Ther quer?”’. A reivindicagao de Lilith por igualdade fundamenta-se no fato de que tanto ela como Adio foram criados do p6 ou da terra; contu- do, Lilith se recusa a ser mera terra para Adao. Ela quer a liberdade de se mover, de agir, de escolher e de decidir. Essas sao as qualida- des do ego feminino individualizado 4 medida que emerge da maté- tia inerte ¢ passiva. Neumann, em seu ensaio ‘Psychological Stages of Feminine Development’, descreve a necessidade e o valor dessas agées herdi- cas por parte da mulher a fim de que se mova da fase de consciéncia matrimonial e patriarcal para a individuago e para um encontro do 2. Ver The Passion of Lilith, de Pamela Hadas, St. Louis, The Cauldron Press, 1976, pp. 4-5. © poema completo também est publicado na obra pre- miada de Hadas, In Light of Genesis, Filadéifia, Jewish Publication Society, 1980, pp. 2-19. Transcrito com permissao. 3. Emma Jung, Animus and Anima, Nova York, Spring Publications, 1969, p. 23. 40 ego feminino com o Eu feminino.* A tradicional forma pa- triarcal do matriménio, preferida por Adio, na qual o homem sustenta as qualidades “‘masculinas” de atividade e dominio, en- quanto a mulher sustenta as qualidades “‘femininas” da depen- déncia e submissao, tem, como resultado, a opressio da mulher e seu encarceramento, impedindo-a de tornar-se ela mesma. Para crescer e se desenvolver psicologicamente, uma mulher precisa integrar as qualidades de liberdade, movimento e instintividade de Lilith. Lilith € aquela qualidade pela qual uma mulher se nega a ser aprisionada num relacionamento. Ela nao deseja a igualdade e a uni- formidade no sentido de identidade ou fusaéo, mas os mesmos direi- tos de se mover, mudar e ser ela prépria. No prinefpio, a Lua quis fundir-se com o Sol e nele se aquecer, como nos conta o mito do Zohar, mas Deus ordenou-lhe que descesse, a fim de seguir as pega- das da humanidade, como uma sombra. Em conseqiiéncia dessa di- minuigao, a Lua renasceu como Lilith, o flamejante espirito livre. De- pois disso, ela coabita com os homens & sua disposicao. Do mesmo modo que as filhas de Hécate e a Lamia, ela faz com que o homem se levante, sobe em cima dele e cavalga-o, para seu prdprio prazer e poder. Além disso, a necessidade que Lilith tem de liberdade de mo- vimento talvez seja uma necessidade de religar-se ao espirito. Lilith, ao que parece, pertence a época bastante remota na qual os pode- res criativos eram prerrogativas da Deusa. Conta-se que, ao aban- donar Adao, Lilith proferiu o inefaével nome de Deus e voou para o céu, mas Deus expulsou-a para baixo. A necessidade de uma liga- ¢do espiritual com o que esté acima revela-se na propria origem de Lilith: 4. Ver “The Stages of Feminine Development”, de Erich Neumann, in Spring, 1959, pp. 77-97. 41 Assim que Lilith surgiu, ela andou Por toda parte, até chegar aos “‘pequenos rostos” [querubins]. Ela queria unir-se a eles e ser formada como um deles, e nao estava disposta a deix4-los. Mas o Senhor, abengoado seja, afas- tou-a deles e fez com que fosse para baixo. Entéo Ele criou Addo e deu-Ihe uma companheira; assim que Lilith viu Eva ao lado dele e se recordou, através da forma de Adio, da beleza sublime, afastou-se voando ¢ tentou, como antes, unir-se aos “‘pequenos ros- tos’. Contudo, os guardides celestiais dos portdes nfo a aceitaram. O Senhor, abengoado seja, repreendeu-a e ati- Tou-se as profundezas do mar (Zohar I 19b). Um conto semelhante a fuga de Lilith de Addo aparece numa tabuleta suméria do terceiro milénio: Havia certa vez uma arvore-huluppu, talvez um sal- gueiro; ela foi plantada, nos Primérdios do tempo, nas margens do Eufrates. Em sua base, a serpente “que desconhece qualquer encanto” construiu seu ninho. Em sua copa, 0 passaro-Zu — uma criatura mitolégica que, as vezes, fomenta o mal — depositou seus filhotes. No meio, Lilith, a jovem da deso- lagao, construiu sua casa, Entéo Gilgamesh, o grande heréi sumério, vestiu sua armadura, que pesava cingiienta minas — aproxima- damente cingiienta libras — ¢ com seu “‘machado da estra- da”, de sete talentos e sete minas de peso — cerca de qua- trocentas libras —, matou, na base da érvore, a serpente “que desconhece qualquer encanto”. Ao ver isso, 0 pAs- saro-Zu fugiu com seus filhotes para a montanha e Lilith 42 desfez sua casa, fugindo para as regides desérticas que estava costumada a freqiientar.> Expulsa pela espada herdica da consciéncia masculina de Gil- gamesh, ou fugindo do direito divino de Adao de dominé-la, Lilith escolhe o deserto. Ela nao ser4 abatida, nem sujeitada. Ela nio se submeter4. A mulher vive a fuga de Lilith através da violenta raiva com que se recusa a submeter-se a um arrogante poder masculino, como se tal submiss4o fosse ldgica, escolhendo, em vez disso, 0 de~ solado deserto e a companhia dos deménios. A sensacao de se ver abandonada ao desenvolvimento psi- colégico é comum na psicologia feminina. Como em muitos mi- tos sobre a individuacéo das mulheres, ha os elementos de sur- presa e forca. Perséfone estende a mao para colher uma flor e se vé arrastada, esperneando e gritando, para o Hades. Psiqué, en- gravidada por Eros, tenta olhar de relance para o pai de seu bebé e se vé desprotegida no mundo, defrontando-se com todas as 4r- duas tarefas da individuagdo. As mulheres, ao contrario dos ho- mens, nao poem uma mochila as costas, nem empunham uma es- pada e partem em busca de algum herdico desafio. Do mesmo modo que Lilith, elas nao t&m escolha; sentem-se expulsas e obri- gadas a consciéncia. Em The Visions Seminars, um paciente de Jung é uma mulher casada que se apaixonou por outro homem. Ela abandonou o marido e a familia e foi para Zurique a fim de ser analisada por Jung. Por volta da metade do tratamento, a mulher teve um sonho: Encontrei uma faca no chao. Cheguei a uma cidade no sopé de uma montanha. Caminhei por ela até chegar a 5, Samuel Kramer, Sumerian Mythology, Filadélfia, University of Pennsylva- nia Press, 1972, pp. 33-34, 43 uma casa em cuja porta havia a marca de uma cruz. Ba- ti de leve na porta com minha faca e a porta se abriu. Havia em seu interior um quarto escuro. Num canto, ar- dia um fogo. Vi, no fogo, os corpos queimados de va- rias cobras pequenas. Peguei as cinzas das cobras e es- freguei-as na palma da minha mao esquerda. Coloquei a faca no fogo até que ficasse em brasa. Entao toquei 0 te- to da casa com a faca e a casa toda desapareceu. Eu esta- va de pé, sozinha, no deserto; era noite eo fogo ardia ao meu lado.® Jung comenta que a faca da bruxa representa “‘... a mente natu- ral que opera magia... Ela se origina mais de fontes naturais do que das opinides em livros; ela jorra da terra como uma nascente, tra- zendo consigo a peculiar sabedoria da natureza...”7 Jung prossegue: A faca m4gica é, aqui, a mente luciferina que come- te o pecado prometéico, confia apenas em si mesma e re- pele a prote¢do de qualquer conviccao tradicional. Essa mulher simplesmente destruiu aquela casa e, portanto, nao tem absolutamente nenhum abrigo; ela é deixada no deserto, na escuridao... Antes que possa compreender a natureza do Tao, ela precisa destruir todas as idéias atrés das quais se abrigara antes.* De fato, muitos amuletos de protegio contra Lilith Ppossuem a forma de facas (ver fig. 2), refletindo essa qualidade instintiva de . C.G 1, pp. 2 iG, Gs - Jung, The Visions Seminars, Zurique, Spring Publications, 1976, vol. 74-277, . G. Jung, The Visions Seminars, vol. IL, p. 278. . G, Jung, The Visions Seminars, vol. Ik, p. 28. exo £ Lilith em cortar, com ardor e impetuosa fiiria, até chegar 4 natureza essencial das coisas. Lilith rompe os grilhdes do relacionamento de poder entre os homens ¢ as mulheres que resulta do patriarcado. Ela escolhe a separagao diante da coergéo ou submissao no interior do “abrigo da convicg4o tradicional’. O efeito da faca da bruxa ou da fuga de Lilith é levar a mulher a um deserto desolado e desconexo, freqtientemente vivenciado como um periodo de loucura.? -Figura 2. Amuleto de prata, em forma de faca, para protecdo con- tra Lilith. (Extraido de Hebrew Amulets, de T. Schrire, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1966, Reproduzido com permissao.) A desconexao € necesséria 4 introjegao e integragao de Lilith. Sozinha, na cabana menstrual, uma mulher pode refletir a respeito de suas feridas, lamber seu préprio sangue e tornar-se curada e nu- trida. Hd uma fria légica lunar para a periddica necessidade feminina de fugir para o deserto, para o pantano e para a solidao. Na escu- ridao da Lua, ali no deserto, distante das criticas e formas tradicio- nais, a mulher pode entrar em contato com a a elementar natureza fe- minina em seu fntimo, o que tende a ocasionar um processo natural de cura. NO DESERTO O esconderijo desolado de Lilith no deserto, perto do Mar Vermelho, € descrito no Velho Testamento: trata-se de uma terra 9. Cf. as novelas Surfacing, de Margaret Atwood, Sea Change, de Lois Gould, e Bear, de Marian Engles. Ver na bibliografia os dados do editor. 45 drida, encharcada de sangue, covil de pelicanos, ourigos, corujas, corvos e sdtiros; um lugar de espinhos, cardos e urtigas, e uma toca de chacais e avestruzes. Os gatos selvagens se encontrarao com as hienas, Os satiros chamarao um ao outro, Ali Lilith repousara Eencontrar4 seu lugar de descanso (Is. 34:14). Infelizmente, Lilith é tao pouco integrada que muitas mulheres experimentam sua fuga como um periodo em que se sentem tao sub- jugadas que se véem obrigadas a se afastar ou a fugir. Embora a mu- lher esteja, de fato, realizando a partida, ela se sente rejeitada e ul- trajada. Desolada, sem o Sol, ela 6 como a Lua no mito do Zohar a respeito da origem de Lilith. As mulheres descrevem essa experién- cia no deserto como um perfodo em que emitem seus sons ¢ gritos animalescos ¢ sentem a raiva e a desolagao que podem ser vistas nos olhos de uma fera ferida ou capturada. Uma vez que, pelo processo.cabalistico da gematria, a so- ma das letras do nome de Lilith é igual 4 soma da palavra ‘“‘guin- cho”, Lilith muitas vezes 6 chamada de o deménio que guincha.!° Conta-se que Lilith passa todo o Dia de Reconciliagdo, o mais sa- grado dos dias sagrados, travando uma batalha de guinchos com Mahalath, uma das concubinas de Samael. Elas se insultam mutua- mente ali no deserto até suas vozes se elevarem aos céus, e a Terra tremer sob seus gritos agudos.'! Acredita-se que seus guinchos tém 0 objetivo de abafar as preces dos justos. Talvez seja também mais um esforgo da parte de Lilith de ser ouvida por Deus e de erguer-se acimia de seu papel de proscrita espiritual. 10. Theodore H. Gaster, Myth, Legend and Custom in the Old Testament, Nova York, Harper Torchbooks, 1975, p. 579. 11. Patai, The Hebrew Goddess, p. 237. A figura 3 mostra a Lilith instintiva, alada e jovem como a “Senhora das Bestas”. Ela tem nas maos a vara ¢ 0 cfrculo, simbo- los de seu dominio sobre os ledes solares, em cima dos quais apdia seus pés de coruja, ¢ € circundada por seus familiares, as noturnas corujas-das-torres. Durante sua permanéncia no deserto, Lilith é transformada por sua vivéncia da solidao € desolagao. Ela se torna um aspecto do Eu feminino, simbolizado pelas corujas, a sabedo- ria da noite. No deserto, as notumas ¢ lunares corujas e Lilith tém, finalmente, ascendéncia sobre os ledes solares de consciéncia masculina. Em virtude de sua permanéncia no deserto e devido a sua asso- ciagio com toda criatura viva que rasteja ¢ com todos os animais do campo, Lilith tem sido identificada com quase toda espécie de passa- ro ou animal. Rivkah Kluger, em seu ensaio sobre a rainha do Sabé,!? que ela identifica com Lilith, relata uma lenda acerca do en- contro entre Lilith e o rei Salomao. Deus deu a Salomao sabedoria e entendimento. A sabedoria de Salomfo sobrepujava a sabedoria de todos 0s filhos do Oriente ¢ de toda a sabedoria do Egito. Ele falava das 4rvores... e também dos animais, das aves, dos répteis e dos peixes (I Reis 4:29-33). Quando Lilith, sob a mascara da rainha de Sab4, tentou sedu- zi-lo, Saloméo, conhecedor das peculiaridades do instintivo natural e feminino ordenou aos djins que construfssem uma sala do trono com um soalho de vidro. Quando a rainha de Saba (Lilith) viu o rei, pensou, em seu intimo, que o trono estava sobre a 4gua ¢ ela entio ergueu suas roupas pata atravessar a Agua e aproximar-se dele. Des- 1D. Rivkah Scharf Kluger, Psyche and Bible, Zurique, Spring Publications, 1974, pp. 112-113. 4] Figura 3. Lilith como a Senhora das Bestas. Relevo de terracota, Suméria, cerca de 2000 a.C. (Placa da colegdo do coronel Norman Colville, cortesia da Princeton University Press, The Grant Mathew As Reich Neumann.) se modo, suas pernas peludas, revelando sua origem bestial e natu- ral, ficaram & mostra. Salomao, talvez por ser filho de Davi e de sua amante Batse- ba, sua anima escura, nao temia o lado instintivo da mulher. Ele € a forma quase divina do animus, que faz com que uma mulher se conscientize de sua bestial natureza Lilith. Salomao, enquan- to elemento masculino, ct6nico e falico, funciona como um es- pelho que reflete, a partir de baixo, o lado instintivo e femini- no de Lilith. No 4mbito humano, uma mulher vivencia o relacionamento en- tre Salomao e Lilith quando se entrega plenamente ao seu ciclo lunar mensal, as ondas das dores do parto ou as contragées uterinas por ela sentidas ao amamentar uma crianga. Num encontro sexual, onde a mulher pode se entregar as irresistiveis sensagdes fisicas do orgasmo profundo, ocorre o mesmo fenémeno. Se a mulher nao esté emocio- nalmente ligada ao amante, ela experimenta, de uma forma ainda mais clara, um surpreendente reconhecimento de sua bestial natureza Lilith, e apreende a sabedoria instintiva do seu corpo. Através de uma profunda experiéncia do seu eu fisico ¢ instintivo, a mulher en- tra em conexao com a Grande Deusa, em seu original e coletivo as- pecto orgiastico. Quando esta profunda instintividade nao é consciente, ela pode tornar-se possuida por uma forga de motivagao demonfaca. Durante a sua permanéncia junto ao Mar Vermelho, Lilith estava casada com Samael, 0 Diabo. O casamento foi arranjado pelo Dragao Cego, a forga inconsciente que unia os dois. O Drago do Alto é o Principe Cego que tem 0 as- pecto de um padrinho intermediario entre Samael e Lilith, e seu nome € Tanin’iver, Dragio Cego. Ele se parece com um dragao cego... e € ele quem trata da adesdo e uniao entre Samael e Lilith. Tivesse ele sido criado sadio, 49 na inteireza da sua emanagao, teria destrufdo 0 mundo num tinico minuto. E ele [o Dragao Cego] é castrado, de modo que nao pode procriar, para que [sua descendéncia] nao aniquile 0 mundo. Sobre o Dragio Cego cavalga Lilith a Pecadora — que cla seja prontamente extirpada de nossos dias, amém! E esse Drago Cego realiza a unifio entre Samael e Lilith. E assim como 0 Dragdo que esta no mar (Is. 27:1) nao tem olhos, do mesmo modo o Dragiao Cego, que esta no alto, sob a aparéncia de uma forma espiritual, é sem olhos, ou seja, sem cores. O Dragao Cego esté entre Samael e a Maligna Li- lith. E realiza uma unido entre eles apenas na hora da pestiléncia, que o Misericordioso nos salve! E ele € castrado, de modo que os ovos da vibora nao virao ao mundo. Pois, se assim nao fosse, eles aniquilariam o mundo. E a espécie chamada Lilim é cheia de pélo, da cabe- t ¢a aos pés; contudo, na cabega nao ha cabelo, mas todo 0 i seu corpo e face sao cheios de pélos. E assim Lilith tem { quatorze épocas malignas e nomes malignos e facgdes a malignas. E todas recebem a ordem de matar as criancas — que nds sejamos salvos! — e especialmente atraves das bruxas que, na lingua de Ashkenaz [alemfo], séo cha- madas de Kinder Benimmerins.'> A imagem do casamento de Lilith com o Diabo é a de uma ser- pente, Samael, carregando 0 Dragéo Cego que, por sua vez, carrega Lilith.'4 Esse acasalamento é ilustrado pelo seguinte sonho de uma 13. © dr, Raphael Patai compilou ¢ traduzin muitos desses contos. Ver Gates to the Old City, pp, 458-459. Transcrito com permiss4o. 14. Patai, The Hebrew Goddes, p. 235. 50 mulher casada, inconsciente de suas forcas de motivagao, que tentou seduzir um ingénuo homem mais jovem: Uma jovem, chamada Lila, de cabelos negros, lon- gos e ondulados, com um suave e transparente vestido branco, vé-se envolvida numa nefanda intriga pelo seu parceiro, um homem alto ¢ quase negro, vestido com um smoking preto. O parceiro lhe pede para enfiar a mio através de uma janela de vidro espelhado a fim de criar uma diversdéo enquanto ele comete um crime. Lila segue suas instrugdes, mas fica surpresa ao descobrir que sua ago Ihe causa dor. Quando ela se queixa da dor ao ho- mem, ele permanece indiferente. Lila vagueia 0 resto do sonho sangrando e com dor, mas incapaz de solicitar aju- da aos médicos e enfermeiras que encontra. Finalmente, quando estd caida e morrendo devido a perda de sangue, seu homem reaparece. Ele usa agora uma cartola e uma capa pretas, e tem um aspecto maligno. Declara: “Sou a Camificina”, ¢ tenta matar os médicos e policiais que esto cuidando dela. Embora seja capturado, Lila morre, pranteada pelo jovem médico, que diz: “‘Nunca consegui conhecé-la.”!> A mulher que teve esse sonho era, de fato, casada com um mé- dico mas, por nao ter consciéncia do casamento de sua Lila interior com 0 diabo, nao péde ser curada, Sua situagao assemelhava-se dolo- rosamente 4 de Sara (Livro de Tobias, do Velho Testamento) que, inconscientemente, era casada com o Diabo e proibida de ter re- lagdes com os homens humanos. 15, Estes e todos os outros sonhos citados neste livro sio mencionados com 0 consentimento expresso daqueles que os tiveram, os quais, porém, desejam permanecer andnimos. 31 A mulher do sonho sofrera de excesso de peso desde a puber- dade até quase os trinta anos. Nessa época, gracas a um tratamento com horménios femininos para reequilibrar seu sistema endécrino, ela péde engravidar. Durante a gravidez, e ao amamentar seus dois gémeos, um menino e uma menina, ela recuperou seu corpo femini- no mais natural. Tornou-se entao formosa e, fascinada pelos poderes sedutores de Lilith, pés-se a manifestar sua natureza feminina recém-descoberta de um modo inconsciente e incontroldvel. Assus- tada por sua autodestrutiva possessao pelo diabo, recorreu a andlise. No mito do casamento de Lilith com Samael, Lilith é freqtien- temente imaginada como Leviaté, a Serpente Tortuosa, e Samael como Leviatao, a Serpente Inclinada: E encontramos escrito que o malvado Samael e a maligna Lilith tém a forma de um casal que, com a inter- vencgéo de um padrinho, 0 Dragio Cego, recebe uma emanagao maligna e insolente, que flui de um para 0 ou- tro. E sobre esse mistério est4 escrito: ‘“‘E naquele dia 0 Senhor, com a sua dura, grande e forte espada, castigara Leviatéo, a Serpente Inclinada, e Leviata, a Serpente Tortuosa, e matara o Dragao que est4 no mar” (Is. 27:1). Leviati € a conexfo e o acasalamento entre os dois que tém o aspecto de serpentes. Por isso, ele € duplicado: a Serpente Inclinada que corresponde a Samael, e a Ser- pente Tortuosa, que corresponde a Lilith.'© A imagem da Serpente Inclinada e da Serpente Tortuosa apare- ce no sonho de uma mulher recém-safda de um caso de adultério no qual vivenciara a natureza sedutora de Lilith. A mulher sonhou ter 16, Patai, Gates to the Old City, Nova York, Avon, 1980, p. 465. Transcrito com permissio. 32 se ajoelhado num leito, nua, de costas para o seu amante, e espiado pela janela de um respiradouro quadrangular. Na realidade, este fora © cenério na qual ela, subitamente e de modo bastante surpreenden- te, abandonara o amante. Poder-se-ia dizer que ela proferiu o inefa- vel nome de Deus e fugiu para longe. No sonho, ao se ajoclhar no, leito, ela viu uma enorme cobra preta no respiradouro quadrangular, que podia ser “uma boa ou uma naja”. Estava quase alcangando a serpente duplicada a fim de trazé-la para o interior do apartamento e fazer dela um animal de estimagdo, quando se deu conta do perigo de sua intengao. Ao despertar, compreendeu a necessidade e conve- niéncia de sua repentina fuga e a natureza demonfaca de seu plano de tentar “‘reavé-lo (0 amante)’’. Vemos, uma vez mais, quao facil- mente as forcas de motivacao inconscientes podem conduzir uma mulher para o seu lado Lilith e quao autodestrutivo pode ser esse ca- samento com o diabo. LILITH, A RAINHA DO DESERTO Os mitos!? da permanéncia de Lilith no deserto abundam de uma energia fgnea, violenta, demonfaca, dupla e copuladora. Os an- tigos escreveram que ha duas Liliths, uma pequena e outra grande. A Lilith grande, a Lilith Av6, é a esposa de Samael, rei dos Demé- nios, ¢ uma Mulher Devassa. A Lilith pequena, Lilith a Moga, é a esposa de Ashmodai, também um rei dos Deménios. Ha muito ciime entre Samael, o principe supremo, e Ashmodai no que se refere a Lilith. H4 também discussées e hostilidades entre Lilith a Filha (ou Moga) e a Lilith Avé. No Dia da Reconciliagao, Lilith e as 420 le- gides de deménios sob seu controle avancam pelos desertos. Elas 17. Patai, Gates to the Old City, pp. 464-465. 33 marcham e ela emite guinchos, como afirmam os cabalistas, pois é a Princesa do guincho e, em seu fntimo, nao h4 nenhuma boa intencao. Ela deseja apenas desencadear a guerra e todos os tipos de des- truigéo. Ela nao é outra coisa senao uma fornicagéo no mundo. Consta também na lenda que Lilith, como a rainha de Zemar- gad (seu territério no deserto), viajou durante trés anos com seu exército, desde sua habitagdo no deserto, para atacar os filhos de J6.18 Ela cercou os bois e os asnos de J6 ¢ se apoderou deles, apés matar os homens que estavam cuidando dos animais para J6. Apenas um homem escapou. Golpeado ¢ ferido, sé lhe restaram forcas sufi- cientes para contar a J6 sobre suas perdas, morrendo logo a seguir. A primeira intengao de J6 foi combater os saqueadores, mas o ata- que de Lilith fora tao devastador que Ihe informaram ter sido sua propricdade consumida pelo fogo vindo dos céus; ele entao desistiu, dizendo: “‘Se os céus se voltam contra mim, nada posso fazer.” Os cabalistas dizem!° que, durante a permanéncia de Lilith no deserto, um espirito de sedugdo dela emergiu. Ela levantou queixas contra o atributo divino, o Fundamento do Mundo, Durante os 130 anos depois da queda, no decorrer dos quais Adao esteve separado de Eva, Lilith conseguiu seduzi-lo e, desse modo, povoar 0 mundo com espiritos, deménios e Lilim. O Zohar afirma que, a partir das emanag6es de Samael e Ashmodai, Lilith gerou um estranho e ma- ligno exército, destruidor do mundo Acima e Abaixo. Ha uma duplicagao da fémea demonfaca na historia cabalisti- ‘a°° segundo a qual as duas prostitutas que compareceram diante do rei Salomao, disputando seus filhos recém-nascidos, eram, na verda- de, Lilith e Igrat. Lilith ¢, aqui, a estranguladora de bebés, e Igrat, a sedutora do rei Davi quando este dormia em seu acampamento no deserto. Conta-se que Igrat copulou com Davi em seu sonho, dele 18. Ginzberg, The Legends of the Jews, vol. IL, pp. 233-234. 19, Patai, Gates to the Old Ci 467. 20. Patai, Gates to the Old Cit 34 engravidou e deu & luz o rei de Edom que, neste mito, era na verda- de Ashmodai, rei dos Dem6nios. Mais tarde, Ashmodai destituiu Sa- lomao de sua realeza e sentou-se no trono que lhe pertencia. O mito também inclui o relato de que Lilith e Igrat estrangularam o filho da mulher sunamita, acrescentando, em seguida, que havia quatro des- sas rainhas do deserto: Lilith, Igrat, Mahalath e Naamah. Numa ten- tativa aparentemente inuitil de separar os reinos de cada uma dessas mulheres, outro texto cabalistico”! afirma que Lilith fornica com to- dos os homens, Naamah apenas com os gentios, Nega (mais um no- me para o deménio feminino, que significa uma praga) somente com Israel, enquanto Igrat é enviada a fazer o mal apenas nas noites que antecedem o Saba (ou nas quartas-feiras). A erudigéo cabalistica apresenta grande quantidade dessas minuciosas genealogias referen- tes 4s mulheres demoniacas. Elas nasceram de Lilith, procriadas por deménios e homens durante o perfodo em que Lilith permaneceu no deserto. Apesar de os nomes variarem (incluindo-se Lilidtha, Even Maskit, ao lado dos acima citados), sua energia mortal, asfixiante, sedutora e ardente €, essencialmente, a de Lilith. As filhas demoniacas de Lilith e de Ashmodai (ou Samael) eram 0 flagelo do deserto, na medida em que praticavam feitigaria, estrangulamentos e sedugées. O filho de Lilith e Ashmodai chama- va-se Sariel, Espada de Ashmodai, “‘Seu rosto chameja como o fogo das chamas.””?? Conta-se que, no meio da noite do Yom Kippur, o Dia de Reconciliagao, Sariel é invocado pelos atos e oragdes dos sa- bios e anciaos. Contra a sua vontade, ele vem voando pelo espaco com 131 guerreiros, todos com o rosto em chamas. Os cabalistas di- zem?? que o escriba, cujo nome é Pifiron, traz os escritos secretos ¢ selados por Sariel, e esses segredos, todos os segredos do firmamen- to, sfio revelados aos anciaos. 21. Patai, Gates to the Old City, p. 459-460. 22. Patai, Gates to the Old City, p. 469. 23. Patai, Gates to the Old City, p. 467. 55 Ao que parece, esse principe igneo proporciona esclarecimento Aqueles que os solicitam, invocando-o no Dia de Reconciliagfo. As- sim, vemos quao prolifico, poderoso ¢ necessdrio é 0 elemento de- monfaco feminino, Lilith, enquanto aspecto da sombra transpessoal. O territério de Lilith é 0 deserto abrasador e 4rido, também conheci- do como Jardim de Ala. Ali no deserto estamos sds. A liberdade, a caréncia de umidade emocional e o calor abrasador provocam, com freqiiéncia, imagens bruxuleantes, sonhos e transformagio. Muitas de nés sentimos o recente Movimento Feminista, sobre- tudo em seu inicio, como uma experiéncia do ermo deserto. Pude- mos sentir a ardente ¢ vingativa raiva de Lilith na supressao patriar- cal do feminino, tornando-nos insensiveis e destruindo tudo aquilo que, ao nosso redor, nos sujeitava. Ao mesmo tempo, a paixio e 0 calor de Lilith despertaram, duplicaram e proliferaram uma irmanda- de demoniaca, dando origem a uma poderosa energia transformadora ea um criativo esclarecimento. Lilly Rivlin, mulher moderna, recém-consciente da conspiragio césmica sexista, buscou uma compreensdo do Eu enquanto mulher, através de uma viagem regressiva no tempo até o territ6rio de Lilith, a primeira Mulher. Sua pesquisa deu origem a este mito da criagdo: No Principio Quando Deus se pés a caminho para criar o Céue a Terra, Ele nada encontrou senéo Tohu Va’Vohu, isto é, 0 Caos € o Vazio. Diante do Abismo, o espirito de Deus hesitou. Naquele segundo atémico, Ele tornou-se ciente do Outro. Era a pulsagaéo do Universo: um Espirito Pul- sante girando no Caos. Naquele espago, o Eu e 0 Tu en- contraram-se. Durante essa Auséncia, a Energia nasceu. E Ele quis fazer uma réplica daquele segundo, daquela memé6ria da criagdo que Ele chamou de Ordem. O Espiri- to Pulsante chamou-a de Amor. E o Espirito Pulsante en- 56 viou o Amor para 0 Caos, e os Céus e os Mares se sepa- raram. E Deus deu Ordem & Energia, e houve Luz. E o Espirito Pulsante dangou numa luz dourada até haver Fo- go. Deus observou o Fogo brilhar dentro dos Mares ¢ concebeu as Pedras Preciosas. E Deus e o Espirito Pul- sante abragaram-se em Sonho e Realidade, e houye Espi- rito e Matéria. E Deus puxou a Luz, das entranhas do Fo- go, e houve o Dia e a Noite. O Espfrito Pulsante amou com tamanha intensidade que as Estrelas tremeram e os Mares espumaram, ¢ houve o Relampago. Os Céus chora- ram de alegria, e houve éxtase no universo. O Espirito Pulsante e Deus uniram Amor e Ordem. O Espirito Pulsante criou a Relva, as Ervas e as Arvores em correspondéncia ao Sol, 4 Lua e as Estrelas. E sobre os crescentes glébulos de Energia, colocou os animais terrestres e os répteis, enquanto o Espfrito Pulsante pul- sava e cuidava do tempo. O Espfrito Pulsante alterou Seu ritmo a medida que encontrava os crescentes glébulos de Energia, adquirindo impulso e movimento. E o Vento moveu-se entre os Céus e os Mares, ao longo de ilhas esféricas de Energias, semeando a relva, as ervas e as 4r- vores, acariciando os animais terrestres e os répteis com vida. E a Terra girou no Abismo. Deus procurou o Espirito Pulsante no Vento para Ihe perguntar: “E a wiltima Ordem?"’ “Uma imagem sua”, Ela* respondeu. E assim, utilizando um pouco de cada Elemento que havia criado, Ele fez Addo. Mas nao utili- zara nada do Vento. E Adao, que foi feito & imagem de Deus, veio & existéncia. E o Espfrito Pulsante do Caos ¢ * Isto é, o Espirito Pulsante, aqui considerado uma entidade feminina. (N.T) 37 do Vazio também tinha defrontado 0 abismo e criado. Ela reuniu os Elementos e fez uma imagem. E insuflou vida em Lilith. Mas o Vento nao passara através de Adao, € Ele nao podia se lembrar do nascimento do Amor que manifestou a Energia. O restante do mito & conhecido. Agora, Adao conhece o mito. Ele tem sentido o Espirito Pulsante no Vento.”* CAPITULO II Lilith, a Sedutora Lilith, a sedutora, é descrita pelos cabalistas como uma prosti- tuta que fornica com homens. Ela é chamada de a Serpente Tortuo- sa, porque seduz os homens a seguir caminhos tortuosos. Ela é a Mulher Estrangeira, a dogura do pecado e a lingua ma. Conta-se que dos labios da Mulher Estrangeira jorra mel. Ela é chamada de a Fé- mea Impura e, embora nao tenha mios e pés para a cdpula, pois os pés da serpente foram cortados quando Deus a castigou por seduzir Eva, mesmo assim, em seus adornos, a Fémea dé a impressao de ter mos e pés. Os cabalistas dizem que é através do mistério de seus adomos que ela pode seduzir os homens. Lilith deixa Samael, o ma- rido de sua juventude, e desce a Terra. Ali, fornica com homens que dormem sozinhos e faz com que, em seus sonhos, tenham impuras e esponténeas polug6es noturnas.! Com receio de que Lilith e Samael infestassem 0 mundo com sua prole demonfaca, Deus castrou Samael. Esta histdria correspon- de ao mito talmtidico no qual Deus castrou o Leviaté macho a fim de 1. Patai, Gates to the Old City, pp. 463-464. 59 impedi-lo de se acasalar e, desse modo, destruir a Terra. Talvez por nao poder mais satisfazer seu desejo com Samael ou, quem sabe, por ainda sonhar com Adio, cuja beleza, como diz o Zohar, era seme- lhante ao Disco do Sol, Lilith sabia que ainda desejava Adio. Segundo o Zohar (I 54b), depois da queda, Adao decidiu fazer peniténcia pelo seu pecado, abstendo-se de ter relagdes com Eva du- tante 130 anos. De acordo com o rabi Mier, no Talmud, Addo co- briu a cintura com espinhosos ramos de figueira para evitar o ato se- xual com Eva. Durante esse tempo, Lilith visitou Adio enquanto ele dormia sozinho, sonhando, e se satisfazia, montada nele, provocan- do-Ihe polug6es noturnas. As criaturas nascidas dessa uniao sao chamadas de os “‘flagelos da humanidade”. O Zohar prossegue dizendo que Lilith se esconder4 nos vaos das portas, em pocos e latrinas, e continuara a desencaminhar os homens até o dia do juizo final. Como diz 0 rabi Simedo: “‘Ai da cegueira dos filhos dos homens que nao percebem o quanto a Terra est4 repleta de seres estranhos e invisiveis... como Lilith... que se misturam aos ho- mens e neles despertam a concupiscéncia que conduz 4 polugéo” (Zohar I 55a). Torna-se evidente, a partir da descrigéo do Zohar a respeito da atividade de Lilith, que, do ponto de vista da psicologia masculina, ela é tanto desejavel como perigosa: Ela se adorma com muitos ormamentos, como uma desprezivel prostituta, e posta-se nas encruzilhadas a fim de seduzir os filhos dos homens. Quando algum tolo dela se aproxima, ela o agarra, beija-o e serve-lhe vinho feito com a borra da bflis de uma vibora. Assim que ele bebe o vinho, pée-se a segui-la, extraviado. Quando ela percebe que ele a est4 seguindo, extraviado dos caminhos da ver- dade, livra-se de todos os adornos que usou para seduzir © tolo. Os ornamentos para seducio dos filhos do ho- mem sao: 0 cabelo longo e vermelho como a rosa; as fa- ces brancas e vermelhas; de suas orelhas pendem seis adornos; cordas egipcias e todos os adornos da Terra do Leste pendem de sua nuca. Sua boca assemelha-se a uma estreita e graciosa passagem, sua lingua é pontuda como uma espada, suas palavras sao suaves como 0 leo, seus labios sao vermelhos como uma rosa e adocicados com todas as doguras do mundo. Ela se veste de escarlate e se adorna com quarenta ornamentos menos um. O tolo a se- gue, extraviado, bebe do calice de vinho, fornica com cla e perde-se atraés dela. O que ela faz em seguida? Deixa-o adormecido no leito, voa para o céu, denuncia-o, despe- de-se ¢ desce. O tolo desperta ¢ pensa que pode divertir- se com ela como antes, mas ela tira seus adornos e trans- forma-se numa figura ameagadora. Permanece de pé dian- te dele, envolta em trajes de fogo flamejante, despertando terror e fazendo tremer o corpo e a alma, cheia de olhos assustadores e empunhando uma espada, da qual pingam gotas amargas. E ela mata o tolo e o atira 4 Geena (Zohar 1 148a-b Sitre Torah).? Neumann, em The Great Mother, arrola Lilith entre as “‘a- traentes e sedutoras figuras de encantamento fatal” que representam © aspecto negativo e transformador do feminino.? Num relevo he- lenistico (figura 4) de um espirito feminino nu, montado num ho- mem nu é, evidentemente, sonhando, Neumann mostra que os sim- bolos dionisfacos indicam que 0 sticubo feminino alado pertence ao dominio dos mistérios. Trata-se de uma forma encantadora, sedutora, orgidstica e apavorante do feminino. Pelo fato de o homem estar Patai, The Hebrew Goddess, p. 222. Citado com permissao. . Erich Neumann, The Great Mother, Princeton, Princeton University Press, Bollingen Series, 1972, pp. 80, 146. 6L Figura 4, A diaba alada da noite, montada sobre um homem adormecido, Re- levo helenistico. (Cortesia da Princeton University Press, The Great Mother, de Erich Neumann.) adormecido e pelos pés de coruja da mulher, julga-se ser esta uma gravura de Lilith, cujos poderes sao bem maiores na época em que a Lua est4 minguando — quando “‘os caes da noite esto soltos de suas correntes e andam a esmo até o amanhecer” (Zohar II 163b). O Zo- har prossegue: Lilith perambula 4 noite, molestando os filhos dos homens e fazendo com que se corrompam. Sempre que encontra alguém dormindo sozinho numa casa, paira so- bre ele, agarra-o ¢ une-se a ele, despertando-lhe 0 desejo, e dele procria. Ela ainda Ihe inflige doengas, sem que ele saiba — tudo isso por causa da diminuigéo da Lua (Zohar 1 19b). O terrivel poder de sedugao de Lilith é retratado neste con- to mistico de Benye, que dormia sozinho desde o falecimento da esposa: E A noite, Benye estava em casa deitado em sua ca- ma, como numa profunda sepultura. Respirava com difi- culdade e estava encharcado de suor, deitado entre trapos imundos, os cabelos em desalinho e 0 corpo esparramado feito uma carcaga. Ele estendeu as maos na escuridao, tentando agar- Tar-se em alguma coisa, proteger-se da queda; um cheiro fétido desprendeu-se dele e a baba escorria de sua boca. Benye, 0 santo de sua geracdo, estava babando. Ele desvencilhava suas maos da escuridao e esten- dia suas maos na escuridao; mas, de repente, puxou-as para tras. Benye teve a impressao de ter tocado em alguém, junto a sua cama. 63 Perscrutou atentamente o quarto. Havia de fato al- guém, em pé, nao muito distante dele, uma silhueta es- pessa, uma silhueta alta, quente. Benye ergueu-se da cama, aterrorizado. Sem dtivida era uma mulher; seus quadris € seios sobressaiam-se de seu traje colante e negro. Em voz baixa, ele Ihe perguntou: “O que vocé est4 fazendo aqui?” Ela nao respondeu. Lenta e calmamente, caminhou até a porta, onde voltou-se de frente para cle ¢ permane- ceu em pé, nessa posi¢ao. Uma irradiagéo amarela espalhou-se pelo quarto como uma fina poeira. —Benye — ela disse —, uma vez vocé me chamou. Sua voz era ardente, sensual e tranqitilizadora, e fez com que 0 corpo dele se inclinasse na diregao dela. — Eu? — Sim, uma vez, quando vocé ainda era um menino. Benye espichou sua barba emaranhada. — Eu? Quando era menino? — Sim, sim, Benye, vocé estava caminhando pelo pasto, por entre as vacas, vocé tinha uma barriga grande e inchada e seus olhos pareciam os de um bezerrinho. Vocé se lembra? Sempre que um touro cobigava uma va- ca, vocé torcia as mfos e chorava aflito, e comegava a contar nos dedos quantos anos faltavam ainda até vooé poder se casar. Benye comecou a se lembrar, mas nao quis res- ponder. —Benye, naquele momento vocé me chamou... Mas nao atendo as criangas. — E, com um sortiso, acrescentou: — Agora vocé j4 € um adulto, um homem feito... Um ho- mem forte e bonito... Bonito e querido! Quero colocar minha cabega em seu jovem peito... Quero que suas maos ardentes me abracem, querido! Quero sentir a fresca fra- grancia do seu corpo... Os olhos de bezerro de Benye arregalaram-se no escuro. Ele balbuciou: —Mulher, vocé deve estar enganada. — Olhe — cla gritou em éxtase. — Vocé é 0 meu tinico homem! Olhe para meu corpo fresco ¢ jovem... E, sem dizer uma palavra, comegou a se despir. — Benye, meus quadris ainda sao castos, virginais, fortes, e minhas coxas sao macias ¢ lisas... Os bicos de meus seios sao duros, e meus seios nunca amamenta- ram uma crianga... nunca amamentaram... nunca ama- mentaram... E chorou emocionada, chorou com ardor, e seu cor- po nu cintilou na palida escuridéo, como as escamas de uma serpente. 65 Benye ouviu aquela voz abafada e, na penumbra amarela, ele a viu, viu Lilith, de pé, junto 4 entrada, um pouco curvada, as mos acima da cabeca, emoldurada pe- los umbrais da porta. Benye agarrou-se nas bordas da cama e cerrou os dentes. Sentiu-se atrafdo para ela. Estava sufocando e, de Tepente, com uma voz estranha, gritou: — Fora! Fora da minha casa! Comegou a atirar os trapos e os travessciros nela. — Va embora, monstro! Benye cuspiu, arrancou a camisa, ao mesmo tempo em que pulava da cama, e, confuso, comegou a bater-se na cabega ¢ no peito. Lilith conservou-se junto a porta, em siléncio, com um olhar grave e um sombrio sorriso nos labios. Estava aguardando que Benye se acalmasse. — Sua prostituta! Saia daqui! Benye percebeu que estava quase nu diante daquela mulher e, imediatamente, pulou de volta para a cama, pu- xou as cobertas sobre si, fechou os olhos e voltou o rosto para a parede. Soltou um fraco gemido. Durante alguns instantes, Lilith permaneceu imével. Depois, lentamente, sem rufdo, aproximou-se dele e, com suavidade, fez cécegas em sua axila. Benye mordeu os labios, o prazer percorreu todo o seu corpo, cada recanto, cada fenda. Ele nao se voltou; aos poucos, porém, parou de gemer. Lilith sentou-se em sua cama, sorriu e€ comegou a fazer-lhe cécegas nas solas dos pés. O prazer era tanto que o deixou atordoado. Benye sabia que Lilith estava sentada ao seu lado; por isso, conteve sua profunda gargalhada e manteve-se ali, deitado ¢ mudo como um pedago de pau. Ela comegou a acariciar-Ihe os cabelos e seus finos dedos enrolavam-se nos fios em desalinho. Benye nao pdde resistir mais, voltou-se para ela € seus grandes den- tes amarelecidos rangiam com esse agradavel sofrimento. Soltava risadinhas abafadas, feito um bode velho: — Meu amor, como é gostoso...! Lilith disse: — Seu belo rosto me deixa louca, Ben- ye, querido! Nao ria assim de mim! Benye percebeu, de stibito, que era Lilith e come- cou a rir e a ranger os dentes mais alto ainda, a fim de afugenté-la. Ela se afastou da cama. — Sua cadela! Benye avangou na diregdo dela, deixando cair seus trapos em sua excitagéo, mas ela conseguiu se esquivar dele. — Vou agarré-la, Lilith — gritou ele. — Vou agarré-la. 67 Benye arremessou-se atris dela através da palida luz, esbravejando, ofegando, berrando, até agarra-la, num canto, com sua mao direita. Cravou seus escuros ¢ sujos dedos no alvo corpo dela e mergulhou sua emaranhada barba em seu rosto. Li- lith curvou-se, tentando evitd-lo, mas ele a apertou forte- mente de encontro ao seu corpo e, com os lébios espu- mando, gritou: — Débora, Débora, é voce! Pois 0 nome de sua falecida esposa era Débora. Lilith tentava esquivar-se. Ela estava sentindo um imenso prazer, mas lutava para libertar-se dele. De repen- te, agarrou sua imunda barba e beijou tao vigorosamente Seus grossos ¢ ressecados labios que Benye quase desfa- leceu; entio, ela o apoiou em seus quentes ombros e car- Tegou-o até a cama... — Meu Deus! Meu Deus! Eo galo ainda nao cantou! O quarto tornou-se €scuro, suas respiragdes fundi- Tam-se, centelhas cintilaram na escuridao, lébricos mem- bros envolveram 0 corpo com uns olhos verdes e um leve adejo... Nao h4 mais salvagao, meu Deus! E Benye se debatia, lutando sem saber com quem, sentia-se afundando e estendia os bracos na escuridao numa tentativa de se agarrar em alguma coisa; com um esforgo supremo, atirou-se da cama ao chao. O quarto es- fava em siléncio e nao havia ninguém ali. E seu sangue estancou nas veias, coagulado, con- gelado. Lilith, a jovem e fresca Lilith, a esposa de Sati, ma- tara-o. A primeira mulher de Adio...* Lilith, o deménio alado da noite, nao € apenas sedutor, mas também mortal, visto que, no Zohar, é identificado tanto com um sti- cubo como com um vampiro: E aquele espfrito, que 6 chamado de Asirta, fica ex- citado... e dirige-se 4 mulher que é inferior a todas as mu- lheres. E ela € Lilith, a mae dos deménios. E um homem pode ficar excitado por esse espirito mau chamado Asirta, que se incorpora nesse homem e une-se a ele de forma permanente. E, a cada Lua Nova, esse espirito de mani- festagéo maligna é excitado por Lilith e, 4s vezes, o ho- mem é molestado pelo espfrito, cai ao chao e nao conse- gue levantar-se, ou até mesmo morre (Zohar II 267b). Uma analisanda, com um comportamento inconsciente em re- lagéo 4 qualidade sedutora e mortal de Lilith, seduziu, primeiro, um homem e, em seguida, convenceu-se de que ele caira numa de- pressaéo suicida. Mais tarde, nessa noite, sonhou que uma estaca atravessara-lhe 0 coracgaéo, pregando-a ao chao. Pelo fato de ter realmente sentido, no sonho, a estaca atravessada em seu corpo, chegou 4 concluséo de que sua identificagao com o vampiro havia sido enfrentada do modo tradicionalmente prescrito para o exorcis- mo desses deménios sugadores de sangue. A estaca, pregando-a ao ”, uma histéria de Moyshe Kulback, in “The Messiah of the House of Ephriam”, in Great Works of Jewish Fantasy and Occuit, compilado, tradu- zido e introduzido por Joachim Neugroschel, Woodstock, Nova York, Over- look Press, 1986, pp. 292-295. Cortesia de Joachim Neugroschel. 69 ih chao, era uma forga contraria necessdria 4 propensao de Lilith ao ” v6o stibito. Embora Lilith, a sedutora, seja perigosa para as pessoas com- pletamente inconscientes, para as que ja trilham o caminho da cons- ciéncia 0 encontro com a tentadora Lilith pode ser transformador. Jung chama-a de uma “anima xamanistica”.> Ele comenta que “So- fia nao pode ser associada a Eva, uma vez que Eva nada tem que ver com magia, mas ela [Sofia] pode, provavelmente, ser associada 4 primeira mulher de Adao, Lilith’’.® O iniciado encontra Lilith quan- do est4 a meio caminho da 4rvore da filosofia.’ Na figura 5, ela é mostrada com seu rabo de serpente e pés de animal, de cabega para baixo, na arvore do conhecimento. De modo anélogo, ela é descrita pelos cabalistas como “uma escada pela qual se pode subir até os degraus da profecia”.® O simbolismo xamanfstico Lilith (como se vé na figura 5) con- tinua atual, pois néo faz muito tempo um estudioso do mundo antigo sonhou a seguinte histéria a respeito dessa busca pela visao trans- formadora e profética de Lilith: Ha semanas, nds quatro viajavamos pelo Sinai em busca de pistas que nos conduzissem @ caverna de Lilith. Quando estavamos prestes a descobri-la por conta pré- pria, chegamos a um povoado onde uma mulher idosa, que conhecia o segredo, concordou, relutante, em mos- 5. C. G, Jung, Alchemical Studies, Princeton, Princeton University Press, Bollingen Series, 1967, Collected Works, vol. XIII, $ 399. 6. C. G. Jung, Letters, Princeton, Princeton University Press, Bollingen Se- ries, 1973, vol. I, p. 462. . C, G. Jung, Psychology and Alchemy, Princeton, Princeton University Press, Bollingen Series, 1953, Collected Works, vol. XI, fig. 257. 8. Patai, The Hebrew Goddess, p. 236. 70 Figura 5. Lilith, como a anima xamanjstica que se encontra com o iniciado medida em que este escala a arvore da filosofia. (Extrafdo do manuscrito co- nhecido como “Ripley Scrowle”, 1588. Cortesia do Museu Britanico.) 72 trar-nos o caminho. Atris de sua casa havia uma in- greme colina e, na base dessa colina, uma enseada do Mar Vermelho, onde Lilith, farta de Adao, h4 muito tem- po viera se refugiar. Ela nos contou que a caverna era 14 embaixo; sua tinica abertura revelava-se apenas uma vez por més, quando a Lua crescente incidia sobre a entrada secreta. Trés noites depois, ela nos conduziu ao interior da caverna. Disse-nos que jamais alguém fora 4 caverna por curiosidade, que aqueles que haviam feito a viagem sem- pre procuraram nela um reftigio. Uma vez em seu inte- tior, ela nos deixou a sés. Juntamos lenha para fazer uma fogueira que ardesse a noite toda. Acender a fogueira nao foi problema, mas obter calor do fogo revelou-se dificil e nenhum alimento tostava em suas chamas. Alguns instan- tes mais tarde, estranhas sensag6es invadiram nosso espi- tito. Naturalmente, Lilith vivera ali ha séculos, mas sua presenga ainda podia ser sentida. Quando pareceu im- possivel adormecer, nos separamos a fim de explorar dis- tintas passagens. O primeiro a regressar trouxe uma pe- quenina tartaruga. Sua procedéncia e 0 modo pelo qual se sustentara eram um mistério, mas ela parecia saud4vel e aquele que a encontrara mostrava-se determinado a tratar dela muito bem. O segundo a retornar encontrara um fragmento de um antigo texto. Traduzido, dizia o seguin- te: Muitas coisas lindissimas ela deixou ao partir, imi- meros diamantes... Logo depois, descobri um antigo amuleto escondido numa fenda, uma pequena pedra bran- ca sobre uma corrente de prata conservada numa substan- cia semelhante ao chumbo. Coloquei a corrente ao redor do meu pescogo, ao mesmo tempo em que mergulhava a pedra no chumbo e parecia que alguma profética fenda se abria. Mas, através dos séculos, toda espécie de sujei- ra aderira a substancia; ela estava bastante impura, ¢ isso reduzira sua capacidade de operar como uma ba- se. O quarto, que nada encontrou naquela noite, escre- yeu um poema num sonho ¢ terminou 0 Ultimo verso antes de despertar; algo a respeito de se engastar a jéia na coroa.” Lilith, como a forma sedutora e transformadora do feminino, nao é, de modo geral, vivenciada conscientemente pelas mulheres antes de alcangarem a segunda metade de suas vidas. As mulheres jovens conhecem o poder de sua sexualidade Lilith de uma forma até certo ponto inconsciente, por serem objeto do desejo dos homens; contudo, mais freqiientemente no ponto médio da vida,!” a mulher é assolada por um poderoso desejo, semelhante a0 de Lilith, por um homem como Ado, “cuja beleza é como o Disco do Sol’’. O desejo de Lilith por Adio, a outra metade primordial de si mesma, o Sol de sua Lua, é expressado nos versos de uma poetisa como: O fantasma do homem-que-poderia entender, CO irmio perdido, 0 irmio gémeo — Jamais o estuprador: mas 0 irmao, perdido, ¢ companheiro/gémeo cuja palma revelaria uma linha da vida como a nossa: 9. Howard Schwartz, autor desta histéria de sonho, ha muitos anos vem compilando e escrevendo contos sobre Lilith. Através de seu vinculo com Lilith enquanto a forma xamanistica da anima, ele tem estimulado outros auto- incluindo-se eu mesma, Pamela Hadas e Pamela Williams. Esta histéria, “Lilith’s Cave”, encontra-se em Midrashim: Collected Jewish Parables, Lon- dres, The Menard Press, 1976. Citado com permissdo. 10. A idade de 39 anos costuma ser a mais freqiiente para esta experiéncia. 73 decisiva, sagital, raio bipartido de desejo insaciado Jamais procuramos 0 rude pilao, 0 cego soquete, jamais: apenas um companheiro com recursos naturais idénticos aos nossos.!! Depois de algum sucesso no mundo e de um sentimento de ter “‘cumprido sua tarefa’’, tendo tido filhos ou realizado algum empre- endimento, a mulher pode se apaixonar, profunda ¢ totalmente, de um modo que ndo é possfvel a uma mulher mais jovem com menos experiéncia. Esses relacionamentos da segunda metade da vida sao caracterizados por uma troca de amor plena, sexualmente viva ¢ ati- va. Embora a mulher inicie, conscientemente, 0 caso ou 0 novo rela- cionamento com um parceiro existente, seu amante é percebido co- mo heréico ou, nas palavras de Adrienne Rich, “‘decisivo, sagital, raio bipartido de desejo insaciado’’. Hd, sobretudo, uma sensagéo de miraculosa restauragao de uma parte perdida de si mesma, que faz lembrar a promessa do Zohar de que a Shekhina seré restituida ao Senhor quando Lilith se portar de forma conveniente. Esta coniunc- tio entre Lilith e Addo apés a queda é uma parte vital do processo de individuagéo da mulher. A mulher que experimentou intensamente este aspecto do arquétipo Lilith teve um sonho no qual seduziu seu possivel amante do seguinte modo: No comeco da manha, eu estava no cruzamento, es- perando por esse homem que eu desejava. Quando o Sol surgiu, ele apareceu, vindo da colina em sua camioneta LL, Adrienne Rich, trechos de “Natural Resources”, in The Dream of a Com- mon Language, Nova York, W. W. Norton, 1978, p. 63. Citado com a per- missfo da autora e do editor. Copyright © 1978 de W. W. Norton & Co., Inc. 4 cor de bronze. Ele me apanhou ¢ levou-me consigo, para cima e através do Oeste dourado. Mais tarde, enquanto o caso progredia, ela sonhou: Ficamos juntos num hotel, no lado oeste de um par- que em forma de mandala, numa praga. Eu estava de pé, observando, enquanto meu alto e atento amante, de cabe- los dourados, vestido com uma calga jeans cor do trigo, caminhava para o Leste, na direco da fonte circular, no centro do parque. A medida que essa dourada figura do animus se movia na di- rec&o de seu centro, ela péde comegar a remover suas projecdes do ‘atual homem exterior e a compreender o significado interior de seu caso amoroso. Ser a parte ativa e conscientemente sedutora de uma relagao é, para uma mulher, uma experiéncia numinosa. Na €época babilénica, quando 9s cultos da Deusa floresceram, Lilith era chamada de “a mao de Innana”.!? Tinha como fungo reunir os homens na rua ¢ trazé-los para o templo. Ela usava seu poder de sedugao a servico do Eu feminino. O Velho Testamento, que documenta o advento do pa- triarcado, est4 repleto de histérias de mulheres que usam seu poder de sedugao — a sua Lilith —, de modo consciente, para realizar os ob- jetivos de seus egos. As hist6rias biblicas de Raquel, Tamar, Dalila, Judite, Ester, Rute, Batseba, as filhas de L6, a rainha de Sabé, Yael Débora demonstram, todas elas, a necessidade, na psicologia femi- nina, de uma mulher ter, conscientemente, seu poder de sedugao — a sua Lilith — a disposigdo, como uma fungéo do ego. A mistica Dion 12. Merlin Stone, When God Was a Woman, Nova York, Harves/ HBJ, 1978, p.158. as Fortune, em seu romance esotérico Moon Magic, faz sua herof- na, Lilith Le Fay, uma sacerdotisa da Grande Deusa [sis, des- crever © uso consciente dos poderes de sedugéo fornecidos pe- la Deusa: Assim, eu, que considerava a pobreza ¢ a riqueza da mesma maneira, tinha & disposigao recursos que usava para construir minha personalidade magica diante dos homens e para fazer com que me vissem como desejava ser vista. Depois que as pessoas nascem, nio podem olhar pa- ra dentro do coragio; sé umas poucas dentre elas sdo ca- pazes de interpretar os sutis processos mentais. No entan- to, podemos sugestiond-las com a forga do olhar para que vejam aquilo que desejamos que elas vejam. Esse tipo de Sugestao € melhor do que a das palavras, as quais as pes- soas tanto desprezam, j4 que elas mesmas sao versadas nessa arte. De minha parte, sei como um verdadeiro adepto Precisa de pouco para a sua magia. Mas eu tinha de traba- Thar com as idéias dos homens e Para isso precisava mon- tar um palco. Devia fazé-los aceitarem-me como uma adepta ou nunca seria vista como tal. Com essa finalida- de, precisava ter 4 minha volta algo que sugerisse os grandes dias do passado, quando 0 culto ao qual perten- cia estava no auge do poder, de forma que os pensamen- tos deles se voltassem para l4. Isso poderia despertar lembrangas que os fizessem sintonizar meu comprimento de onda. Dessa forma, pouco a pouco, colecionei coisas anti- gas dos velhos templos. Esses objetos precisavam ser mantidos sob uma luz difusa, de modo a nao dispersar o seu magnetismo, mas conserva-lo a sua volta e permear 0 ambiente da mesma forma como 0 faz o incenso. Também usei cores para montar o meu fundo de ce- na, conhecendo o poder que elas exercem sobre a mente — sobre a minha, bem como sobre a dos que fossem me visitar. Existe uma ciéncia das cores, ¢ nés as classifica~ mos, na magia, sob as dez estagdes dos céus, que s40 os sete planetas e 0 espaco, 0 zodfaco e a Terra. Ha também os quatro reinos elementais, mas isso é outro assunto. Para © meu objetivo, usei as opalescentes cores da Lua sobre uma base prateada; 0 roxo, que é uma cor da ameixa; as cores vermelhas, que so o magenta ou 0 mar- rom; e as cores azuis da 4gua do mar e do céu a noite. Jamais usei as fortes cores primarias, como essas que 0 homem usa quando é um mago. Sempre as cores indistin- tas, combinadas, que sao as minhas cores, pois cu sou a sombra do cendrio. Quanto ao meu corpo, eu havia feito dele o instru- mento da minha personalidade, treinando-o, alimentan- do-o, aprendendo suas artes e capacidades. A Natureza nao fora maldosa, porém nao tinha sido prddiga, e eu de- via fazer de mim mesma alguma coisa que pudesse usar para o propésito que tinha em mente. Sendo dedicada, eu tinha o direito de pedir aquilo de que precisava e, natu- ralmente, pedi a beleza que me permitisse atrair os olha- Tes € a atencdo dos homens. Em vez disso, todavia, de- ram-me discernimento e imaginagéo e, com o conhe- cimento proveniente disso, criei meu préprio tipo de beleza. Descreveram uma outra: ““Tinha 0 rosto que se pres- ta para uma mulher esconder a alma”. No meu caso, isso correspondia 4 verdade. Minha face era puramente egip- 78 cia: levemente alta nos malares, 0 que faz meus olhos pa- recerem amendoados, nariz ligeiramente aquilino, pois ha sangue assirio na nobre casta real do Egito. Meus olhos sao muito fundos, 0 que d4 a impressdo de serem mais escuros do que realmente sao. Vistos sob boa luz, sao meio esverdeados — para competir com meus dentes de ti- gre — assim disseram. Supde-se que eu me Pparega com Cleépatra — ou talvez Clepatra fosse como eu. Tenho bastante cabelo castanho-escuro, quase negro, e comple- tamente liso. Algumas yezes 0 uso amarrado sob a forma de um né, a nuca; outras, enrolo-o em volta da cabeca como um diadema. Quando faz calor, deixo-o cair em duas trangas sobre o peito. Freqiientemente 0 uso reparti- do ao meio, em duas ondas macias sobre a fronte, a moda das mulheres indianas. Foi por isso que disseram que tenho sangue de cor, embora minha pele devesse desmentir isso, pois é branca como marfim ou como as grandes folhas de magnélia, que nao tém um toque de ro- sado sequer. No que se refere a batons, sou ousada, até mesmo imprudente, e amo os longos brincos. A joalheria Huysman faria justiga aos brincos que possuo: de jade, de mbar, de coral, de lépis-laztili e de malaquita para usar de dia; para a noite, tenho grandes jéias: esmeraldas lapi- dadas, retangulares; pérolas longas, palidas e em forma de gotas, e todas as incandescéncias das diversas Opalas, que adoro. Sou um pouco mais alta do que a estatura média e Por ser longilinea posso sair diretamente da loja vestindo qualquer modelo que experimentar. Todavia, nao uso modelos prontos. Faco minha propria roupa. Essa, por vezes, vem das “‘lojas de armarinhos” e outras vezes, nao: hé uma riqueza na amplitude dos drapeados que nao se encontra nos materiais de vestimenta, e ninguém me impedira se eu resolver me vestir com o pano destinado & ornamentagao de janelas de um palacio veneziano! Gos- to que minhas roupas caiam amplas e retas e cheguem até os pés. Costumo calgar sandélias macias de prata e ouro e de cores iridescentes. As peles, entéo, eu amo, pois sou uma criatura de sangue frio — esta é a minha tinica fraqueza fisica. Uso roupas de peles mesmo em casa e mantenho minhas casas aquecidas. Aprecio as peles inteirigas, com a grande ca- bega cruel, e gosto que essa pele seja nobre — nao a pe- quena cara comum de uma raposa. Tenho uma pele palida de lobo da floresta e uma de lobo azul, descambando para © negro. Dos grandes felinos, tenho um leopardo mos- queado da selva e um adordvel leopardo pdlido das neves do Himalaia — que os tibetanos dizem ser fantasmas dos lamas maus que morrem em pecado, Gosto de anéis também, tao grandes que dificilmen- te consigo calgar luvas. Gosto de braceletes envolvendo meus pulsos. Minhas maos sao flexfveis nos rituais, e sou téo audaciosa em matéria de esmaltes como nos batons. Tenho predilegéo por esmaltes de unha prateados, doura- dos, vermelhos, tio escuros que parecem negros, ¢ esmal- tes iridescentes, que fazem minhas unhas parecerem opa- las. Trago as minhas unhas compridas para competir com meus dentes de tigre. Agrada-me que meus sapatos sejam macios, leves ¢ flexfveis, parecendo muito mais luvas do que sapatos, de modo que me possa mover sem fazer ruido. Na juventu- de, fui treinada como dangarina e conhego o significado do movimento — sei que devo fluir como Agua. Sei também como o corpo deve se mover e balangar a partir 719 80 da cintura. Em beleza, isso vale mais do que uma figura elegante. Nao sou e jamais serei uma mulher que acompanha a moda. Nao que descreia dela: ela serve para algumas pessoas, mas nfo é boa para mim. Alguns dizem que as modas sfo artificiais, um trabalho de comércio, mas isso nao € verdade. As modas mudam porque a novidade atrai e estimu- la. Mas eu, que sou a mulher eterna, o arquétipo feminino — nao falo da superficialidade da consciéncia, a mente so- fisticada que é atraida pela novidade, mas da mente ar- caica e primordial que esté na alma de cada homem. Competirei com meu charme com qualquer mulher que esteja na moda. Elas podem ter amantes, mas eu tenho si- do amada. Com o meu siléncio, competirei com a verbosidade delas. Ainda que exista muito numa voz e em suas in- flex6es, os tons deveriam ser sempre melodiosos, mesmo ao falar; sons doces e macios nos labios, mesmo que haja reverberacao por tras deles, pois nessa reverberagao, ha um estranho poder que vai de encontro a nossa alma. Sei bem disso, pois usei esse poder e dentro em pouco vou contar como o fiz. Portanto, usei a cor, 0 movimento, o som e as luzes, assim como as outras mulheres usam a moda, porém, mais importante que tudo isso, é o perfume. Valorizo intensa- mente os perfumes e atribuo-lhes grande importincia, uma vez que existe toda uma psicologia e uma teologia sobre eles. Os aromas que uso sao picantes e intensos. O perfume das flores nao é para mim — ninguém nunca me comparou com uma flor, embora me dissessem que sou tao bela como um leopardo. Meus perfumes favoritos sf0 0 sandalo, o cedro e 0 couro da Russia. Aprecio também o aroma de almiscar queimado e o modo como ele persiste. Gosto ainda de cinfora, por seu aroma de as- seio. Das esséncias oleosas, uso a de gerfnio, a de jas- mim ¢ a esséncia de rosas; nenhuma outra. Esses sao os perfumes psicolégicos; mas dos teolégicos ha dois que considero muito — o galbano e 0 olibano — a dogura 4spe- ra, aromAtica do galbano, que € terra da terra, e 0 intenso estimulo do olfbano, que é como se as frvores do Paraiso estivessem queimando... Isso € tudo 0 que posso revelar com palavras sobre a minha personalidade. O resto deve ser deduzido daquilo Neste longo trecho, ha um inconfundivel elemento ritualistico que explica, em detalhes, de que forma uma mulher pode usar 0 ros- to, 0 corpo, a maquilagem, os cabelos, as j6ias, as roupas € 0 perfu- me a fim de acentuar sua eterna conex4o feminina com os poderes sedutores de Lilith. O Talmud descreve Lilith como o deménio no- turno de longos cabelos. Tradicionalmente, os cabelos de uma mu- lher tém sido considerados 0 coroamento de seu esplendor, um sim- bolo de sabedoria, um aspecto de sua natureza essencialmente femi- nina. As Noivas de Cristo, as Virgens de Vesta e as Noivas Judaicas Ortodoxas tém sido obrigadas a sacrificar seus longos, sedutores ¢ fascinantes cabelos. O cabelo da mulher tem sido cortado, amarrado e coberto, num esforgo de separé-la desse poder sexualmente sedutor de Lilith, fornecido pela deusa. A Biblia descreve, em detalhes pre- cisos, como Rute, Ester, Jezabel e Judite usavam Sleos, ungiientos, 13. Dion Fortune, Moon Magic, York Beach, ME, Samuel Weiser, 1956, pp- 57-60. Citado com permisséo. (Traduzido em lingua portuguesa sob o titulo 4 Ricontorisa da Lua, Editora Pensamento, S40 Paulo, 1988. 0 trecho acima ¢ transcrito dessa edigao. N. T.) 81 perfumes, jéias e roupas, bem como kohol para delinear os olhos, antes de enfrentar o terrificante e transformador encontro com o masculino. Esses rituais do adorno feminino esto arquetipicamente vinculados a Lilith e a seu poder de sedugio essencialmente femini- no. O conhecimento consciente desse vinculo com Lilith e a Deusa é vital para o desenvolvimento espiritual e psicolégico da mulher. 82 CAPITULO IV Lilith e as Filhas de Eva O Zohar associa repetidamente Lilith a Eva em sua pecabilida- de (ver figuras 6 a 11) , por conseguinte, adverte, repetidamente, que os homens, ao encontrar uma mulher, devem se precaver contra a Lilith sedutora: Contudo, eis que a concha dura, a encamnacao do mal, Lilith, est4 sempre presente no leito de um homem e de sua mulher quando copulam, a fim de se apoderar das gotas de sémen que se perdem — pois é impossivel reali- zar o ato conjugal sem essa perda — ! O homem sébio e culto sabe que até mesmo a relagio conjugal normal, quando praticada em vésperas do Sabé, corre o perigo da presenga de Lilith. Ea noite na qual o “poder maléfico”, sendo suplan- tado pelo “poder benéfico”, vagueia pelo mundo, acom- 1. Patai, The Hebrew Goddes, p. 223. Citado com permissao. 83 Figura 6, Eva e Lilith, com 0 rabo entrelagado da serpente. Lilith sussurra pa- lavras de seducao a Eva, enquanto esta oferece a maca a Adio. (Gravura em madeira de Lucas Cranach, cerca de 1522.) de... panhado por suas intimeras hostes e legides, e espreita todos os lugares onde as pessoas praticam suas relagdes conjugais imodestamente expostas ou luz de uma vela (Zohar I 14b). Recomenda-se a pratica sexual apenas em estado de santida- (Zohar Ill 77a). Especificamente, A solugéo € essa. Quando um homem se une com sua mulher, ele deve consagrar 0 coragéo ao seu Mestre, dizendo: ““Aquela que esta envolta num negro manto aveludado encontra-se aqui. Tu nao entrards nem nada fards; Nem tu nem 0 teu bando, Retorna, retorna, o mar est4 revolto, Suas ondas te aguardam. Mantendo-me fiel ao sagrado, Agasalho-me na santidade do Rei.” A seguir, ele deve cobrir a cabega, e a cabeca da esposa, durante algum tempo. No livro que Ashmodai deu ao rei Salomao est escrito que ele precisa, em segui- da, espargir 4gua limpa ao redor da cama. Se uma mulher esté amamentando uma crianga, ela nao deve unir-se ao marido enquanto a crianga estiver acordada; tampouco deve amamenté-la logo em seguida, sem que tenha trans- corrido um espago de tempo equivalente a uma caminha- da de duas milhas ou uma, no caso de a crianga comegar a chorar, desejando ser amamentada. Se tudo isso for 85 respeitado, Lilith jamais poder fazer-lhes mal (Zohar If 19a). Embora Noé fosse um homem santo e reto, é interessante notar que as lendas judaicas revelam certa confusao entre sua esposa Na- ama e a sombria Lilith. Algumas afirmam que ela era Naama, a agradavel, ao passo que outras afirmam ser ela Naama, a diaba e companheira de Lilith que, as vezes, é chamada de Lilith a mais jo- vem.” Ha outra informagao segundo a qual “a permanéncia na arca trouxe muitas doengas a Noé e a sua familia, sem considerar o des- conforto causado pelo mau cheiro dos espiritos, deménios e Liliths”.> O Zohar afirma que Lilith fugiu quando Deus deu Eva a Adao como esposa: Deus permitiu que Adao observasse enquanto Ele criava uma mulher usando osso, tecidos, mtisculo, san- gue, secregdes glandulares e cobrindo-a com pele e tufos de cabelo. Em razéo de ter testemunhado sua criacao corpérea, Adio foi repelido por ela. Deus tentou uma terceira vez e agiu com mais prudéncia a fim de incluir um pouco do poder de sedugao de Lilith. Tendo tirado uma das costelas de Addo en- quanto este estava adormecido, Deus formou com ela uma mulher; eles fizeram trangas em seus cabelos e en- feitaram-na como a uma noiva, com vinte e quatro ti- pos de pedrarias, antes de desperté-lo. Adio ficou fas- cinado.* 2. Ver Ginzberg, The Legends of the Jews, vol. V, p.147. 3. Ginzberg, The Legends of the Jews, vol. V, p. 197. 4, Robert Graves ¢ Raphael Patai, Hebrew Myths: The Book of Genesis, Nova York, McGraw-Hill, 1963, p. 66. 86 Figura 7. Lilith, co- roada e alada, ¢ com rabo de serpente, oferece a maga a Eva, debaixo da Arvore do Conhecimento. (Gra- vura em madeira de Holzschimitt, 1470.) Figura 8. Lilith, co- mo serpente, na Ar- vore do Conhecimen- to, voltada na direcio de Eva. Ao lado, um Adio meio andrégi- no. (Cortesia da Os- terreichischen Natio- nalbibliotheck, Vie- na.) De forma semelhante, fontes midrash** acrescentam que o proprio Deus recorreu aos anjos para “executar préstimos de amiza- de a Adao e sua ajudante’’. O rabi Eliezer acrescenta: “E os anjos tocaram tambores e dangaram como mulheres”, aparentemente para injetar um pouco da sensualidade de Lilith nas mipcias de Adio e Eva. Em outra lenda, vemos, uma vez mais, que o esforgo de Deus em criar Eva casta e privada das qualidades de Lilith fracassa: Quando Deus estava prestes a criar Eva, Ele disse: “Eu nao a criarei da cabega do homem, para que nfo er- ga sua cabega numa atitude arrogante; nem do olho, para que nao tenha olhos atrevidos; nem da orelha, para que nao fique escutando as escondidas; nem do pescogo, para que nao seja insolente; nem da boca, para que nao seja tagarela; nem do coracao, para que nao se disponha 4 in- veja; nem da mao, para que nao seja intrometida; nem do pé, para que nao seja andarilha. Eu a formarei de uma Parte casta do corpo”, e, para cada membro e 6rgao, en- quanto o formava, Deus dizia: “‘Seja casto! Seja casto!”’ No entanto, apesar de toda essa cautela, a mulher ainda Ppossui todos os defeitos que Deus tentou evitar.® Ha uma crenga popular inglesa segundo a qual os lirios se originam das lagrimas de Eva que cafram ao chao quando ela deixou o Jardim do Eden. Os lirios simbolizam a pureza de Eva, mas 0 no- * Midrash: tipo de interpretagao das Escrituras, além da literal, cuja averi- guacdo faz parte de regras estabelecidas pela tradicdo talmidica, pela qual se podem deduzir significados novos ¢ ocultos. Ver cap. 2, p. 37. (N.T.) 5. Ver Patai, Gates to the Old City, p. 265; ¢ Ginzberg, The Legends of the Jews, vol. I, p. 68. 6. Ginzberg, The Legends of the Jews, vol. I, p. 66. 88 Figura 9. Lilith, a sedutora, com 0 rosto de mulher © o rabo de serpente, enrolada ao redor da Arvore do Conhecimento, entre Adio e Eva. (Gravura em madeira, intitulada “A tentagdo de Addo ¢ Eva”, de Antoine Verard, cer- ca de 1500. Cortesia do Metropolitan Museum of Art, Harris Brisbane Dick Fund, 1924.) me — lirio — € surpreendentemente parecido com o nome da primeira mulher pecadora — Lilith.* Mesmo na conhecida histéria de Eva, na qual ela é formada da costela de Adao, a parte mais casta de sua anatomia, ha um misterioso trocadilho: a palavra hebraica para ‘“‘cos- tela”’ é tsela. Embora destinada a ser a ajudante de Adao, Eva reve- lou-se uma fse/a, um “‘tropego” ou inforttinio.? Do mesmo modo que Lilith, Eva mantinha relag6es sexuais com a serpente e tornou-se também a mae de geragdes de deménios (Zohar [I 76b). O Talmud (PR 100b) diz que, entre as dez maldigdes conferidas a Eva, in- cluem-se: seus cabelos serao longos como os de Lilith, sentar-se-4 como os animais ao urinar e serviré de travesseiro ao marido. A co- nex4o entre Lilith e Eva é bem mais elucidada no mito do Zohar, no qual Lilith é “‘a Serpente, a Mulher de Devassidao que incitou e in- duziu Eva... fazendo com que Eva seduzisse Adio a ter relacdes se- xuais com ela no perfodo em que se encontrava em sua impureza menstrual”.® Desse modo, é impossivel conhecer a mulher ou ser uma mulher sem o encontro tanto com Lilith como com Eva. Lilly Rivlin escreve a este respeito: De forma obscura, como uma meméria arquetipica, conheci Lilith enquanto predecessora de Eva. E fui repe- lida por Eva, aquela criatura loira submissa, que se dei- xou desgracar por uma cobra, enamorando-se de um pe- dago de corda... A escritora ainda nao sabia que Lilith era a cobra. Ela pros- segue: * A palayra para “‘lirio”’, em inglés, é lily. Dai a citada semelhanga entre lily ¢ Lilith. (N.T.) 7. Graves/ Patai, Hebrew Myths: The Book of Genesis, p. 69. 8. Patai, Gates to the Old City, p. 456. 90 Figura 10. Na mentalidade medieval, Lilith e Eva estavam de tal modo asso- ciadas em sua propensdo para 0 pecado que, aqui e na figura 11, eram freqiientemente moldadas em pedestais para estatuas da Virgem e 0 Menino, com a Virgem representando a nova Eva. Véem-se aqui dois angulos diferen- tes do mesmo pedestal. No alto, Eva esta mordendo o fruto proibido e segu- rando, junto aos seios, v4rias outras macds, presumivelmente para Addo. Em- baixo, a tentadora Lilith, com seus longos cabelos, rosto de mulher e corpo de serpente. (Flandres, final do século XV. Cortesia do Metropolitan Museum of Art, The Cloisters Collection, 1955, 55.116.2.) Sentia-me pouco 4 vontade no papel de Eva. Sen- tia-me confusa; impulsos dionisfacos vibravam em mim. Minhas imagens pessoais nao eram as de um paraiso in- fantil, um protegido Jardim do Eden, mas as de desertos acidentados, amarelos e marrons, com rochas da cor do ferro fundido, cardos dourados e arbustos espinhosos. Além disso, nao podia entender a vergonha da nudez. Eu era animal, era Deus! Era substancia e orificio pulsante. Sob camadas de civilizacao, eu era oa palpitante, e ecos dos mais profundos gritos animais.. As mulheres modernas, as filhas de Eva, freqiientemente en- contram sua natureza-Lilith no espelho. De fato, o Zohar refere-se a Lilith como o obscuro espelho de profecia (Zohar I 24a). Como es- creve Isaac Bashevis Singer: Haé um tipo de rede tao antiga quanto Matusalém, tao macia e cheia de buracos quanto uma teia de aranha; no entanto, ela conservou sua forcga até os dias de hoje. Quando um deménio, apds varios dias, se cansa de per- seguir ou de girar ao redor de um moinho de vento, ele pode se instalar dentro de um espelho. Ali, ele aguarda como uma aranha em sua teia, e a mosca certamente sera apanhada. Deus outorgou vaidade 4 mulher, particular- mente as ricas, bonitas, estéreis, jovens, que tém muito tempo e pouca companhia.!° O deménio, neste classico conto do espelho, é Samael, o mari- do de Lilith. Ele é a forma demoniaca do animus que induz a jovem esposa, como Eva, Zirel, a se encontrar com Lilith: 9. Ver “Lilith”, de Lilly Rivlin, in Ms., vol. I, n° 6, dez. 1972, p. 92. Citado com permis 10. Ver “The Mirror”, de Isaac Bashevis Singer, in Gimpel the Fool, Nova York, Avon, 1957, p.69. 92 Figura 11, A Virgem oferecendo 0 seio ao Cristo Menino, Ela se eleva acima de Eva, que come uma maga, ¢ de Lilith, que tem rosto de mulher € corpo de serpente. (Franga, cerca de 1400. Cortesia do Victoria and Albert Mu- seum, Londres.) tidrio” e onde pendurava um espelho to azul quanto a Agua no ponto de congelamento. O espelho tinha uma rachadura no meio e estava encaixado numa moldura dourada, decorada com cobras, saliéncias arredonda- das, rosas ¢ viboras. Diante do espelho, no chao, havia uma pele de urso ¢, junto a ela, uma poltrona com bra- gos de marfim e um assento almofadado. O que poderia ser mais agraddvel do que sentar-se nua nessa poltrona, repousar os pés na pele de urso e contemplar-se? Zirel tinha muito a contemplar. Sua pele era branca como ce- tim, seus seios tao abundantes quanto odres de vinho, seus cabelos caiam sobre seus ombros e suas pernas eram esguias como as de uma corga. Ela sentava-se durante horas a fio, deleitando-se com sua beleza. A porta per- manecia fechada e ela imaginava que, abrindo-se, por ela entrava um principe, ou um cagador, ou um cavaleiro, ou um poeta.!! O demé6nio no espelho seduz a solitéria e jovem mulher e a le- va face a face com Lilith. Naturalmente, a essa Possess4o incons- ciente, segue-se a desgraca. De modo andlogo, a novela Leah’ s Journey [A Viagem de Lia] tem inicio com estas palavras: ‘Foi o espelho que levou Lia até o s6tao...”, Enquanto a linda e jovem noiva admira seu corpo nu e seus longos cabelos ruivos, ela se recorda da inmd, que se submetera ao tradicional costume hebraico e renunciara, pelo casamento, aos cabelos. Lia jura nunca consentir que 0 ortodoxo rabi corte seus cabe- los ¢, imediatamente, um violento pogrom irrompe na cidade, a casa 11. Singer, “The Mirror”, in Ginpel the Fool, pp. 69-70. 94 Zirel tinha um sétao, que ela chamava de seu “‘ves- | — de Lia € invadida e ela é estuprada.'? Assim tem infcio sua viagem de individuagao. Uma paciente encontrou Lilith no espelho, mais consciente- mente através de um arrebatado caso amoroso, depois de muitos anos de fidelidade conjugal. Um dia, no momento em que se apro- ximava, travessa e sorrateiramente, por tras do amante empenhado em seu trabalho, um colega de trabalho alertou-o de sua aproxi- macdo. Quando sua ag&o, como acontecera com Lilith, foi descober- ta, ela se viu, repentina e surpreendentemente, enfurecida. Naquela noite, sonhou encontrar-se diante de um espelho, olhando-o fixa- mente, enquanto sua analista, uma mulher mais idosa e sabia, per- manecia de pé atras dela. A protagonista do sonho perguntou: “‘Sou muito negra?”’, e o espelho, nas palavras que lembram as da noiva do Cantico dos Cénticos, respondeu: “Vocé é negra mas graciosa... Nao faga caso de sua cor escura, foi o sol que a queimou. Os filhos de sua mae voltaram sua ira sobre vocé, fizeram com que vocé cui- dasse dos vinhedos deles. Tivesse vocé cuidado apenas do seu pré- prio vinhedo!”” O sibito acesso de raiva tinha, aparentemente, vinculado essa mulher a sua culpa a respeito de seu caso de adultério ¢ a raiva ocul- ta que sentia pelo marido. Portanto, ela pergunta: “Sou muito ne- gra?”’ O espelho, refletindo nao sé sua imagem mas também a de seu sdbio eu analitico, responde que foram suas iradas atitudes masculi- nas de julgamento a respeito de sua prdpria sexualidade que a ti- nham escravizado e enegrecido, e que ela precisava tomar-se com- pletamente atenta a seus préprios valores femininos. O Zohar também sustenta esta interpretagdéo ao afirmar que “negra mas graciosa” é Lilith, 0 obscuro espelho que profetiza (Zohar I 49a). Além disso, somos informados de que: 12. Ver Gloria Goldreich, Leah's Journey, Nova York, Berkley Books, 1978, pp. 3-11. oF Na hora em que a Matronit (a Shekhina) se enfeita e deseja aproximar-se do Esposo, ela mesma se enfeita ¢ diz as suas hostes: “Sou negra (CAnt. 1:5) — por parte do Abaixo — e graciosa (ibid.) — por parte da perfeigao do Acima,”"!? A mesma mulher do sonho acima tivera anos antes um repetido devaneio em torno de seu analista. Enquanto se olhava no espelho do banheiro do consultério dele ¢ escovava os cabelos, ela desejava que cle a visse, fosse possuido de desejo por ela © quebrasse o pa- triarcal tabu do incesto. Seu analista interpretou seu “descjo edipia- no”, mas estas palavras nao se revelaram suficientemente eficazes para banir Lilith de scu espelho. A mesma mulher, pouco tempo depois, teve um sonho no qual uma pessoa, parecida com Salomao, e refletindo também sua nature- Li za-Lilith, deu a ela sacas de laranjas maduras. Ela comparou esse Presente ao tema do Cdntico dos Cdnticos: “Confortai-me com fl magas, pois estou doente de amor,” Ela sabia que a vitamina C das a laranjas ativa o sistema de auto-imunizacio do corpo. Do mesmo t modo, 0 reflexo de Lilith no espelho pode ajudar a mulher a restau- i Tar sua divisao interior entre Eva e Lilith. O animus no sonho, parecido com Saloméo, era na verdade um analista especializado em perturbagées narcisistas, Para que a cura ocorra, € preciso nao sé uma intensa reflexiio sobre a sombra-Lilith de uma pessoa, mas faz-se necessério também consumir ou assimilar suas necessidades narcisistas. Quando, numa psique feminina, Lilith se encontra separada de Eva, a mulher é sexualmente fria, Freqiientemente, ela se casa com um homem que ajuda perpetuar essa divisio, relacionando-se apenas 13. Patai, Gates to the Old City, p. 450. Citado com permissio. 96 sor com seu lado Eva. A alienag&o ¢ desolagio resultantes estdo deseri- tas num conto erético de Anais Nin: Lilith era sexualmente fria, e seu marido em parte 0 sabia, apesar das simulag6es dela... Eles estavam sentados ali, juntos, e ele a olhava com uma expressao de suave tolerancia, a mesma que costumava manter diante das crises nervosas dela, crises de egotismo, de autocensura, de panico. A todos os seus dramaticos comportamentos, ele respondia com inabal4- vel bom humor ¢ paciéncia. Ela sempre se enfurecia sozi- nha, irritava-se sozinha, suportava sozinha suas intensas convulsdes emocionais, das quais ele nunca participava. Possivelmente, tratava-se de um simbolo de tensao que nao ocortia entre eles sexualmente. Ele recusava to- dos os seus primitivos ¢ violentos desafios e hostilidades, recusava-se a entrar com ela nessa arena emocional e a teagir 4 sua necessidade de citimes, temores, conflitos. Talvez se ele tivesse aceitado seus desafios e joga- do os jogos que ela gostava de jogar, talvez entio ela po- deria ter sentido sua presenga com um impacto bem maior do que o meramente fisico. Mas o marido de Lilith nao conhecia os prehidios do desejo sensual, nao conhecia nenhum dos estimulantes que certas naturezas selvagens reclamam e, desse modo, em vez de responder-lhe tao lo- go visse seus cabelos se erigarem, seu rosto mais vivido, seus olhos como duas tochas de fogo, seu corpo inquieto e impaciente como o de um cavalo que aguardasse o inf- cio da corrida, ele se refugiava atras do muro da compre- ensdo objetiva, dessa tranqiiila ¢ irritante atitude de apro- vagaéo com a qual as pessoas olham para um animal no zoolégico e riem de suas momices, sem penetrar em seu 7 estado interior. Era isso que deixava Lilith num estado de isolamento — na verdade, como um animal selvagem em pleno deserto. Quando ela se enfurecia e sua temperatura subia, 0 marido simplesmente deixava de existir. Ele mais parecia uma branda divindade que a olhasse dos céus e aguardas- se que sua fiiria se exaurisse por si mesma. Se ele, feito um animal igualmente primitivo, surgisse na outra extre- midade desse deserto, encarando-a com a mesma tensio energética nos cabelos, na pele e nos olhos, se surgisse com 0 mesmo corpo selvagem, pisando fortemente e pro- curando um tinico pretexto para dar o bote, enlagar-se fu- riosamente, sentir o calor e a forga de seu oponente, entio eles poderiam rolar juntos pelo chao e as mordidas poderiam tornar-se de outra espécie, e a luta se transfor- maria num abrago, e os puxGes de cabelo fariam com que suas bocas, seus dentes e Ifnguas se unissem. E, devido a fiiria, seus 6rgdos genitais se rogariam mutuamente, sol- tando faiscas, e os dois corpos sentiriam a necessidade de penetrar um no outro para por um fim nessa formidavel tensao.'4 A sensacao de inteireza que resulta da integragao consciente de ambas — Lilith e Eva—é muito bem retratada nesta parabola moderna: Houve certa vez um homem que sofreu o assédio de Lilith. O deménio tinha se disfargado com as roupas de uma Mulher comum, humilde e agradavel, e foi visitar Adao quando este se encontrava sozinho. 14. Extraido do Delta of Venus, de Anais Nin, copyright © 1977 de Anais Nin Trust. Reproduzido com a permissdo de Harcourt Brace Jovanovich, Inc., pp. 58-59. 98 Por que esta sozinho?, perguntou Lilith. Onde esta sua mulher, aquela que tomou o meu lugar? Saiu, foi visitar alguns parentes, mas voltara logo. Bla nao vai gostar de vé-la aqui, pois tem medo de vocé. Porque minha irma teria medo de mim?, perguntou Lilith. Sou tio humilde quanto ela. Sou tao boa e amavel quanto ela. Amo meus pais ¢ meus filhos tanto quanto ela. Mas nao penso como ela; nossa diferenga oculta-se em nossa mente, ndo em nossos Corpos. Acredito em vocé, disse Addo, e eu a amo, mas te- nho necessidade de uma vida trangiila. Est4 bem, disse Lilith, viva a sua vida tranqiiila. Mas eu sou a sua outra mulher ¢ nao 0 deixarei; cu 0 amarei como sempre o amei. ‘Adio fitou-a nos olhos © no disse mais nada, Os olhos dela cram como duas portas escancaradas que da- vam acesso a um mundo do qual ele ja se esquecera; € Ado penetrou nesse mundo. Quando Eva retornou, encontrou seus corpos © suas bocas unidas, Lilith e Addo estado juntos, ela pen- sou. Hospede-se em minha casa, irma. Eu lhe trarei sua refeicéo na cama. Ela lhes trouxe comida ¢ bebida na ca- ma, retirou-se para um canto mais afastado da casa € se agachou junto ao fogao a fim de se manter aquecida; entrou em transe. Abandonou seu proprio corpo € en- trou no corpo de sua irma Lilith, desse modo, abragou e beijou Addo, ¢ o sentiu amando-a como nunca sentira até ent&o. Mas eu sou a sua Eva, disse Lilith. Por que esta me amando tio apaixonadamente? Vocé nunca me amou an- tes com tanta paixfo. Ado riu e disse: Vocé Partird ao amanhecer e nio a verei mais por um bom tempo. Se ajo apaixonadamente é Porque nossa felicidade € curta, Como pode dizer isso?, perguntou Lilith, Esta- rei aqui amanha e depois de amanhi, e todos os dias até o fim da sua vida, Por que vocé esté me amando tao apaixonadamente? Pensa que sou aquela que pa- Tego ser? Eu sou Eva e estou falando pela boca de mi- nha irma. Vocé esté brincando, disse Adio, rindo: sei que vocé partiré ao amanhecer ¢ nao retornaré durante um bom tempo. Lilith, que agora era Eva, beijou-o e disse: Quem me dera fosse assim, mas nao posso deixé-lo. Ficarei com Vocé, porque vocé est4 incendiado de desejos por esta outra mulher cujo corpo, de agora em diante, ser4 meu, Olhe-me atentamente ¢ diga-me se vocé nao vé que sou Eva, sua esposa? Eva esta sentada naquele canto, disse Adio. Mas quando voltou o rosto nessa diregao, nada havia ali, a nao ser as chamas do fogao.'5 Tore tkoy Lind, “Lilith and Eve”, in Jmperiat Messages, Nova York, Avon, loge: CAitado por Howard Schwartz, pp. 139-140 Copyright © Jakov Lind” 1983. Citado com permissao, 16. M. Esther Harding, Woman's Mysteries, Nova York, The C. G. Jung Foundation, 1971, p. 162, 100 mais alto de desenvolvimento e conhecer suas préprias e profundas fontes da sabedoria feminina.!7 Uma imagem da totalidade representativa da integragao poten- cial do eu feminino manifestou-se no seguinte sonho de uma mulher que viveu e integrou conscientemente muitos aspectos do mito Lilith. Ela sonhou que, ao lado de outra mulher chamada Eva, passeava numa limusine, em majestosa pompa, em diregéo ao centro de uma cidade que possufa quatro portas de entrada. A cidade tinha a forma de uma mandala résea, dourada e negra, com ctipulas circulares e douradas em cada canto e circundada por um escuro céu noturno. E importante mencionar que a paciente, durante muitos anos, viveu o lado Eva de sua natureza num tradicional casamento patriarcal. Na €poca do sonho, ela vivia muitos aspectos de sua natureza Lilith através de um apaixonado caso amoroso. Sua amiga Eva, que se en- contrava com ela na limusine do sonho, era uma mulher latino-ame- ricana cujo marido se divorciara para “‘libertar-se”, sob a alegagao de que ela nao era mais uma Eva (submissa) para ele. Assim, os la- dos Eva e Lilith da paciente estavam conjuntamente simbolizados pelas curvas réseas, douradas e negras — bastante femininas — da ci- dade mandala. Para as filhas de Eva, a sombra Lilith encontra-se muito pr6- xima do transpessoal e a assimilacao de Lilith tem um profundo efeito sobre a individuagao. A Baba Yaga, uma bruxa parecida com Lilith, voa através do céu noturno num almofariz e usa um pilao pa- ra remar. Marie-Louise von Franz conta-nos que se trata de um sim- bolo da trituragdo dos elementos essenciais, da prima materia. B uma realizacao tao profunda da sombra, que nada mais pode se dizer a Tespeito. E 0 ponto critico. O ego, em seu aspecto negativo, foi pulverizado e precisa entregar-se a poderes mais superiores.'® Tanto 17. Kluger, Psyche and Bible, pp. 112-120. 18, Marie-Louise von Franz, The Feminine in Fairy Tales, Nova York, Spring Publications, 1972, p. 115. 101 Lilith como a Shekhina seguem as pegadas do rebanho, sao negras mas graciosas e sao vividas pelas mulheres como aspectos da sombra transpessoal. LILITH, A ASSASSINA DE CRIANCAS As antigas lendas a respeito da relagao de Lilith com as crian- as mostram uma progressao. A partir do momento em que apareceu, ela dirigiu- se aos querubins que tém os “pequenos rostos de ternas criangas” ¢ desejou unir-se a eles e ser um deles, e nio estava disposta a afastar-se deles (Zohar I 18b). Mas o Senhor, abengoado seja, separou-a deles e fez com que fosse para baixo... Ele a repreendeu e lan- gou-a as profundezas do mar, onde ela permaneceu a- té o momento em que Addo e sua mulher pecaram. En- tao o Senhor, abengoado seja, tirou-a das profundezas do mar e outorgou-lhe poder sobre todas aquelas cri- angas, os “‘pequenos rostos’’ dos filhos dos homens, que esto sujeitos 4 punig&o pelos pecados de seus pais (Zohar I 19b). O Zohar (76b) explica que, uma vez que Eva gerou Caim da imundicie da serpente, ela estava sempre sujeita 4 punicdo pela “serva’’ e “criada” de Deus, Lilith, que podia arrebatar-lhe suas eriangas recém-nascidas (Zohar II 96a-b). Desse modo, as filhas de Eva esto sujeitas aos dois aspectos do feminino. Existe Eva, a mae de todos os viventes, e Lilith, o agoite punitivo de Deus, que mata as criancas. 102 é “a H eae eis ii BB Tey F 7ee eat PE gueds nah; yrbW os ba qba1 Ssibo 4 + besis: ow pi aby pings a mips ¥ nislesh ibs ah ¥ ab win nplusio power eb senn BP ann pplash #5 pagans Seb! Bas et! ap" 0000) corre apbye Syrians ester beeps IOP Boog ba secu tars Sor Sass Lilith”, de Howard Schwartz, fala de um homem seu bebé da inveja assassina de Lilith usando esse Schwartz. Para referéncia com- Figura 12. “A histéria de de sua esposa que salvam mmuleto, (Cortesia da artista israelense Tsila pleta, ver bibliografia.) Figura 13. Varios amuletos para o parto, Entre eles: um colar do A feganistao Para mulher gravida, feito de prata, com trés pingentes com a forma de mao e outros dois retratando criangas (século XIX); uma peca de prata gravada, com Pedras turquesas (Pérsia, século XIX); prata forjada e gravada, com contas de coral (Pérsia, séculos XVIII-XTX); medalhio, com © formato de um cora A esculpido em prata, do Marrocos (século XIX); uma fivela de prata gravada, da Pérsia (séculos X VIL XIX); e um amuleto do Marrocos (século XIX), con. 2 formato de um peixe, feito de prata forjada, O amuleto tem trés pin- Bentes, sendo a forma de um deles parecida com a de um sapo. (De Sir Isaac and Lady Edith Wolfson Museum Collection, Jerusalém, Reproduzido com a devida permissao.) Eva é 0 lado do feminino instintivo que nutre a vida, enquanto Lilith é o seu lado oposto, aquele que lida com a morte. Diz-se que as filhas de Eva esto sujeitas 4 dor de Lilith a cada diminuigao da Lua. Lilith rege os Equinécios e os Solstfcios.'? Do mesmo modo que Hécate, seus poderes sao superiores nas encruzilhadas instinti- vas da vida de uma mulher: na puberdade, em cada menstruacao, no inicio e no fim da gravidez, da maternidade e da menopausa. As mu- Iheres modernas, as filhas de Eva, que reconhecem 0 poder de Lilith nesses pontos criticos, tém usado amuletos que tanto exaltam como afastam Lilith. Ou seja, muitos desses amuletos sao usados nao sé para a fertilidade como também para evitar que, durante o parto, ocorra algum mal 4 mulher e ao recém-nascido (ver figuras 12-17 e 24-33). Uma mulher vive os lados Eva e Lilith de sua natureza no flu- xo € refluxo do seu ciclo menstrual. Na primeira metade do ciclo, Eva est4 em ascensfo; prevendo a ovulagao e talvez a concepgio, ela se sente receptiva, aberta e relacionada. Quando a concepgio nao ocorre, Lilith assume o domfnio. A expectativa cede lugar ao desespero, ¢ a bruxa raivosa da pré-menstruagao arrasta-a ao desola- do deserto e 4 amargura da choupana menstrual. Segundo a lenda, Lilith foi tornada estéril por Deus, quando ele “esfriow” a fémea de Leviata.?° Ela nfo tinha leite nos seios e era incapaz de gerar criangas humanas.”! O citime de Lilith por Eva € ressaltado pela crenga popular de que uma tinica gota do sangue menstrual de Lilith est4 carregado de amargor e veneno suficiente para matar a populagao de toda uma cidade. A guerra entre Eva e Lilith alastra-se e atinge outro nivel. Eva pode ter suas necessidades satisfeitas numa relagao. Lilith nao pode. Ela tem de fugir. Ela nfo aceita a dependéncia e a submis- 19. Patai, The Hebrew Goddess, p. 233. 20. Patai, The Hebrew Goddess, p. 235. 21. Patai, The Hebrew Goddess, p. 208. 105 PSP pare RetsTHES Hens! [exes nbn sau it Figura 14. Amuleto esculpi- do em prata, para a mae eo filho. Observe a imagem do dem6nio Lilith no centro ¢ a inscric4o ao redor do amule- to. Veja também a figura iia onde Lilith esté rodeada por correntes de ferro. Pérsia, século XIX. (Cortesia de Sir Isaac and Lady Edith Wolf- son Museum Collection, Je~ rusalém.) Figura 15. Amuleto da Pa- lestina para uma mulher em trabalho de parto. A pro- tecao contra Lilith esta escri- ta 4 mao num papel, emoldu- rado com madeira dourada, Século XIX. (Cortesia de Sir Isaac and Lady Edith Wolf- son Museum Collection, Je- rusalém.) séo. Ela nao ser4 acorrentada ou enjaulada. Ela precisa ser livre, mover-se e mudar. Ela é um aspecto do ego feminino individualiza- do que s6 pode se desenvolver no deserto, sem relacionamentos, sem eros e sem filhos, sempre com citimes de Eva, que permanece abra- cada ao homem. Eva, por sua vez, sente-se acorrentada 4 Terra pelos homens € pelos filhos, e reflete os citimes de Lilith. Em Sémbolos de transfor- mag@o, Jung fala da histéria de Lilith comparando-a ao mito de La- mia que seduziu Zeus. A ciumenta Hera vingou-se fazendo com que ela gerasse apenas criangas mortas. Desde entio, a irada Lamia tem perseguido as mulheres gravidas, raptando bebés e estrangulando- os.”? A figura 18 mostra Lamia, alada e com garras de passaro, arre- batando uma crianca recém-nascida. O ciclo de alternancias entre os aspectos Lilith e Eva da psique feminina é infinddvel. A histéria de Adao, de Eva e de Lilith € contada no Zohar: Ele criou Adao e deu-lhe uma companheira; assim que Lilith viu Eva colada ao lado dele, a forma de Adao fez com que ela se recordasse da beleza celestial, e ela voou daquele lugar... ¢ viveu junto ao Mar Vermelho até que Adao e sua mulher pecaram. Entao o Senhor, aben- goado seja, decretou que, a partir daquele dia, ela deve- tia descarregar sua vinganca sobre os filhos do homem (Zohar I 19b). Do mesmo modo que os seres celestiais se mantém ao lado de Deus, Eva permanece sempre ao lado de Adao. Clinicamente, isto se observa nas mulheres que fazem aquilo que delas se espera devido a um severo juizo patriarcal, firmemente enraizado dentro delas mes- mas, que decreta, como faz o Zohar: “... pois uma mulher nao des- 22. C. G. Jung, Symbols of Transformation, Princeton, Princeton University Press, Bollingen Series, 1956, Collected Works, vol. V, § 369. 107 Figura 16. Amuleto (Curdistao, século XIX) para uma mulher, gravado com a palavra Zamargad, um dos reinos sobre os quais Lilith governou. E. visivel também a palavra Shaddai, um dos nomes misticos para Deus, O amuleto é feito de prata gravada ¢ soldada e tem uma corrente ¢ guizos. (Cortesia de Sir Isaac and Lady Edith Wolfson Muscum Collection, Jerusalém.) fruta de nenhuma estima, a nao ser junto do marido” (Zohar I 20a). Ou ent&o observa-se um comportamento de apego semelhante em mulheres que possuem uma intensa necessidade infantil de serem amadas e elogiadas por um homem ou pelo pai. Lilith, a assassina de criangas, estrangula essas necessidades infantis. As histérias de Lilith, enquanto assassina de criangas, sao bas- tante contraditdrias. Ela brinca com os bebés enquanto estao ador- mecidos, fazendo-os sonhar e sorrir (recomenda-se bater de leve no nariz do bebé para desperté-lo ¢ afastar 0 espirito de Lilith).7? B ela quem entrelaga os cabelos na nuca dos bebés enquanto brinca com eles, fazendo-lhes cécegas e provocando-lhes riso e prazer. No en- tanto, é Lilith quem também provoca epilepsia, estrangulamento e morte nos bebés nascidos da “impureza’’. As forgas de Eva, mae de todos os viventes, e de Lilith, espiri- to da Noite e do Ar, evidenciam-se no conflito das mulheres entre, de um lado, dar & luz e cuidar dos filhos e, de outro, entre a necessi- dade de gerar e de nutrir idéias e obras. As mulheres que combinam maternidade e carreira profissional se envolvem num ato continuo de malabarismo, que requer sincronia e equilfbrio. A medida que tenta dar conta das necessidades de seus filhos, de seu trabalho e de si mesma, a mulher pode, inesperadamente, sentir-se invadida pelo fu- ror assassino de Lilith.” Isso ocorre, na maioria das vezes, quando a prépria mae nao esté conseguindo arcar com seus deveres de mie. Ou seja, quando esté cansada, machucada ou doente, ou quando o 23. Patai, The Hebrew Goddes, p. 228. 24, Embora os noticidrios muitas vezes falem de mulheres que matam seus fi- Ihos quando separadas dos maridos — e as mulheres com freqiiéncia sentem esse impulso assassino -, 0 tinico romance que conheco onde essas fantasias sao francamente narradas € The Fire-Dwellers, de Margaret Laurence. Por outro lado, um fio vermelho (um amuleto contra Lilith) aparece misteriosa- mente em Disturbances in the Field, de Lynn Sharon Schwartz, quando uma mulher sofre uma depressiio apés 0 parto e nao consegue retomar sua carreira musical, 109 lado Lilith de sua natureza sofre a ameaca de ser acorrentado ou en- jaulado pelas necessidades dos outros ou pelos conceitos patriarcais (animus). Aqui, uma filha de Eva, atacada pelo seu apego infantil aos ideais patriarcais de “O anjo na casa”, encontra salvacao no édio mortal de Lilith pelas criancas: Figura 17, Amuleto persa do século XIX para a protegéo de uma crianga recém-nascida contra Lilith. Lilith é representada com os bracos estendidos e acorrentada, Sobre seu corpo, estd escrito: “Proteja esta crianca reeém-nasci- da de qualquer mal.” Em cada um dos lados estéo os nomes de Adio ¢ Eva, bem como dos patriarcas e das matriarcas, enquanto no alto, acima dela, esto as Ictras iniciais de uma passagem dos Niimeros (6:22-27) e, abaixo, dos Sal- mos (121). (Cortesia do Israel Museum, Jerusalém.) 110 ... descobri que... precisava travar uma batalha com um determinado fantasma. E o fantasma era uma mulher, e quando cheguei a conhecé-la melhor, passei a chamé-la pelo nome da heroina de um famoso poema, “O anjo na casa’... Ela era intensamente simpatica. Maravilhosamente encantadora, Totalmente abnegada. Bla se distinguia nas dificeis tarefas da vida em fami- lia. Se havia galinha, ela ficava com 0 pé: se havia uma corrente de ar, sentava-se bem ali. Em suma, sua constituigao era tal, que ela nunca tinha um pensamen- to ou desejo préprios, preferindo antes apoiar os pen- samentos e desejos dos outros. Acima de tudo, ela era, 6 desnecessério dizer, pura... E quando me pu- nha a escrever, deparava-me com ela logo nas minhas primeiras palavras. A sombra de suas asas espalhava-se sobre a minha pagina; cu ouvia o farfalhar da sua saia no quarto... Ela se aproximava furtivamente pelas mi- nhas costas e sussurrava... Seja simpatica: seja delica- da; faca clogios; engane; lance mao de todas as artes e ardis do seu sexo. Nunca permita que alguém pense que vocé tem um pensamento proprio. Sobretudo, seja pura. E agia como se estivesse guiando a minha cane- ta. Relato agora a vinica agéo que me levou a ter algum apreco por mim mesma... Voltci-me para ela e a agar- rei pela garganta. Apertei com toda a minha forga, até maté-la. Minha defesa, caso fosse levada a um tribunal, seria a de que agi em defesa prépria. Se eu nao a ma- tasse, ela me mataria.”° 35, Virginia Woolf, “Professions for Women”, in The Death of the Moth and Other Essays, Nova York, Harcourt Brace Jovanovich, e Londres, The Ho- garth Press, 1970, pp. 236-238, Copyright © propriedade literdria do autor, © reproduzido com permissao. 11 Neste nivel intrapsiquico, a autodestrutiva cisdo entre Eva, a nutridora de criangas, e Lilith, a assassina de criangas, é observada naquelas mulheres que nao atendem as suas proprias necessidades corporais. Elas prosseguem em suas atividades mesmo cansadas, alimentam-se de modo insuficiente ¢ irregular e maltratam o cor- Po numa tentativa de estrangular sua crianca interior. A alternan- cia das qualidades de Eva e de Lilith pode facilmente ser observada nos ciclos de actimulo e purgacao dos distirbios alimentares, tao freqlientemente encontrados nas mulheres. Figura 18. Lamia arrebatando um bebé recém-nascido. (De um friso, “Témulo das Harpias”, Acrépole de Xanto. Cortesia do British Museum.) Em determinadas épocas, particularmente durante os dias pré-menstruais, quando Lilith assume o dom{nio, é necessério que a mulher atenda as suas necessidades Lilith de liberdade ¢ isolamento, 112 a fim de estrangular suas necessidades infantis de amor ¢ aprovagaéo num relacionamento e de fugir das necessidades dos outros. Durante esse perfodo, ela pode se conscientizar de tudo o que tem sido rejei- tado ou negligenciado em relacdo ao lado Lilith. Desse modo, as destruidoras energias Lilith, assassinas de criangas, podem ser reunidas e deixadas 4 disposi¢do de Eva, para que esta, em seu novo ciclo, consiga obter um relacionamento melhor. O conto popular a seguir ilustra de que modo as ‘energias Lilith, assassinas de criangas, podem ser redimidas através da re- flexfo consciente a respeito de sua natureza. Um espelho é nova- mente necessario para se conhecer a qualidade Lilith e transforma-la de assassina autodestruidora em auto-amorosa e capaz de se aceitar a si mesma. Nesta histéria, a mae Holle ou Hulda, o teuténico dem6- nio noturno de longos cabelos que atacava bebés e é identificado com Lilith, transforma-se em Vénus, a Deusa do Amor, através de uma “‘receita de amor” judaico-ifdiche: Consiga um ovo, botado numa quinta-feira por uma galinha negra como azeviche e que nunca tenha botado um ovo antes. No mesmo dia, depois do pér-do-sol, en- terre-o numa encruzilhada. Deixe-o ali trés dias; em se- guida, desenterre-o depois do pér-do-sol, venda-o e com- pre, com a quantia conseguida, um espelho, que vocé de- ve enterrar, ao entardecer, no mesmo local, ‘“em nome de Frau Venus”, dizendo: “‘allhie begrab ich diesen Spiegel in der Lieb, die Frau Venus zu dem Dannhauser hat”. Durma nesse lugar trés noites, desenterre a seguir 0 espe- Iho e todo aquele que nele se olhar ficara apaixonado por voo’!76 26. Joshua Trachtenberg. Jewish Magic and Superstition, Filadélfia, Meridian Books/ Jewish Publication Society of America, 1961, p. 43 113 Para se tornar consciente da profunda ciséo no feminino entre Lilith, a assassina de criangas, e Eva, a amante de crian- gas, a mulher precisa estar vinculada a si mesma num nivel cor- poreo basico e instintivo. Na lenda seguinte, Salomao, ao espe- Thar a cisio na natureza da mulher e ao erguer a espada da 16 gica masculina, enfoca a mulher em sua verdadeira necessidade instintiva. As duas prostitutas que compareceram diante de Salomao nao eram outras senao Lilith e Naama.”’ Ambas tinham dado & luz na noite anterior. Ao acordarem, uma das criangas havia morrido. As duas mulheres compareceram diante de Salomao e cada uma reivin- dicava como sua a crianca viva. Salomao, conhecedor das sendas da psicologia feminina, decretou que a crianga fosse partida ao meio € ergueu sua espada da justiga. Imediatamente, a verdadeira mae gri- tou: ‘‘Dé-lhe a crianga, mas nao a mate”. Portanto, a sabedoria do coragéo, semelhante 4 de Salomao, faz com que uma mulher entre em contato com sua propria natureza feminina, a qual contém tanto Lilith como Eva, impedindo-a de tor- nar-se inteiramente possufda pela demonfaca destrutibilidade de Lilith em busca de poder. 21. Ginzberg, The Legends of the Jews, vol. 1V, pp. 130-131. 114 CAPITULO V Expulsa e Redimida Embora tenhamos observado repetidamente uma necessidade psicolégica de conhecer e integrar Lilith, enquanto sombra feminina nfo s6 pessoal mas também coletiva, a priméria ¢ tradicional forma patriarcal de procedimento em relagio a ela tem sido suprimi-la ou expuls4-la. SUPRESSAO E NEGACAO Nos tempos antigos, acreditava-se que © poder de Lilith podia ser capturado debaixo de um vaso invertido, no qual tivesse sido es- crita uma f6rmula mAgica apropriada.! Os vasos babil6nicos (ver fi- guras 19 e 20) de 600 a.C. retratam Lilith fortemente amarrada com correntes, pois o ferro é 0 material tradicional para se prender 1. Theodor H. Gaster, The Holy and the Profane, Nova York, William Mor- row & Co., 1980, p. 27. 115 Figura 19. Vaso aramaico de encantamento da Pérsia. Lilith aparece no cen- tro, nua e com os cabelos caindo pelas costas. (Reproduzido com a permissao do University Museum, University of Pennsylvania.) deménios. (A figura 17 também fornece uma ilustrag&o disso.) O en- cantamento a seguir destina-se a suprimi-la: Amarrada est4 a feiticeira Lilith com um pino de ferro em seu nariz; amarrada est4 a feiticeira Lilith com um torqués de ferro em sua boca; amarrada esta a feiticei- ra Lilith... com uma corrente de ferro em seu pescogo; amarrada est4 a feiticeira Lilith com grilhdes de ferro em | suas méos; amarrada est a feiticeira Lilith com pilares de pedra em seus pés. Outros vasos babilénicos apresentam ordens de divércio, ex- pulsando Lilith: Tu, Lilith do deserto, tu, bruxa, tu, vampira... des~ calga és tu enviada, nua, com os cabelos em desalinho e caindo-te as costas.* Uma série de forcas poderosas sio invocadas para ajudar na expulsao de Lilith: Sé informada por este meio de que o rabi Joshua bar Parahia decretou o teu banimento... Uma ordem de divér- cio chegou a nossas maos vinda dos céus. Tu, Lilith... Bruxa e Raptora, considera-te banida. Uma ordem de divércio chegou para ti vinda através do mar... Ouve-a e parte... Nao deverds discutir nem manifestar-te... seja num sonho a noite, seja em cochilos diurnos, porque estés selada com o selo de El Shaddai, e com o selo da Casa de Joshua bar Parahia e pelos Sete que estao diante dele... 2, Patai, The Hebrew Goddess, p. 217. Citado com permissdo. 3. Gaster, The Holy and the Profane, p. 27. 117 Figura 20. Vaso aramaico de encantamento, onde se vé Lilith, no centro, com um olhar bastante desolado, Século VI. (Reproduzido com a permissao do University Museum, University of Pennsylvania.) Tu, Lilith... Bruxa e Raptora, ordeno-te, em nome da Forga de Abraao, pela Firmeza de Isaac, pelo Shaddai de Jac6, em nome de Jeova... pela vontade de Jeova... sai daqui [desta casa]... Teu divércio e separagao... enviado através dos anjos sagrados... as Hostes de fogo nas esfe- ras, os Carros Panim diante de seu exército; as Bestas cultuando no fogo, no trono e na 4gua... Amém, Amém, Selé, Aleluia!* No folclore também ha tentativas no sentido de expulsar Lilith. Um exemplo bastante representativo pode ser encontrado num im- pressionante conto a respeito de Lilith sob a forma de uma coruja (ver figura 21, p. 121), compilado pelos irmaos Grimm: Ha muitos e muitos anos, um monstro com chifres extraviou-se de seu caminho. Era uma coruja com garras afiadas e dois enormes chifres cobertos de penas acima da cada olho. Ao avistar uma trangiiila floresta, um esté- bulo com a porta aberta, a criatura voou para dentro e pousou numa viga para ali passar a noite. Na manha seguinte, bem cedo, o fazendeiro apare- ceu para ordenhar as vacas. Porém, deparando-se com 0 monstro, correu para fora, apavorado. Gritou por socorro aos seus vizinhos. Vieram todos correndo, armados com seus forcados e foices. Contudo, ao verem aqueles olhos enormes, agourentos, estacaram imediatamente. O fazendeiro mandou entéo chamar um homem, considerado o homem mais corajoso e mais forte de toda a aldeia. ““Deixem comigo”’, disse-lhes 0 destemido. “Ela nao nos encararé por muito mais tempo!” E, sem vacilar, 4. Patai, The Hebrew Goddess, p. 213. Citado com permissio. 119 entrou no estébulo como se estivesse indo recolher os ovos da manh4, sem a menor preocupacao. Mas ele viu aqueles olhos enormes e redondos, es- cancarados, aqueles chifres cobertos de penas, erguen- do-se no alto da cabeca do monstro como se fossem os chifres de algum deménio dos infernos. O homem, que todos esperavam fosse salvé-los do monstro, nao passou do quinto degrau da escada. Por pouco nao escorregou, por pouco nao caiu ao chao em sua desesperada fuga para fora do estdbulo. Os aldeGes ficaram agitados. O melhor dentre cles acabara de sair correndo. A criatura ameacava destruir a todos. Finalmente, os dois burgomestres sugeriram que cada um contribuisse com uma determinada quantia de dinheiro, suficiente para pagar o proprietério por seu estébulo e todo o feno, milho e animais que estivessem no seu interior. Na manha seguinte, no local onde antes se erguia o estabulo, nada mais restava sendo cinzas. E nao havia mais nenhuma coruja> Enquanto este conto de fadas europeu deixa os efeitos derra- deiros da agao supressiva por conta da imaginagao, o proximo conto hassidico a respeito de uma tentativa de obliterar Lilith e Samael descreve com mais efic4cia as terriveis conseqiiéncias de tal agao: O rabi Joseph de la Reina de Safed, versado nas artes da Cabala pratica, resolveu instalar a redencao e er- radicar o poder maligno, Lilith e Samael, da face da Ter- 5. Ver “The Owl", in Riding the Nightmare, Nova York, Atheneum, 1978, de Selma Williams e Pamela J. Williams, pp. 73-74. Citado com permiss4o. 120 oar AI : | WY MAM MUTT eae EEL Figura 21. Lilith como a coruja-das-torres ou o dem6nio alado noturno. A medida que o Sol, inimigo original de Lilith, se ergue atrds dela, cla olha de relance para a inscrigéo que diz: ““Temo este dia.” Gravura alema de Johann Wechtlin intitulada “Alegoria com uma Coruja”, cerca de 1530. (Cortesia do Fogg Art Museum, Harvard University, Cambridge.) 122 ra. Por diversas vezes, cle foi advertido do perigo de seu intento pelo profeta Elias e pelos anjos Sandalafon, Ackh- tariel e Matatron. Finalmente, quando perceberam a inuti- lidade de suas adverténcias, os anjos informaram ao Rabi Joseph de que Samael e Lilith haviam assumido a forma de dois cachorros negros. Recomendaram a ele que fosse extremamente cauteloso, pronunciasse determinadas pre- ces e nao ofertasse a Samael e Lilith nenhum tipo de co- mida ou bebida. Depois de cumpridos todos esses requisitos e de capturar Lilith e Samael, o rabi Joseph e seu grupo apro- ximaram-se do Monte Seir, onde os Deménios seriam destruidos para sempre. O rabi Joseph pegou uma pitada de olfbano e cheirou-a. Samael disse: “‘J4 que vocé nao me da nada para comer, deixe-me, ao menos, cheirar um pouco desse seu olibano.”” O rabi Joseph estendeu entéo sua mao e deu-lhe alguns graos de olibano; e Samael expeliu de sua bo- ca, com um sopro, uma centelha de fogo e queimou © incenso, enquanto o rabi Joseph ainda o estava se- gurando. A fumaga penetrou nas narinas de Samael e ele rompeu os grilhGes que o detinham. Dois dos discipulos morreram imediatamente, outros dois enlouqueceram e 0 tabi Joseph ficou apenas com um tinico discfpulo, abati- do, exausto e espantado. Ele nao sabia que havia posto em risco sua alma ao dar 0 incenso ao deménio, que o transformou em fumaga: agindo assim, o rabi Joseph, sem © saber, envolvera-se em idolatria, anulando todas as for- O rabi Joseph terminou seus dias casado com a ma- ligna Lilith. Ele se corrompeu de todos os modos possi- veis, utilizando os Nomes sagrados e outros Nomes, bem como os conjuros que conhecia na pratica do mal.° REDENGAO Visto que a drdstica supressio de Lilith causa destruicéo, de que modo entio ela dever4 ser tratada? Surpreendentemente, ha um texto do século XV que é um encantamento magico para se trazer uma linda moga para dentro de um dormitério. Embo- ra Igrat nao seja exatamente Lilith, podemos, todavia, aprender alguma coisa desse texto a respeito de como lidar com a sensua- lidade feminina. O encantamento reconhece, respeitosamente, o poder demonjaco da mulher e a minuciosa férmula sugere o alto ni- vel de consciéncia necessdrio para um bem-sucedido encontro com o poder. Eu te ordeno, Igrat, filha de Mahalath, rainha dos dem6nios, pelo poderoso e terrivel Nome, em nome dos anjos sagrados e em nome de Bilar o herdico, rei dos deménios, que me envies... a linda donzela dentre as donzelas que te seguem, cujo ntimero é idéntico ao ntime- to dos dias do ano, e em nome de Metatron e Sandalfon, AAA NNN SSS. E isso deve ser feito ou em vésperas de domingo ou em vésperas de quarta-feira. E deve-se ter um quarto iso- lado e uma cama branca, com roupas brancas e limpas, e 6. Duas versées desse conto séo narradas por Micha Joseph Ben Gorion, in Mimekor Yisrael, Bloomington and London, Indiana University Press, 1976, vol. II, pp. 837-852. Esta é uma versio resumida do conto, feita por mim. 123 © quarto e a cama devem ser fumigados com aloés. E o instrufdo compreendera.” O prdéximo conto hassidico ilustra que, mesmo quando o obje- tivo supremo consiste em evitar ser possuido por Lilith, deve-se, primeiro, invocd-la e conhecé-la conscientemente através de pergun- tas. Somente entao é possivel libertar-se dela. Um homem, de quem Lilith tinha tomado posse, viajou para Neskhizh, onde queria pedir ao rabi Morde- cai que o libertasse. O rabi pressentiu que esse homem estava a caminho de sua casa e ordenou a todos os habi- tantes da cidade que fechassem suas portas ao anoitecer e nao deixassem ninguém entrar. Quando, ao cair da noite, © homem chegou 4 cidade, nado conseguiu encontrar ne- nhum alojamento ¢ teve de se deitar no alto de um monte de feno num celeiro. Instantaneamente Lilith apareceu e disse: ‘‘Desga e venha até mim.” Ele perguntou: “Por que vocé quer isso? Geralmen- te € vocé que vem até mim’’. “Nesse feno sobre 0 qual vocé est4 deitado’”’, ela respondeu, “ha uma erva que me impede de aproximar- me de vocé.”” “Qual delas?”’, ele perguntou. ‘Eu a jogarei fora e entao vocé poderé vir até mim.” Ele foi-lhe mostrando varias ervas, até que ela dis- se: “E essa!”” Entiio ele a amarrou no peito e ficou livre. 7. Patai, The Hebrew Goddess, p. 224. Citado com permissio. 8. Ver “Lilith”, de Martin Buber, in Tales of the Hasidim, Nova York, Schocken Books, 1948, vol. IT, p. 166. O conhecido conto popular ‘“‘Haninah e o sapo”’ ilustra o tema da redengao mediante cuidadosa e consciente apreensao e conheci- mento de Lilith. O conto comega com as seguintes palavras: Uma histéria verdadeira. Quando 0 rico e piedoso pai do rabi Haninah estava velho e prestes a morrer, pediu a seu filho que, apés os sete dias de luto, fosse ao mercado. Ali, explicou ao rabi Haninah, ele deveria comprar a primeira coisa que visse, mesmo que fosse muito cara. Caso se tratasse de uma coi- sa viva, ele deveria crié-la e cuidar dela, pois ela Ihe tra- ria algo de bom. Contudo, seu pai nao Ihe disse que coisa seria essa, O rabi Haninah fez como seu pai lhe pedira. Passados os sete dias de luto desde sua morte, ele foi ao mercado e comprou a primeira coisa que viu — uma caris- sima caixinha de prata. Dentro da caixinha, encontrou uma segunda caixinha e, dentro desta, um sapo. Haninah deu comida e Agua ao sapo e cuidou dele. Quando 0 sapo cresceu € a caixinha tornou-se muito pequena para cle, Haninah construiu-Ihe uma casinha. Como Haninah nio reduzia a alimentagdo, em pouco tempo o sapo cresceu tanto que nao cabia mais na casinha; o rabi Haninah construiu-lhe entio um quarto, onde o sapo estaria bem confortavel. Ele alimentava 0 sapo com o que havia de melhor ¢ de mais caro e, desse modo, acabou gastando tudo o que possufa. Haninah e sua mulher dirigiram-se entéo ao quarto do sapo e disseram: ‘‘Querido amigo, apesar da nossa imensa tristeza, nao poderemos mais ficar com vocé, pois nao temos mais nada.” O sapo respondeu: “Querido Haninah, nao se aflija. Ja que vocé me ali- mentou e cuidou de mim durante todo esse tempo, vocé pode agora me fazer um pedido. Diga-me exatamente o 125 que vocé mais deseja e vocé o tera.” Haninah disse: “A iinica coisa que desejo é aprender toda a Lei.” O sapo escreveu varias formulas mdgicas num pedaco de papel e disse a Haninah que o engolisse. Ele assim fez e, prontamente, sabia toda a Torah e as setenta linguas. Podia até mesmo entender a lingua dos animais ¢ dos passaros. O sapo deu entaéo a esposa de Haninah a re- compensa. Conduziu-os a Floresta das Arvores e chamou uma quantidade imensa de passaros e animais. A seguir, ordenou-lhes que trouxessem tantas jéias e pérolas quan- tas pudessem carregar. Além disso, deveriam trazer to- das as espécies de raizes e ervas medicinais. O sapo ensinou entéo ao rabi Haninah e a sua esposa os usos e as secretas formulas de cura de cada uma das ervas e raizes. Quando o sapo estava prestes a partir, disse: “Que o Bom Deus os abengoe ¢ lhes seja grato por todo o tra- balho e incémodo que lhes dei. Embora vocés néo me tenham perguntado quem eu sou, vou-lhes contar 0 segre- do: sou o filho de Adao e de Lilith, concebido duran- te os cento e trinta anos em que Adio esteve separado de Eva.”° Como na histéria de Sariel, 0 filho de Lilith com Ashmodai, o esclarecimento provém da eficaz ¢ intencional hospedagem e dos cuidados dispensados a esses descendentes de Lilith. O Talmud (B. Bab. Bath. 73a-b) cita também Hormin, mais um filho de Lilith, que foi condenado a morte por uma assembléia dos governantes dos 9. A versdo do Mayse Book dessa historia aparece em Great Works of Jewish Fantasy and Occult, pp. 437-445. Outra versio, na qual 0 sapo é substituido por um escorpiio, aparece em Mimekor Yisrael, vol. IIT, pp. 1112-1122. (Ver nota 6, p. 123.) 126 dem6nios por ter, do mesmo modo que o sapo, revelado segredos aos seres humanos. A histéria biblica do encontro da rainha de Sabé com Salomao proporciona um paradigma que possibilita 4s mulheres tornarem-se conscientes de Lilith em sua natureza e desenvolver um relaciona- mento com o s4bio rei interior. ““E quando a rainha de Saba ouviu falar sobre a fama de Salomao, referente ao nome do Senhor, veio prova-lo por dificeis perguntas”’ (I Reis 10:1). Kluger!” interpreta as palavras hebraicas mostrando que Sa- ba, ao proceder como Lilith, foi tentar Salomao e testa-lo com di- ficeis perguntas e enigmas. Segundo a lenda judaica, os enigmas que a rainha de Sabd apresentou a Salomio sio uma reprodugio das palavras de sedugdo que Lilith usou com Adao.!! A Biblia pros- segue: “E quando Saba veio a Salomao, ela lhe disse tudo 0 que . estava em seu coracéo. E Salomao respondeu a todas as suas per- guntas: e néo houve nenhum enigma que ele deixasse sem resposta”’ (I Reis 10:3). Por proceder conscientemente de acordo com a sua natureza Lilith, procurando Salomao e tentando-o, ou testando-o, e por abrir inteiramente seu coragao a ele, a rainha de Saba péde acolher sua sabedoria em seu interior. Eela disse ao rei: “Era verdade tudo aquilo que, em minha prépria terra, ouvi dizer acerca de teus atos e de tua sabedoria. Nao obstante, nfo acreditava no que ouvia, até que vim e meus olhos te viram; e¢ eis que nao me disseram nema me- tade; tu tens a sabedoria e prosperidade que excedem a fama que ouvi. Afortunadas as tuas mulheres, afortuna- 10, Kluger, Psyche and Bible, p. 94, 11. Gershom Scholem, Kabbalah, Nova York, Quadrangle, 1974, p. 358. 127 dos estes teus servos, que permanecem continuamente diante de tie ouvem tua sabedoria” (I Reis 10:6-9). Uma vez mais, é essa sabedoria saloménica — que espelha a na- tureza divina e demonfaca da mulher — que redime Lilith. Ela nao pode ser expulsa; pelo contrario, ela deve ser acolhida e conhecida conscientemente. A tazao da necessidade de um pleno encontro entre as forgas da consciéncia masculina e feminina é expressa na /ysis da histéria de Lilith e Adao: Conta-se que, logo apés Lilith ter deixado Adao, ele ajoclhou-se diante do seu criador e disse: “‘Senhor do Mundo, a mulher que me deste afastou-se de mim.” Ime- diatamente, o Senhor Deus enviou os trés anjos, Sanvai, Sansanvai e Semangelof para trazé-la de volta. Eles a al- cangaram no deserto, perto do Mar Vermelho. “Volta, sem demora, para junto de Adio”, disseram os anjos, “ou te afogaremos!”’ Lilith perguntou: “Como Posso voltar pa- fa junto de Adao e ser sua mulher, depois de minha per- manéncia as margens do Mar Vermelho?” “‘Se recusares, seras morta!”’, eles responderam. “Como POsso morrer’’, tornou a perguntar Lilith, “quando Deus me mandou to- mar conta de todas as criangas recém-nascidas: dos meni- nos até 0 oitavo dia de vida, a data de sua circuncisio; das meninas até 0 vigésimo dia? Entretanto”, ela disse, “eu vos juro, em nome de Deus, El, que esté vivo e exis- te, que, se eu vir os vossos trés nomes ou vossas imagens exibidos num amuleto sobre um recém-nascido, prometo poupé-lo.” Até esse dia, eles concordaram; contudo, Deus puniu Lilith, fazendo com que uma centena de seus filhos deménios perecam diariamente, e se Lilith nao pudesse exterminar um bebé humano, devido ao amuleto angelical, voltar-se-ia, vingativamente, contra os seus proprios filhos.!? A figura 22 mostra um amuleto popular, de protegao contra Li- lith, com as imagens dos trés anjos de Deus reproduzidas duas ve- zes. As imagens 4 esquerda sao, nitidamente, parecidas com passa- tos. A figura 23 também retrata os trés anjos, com a forma de passa- Tos, acima de uma Lilith excepcionalmente calva. Jung observa que “os anjos sio, de fato, passaros... e que, na tradigao judaica, os an- jos sao masculinos. O simbolismo dos trés anjos é importante por- que significa a superior trindade espiritual e etérea em conflito com 0 uno poder feminino inferior.” !3 O Zohar descreve, em linhas gerais, os termos da luta pelo po- der entre Lilith e Deus: E que espécie de almas sao essas tio violentamente despojadas e afastadas para longe? HA um mistério por tras disso. Trata-se de almas que ainda estao no seio. O Se- nhor, vendo que, se continuarem neste mundo, perderao seu doce sabor, seu aroma de pureza e, por assim dizer, prevendo que se tornarao azedas como vinagre, colhe-as na infancia, enquanto seu sabor ainda é doce, e permite que sejam arrebatadas por essa “‘criada”’, isto é, por Lilith [96b], a qual, no momento em que elas Ihe sao confiadas, carrega-as, com maligna satisfacao, para outras regiGes. Nao pense que, se nao tivessem sido removidas, pode- tiam ter feito algum bem no mundo, Pois esta escrito: “‘Se ela (a alma) nao agradar ao mestre”’, isto 6, ao homem em 12. Ver “Alpha Beta Ben Sira”, in Otzar Midrashim, Nova York, J. D. Bi- senstein, 1915, organizado por J. D. Eisenstein, vol. I, pp. 46-47. 13. Jung, Symbols of Transformation, pp. 2488s. 129 que esta hospedada, ele fara com que ela, com o pas- sar do tempo, se tone azeda. E essa alma, e nao outra, que é arrebatada. Contudo, por outro lado, isso nao sig- nifica que o Senhor tenha predeterminado essa alma a ficar sob o dominio da impureza a partir do exato dia da sua criagéo. Absolutamente! Pois, na revolugaéo da roda, quando a alma exalar um bom odor, “ele permi- tira que ela seja redimida”’, isto é, o Senhor a redimi- r4 de seu penoso cativeiro e a alcara até as mais ele- vadas alturas, para permanecer ao Seu lado. E nio se deve pensar que, por ter sido um dia furtada pelo po- der impuro, 0 Senhor a condenara perpetuamente a in- gressar no corpo de piedosos gentis ou de bastardos estudiosos. Nao! “Ele nao tera o poder de vendé-la a uma nag4o estranha.” Ela voltaré ao corpo de um is- raelita e nao de um estrangeiro. E quando for redimi- da do cativeiro da “‘roda da impureza”’, “‘ela nao par- tiré para o exterior, como fazem os criados”, mas re- ceberd sua coroa com a cabeca erguida. Tampouco se pensard que o “lado da impureza”’ colocou a alma na crianga: pois o poder impuro apenas se apoderou, por assim dizer, da alma e se divertiu com ela até que in- gressasse no corpo daquela crianca. Mas o poder impuro visita ocasionalmente a crianga e almeja possuir 0 seu corpo. Depois de algum tempo, o Senhor toma em Suas prdprias maos a tutela dessa alma, e o poder maligno obtém o dominio do corpo. Contudo, finalmente, corpo e alma tomam-se posse do Senhor (na Ressurreigéo) (Zohar II 96a-b). Desse modo, essas almas infantis que, de outra maneira, azeda- riam e tornar-se-iam avinagradas, permanecem sob a custédia de 130 Lilith durante uma tnica volta da roda, sendo, em seguida, redimi- das por Deus. Figura 22. Amuleto medieval para se proteger de Lilith mostrando duas ve- zes os trés anjos, Sanvai, Sansanvai e Semangelof. Acima dos anjos, nos dois compartimentos, aparecem as palavras: “Addo, Eva, longe de Lilith.” Junto com os nomes dos anjos, no compartimento da direita, estéo varias palavras mégicas, tais como chai, a palavyra hebraica para “vida”. O texto acima do diagrama arrola os nomes dos setenta anjos, enquanto abaixo do diagrama en- contram-se encantamentos dirigidos a Lilith. (De Sepher Raziel, obra cabalis~ tica do século XI, impressa em Amsterda em 1701.) Contudo, pode-se perguntar de que modo, afinal, essas almas azedas e imperfeitas vém ao mundo? A resposta remonta & época em que Caim matou Abel e em que Ado separou-se de sua mulher du- tante 130 anos, quando manteve relagdes com Lilith e gerou os “flagelos da humanidade’’, ou até mesmo a uma época anterior a es- sa, quando se conta que: Eva gerou Caim da imundicie da serpente Samael e, por conseguinte, dele descendem todas as geragdes per- 131 Figura 23. Amuleto em pergaminho mostrando os trés anjos, Sanvai, San- sanvai ¢ Semangelof acima de uma Lilith excepcionalmente calva, (Cortesia de ‘Sir Isaac and Lady Edith Wolfson Mu- seum Collection, Jerusalém.) versas e do seu lado est4 a morada de espiritos e dem6- nios. Portanto, todos os espfritos e demGnios sao metade da classe dos seres humanos abaixo e metade da classe dos anjos acima. Assim também, aqueles que mais tarde nasceram de Adao eram metade da esfera inferior e meta- de da esfera superior. Depois que estes nasceram de Adio, a partir daqueles espfritos, ele gerou filhas com a beleza dos seres celestiais e também com a beleza dos se- res mais inferiores, de modo que os filhos de Deus se ex- traviaram, seguindo-as. Um varao veio ao mundo da parte do espitito partido de Caim e eles o chamaram Tubal Caim. Uma menina veio com ele e foi chamada Naama (ou Lilith a Jovem), e dela vieram outros espiritos e dem6nios; estes pairam no espago e contam coisas aque- les outros que estéo embaixo. Esse Tubal Caim fabricou armas de guerra e essa Naama uniu-se 4 sua propria facgao maligna, e ela ainda existe, tendo sua morada en- tre as ondas do grande mar. Ela sai, diverte-se com os homens e deles concebe através de seus hibricos sonhos. Dessa luxtiria ela engravida e gera novas espécies no mundo. Os filhos que ela tem dos seres humanos mos- tram-se as mulheres humanas, que deles engravidam € ge- ram espititos, e todos eles dirigem-se a antiga Lilith, que os cria. Ela anda pelo mundo e procura (77a) seus filhos, e quando vé criancinhas, gruda-se nelas a fim de maté-las e insinuar-se em seus espiritos. Ha, contudo, trés espfritos sagrados que voam dian- te dela, tiram-lhe esse espfrito, colocam-no diante do Se- nhor, abencoado seja, e, na Sua presenga, ensinam. As- sim, protegem a crianga e ela nao pode fazer-lhe mal. Mas se um homem nfo é santo e atrai sobre si um espirito da faccao impura, ela vem e se diverte com essa crianga, 133 Figura 24. Amuleto (Curdistdo) de pro- tegao contra 0 mau-olhado ¢ os perigos de Lilith na hora do parto. Deus é invo- cado através do Nome de oito letras e do Nome de vinte e duas letras. O Sal- mo 121 — onde se afirma que o Sol nao os molestard de dia, nem a Lua de noite ~€ 0 Génesis 49:22 — que diz que José é uma parreira fértil — também esto ins- critos aqui, (Extrafdo de Hebrew Amu- lets, de T. Schrire, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1966. Usado com per- missdo.) Figura 25. Amuleto de protego do Curdistio. Deus € invocado através do nome Ehych e do Nome de vinte ¢ duas letras; sao também invocados varios an- jos, entre eles Sanvai, Sansanvai e Se- mangelof. Lilith, a primeira Eva, é repe- lida ¢, em nome de outros anjos mais, bem como em nome do rabi Meir, invo- ca-se a satide, sobretudo em relagdo aos perigos do parto. (Extrafdo de Hebrew Amulets, de T. Schrire, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1966. Usado com permissao.) e se ela a mata, penetra em seu espifrito e nunca o deixa. Vocé pode objetar: ¢ as outras que ela matou, embora os trés anjos a tivessem enfrentado e tivessem resgatado os seus espiritos? J4 que elas nao estavam do lado da impu- reza, porque ela tinha o poder de mat4-las? Isso acontece quando um homem nao se santifica e, apesar de nao ter a intengio de se contaminar, acaba se contaminando. Nes- ses casos, ela tem poder sobre 0 corpo, mas nao sobre 0 espirito. Ocorre, as vezes, que Naama sai a fim de ter re- lagGes com os homens, e um homem une-se a ela pela luxtiria; de repente, ele acorda e abraga sua mulher, em- bora sua mente ainda esteja dominada pela luxtiria de seu sonho. Neste caso, o filho assim gerado pertence a faccao de Naama e, quando Lilith sai, ela o vé e sabe 0 que aconteceu, e 0 cria como aos outros filhos de Naama, e ele esta freqiientemente com ela, e ela nfo o mata. Este é o homem que recebe uma marca a cada Lua Nova. Pois Lilith nunca os abandona, mas a cada Lua Nova ela sai e visita todos os que ela criou e com eles se diverte: a par- tir daf, esse homem recebe uma marca nessa época. Tais coisas foram reveladas ao rei Salomao pelo livro de As- modai, e nele encontramos mil e quatrocentas e cinco formas de contaminagao que podem afetar os homens. Ai daqueles que fecham os olhos e nao observam nem to- mam nenhum cuidado para se defenderem rio mundo! O conselho e a cura estio diante deles, mas nao fazem caso, pois nao podem se salvar, a nao ser pelo conselho da To- rah, onde est escrito: ‘“‘Santificai-vos e sede sagrados, pois Eu sou o Senhor vosso Deus” (Zohar III 76b-77a). Os trés espiritos sagrados que voam diante de Lilith nao sao outros sendo os trés anjos enviados por Deus para tentar trazer Lilith 135 Figura 26. Amuleto da Pérsia para ser usado em partos, contra os perigos de Lilith e contra 0 mau-olhado. O Salmo 67, poema em louvor a Deus, e os trés anjos, Sanvai, Sansanvai e Semangelof, so invocados. (Extraido de Hebrew Amulets, de T. Schrire, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1966. Usado com permissio.) Figura 27. Amuleto cabalistico repleto de nomes de anjos que so, ocasional- mente, repetidos. Deus € invocado através do Tetragrama; Shaddai também € invocado através do Nome de oito le- tras e do Nome de quatorze letras; so usados os quadrados magicos. O amule- to é, de modo geral, benéfico, invocando 0 Salmo 121 e os trés anjos como pro- tegdo contra Lilith para as mulheres em trabalho de parto. Suas origens so des- conhecidas. (Extrafdo de Hebrew Amu- lets, de T. Schrire, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1966. Usado com per- missao.) de volta, apés cla ter fugido de Adao. No que diz respeito a indivi- duagaio feminina, é importante notar que o poder de Lilith é idéntico, no sentido do impasse, as forcas de Jeova. O confronto entre Lilith e os trés anjos termina num eterno empate entre os poderes superior ¢ inferior, entre o masculino e o feminino. E como se Lilith, enquanto lado escuro de Deus, anima vingadora e chama da espada giratoria, retivesse boa parte do poder da antiga Deusa sobre o nascimen- to, a vida e a morte das criangas. Um confronto andlogo entre as forcas masculina e feminina, superior e inferior, ocorre no seguinte conto: Certa vez, o profeta Elias caminhava ao longo da estrada quando encontrou a perversa Lilith acompanhada por todo o seu bando. “Onde vais, imunda criatura’”’, perguntou ele, “tu e todo o teu bando imundo?” “Senhor”, ela respondeu, “estou a caminho da casa da Senhora X, que espera uma crianga. Vou mergulhé-la no sono da morte, pegar seu filho, sugar-lhe o sangue, secar-lhe a medula e lacerar-lhe a carne.” “Nao”, gritou o profeta. “A maldigao de Deus cai- r4 sobre ti, e serés detida e transformada numa pedra muda!” “Isso nao!”, implorou a bruxa. “Pelo amor de Deus, livra-me. dessa maldigo ¢ irei embora; e eu te prometo, pelo nome de Jeov4, Deus dos exércitos de Is- rael, desistir de meu intento contra essa mulher e sua crianga. Além disso, todas as vezes que, no futuro, os homens recitarem meus nomes, ou eu os vir escritos, tan- to eu como meu bando nao teremos o poder de fazer mal ou ferir. E sejam esses os meus nomes: 137 Figura 28. Neste amuleto do Marrocos, menciona-se o reino de Zamargad, de Lilith. O Salmo 91:11, que diz: “Ele a colo- cara sob os cuidados de Seus anjos”, e o nome magico de Deus, Shaddai, bem co- mo o Tetragrama, s40 invocados na quali- dade de um atento sentinela de seu usud- rio, protegendo-o contra a diminuigao da Lua. Observe, na parte inferior, as duas luas crescentes. As outras duas luas cres- centes se extraviaram. (Extrafdo de Hebrew Amulets, , de T. Schrire, Routledge & Ke- gan Paul, Londres, 1966. Usado com per- missao.) Figura 29. O verso da figura 28, A ins- crigéo, nas costas do amuleto, diz: “Em nome de Kuzer, um nome de quatorze le- tras, Yah, proteger4és o portador deste amuleto de Shiddim, dos espiritos, de Lilim e de qualquer coisa maligna Eternamente, Seld, para sempre, Amém.” (Extraido de Hebrew Amulets, de T. Schrire, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1966. Usado com permisséo,) Figura 30, Este amuleto persa tem a se- guinte inscrigdo: “Amém, Eternamente, Sel, para sempre. Abengoado seja Seu glorioso Nome Soberano para sempre, Amém. Assim seja”. O Salmo 121 € Provérbios 3:8, que diz: “Isto sera remédio para o teu umbigo”, sao in- vocados para a protec4o contra Lilith no parto. (Extrafdo de Hebrew Amulets, de T. Schrire, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1966. Usado com permissio.) Figura 31. Este amuleto persa invoca 0 Nome de Deus de quarenta ¢ duas le- tras, bem como os trés anjos, Sanvai, Sansanvai, Semangelof, para a protecao das mulheres em parto. (Extraido de Hebrew Amulets, de T. Schrire, Rou- tledge & Kegan Paul, Londres, 1966. Usado com permissao.) Figura 32. Utilizando 0 Monogramae 0 Trigrama, ao lado do Salmo 121, a ins- crigdo deste amuleto do Curdistao invo- ca a protegao de Deus contra Lilith na hora do parto. (Extraido de Hebrew Amulets, de T. Schrire, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1966. Usado com permissao.) Figura 33. As mulheres que nao tinham recursos para adquirir amuletos de Prata ou de metal costumavam utilizar como amuleto, o cfrculo magico, que era tragado nas paredes ou no piso do quarto da parturiente, Esses dois cfrcu- los contém as palavras: Adio, Eva, Lilith, a primeira Eva, Sanvai, Sansanvai e Semangelof, o Nome de quatorze letras, Salmo 91:11, Amém, Sel e o Nome de quarenta ¢ duas letras. Do lado de fora do circulo, esto os nomes dos qua~ tro rios do Paraiso. S40 usados tringulos, entrecortando-se, no circulo supe- rior. No cigculo inferior, h4 um tridngulo em cima de outro, Acreditava-se que, pela reducdo gradual do tamanho das palavras individuais num encanta- mento, o espfrito mau se desprenderia aos poucos de sua vitima, ¢ sua influén- cia seria reduzida 4 medida que as prdprias palavras fossem sendo diminufdas. (Extraido de Sepher Raziel, obra cabalistica do século XI, publicada em Ams. terda em 1701, Cortesia da Library of the Jewish Theological Seminary of America.) Lilith, Abitr, Abito, Amorfo, Khods, Ikpodo, Ayylo, Ptrota, Abnukta, Strine, Kle Ptuza, Titoi Pritsa.””!* Gaster assinala que cada um desses nomes de Lilith des- creve um aspecto diferente da qualidade demoniaca feminina. (Ver figuras 24-33.) Ikpodo e Ayylo significam véo veloz e ven- to de tempestade, e se referem as harpias da mitologia classica. Strine é uma alteragio de Strega, a strix grega para a coruja-das- torres; de seus nomes para bruxa raptora de criangas, Amorfo significa disforme e feia, enquanto Khods significa a alada, Ab- nukta, noturna, e Kle Ptuza significa a mulher que rouba crian- gas. De novo, vemos que Lilith nao pode ser banida, nem mes- mo por Deus, mas pode ser mantida a distancia através de um pleno e consciente conhecimento e entendimento da sua sombria natureza feminina. Percebe-se que a consciéncia tanto dos nomes dos trés anjos de Deus como dos muitos nomes de Lilith é necess4ria para pro- teger a mulher contra os poderes destrutivos de Lilith. Um anti- go manuscrito babilénico sugere as seguintes salvaguardas con- tra Lilith: coloque uma agulha perto da mecha de um candeeiro, ou coloque uma medida de trigo no quarto da parturiente a ser protegida contra Lilith.!° Esses utensflios de costura e medida lem- bram a observagao de Marie-Louise von Franz de que ‘‘... 0 mis- tério do parto esta basicamente associado as idéias de fiagio e tece- lagem, bem como as complexas atividades femininas que consistem em reunir elementos naturais numa determinada ordem”.!° Recontar os diversos nomes de Lilith, ou seja, vivencié-la conscientemente, em suas intimeras formas, parece fazer parte do processo de dar 4 luz o Eu feminino. 14. Gaster, The Holy and the Profane, p. 22. 15, Patai, The Hebrew Goddess, p. 229. 16. Von Franz, The Feminine in Fairy Tales, pp. 38-39. 141 Uma mulher gravida, as vésperas do parto, foi acometida por um intenso desejo sexual. Ela aproximou-se do marido, mas ele, com receio de machucar a crianca, nao teve relagdes com ela, A mulher sonhou que outra mulher, extremamente linda, de porte bem maior que 0 natural, estava fazendo amor com ela de um modo tao sensual que ela foi violentamente sacudida Por um intenso orgasmo. A mu- lher acordou e percebeu que as contragdes do orgasmo tinham se transformado nas primeiras dores do parto. De modo andlogo, uma colega me contou que, quando come- gou a escrever sobre ‘‘sua Deusa”, viu-se dominada por intenso de- sejo sexual e precisou deitar-se no soalho de seu escritério e mastur- bar-se antes de conseguir continuar a obra. Mais recentemente, ouvi historias semelhantes de mulheres escritoras que nao estao escreven- do nada a respeito da Deusa, mas simplesmente escrevendo, ou ex- pressando-se. LILITH E SHEKHINA (Deus 0) Rei dispensou Shekhina e pds no seu lu- gar a criada Lilith. Esta criada, Lilith, reinaré um dia sobre a Terra santa abaixo, como certa vez reinou She- Khina, mas 0 Senhor, abencoado seja, restituird um dia 4 Matrona o seu lugar e, nesse dia, quem regozijar4 como o Rei e a Matrona? — o Rei, porque voltou para ela € se despediu da criada, e Shekhina, porque estaré de novo unida ao Rei. Por isso esté escrito: “Regozijai muitissimo, 6 filha de Sido” etc. Observe ainda que esta escrito: “Isto ser4 para vés um estatuto perpétuo”’ (Lev. 16:29). Esta promessa é um decreto do Rei, firmado e se- lado (Zohar II 69a-b). 142 De acordo com a Cabala, tanto Lilith como Shekhina sfo as- pectos do Eu feminino. No reino da santidade, a décima Sephira,* ou a mais inferior, é Malkuth, que é idéntica a Shekhina, a Matrona Divina e esposa de Deus. Correspondentemente, a décima Sephira ou a mais inferior da impureza é Lilith. O Zohar diz que: ... Antes de Israel cair no cativeiro e durante o tempo em que Shekhina ainda estava com eles, Deus ordenou a Is- rael: “‘Nao descobrirés a nudez de tua mae” (Lev. 18:7). Mas os filhos de Israel desobedeceram e descobriram a nudez de Shekhina; por isso esta escrito: ““Por vossos pe- cados, vossa mae foi repudiada” (Is. 50:1), isto é, pelo pecado da incontinéncia Israel foi enviado para 0 cativei- ro, bem como Shekhina, e isto € a descoberta de Shekhi- na. Esta incontinéncia é Lilith, a mae da “multiddo mistu- rada” (Zohar I 27b). Neste trecho, esto retratados dois aspectos do Eu feminino: Shekhina, a amada de Deus, o lado feminino que nele habita, e Lilith, sua “‘descoberta’” ou “‘incontinéncia’”. Esta descoberta de Shekhina é interpretada como significando que os israelitas procura- ram outros deuses durante os primeiros anos biblicos. Eles adoraram idolos de Asherah e Astarte, queimaram incenso em lugares altos pa- ra o filho da Deusa, e para Baal, seu esposo (cf. II Reis 23:13), e as mulheres ofereceram libagdes ¢ bolos 4 Rainha dos Céus (Jer. 7:18), em busca de uma forma feminina do Eu. Tanto Lilith como Shekhina sao formas do Eu feminino essen- cialmente 6rfas de mae. Elas surgiram com 0 advento do patriarcado como a encarnagao dos aspectos negligenciados e rejeitados da Grande Deusa. Lilith é a parte do feminino que é vivida como a * Sephira: na Cabala, cada uma das dez emanag6es ou atributos de Deus. (N:T.) 143

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