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Institutos da Conferéncia UMA ABORDAGEM SOCIOLOGICA DA MAGISTRATURA JUDICIAL (*) pelo Juiz Dr. Flavio Pinto Ferreira SUMARIO | -CONSIDERAGGOES PRELIMINARES. 2—MODOS DE RECRUTAMENTO DOS JUIZES: ~ A)- Quem so us recrutados 1) — Coma sdo. recrutados; ©) —Onde sao. recrutados; D)—A quem visam os reerutados; E) — Mobilidade profissional ¢ social dos recrutados. 30 EXERCICIO DA PROFISSAO DE JUIZ: —~ A) —Condigies materiais e sociais do exercicio da judicatura; B) —Independéncia real dos juizes: C) —Ideologia profissional dos juizes; D) — Aperfeicoamento da formagio técnico-profissional ¢ cultural-humanistica dos juizes; E) —Especializagio dos juizes; F) —Representatividade organica e associativa dos juizes. 4—JUIZES DE CARREIRA E JUIZES POPULARES OU LEIGOS—0O PRO- BLEMA DO JORI. 5—O JUIZ E A LEI. 6—0 JUIZ E 0 ADVOGADO. 7—O JUIZ E O PUBLICO. \*) Comunicagio feita ao Institute da Conferéncia do Porto, em 14 de Junho de 1972. a4 FLAVIO PINTO FERRFIRA 1 = CONSIDERACOES PRELIMINARES Comvidedo para falar aqui, no Instituto de Conferéneia do Comelho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, sobre a Organizacin Judiciinin, entendi que depois das exposigdes neste local producidas © com mito brilho, pelos Drs. Artur San- los Silva. Francises Si Carneiro, Salgado Zenha e Corregedor ndio me era Roseira de Figueiredo sobre a mencionada matéria possivel ab pena de repetir o que antes ja fora dito por forma insuperdvel, tratar do mesmo assunto. Bete estava’praticamente esgotado: pelo menos nos seus aspectos principais. Restavaeme tentar incursées marginais sobre o assunto, fo- mda aspectos. secundirins, Certa cou erradamente. conclui que nao valia a pena envere- dar por tal caminho. Lembrou-me, entio, de que talvez tivesse algum_ interesse 0 Judiciaria a uma reducio substantiva, Timitundora a magistratura judicial e apreciando submeter o tema da Organizac esti. aie soba ponto de vista légico-formal ou meramente juridico-institucional mas. antes, sob uma dptica sociolégica. através da qual procurasse surpreender esse instrumento humano da realizagio de ordem juridiea — a magistratura judicial — ha sua dindmica social, no seu perfil humano, na sua pulsacio de corpo colectivo. FE, como desde ha muito a Sociologia — cigneia que tem por objecto 0 estude dos factos sociais —. ¢ muito particularmente i, resolvi, com uma certa audacia intelectual, diga-se. tentar uma aproximagio — por isso Ihe chamo abordagem — da magistratura judicial, trilhando um uminho se nao inexplorado pelo menos pouco ou nada percor- tido entre nés. Para o efeito. ‘o-me, como bordéo de caminheiro, da minha pritiea profissional ¢, bem assim, da experiéneia pessoal e. ainda, com certa frequéncia, do saber alheio e das investi- gagdes realizadas no estrangeiro nos dominios do conhecimento 4 Sociologia do Direito, me seduz e ate UMA ABORDAGEM SOCIOLOGICA DA MAGISTRATURA 85 de que ora me ocupo. Tal me salvou — se salvou — de certos embaragos, hesitagdes e dificuldades, resultantes de ser um ini- ciado e um antodidacta (ja com bastante indulgéneia) ne campo da Sociologia do Direito. Dir-me-do. com razio, que pequei por ambigio desmesurada. Seja. Embora reconhega que a tarefa antes caberia a uma equipa de investigadores, no namero dos quais os juristas deve- riam estar presentes, 0 certo é que nio me sinto contrito. Conceber e elaborar este trabalho foi para mim uma aliciante viagem intelectual de prospecgao, andlise e reflexdo, que se pretenderam orientadas por uma metodologia sociolégica, ao interior dum grupo social, onde a cada momento encont ecos da minha prépria voz e sinais dos meus proprios passos. ava E que se vim para a magistratura, inicialmente para a do Ministévio Péblico, por razdes meramente cireunstanciais que nao vém ao caso concretizar, mantenho-me nela por gosto, con- formagao psiquica ¢ plena indentificagdo subjectiva com a sua matriz ética. Todavia, creio que a identificagéo moral e o ajustamento pessoal a uma dada profissfo nao sao incompativeis com a luci- dez, a objectividade e, até, com o desassombro, quando se fala dessa profissao. Dentro das minhas possibilidades de expresséo procurei utilizar uma linguagem clara, rigorosa ¢ nitida, muito embora, em larga medida, tributaria da semantica socioldgica. N&o foi minha inteng&o, ao realizar este trabalho e dada a perspectiva analitica que escolhi, imprimir-lhe cunho polémico ou, por outro lado, enfatizar juizos de valor, positivos ou nega- tivos. As palavras que emprego sé querem dizer aquilo que efecti- vamente dizem: sem subterfagios, sem algapdes, sem segundos. ssentidos, Como gosto muitas vezes de dizer, prefiro sempre a estrada real aos atalhos invios e, como Cervantes, 4 pousada prefiro o caminho; 0 que vale dizer que ao quietismo, 4 seguranca e a comodidade do nao-fazer sempre preferi a aventura, o risco e a incomodidade do fazer, embora, por vezes, errando. 86 FLAVIO PINTO FERREIRA Os que me escutam, se de mim vierem a discordar, 0 que & natural e até dialecticamente desejdvel, bom seria que mani- festassem essa discordancia no momento e no lugar indicados, ou seja aqui mesmo € no coldquio que se seguira. Quem assim se apresenta-—de recta intengéo, coragio aberto © de espirito receptive ao didlogo — julga merecer leal- dade. f:, contudo, depositadas nas vossus maos as credenciais que possuo, tempo de entrar na exposigéo do tema que aqui me trouxe. 2— MODUS DE RECRUTAMENTO DOS JUIZES A) Quem so os reerutados io de saber quem sfo os recrutados para o exerci- cio da judicatura cifra-se em saber quais so as categorias sécio- -profissionais onde se opera o reerutamento dos juizes. ou, por outras palavras, qual 9 campo de recrutamento dos magistrados judiciais. Entre nés os juizes tém sido recrutados ou segundo um cri- jonal_ — recrutamento entre 03 tério_ exclusivista. e uniprofi delegados do Proc. da Repiblica — ou em conformidade com um critério ecléctico e multiprofissional — recrutamento entre delegados, advogados ¢ outros funcionirios concretamente espe- cificados. Pelo Estatuto Judicidrio aprovado pelo Decreto-Lei n.° 33 457 de 25/2/9441, que, por comodidade, chamaremos de Estatuto do Prof. Vaz Serra, por este ser 0 Ministro da Justica ao tempo, o qual consagrou, neste sector, e nas suas linhas gerais, o cri- tério vigente, o recrutamento fazia-se entre os delegados do Proc. da Rep., sendo obrigatoriamente chamados ao concurso os que constituiam os dois tercos superiores da lista de antiguidade de 1." classe com mais de 3 anos de bom e efectivo servigo. Admitia-se, também, o ingresso na magistratura judicial dos diplomados em Direito com informag&o universitéria de bom. com distingao, de idade nao superior a 45 anos e que tivessem, pelo menos, 10 anos de bom e efectivo servigo da profissaio de UMA ABORDAGEM SOCIOLOGICA DA MAGISTRATURA 87 secretirio do Sup. Trib. de Justiga, da Proc.-Geral da Repablica ou das Relagdes, secretario-geral, chefe de secretaria ou de sec- Gao, ou sete anos nas fungdes de advogado ou juiz municipal ou de delegado do Proc. da Repablica. Hoje, na vigéncia do Fstatuto Judicidrio aprovado pelo De- creto-Lei n." 44.278 de 14/4/962, a base sécio-profissional do recrutamento dos juizes restringiu-se, pois que, além de serem obrigatoriamente chamados ao concurso para juizes de direito os delegados do Proc. da Reptblica que constituam a metade superior da lista de antiguidade da 1.* classe (e nao os dois tercos superiores dessa lista, como anteriormente, 0 que sc com- preende sem esforco, dada a maior frequéncia de concursos, pelo que os delegados permanecem muito menos tempo na 1.* classe do que anteriormente), podem voluntariamente concorrer, € s6, os diplomados em Direito com informagao final universitaria de bom com distingdo, e desde que tenham o minimo de sete anos (como anteriormente) de bom e efectivo servigo na fungéo de delegado do Proc. da Republica, inspector da Policia Judi- cidria (nao esquecer que a quase totalidade dos Inspectores da Policia Judiciaria sAo escolhidos entre delegados do Proc. da Reptblica), advogado ou juiz municipal. Foram, assim, exclui- dos, os diplomados em Direito-chefes de secretaria e chefes de seegao (hoje escrivaes). As razées nao se descortinam com facilidade e nao constam do relatério do Decreto-Lei n.° 44 278 supracitado. Por outro lado, a cada vez maior variedade de casos sujeitos A apreciagdo jurisdicional resultante do processo tecnolégico e do desenvolvimento econémico justificava sociologicamente uma maior diversificacéo do campo de recrutamentos dos juizes e, consequentemente, o alargamento do ingresso na magistratura de outras categorias sécio-profissionais, tendo como denomina- dor comum a licenciatura em Direito. Assim, ocorrem-me as seguintes categorias: notario, conservador do Registo Civil e Predial (e niio sé os que desempenham o cargo de juizes municipais), funciondrios administrativos e corporativos dos quadros superiores, além de, claro esta, chefes de secretaria e escrivaes. 8 FLAVIO PINTO FERREIRA Resta dizer que, tal como o Estatuto Judicidrio de 1944, 0 Estatuto Judicidrio de 1962, em vigor, néo admite o ingresso de mulheres licenciadas em Direito na carreira judicial. Discrimi- nagio esta, como the chamou o Dr. Francisco $4 Carneiro — na sua intervengao parlamentar de 25 de Fevereiro ultimo aquando da discussie na generalidade da proposta de lei sobre organiza- (ao judicidria — infundada, injusta e anacrénica. Do ponto de vista sociolégico onde ora me coloco oferece- : respeito, dizer que tal inabilitagao com base exclu- sivamente no sexo esti em contradigaéo com o aumento cres- cente da taxa de feminizagao da populacéo estudantil universi- linia, incluindo, como é ébyio, a das nossas duas Faculdades de Direito. Tal taxa aumentou do ano escolar 1955/56 de 306 para 45% em 1969/70, Equivale a dizer que 45% dos estudantes universities portugueses no ano escolar de 69/70 era consti- tuido por mulheres; sendo que no ano escolar de 1968/69 a taxa de feminizacaéo do curso universitirie de Direito no nosso pais cra da ordem dos 20%. Acresce que dentro da carreira da magistratura estariam adequadas — diriamos naturalmente adequadas — As diplomadas em Direito as jurisdigdes exereidas no Ambito dos Tribunais Tutelares de Menores e dos Tribunais de Familia. sse-me, a B) Como sao recrutados Como deve fazer-se a investidura dos magistrados, isto & qual o processo de recrutamento dos juizes? Respondem-nos os art.” 379.° até 387." (inclusive) do Estatuto Judicidrie que 0 processo consiste num concurso abrangendo duas provas Uma, pritica, que se desdobra em dois pontos ritos; outra, tedrica, que engloba quatro interrogatérios sobre pontos de direito civil, direito processual civil, direito comercial e processo criminal. O concurso é prestado perante um jiri presidido pelo Presidente do Conselho Superior Judicidrio e de que fazem parte também os vogais efectivos desse Conselho e UMA ABORDAGEM SOCIOLOGICA DA MAGISTRATURA ay por quatro arguentes: sendo dois protessores catedraticos, um da Fac. de Direito de Coimbra e outro da de Lisboa. e dois juizes, todos numeados pelo Ministério da Justiqa, aqueles directamente © estes sob proposta do Conselho Superior Judiciirio. Mas cabe perguntar: sera este processo o cientificamente mais idéneo, o racionalmente mais adequado, o pedagogicamente mais seguro, o que em si oferece maiores garantias de acerto e de objectividade para o efeito em vista-~a escolha dos futuros magistrados judiciais? Debrugando-se «ex-professo» sobre o assunto o autor (ow autores) do Estatuto Judicidrio de 1944 deixou (ou deixaram) em termos inequivoco: no relatério do diploma legal que apro- vou aquele Estatuto —o ja citado Decreto-Lei n.° 33 547 — impresso € expresso o seu parecer, que inteiramente subscrevo: «Seria desejavel que se exigisse também, como se faz em nu- merosos paises, um tirocinio a quem quisesse ser juiz, no qual © candidato pudesse mostrar a aptidao necessiria para a judi- catura. Nao é um simples exame, por maior que seja o caracter pratico que se Ihe dé, que as qualidades necessérias a um hom julgador se podem plenamente manifestar. Deveriam, portanto, sujeitar-se os candidatos a um tirocinio junto dos tribunais, 0 qual, ao mesmo tempo que lhes daria a pratica que lhes falta, revelaria a existéncia no candidato do senso juridico indispensivel na interpretagéo e aplicacio das leis e dos demais requisitos a que deve satisf O tirocinio poderia organizar-se junto dos tribunais de ma- neira que o estagidrio trabalhase sob a orientagdo de outros juizes, e poderia até pensarse num tirocinio como juiz muni- cipal (...)» Paralelamente a esse tirocinio, afigura-se-me que devia ainda integrar 0 processo de recrutamento dos juizes a frequéncia, por um perfodo de tempo a determinar em estudo a organizar adrede, num centro de estudos judicidrios, 4 semelhanga do existente em Franga a funcionar em Bordéus, onde seriam ministrados — por um corpo docente constituido por professores de Direito, Juizes ¢ advogados e, outrossim, por socidlogos, psicélogos e médicos legistas — os conhecimentos de natureza teérico-pra- se} rs 90. FLAVIO PINTO FERREIRA tica tidos por necessdrios © convenientes para uma boa forma- (40 téenico-profissional dos futuros juizes. A ser assim o exame dos candidatos — exame a que se re- sume, no sistema vigente, 0 concurso para juiz de direito — de- \eria surgir na altura propria, ow seja, como termo final do esso de recrutamento: -— coroamento légico (e, entdo sim. pedagogica ¢ civntificamente ajustado) do sistema de apura- mento das aptidoes dos candidatos pa ereicio da judica- tura, que culminando o exame perante o jari passaria pelas fases intermédias do tirecinio junto dos tribunaix ¢ da frequén- cia mum curso de formagio intensiva no Centro (ou Tnstituto) de Estudos Judicidrios, verdadeira escola da Magistratura. Por sua vez. o exame final — tanto a provi escrita como a prova oral —deveria ter lugar nesse Centro de Estudos Judi- cidrios. © nao, como até agora, no ambiente algo solene e formal 6. por isso mesmo, constrangedor do Supremo Tribunal de Jus- Higa, mas antes, c sim, no seu meio proprio, funcionalmente preparado para tal: —o referido Centro de Estudos Judiciarios ; aspiragéo de hoje. realidade de amanha, estou certo, tendo na devida conta a inevitavel modernizagao cientifica e institucional da carreira judicial e tendo sempre presente o crescente estrei tamento ¢ entrelagamento interdisciplinar das chamadas Ciéneias Humanas: 0 Direito, a Antropologia, a Psicologia. a Sociologia, a Demografia. ete. proc 10 € C) Onde sao recrutados Qual a composigio social dos juizes togados ou de carreira? Quais as suas caracteristicas sociolégicas? Qual a origem social e regional das magistrados e, bem assim, a classe etaéria em que se inserem aquando do seu ingresso na carreira? Matéria de extraordinario interesse sociolégico a pedir um trabalho de pesquisa empirica e de andlise interpretativa a rea- lizar segundo o método de questiondrio tal como o efectuado UMA ABORDAGEM SOCIOLOGICA DA MAGISTRATURA a1 em 1968 por Guido Martinotti sobre as «Caracteristicas Sociais da Magistratura Haliana», sob coordenagio do Centro Nacional de Prevengio ¢ Defesa Social, com sede em Miléo. Os dados que possuimos so, como é dbvio, precarios, insigni- ficantes € avulsos e, quando nao provém de estatisticas oficiais (pouco desenvolvidas neste campo, quando nie pecam por omis- sio total). resultam da observacio empirica e¢ da experiéneia pessoal do expositor. apoiados numa recolha e articulagio de elementos extraidos do Boletim Oficial do Ministério da Justiga. Possuindo os magistrados. como formacéo escolar de base, um curso universitario —o de Ciéncias Juridieas — ou, se se quiser, uma licenciatura em Direito, a sua origem social teré necessariamente que reflectir, embora em segundo grau ou em grau reduzido, a origem social dos estudantes diplomados em Direito. Ora, as estatisti is disponiveis e os estudos efectuados sobre popula estudantil universitaria portuguesa — com relevo para o publicado pelo Prof. A. Sedas Nunes na revista «Anilis Social» n.* 22-23-24 — permitem tracar, com algum rigor ana- litico, o perfil sécio-cultural dos estudantes de Direito das duas Faculdades do Pais e no respeitante ao ano escolar 1963/64, que tera deste modo o valor de amostragem. Assim, uma das caracteristicas desse perfil é que os ¢ udan- tes de Direito sfo, na sua grande maioria, origindrios das cama- das sociais altas e médias, ou, segundo uma terminologia ja con- sagrada, oriundos do sector tercidrio no seu maior nimero. Neles predominam os originarios da «provinciay (66% ) sobre os naturais dos distritos do Porto e Lisboa (31%) ; sendo constituidos, em cerca de um terco, por filhos de individuos com instrugdo superior, sendo, finalmente, 0 ramo de ensino com mais alta percentagem de estudantes de Coimbra. Sera altura de explicitar que, numa perspectiva interna- cional, a selectividade sécio-econémica do nosso recruta- mento universitario 6 muito rigorosa. Basta dizer que, no referido ano escolar de 1963/64, a percentagem de filhos de operdrios e camponeses, ou seja, 92 FLAVIO PINTO FERREIRA das classes abalhadoras, entre o= estudantes universitarios era no nosso pais de -1,2% : -endo que, no entanto, as ditas classes trabalhadoras con-tituiam, em: L960, 71 c da popu- traduz num coeficiente Jago activa: masculina, o que de 0,057. Partindo das releréncias genéricas acima apontadas © tendo como guia mais a observagao pessoal do que indicadores preexis- lentes, avangarei a assergdo de que a proveniéncia social dos encontra a sua maior expressio Juizes portugueses nos nossos d. quantitativa na burguesia média; com grupos minoritirios. ra- dicando quer na pequena quer na alta burguesia. Yomando agora como base concreta de indagacio empirica © total de juizes de 1." instancia existente em 1 de Janeiro de 1971, abrangendo, pois, os magistrados judiciais de 1", 2. ¢ 3." ses, informared que, no conjunto de 382 juizes em actividade luindo os que desempenhavam cargos e Lunges em comissao (in de. servigo, compreendendo mesmo os que no exerciam nessa data a judicatura), cerca de dois tergos se tinham licenciado na Faculdade de Direito de Coimbra, pertencendo na sua esmaga- dora maioria. no que respeita & idade com que ingressaram na magistratura judicial, & classe elaria dos 30 aos 35 anos: atin- gindo -— os que atingem — a 2." inst&ncia entre os 51 e os 56 anos de idade, isto em média. Direi ainda que entre esses 382 juizes se encontra um signi- ficativo (do ponto de vista sociolégico, claro esti) nimero de exsseminaristas, cuja percentagem, contudo, nao me foi possivel detectar, mesmo com erro de aproximacdo. 2496 dos jnizes de 1." instineia sio originarios de Lisboa e Porto (compreendendo os concelhos limitrofes); 4% das Pro- vincias Ultramarinas — sendo sete naturais do Estado da {ndia -—e 2.85% das has Adjacentes. Daqui se infere que — conju- gando estes dados com as anotagées acima alinhadas quanto & igem social dos magistrados —- cerca de 70% dos juizes é proveniente da burguesia da provincia. De Coimbra e concelhos préximos séo oriundos 49 juizes, tui uma relativamente elevada percentagem : — 13%. r o que cons UMA ABORDAGEM SOCIOLOGICA DA MAGISTRATURA 93 A explicagao esta decerto na implantacao naquela cidade de uma Faculdade de Direito: — precisamente a Faculdade que. como j4 referi, diplomou cerea de dois tergos dos magistrados judi- ciais. De Aveiro ¢ regido adjacente so origindrios 20 juizes, ¢ igual numero fornece Viseu ¢ concelhos proximos. Abstraindo agora das zonas regionais urbanizadas de Lisboa, Porto e Coimbra (as duas primeiras também de grande densi- dade industrial). av dreas geograficas com mais forte represen- tatividade no tocante 2 origem regional dos juizes sdo as do Minho, Trés-os-Montes ¢ as Beiras, ¢ as de mais fraca presencia s4oo Alentejo © o Algarve, este dltime com a mais baix contagem — 189. per Resta dizer — como a investigacao Passo a ilustrar a importancia dos referenciados influen- tes ou condicionantes, motivados pela origem social dos jui- zes, no comportamento profissional destes, com a citacdo do resultado de uma andlise sociolégica de decisdes judiciais levada a efeito em ranga. em 1966. Foi possivel através dessa andlise determinar que o juiz, no indeferimento ou rejeigéo dos pedidos de divércio com funda- a FLAVIO PINTO FERREIRA mento em injirias, invocando a insuficiéneia da» injarias ale- gadas, encontra um meio de traduzir a sua hostilidade de prin- cipio 4 instituigao do divéreio. Tal taxa de indeferimento limi- nar era de 3.7% em Paris, passando a 9,59 em Rennes, atin- pindy os 35% cm Morlaix. em pleno coragao da Bretanha tradi- cionalista e catélica. D) A quem visam os recrutados Quais as razdes da escolha da profissdo de juiz? Quais os factores determinantes, ou tGo-s6 influentes. na opgdo do licenciado em Direito pela earteira da magistratura judicial? Sendo conhecimeno generalizado nos meine judiciais por tugueses de que a quase totalidade dos jufzes fo recrutado~ nos delegados do Procurador da Repiblica -- nestes Gltimos quinze anos somente dois advogados concorreram a magistra- A pergunta acima formulada zendo tura judicial e nela ingressaram equivale estoutra: — Quais as razées globais (isto 6. fa tabua rasa das variantes ¢ particularidades individuais) que levaram ou motivaram os licenciados em Direito a enveredar pela carreira da magistratura do Ministério Publico e. depois. numa sequéncia profissional estatutariamente obrigatéria e. logi- camente evidente, pela carreira da magistratura judicial Aqui. a dificuldade da resposta sobe de tom, derivada da manifesta caréneia de dados informativos devidamente sistema- tizados e obedecendo a um dado critério metodolégico. Todavia, a minha posicao de juiz permitiu-me, ao longo dos anos em que venho exercendo a fungdo e através das minhas vi- véncias profissionais e contactos pessoais com colegas, obter e carrear um acervo de informagées ¢ referéncias sobre as ra- zies optativas da profissio de juiz que enfeixei em trés grandes grupos : 1.° — Necessidade econdmica de conferir 4 licenciatura em Direito obtida. uma dimensio util imediata ou quase imediata. candidatando-se para o efeito — apés um curto UMA ABORDAGEM SOCIOLOGICA DA MAGISTRATURA 95 estigio (sei — ao cargo de delegado do Procurador da Republica mediante sujeigéo prévia ao respective con- curso. Em resumo: — necessidade, de maior ou menor pre- méncia, da obtencdo de um cargo remunerado propiciador de uma certa estabilidade econémica. 2.°— A sedugdo psicolégiva pelo prestigio piblico (ja historicamente sedimentado) de que tem gozado a magistra- tura judicial ¢ 0 concomitante descjo de beneficiar do corr pondente «status» social, tudo decorrente de uma concepgao elitista ainda muito partilhada pelos detentores de cursos universitarios. 3.° — A pressfo familiar, na base da qual esti, néo ra- ras vezes, a aspiracao de ver continuada wma tradigao fa- miliar (nfo necessariamente personifieada por juizes, mas sempre por juristas), 0 que gera uma certa hereditariedade <écio-profissional. E) Mobilidade profissional ¢ social dos recrutados A mobilidade profissional dos juizes pode processar-se em duas direcgdes: — uma horizontal, outra ascensional. A horizontal traduz-se em nomeagées e¢ transferéncias sem acarretarem mudan¢a de categoria funcional. A mobilidade ascensional define-se sempre por uma promo- Ao, o que implica a passagem de uma dada categoria funcional 4 imediatamente superior. Com a criagdo de novas comareas ¢ de novos juizos dentro de certas comarcas; a estruturagio territorial das circunserigées judiciais em efrculos judiciais e sucessivo aumento do nimero destes; 0 aumento dos quadros de juizes desembargadores das 3 Relagdes do Pais; a nomeagio de magistrados além dos qua- dros, designadamente de ccrregedores-auxiliares, a magistra- tura judicial tem conhecido nestes tiltimos vinte anos, com parti- cular relevo para o decénio 1962/972, um movimento interno assaz acentuado que a tem dinamizado, tendo como consequéncia mais not6ria o abaixamento etario do ingresso na 2.* instAncia — hoje a situar-se entre os 51 e os 56 anos de idade —. 0 que, 96 FLAVIO PINTO FERREIRA de-algum modo. significa © representa uma revitalizagdo animicn te iateleetual dos -quadros de juize~ desembargadores das Rela- mais permedveis tis inova- cies e que se vio mo-trande cada ve ves de-uma socivdade em vias de desenvolvimento, em que pere 6 incuravel vezo passadista de uns tantos. ‘Lambe, como efeito directo do aumento dos quadros de jui- Ancin. a permanéncia dos magistrados nas dife ves de 1. ins vente classes em que aquela -¢ desdobra tem diminuido tempo- halmente, mereé de uma maior frequéncia de promocbes: que. para além de owtras consequéneias. tem a vantagem — To plano joligicw em que me venho colocanda — de impedir uma rie vida estvatificagio interno-profissional ¢, assim, evitar, ou em Targa medida alenuar. 0» inconvenientes daquela estratificacao- resultantes tais como: ~~ exclerose hurocratica 5 falta de estimu- Jos cumprimento rotincire das obrigagées do cargos identifi- eagao estitica com a categoria funcional em que se esta inserido. O tempo médio de permanéneia nas diferentes classes da 1 ins: “04 Lincia & presentemente o seguinte : 6 a7 anos na 32 classe: 4a 5 anos na 2." classe e 10 a 12 anos na 1." Og indicadores estatisticos que a seguir enuneiarei ajudam, por forma decisiva. a compreender » amplitude quantitativa da mmohilidade profissional dos juizes no nosso pais nos ltimos vinte anos. Assim, enquante em 1952 0 némero de juizes — compreen- dendo tanto ox dos tribunais comuns como os dos tribunais espe- ciais © abrangendo aqueles os tribunais de 1." instancia. as Re- lagdes de Lishoa, Porto. Coimbra e 0 Supremo Tribunal de Jus- tiga — era de 225, em 1962 era ja de 298, passando para 33] em 1966, para, em 1970. atingir o nimero de 422. Quer dizer, entre 1952 ¢ 1970 0 numero total de juizes au- mentou de 197 unidades ¢, em breve. deve rondar 0 dobro. Sera talvez curioso saber que em Franga em 1966 os juizes eram 5.000. em Ttilia 8000 e na Alemanha Ocidental 16 000. Sendo socialmente a magistratura judicial uma classe forte- mente estratificada, isto & uma classe em que os seus membros Aepois de nela ingressarem raramente a abandonavam, mudando UMA ABORDAGEM SOCIOLOGICA DA MAGISTRATURA de profissdo. nos iiltimos anos trocaram a magistratura pela advocacia ¢ por empregos nos quadros administrativos e directi- vos de empresas privadas 23 juizes, em busca, suguramente, de melhores condigdvs materiais de remuneracdo e trabalho. 3— 0 EXERCICIO DA PROFISSAO DE JUIZ A) Condigées materiais e sociais do evercicio da judicatura As condigdes materiais do exereicio da judicatura revestem-se de uma triplice fisionomia. 1° — Exclusividade de funcies, visto 0 art. 133." do Esta- tuto Judicidrio Thes vedar, quando na efectividade de servico, 0 exereicio das profisses de comerciante, industrial ou advogado (parece, contudo, que pode ser agricultor; permissio tacita esta que, ao que creio, tem que ver com a situacio em que se encon- tram muitos magistrados — alias, desde recuados tempos que tal sucede — de proprietirios de prédios rurais quase sempre adqui- didos por via hereditaria). Por outro lado, é-lhes também proi- hido desempenhar quaisquer funcdes nos corpos administrativos. Este confinamento % fungao judicial é imposto por se enten- der que a independéncia da magistratura 0 exige, sendo, assim, requisito desta. 2."°— Instalagées onde 6 exercida a judicatura e respectivo equipamento Se hoje é possivel dizer que de uma maneira geral esta bem instalada —o que se deve A politica de construgéo escalonada de palacios de justica, iniciada com o Prof. Cavaleiro Ferreira no Ministério da Justia — nfo 6 menos exacto que a Justiga continua subequipada. E certo que nalgumas comareas de provincia os edificios dos tribunais séo arquivelhos, acanhados, indspitos, acusando uma triste decrepitude. 7 98, FLAVIO PINTO FERREIRA © seu ndmero, no entanto, tem diminuido notoriamente nes- tes ultimos anos. Onde, porém, a situacio de peniria no se modi inexistentes, ou muito ténnes, os melhoramentos reais, é no que respeita ao equipiamento do- tribunais. E. ao falar em equipa- mento, nao tenho em vista o mobilidrie mas. autes e sim. o ape hamento téenico-funcional dos tribunais, As suas bibliotecas ‘ou, sendo tre slo irrisérias, quase todas desactualizadas, sem ficheiros de ju- risprudéneia ou catélogos de publicagdes e-pecializadas, pobres nao s6em revistas de doutrina © jurisprudéncia como até em le- pislacio devidamente seriada e onde as obras de literatura ju- ridiea estrangeira primam pela auséneia absoluta. Por outro lado, sio rarissimos os tribunais dotados de foto- copiadores, euja utilidade & Sbvia © cujo custo, além de mAdico, reverteria, a curto prazo, para o eririo piblico, por economizar tempo. dispensar uns tantos funciondrios, outras tantas méqui- c nas de escrever, ¢ reduzir os encargos financeiros das Nao & palpavel até ao observador mais inadvertido que os juizes néo vestem j4 hoje por um padrao uniforme, tido simul- taneamente por sébrio e digno, ao contrario do que sucedia outrora? E que o influxo, lento mas irreversivel, dos novos padrées estéticos e das modernas concepgées de gosto numa sociedade em transformac¢ao revelou 4 evidéncia que a variedade e a fantasia vestimentares dos juizes — sobretudo dos mais novos — nao sao incompativeis com a austeridade tradicional da beca e que nem a virtude nem a dignidade se aferem pelo comprimento do cabelo, a racha nos casacos, ou pelo afiambrado dos sapatos ou das camisas. we FLAVIO PINTO FERREIRA B) Independencia real dos juizes A definigao normativa da independéncia da magistratura judicial acha-se contida no art’ 111. do Fstatuto Judicidrio que caracteriza esta como consistindo no facto deo magistrado exer- fio a ordens ou cor a funcio de julgar segundo a lei, sem sujei¢ salve o dever de acatamento dos tribunais inferiores instrugies om relacio as decisies dos tibunais superiores, proferidas por via de recurso. Tal definigio normativa da independéncia judicial assenta, pois, em dois pilares conceptuais ~— Obediéneia estrita a dei. —- Livre conseiéneia deciséria. » formal e legalista Mas, logo se deiva ver que esta concep: da independéncia do poder judicial & demasiado restrita, pois apenas cobre —bem come a irresponsabilidade dos juizes (corolario © garantia dessa independéncia) — a actividade estri- tamente judiciiria do magistrado judicial encarado tao-somente como julgador, ¢ enquanto julgador. Vhos aponta ea historia das instituicgdes Como a experiéne judicidrias nos mais diversos paises do mundo ensina, a verd deira pedra de toque da independéncia do poder judicial ha que Ja no grau, qualidade, extensio, natureza da autonomia que esse poder apresents: — ao nivel dos textos legais e da «pra- xis» judicidria —em relagéio aos demais poderes do Estado, mormente do poder executivo, buse: Pois, como hem se recouhece na seguinte passagem do rela- trio do Decreto n.” 11751 de 23 de Junho de 1926, ja nesta sala citada pelo Dr. Francisco $a Carneiro: «Independéneia do poder judicial e entrega ao poder execu- tivo da faculdade de nomear e colocar nos cargos da Justiga os magistrados judiciais sio expresses antagénicas.» Ora tal faculdade de nomeacgdo governamental de magis- trados judi iais para certos cargos da justiga é um facto verifi- cavel e comprovado e, como tal, com expresso sociolégica. Exerce-se por via directa e por intervenc&o indirecta. UMA ABORDAGEM SOCIOLOGICA DA MAGISTRATURA 103 Directamente, pelo preenchimento de metade dos cargos existentes no Sup. Tribunal da Justiga, e pela nomeagdo em comisses de servico dos presidentes dos plendrios crimina dos juizes-corregedores. Indirectamente, em relacdo a todos ox demais juizes através do Conselho Superior Judicitrio cujos membros séo todos de nomeacdo governamental. Por uma questio de abreviamento discursivo e para nao correr 0 risco de repetir o que aqui j4 foi dito em precedentes exposigbes, passo a sintetizar as condigdes objectivas tidas por necessdrias para garantirem tor bilitam, a independéncia da magistratura judicial. camente, na medida que a pos Assim, a sabe: ]2— Inclusio © imperatividade do principio electivo na es- colha dos membros do Conselho Superior Judi Alargamento. da composigio do Conselho Superior Judicidrio por forma a compreender no seu seio repre- sentantes da Ordem dos Advogados ¢ de juizes da 1* instancia ; *_Ampliacio das fungées do Conselho Superior Judi- cidrio, que, de meramente administrativo-diseiplina- res, passavam também a ser sociais ¢ culturais; * _ Eliminago radical das comissées de servigo estranhas 4 funcao judicial, e a nomeagiio de todos os juizes do Supremo Tribunal de Justiga, e indicagio dos correge- dores, pelo Conselho Superior Judicidrio, a funcionar este nos moldes anteriormente definidos; trios —Impedimento dos juizes poderem exercer lugares do Ministério Pablico, a nao ser por um periodo de tempo de duragio severainente limitada e n&o prorrogavel ; 6.* — Supressao da classificag&o extraordinaria, grande res- ponsavel pelo carreirismo judieidrio, podendo carac- terizar sociologicamente este como uma corrente ideo- ldgico-profissional que impele a hipertrofiar-se a car- reira e as aspiragdes promocionais com a decorrente 104 FLAVIO PINTO FERREIRA secundarizagao subjectiva dos demais aspectos ineren- tes ao exercicio da judicatura ; —Redugio das notas de servigo de classificag&o ordi- naria, que de sete deveriam passar para duas, no mé- ximo trés; 8" —- Melhoria das remunera periddien daquelas em fungio do agravamento do cus- 6es dos juizes e reajustamento to de vida, @ instauragio do 13." m 9." — Instanragio do principio da colegialidade em todos os tribunais de jurisdigao criminal. A verificagao cumulativa das explicitadas condiges que po- 1s por possuirem, ou poderem pos- factica, embora se me demos apelidar de socioligi suir, configuragio material e naturezd antolhem necessirias para garantirem teoricamente a indepen- déncia dos magistrados judiciais, ndo é bastante ou suficiente para, na pratica, assegurarem essa independéncia. Isto é: — A independéneia real ¢ efectira da magistratura podera nfo exis tir, embora se mostrem reunidas todas aquelas condigdes que possibilitam a independéneia formal da mesma. E que essa independéneia real — a que mais importa, como bem se compreende ~~ & de natureza ontolgiea, de substancia animica, de raiz psicoldgica. Por isso mesmo é que Casamayor afirma que i ‘o esti. na alma de cada um dos juizes. Eu diria: — esta, ou nao esta, no caracter de cada juiz. E essa independéneia de cardcter a virtude cardeal de um independéncia esta, ow 1 juin. De nada vale a lei conferir e assegurar a independéncia do magistrado judicial se este ndo a merecer, isto 6, se nao tiver voeagio para a fruir e para verticalmente a evidenciar. Se © juiz nao for medularmente independente — cuja diag- nose nos é dada pela coragem moral, firmeza de 4nimo, rectiddo de caracter, lucidez critica e espirito de isengio — de nada lhe em que é posto 4 prova, o arrimo da lei e eventual desafogo econdmico. Assim sendo, estou com o juiz Bernard Connen quando, no vigésimo-primeiro Congresso da Unido Federal dos Magistrados vale, nos momentos eruciai UMA ABORDAGEM SOCIOLOGICA DA MAGISTRATURA 105, Franceses, realizada em 1966 em Saint-Malo, afirmou que: «a melhor garantia de independéncia devemos encontra-la em nés mesmos>. Igualmente no posso deixar de dar razio ao Prof. Casta- nheira Neves quando num notavel texto denominado «O papel do Jurista no nosso Tempo», publicado no vol. XLIV do Boletim da Fac. de Direito de Coimbra, em dada altura escreve, aludindo & independéncia judicial que «esta independéneia 6 em boa parte uma condigaéo sociolégica, fungio decerto das condigées que efectivamente se criem para a sua possibilidade. Mas ela sera sempre também, em nio menor medida, o resul- tado de uma vocacao. A funcio judicial nao sera munca independente, se 0 nao quiser responsavelmente ser, ¢ dificilmente deixara de sé-lo — até porque potencia a organizagdo das condigdes favordveis — se quiser assumir-se como tal». Sera esta mancira de abordar a independéncia judicial um meio de mitificar a magistratura ou, antes, um proceso, talvez revulsivo, para além da sua aparéncia idealista, de desvelar um possivel mito? Qual? O mito consistente em considerar a inde- pendéncia do juiz como fundamentalmente exégena quando ela é primacialmente enddgena. C) Ideologia profissional dos juizes A ideologia profissioual dos juizes pode ser tomada em duas acepgées. Uma consistiré no conjunto de ideias especificamente profis- sionais concernentes 4 organizacio e integragio, inclusivamente por via associativa, dos magistrados judiciais como grupo colec- tivo na sociedade global de que fazem parte e visando a deter- minagao da sua posigao social; avaliada pelo sentido direccional e teor concreto dos seus direitos e deveres no interior da socie- dade global. Para aqueles dos presentes menos familiarizados com o voca- bulario sociolégico esclarecerei que esta expresséo «sociedade global», forjada pelo grande sociélogo, Georges Gurvitch, designa 10 FLAVIO PINTO FERREIRA correntemente um meio sécio-cultural de grande envergadura no mundo moderno (um macrocosmo de grupos), que constitui um todo coerente © estruturado que engloba as formas particu: lares de sociedade © os diversos tipos de grupos sociais. Assim. as nagdes modernas sio sociedades globais. E-o também, embora com outra dimensio, esta cidade do Porto; encarada como aglo- merado urbano e¢ meio social diferenciado. Explorande a acepgio acima definida de ideologia pro- fissional, Ezio Moriondo publicou em 1967 um livro intitulado cl Mdeologia della Magistratura Nalianay, de que tenho conheci- mento indirecto através de recensées, acompanhadas de largos extractos, efectuadas em diversas revistas de sociologia. Claro esta que, entre nos. nao esiste um trabalho de pesquisa © analise equivalente ao de Moriondo, Nao existe mesmo, € mais genericamente, qualquer trabalho escrito dedicado & Sociologia do Direito, situande esta dentro dos parametros do ordenamento sécio-juridico portugues, A dinica atitude grupal que conhego por parte da magistratura judicial veiculadora de um dado conjunto de ideias especifica- mente profissionais frente ae meio social ¢ em que o equaciona- snta por forma correlata, isto 6, em miitua formalizada numa exposigio dirigida em Fevereiro de 1970 ao Senhor Ministro mento dos deveres se apre: sLigdo com os direitos, encontra da Justiga. ¢ & qual alids j& aludi, subscrita por quase todos os juizes de direito © delegados do Procurador da Repibliea da comarca do Porto e que. por extensio, obteve o apoio ulterior istrados judiciais e do Ministério Piblico dos circulos de Aveiro. Braga. Faro, Lamego, Guimaraes, Portalegre e Viana do Castelo. dos magi ‘Tal exposigo tinha por objecto a situaglo econémica da magistratura, e a sua efiedcia do ponto de vista pragmatico pode aferir-se pela concessdo, em meados do ano findo, do subsidio de renda de easa — um dos pontos focados nessa exposigo — aos magistrados de Lisboa. Porto e Coimbra o deixaria de ter tido alto interesse sociolégico um estudo tendente, na altura propria, a indagar qual a motivagao real que levou os magistrados a subsereverem ou a nao subscreverem a referida exposi¢ao. es UMA ABORDAGEM SOCIOLOGICA DA MAGISTRATURA 107 Através desse estudo poderiamos saber algo sobre a coesio interna da magistratura portuguesa como grupo social e 0 tipo. grau e natureza da jariedade entre os seus componentes. A outra e segunda acepgdo em que poderia ser considerada a ideologia profissional de juiz definir-se-A como sendo o con- junto de valores éticos ¢ sdcio-culturais, subjacentes as decisdes judiciais, que condicionam os juizes quando estes tomam posigio face a institutos de direito civil de grande proj infracgdes criminais particularmente relevantes. Uma pesquisa orientada segundo 0 método sociolégieo deno- minado de «andlise de contetidoy e incidindo sobre a dete: e » pitblica © a dos valores éticos e séciv-culturais da jurisprudéncia permitira determinar todo um sistema geral e complexo de valores e ideias que consubstanciam a ideologia dos juizes na acepgao acima de- finida e donde, seguramente, resultaria a variedade das opini atitudes, valores e mundividéncias m ganizad 08, e sistema inseridos ¢ or ¢, consequentemente, as diferenciagdes ideoldgicas que as decisdes judiciais assim analisadas ndo deixariam de acusar. Vou dar alguns exemplos demonstrativos de que a ideologia profissional dos juizes, tomada na acepgo acima referida, nao & uma bizantinice dos socidlogos. Comecemos pelo estrangeiro. Num estudo realizado em 1959 por Shoham, em Israel, em que analisou mais de 1000 easos julgados por oito juizes de 1." instancia das cidades de Jerusalém, Tel-Aviv e Haifa, limitando a anilise a delitos contra a propriedade e a delitos contra a pessoa, o autor observou diferengas consideraveis no tocante a severidade das condenagdes proferidas. Desses oito juizes sé trés proferiram sentengas intermédias. e todos os outros varia- vam segundo 0 tipo de delito. Um, que designou por juiz N, geralmente o mais severo, mos- trou-se o mais indulgente nos delitos contra as pessoas. Em contrapartida o juiz que identificou com a inicial D era o mais severo com este tipo de delitos ¢ o mais indulgente com os delitos contra a propriedade. Em Inglaterra, trés sociélogos com formagio criminalistica estudaram as sentencas proferidas com respeito a 400 rapazes de 108 FLAVIO PINTO FERREIRA idades compreendidas entre os 14-¢ 0s 17 anos, declarados culpa- dos de furto por oito tribunais de menores. em 1951. Tratava-se de procurar explicar as diferengas acusadas nas Orias desses tribunais. sentengas conden A andlise mostrou que a proporgdo de menores submetidos ao iberdade vigiada cra de 18% a 66% e que a propor- regime Gio dos que nao foram punidos ia de 18% a 480. As difer ndenatérias prendem-se com as diferentes pedes ico-sociais dos juizes sobre a gravidade dos delitos cone de furto cometidos pelos menores, Revertendo ao nosso panorama judicidrio, creio que t importincia atribuida a certos valores ético-sociais, tais como: © respeito pelas liberdades fundamentais do cidadao garanti- * patente das pela Constituigios a preservacgio da eminente dignidade da pessoa humana: o resguardo eficax do direito de defesa que assiste aos inculpados. subjacentes no ja e¢lebre Acérdao do Sup. Trib. de Justign de 30 de Junho de 1971, relatado pelo Conse- theire Vera Jardim, que trata, como & do conhecimento de todos os presentes, da questio da obrigatoriedade da assisténcia de advogado ow defensor oficioso ao interrogatério do arguide. Por sua vez, ao doutrinar-se no Acérdio do Sup. Trib. de Justiga de 23 de Junho de 1970, relatado pelo Cons. Rui Guima- rdes, publicado no Boletim do M. da Justiga n.° 198, a fls 145, e que revogou um Aedrdio da Relagio de Coimbra, de que a ofensa a honestidade sexual da mulher casada, feita por seu marido, é das mais graves injiirias, nao havendo circunstancias —mormente relativas & condigio social, grau de educagao ¢ a sensibilidade moral dos cénjuges — que influam na gravidade das ofensas por forma a torni-las menos relevantes ou irrele- vantes como fundamento da separacao litigiosa de pessoas e bens, é evidente a natureza dos valores ¢tico-sociais a que nessa decisio judicial se dé guarida. protecgdo e implicita exaltagao. Tais valores s4o veiculados por duas ordens de ideias nodais, a sabe 1.*— O dever do respeito moral reciproco por parte dos cén- juges seja qual for o estrato social a que pertengam; UMA ABORDAGEM SOCIOLOGICA DA MAGISTRATURA 109 2." — A igualizacdo abstracta de todos os matriménios, isto é, sem dependéncia do seu nivel social, econdmico, edu- cacional e moral perante a gravidade objectiva de cer- tas ofensas & honestidade sexual das mulheres casadas por parte dos maridos. D) Aperfeigamento da formagéo técnico-profissional e cultural chumanistica dos juizes Uma vez ingressado na magistratura judicial, 0 candidato a juiz aprovado no respective concurso passara a contar exclusiva: mente consigo mesmo no que respeita ao seu aperfeigoamento e actualizagao profissionais. Como Minerva que nasceu ja armada da cabeca de Jipiter, o magistrado judicial sai do concurso habilitado, para todo 0 sempre, para enfrentar as diversas situagées que como julgador se Ihe hdo-de deparar ao longo da rreira. Bastarfio para o magistrado se adaptar, psicoldgica e teenica- mente, ¢ para acompanhar, com proveito ¢ efiedcia profissionais, 0 fluxo incessante das inovacdes e reformas legislativas que a evo- lugdo do novo sistema juridico determina — evolugio esta ditada por sua vez, por uma sociedade em franco crescimento — a capa- cidade de estudo, o lastro de conhecimentos acumulado ao longo dos anos, o treino profissional, 0 adestramento psicomental a fungao judicial? Chegaré para o apontado efeito a leitura ruminativa, mas passiva, atenta, mas sedentdria, comparativa e apoiada numa urdidura de anotagdes e comentérios, prprios e alheios, mas con- tingencial e assistematica, dos cédigos e mais textos legais? N&o assistimos nés & entrada em vigor em 1 de junho de 1967 de um diploma com a transcendéncia e com a magnitude, que iniludivelmente revestem o novo Cédigo Civil sem que a magistratura judicial, colectivamente, 0 estudasse e discutisse em reunides previamente convocadas para o efeito e a organizar pelos seus érgaos responsdveis? Por paradoxal que parega tal sucedeu, munto embora o in- teresse no estudo e discusséo do novo Cédigo Civil nao tivesse 110 FLAVIO PINTO FERREIRA escapado sequer a certos jornais, por se terem dado conta do seu aleance sociolégieo mesmo para 0 comum dos portugu dado nele se conter a disciplina legal de tantos institutes que = prendem, ¢ nela interferem, com a vida quotidiana de todos nds. Basta lembrar ao acaso da meméria: 0 casamento, 0 divércio, a perfilhagdo, a succssao hereditiria, a propricdade, 0 contratos de compra e venda e os de arrendamento, Dizia eu, nem certos jornais deivaram de divulgar e comen- taro contedde normative desse «corpus» legislative. Por con- Iraste creio ter mostrado a necessidade de os juizes debaterem bm comum as questes © os problemas que o evercicio da sua fun- do de administrar justica levanta em ordem a encontrarem para eles. nfo digo as solugdes juridicas mais adequadas (estas terao de ser achadas na casuistica), mas ox crilérios de interpretagao, fo mais ajustadas as circunstincias espiacio- (legais e extralegais). do orientag stemporais © is condicionantes ger: joe actuag aqui © agora nacionais. F que, como o demonstra a pesquisa socivligica neste domi- nios, a funcionalidade da armagao juridico-institucional do sis- tema sdcio-econdmico geral de uma dada colectividade nacional depende, em hoa parte, da maior ou menor ductilidade com a qual o aparelho instrumental da Justiga (os tribunais e seus com- rel, ponentes humanos) se ajusta as exigéncias dindmicas d, 1. ¢ nao ne gSes econdimieas e sociais do sistema ge’ mente da prontidao na aplicagade pelos tribunais da disciplina normativa aos easos coneretos da vida real. Um passo sério, ¢ talvez decisive, naquilo que designei por aperfeigoumento da formagio técnico-profissional e cultural-hu- manistica dos juizes, isto 6 na actualizagio formativa e infor- mativa com objectivos estritamente técnico-profissionais e no ati- namento cultural dos magistrados judiciais, seria a criagio da Escola ou Centro de Estudos Judicidrios —de que ja falei, alias — a funcionar, por razées de descentralizagaio e ambiéncia, num centro urbano de provincia; reunindo Coimbra peculiares condigdes para o efeito: — excelente situagao geografica, a par da existéncia de tribunais de 1." e 2.* instancias e de uma Facul- dade de Direito, 0 que facilitaria as investigagdes e visitas, ted- UMA ABORDAGEM SOCIOLOGICA DA MAGISTRATURA un ricas e praticas. a efeetuar e o recrutamento, parcial embora, do corpo docente. Independentemente da criagdu dessa Escola de Estudos Ju- dicidrios, neste capitulo. a efectivagio periédica de reunides, se- mindrios. colquios a nivel territorial de distrito ou de circulos judiciais concorreria. & ébyio. para tal «m macio técnico-profissional e cultural dos juizes, visando a dese- jada reciclagem, ven pages da for: Do mesmo modo. a realizagio de estigios —cuja rotagio, oportunidade e duragdo deveriam ser coordenadas por forma a nao haver prejuizos sensiveis para o andamento regular dos ser- vicos — a levar a efeito em centros especializados do Pais ¢ do estrangeiro. Finalmente, tenderiam para o mesmo objective a participagao: em congressos interna jonais onde se debatessem questies de di- reito e temas judicidrios; além de assento efectivo nas reunides interprofissionais de juizes a nivel internacional ow suprana- cional. Neste particular, fazem figura de pioneiros os magistrados dos circulos de Portalegre e Castelo Branco que, a fazer fé no Jornat, po Funnio, onde li a noticia, tiveram no transacto més de Junho, e em Elvas, o quinto encontro com os seus colegas espanhdéis da provincia de Badajoz, no qual participou o Pr dente da Relagéo de Sevilha; encontro convivente que culminou —como é de uso— num almogo de confraternizagao. Est4 anunciado para Novembro préximo o Congresso Nacio- nal de Advogados. Motivo para congratulagao. Espera-se, por outro lado, realizar em 1973 o 1." Congresso Nacional de Juristas, onde poderfo participar, por direito pré6- prio, os juizes. Aguardemos. E) Especializagéo dos juizes Estabelece 0 art.‘ 116.° da Constituigéo Politica que a fungéo judicial é exercida por tribunais ordindrios e especiais. uz PLAVIO PINTO FERREIRA A lei constitucional nao estatui expressamente quais os tribu- nais expec Declarando, no entanto, que sao tribunais ordinarios o Su- premo Tribunal de Justiga, € o* Tribunais Judiciais de 2." e 1.* instancia, terio de se considerar especiais todos os outros tribu- is existentes no nosso pitis, sem esquecer que os tribunais ordi- alizados (compreendendo estes narios podem ser comuns ou expec os tribunais de menores, as varas e juizos civeis e os tribunais criminais, corrcecionais ¢ de policia). Assim. tomando por fonte informativa o volume editado pelo Instituto Nacional de Estatistica sob 9 titulo de «Estatisticas de Justica — 1970», so tribunais especiais os tribunais de execugao das penas, maritimos. militares. de menores (estes rigorosamente especializados, embora ordinirios), colectivo dos Géneros Ali- menticios, de reclamagoes ¢ transgressées de Lisboa e Porto, os tribunais do contencioso dos impostos ¢ outros rendimentos mu- is, do contencioso fiseal aduanciro. as auditorias adminis- nici trativas e os tribunais das contribuigies ¢ impostos. Ora, & sabido que os juizes que evercem fungdes nesses tri- bunais expecitis nav sto juizes especializados, no sentido de nao Thes ser exizido. como condigio previa (embora porventura, néo diniea) para o ingress nos quadros desses tribunais, uma prepa- co tWenico-especifien amoldada A irredutivel e diferenciada especialidade dos diversos tipos dos referenciados tribunais. ra Cabe, entao, perguntar se para todos ou apenas alguns dos tribunais ordindrios embora especializados, se torna conveniente, operante, ¢ até necessaria, a especializagéo dos respectivos juizes? A crescente complexidade e a acentuada diversificagao de certos ramos do Direito parece aconselhar —em termos de competéncia téeniea, eficiéneia funcional e ajustamento psico- profissional — essa especializagao. Onde tal especializagio se mostra mais nitida ou mais ur- dicdes dos tribunais de menores, gente, é nos dominios das juri fiseais e criminais. £ que sio precisamente estas jurisdigdes aquelas em cujo ordenamento juridico enformador mais se faz sentir, por um lado. a presenga dominante de grandes ramos do Direito, que UMA ABORDAGEM SOCIOLOGICA DA MAGISTRATURA 13, pela sua latitude e complexidade pedem um contacto e cultivo quase absorventes ¢ exclusives. tais como o Direito Fiseal ¢ 0 Direito Criminal. e. por outro lado, o influxo ea modelagio cul- turais de certas disciplinas cientificas, como, por exemplo, a Psi cologia Infantil e Juvenil. a Sociologia Criminal ¢ a Crimino- logia. Assim. dificilmente a simples formacko juridica de base, 0 mero traquejo profissional. hem como a cultura geral de nivel médio. 0 celectisma intelectual ¢ as posxiveis qualidades de in- tuigdo e sagacidade, aliadas a eventuais predilecedes por certas matérias do Direito, podem suprir satisfatoriamente a auséneia de uma especializaciéo metodologicamente orientada ea obter por meio de estigios nos organismos nacionais ¢ estrangeiros apetrechados para o efeito e capazes de, com proficiéncia, minis- trar os conhecimentos tidos por necessarios. Também aqui o Centro de Estudos Iudiciérios teria um papel a desempenhar, uma missio a cumprir ¢ uma Jacuna a preencher. o relatério do Decreto-Tei n.° 44.278 que aprovou o Est, Judicidrio vigente reconhece-se, em dado passo, embora em ter- mos restritivos, a expecializaciio — ainda que virtual — dos ju‘- zes no respeitante aos dois grandes ramos do Direito — Civil e Criminal — ao eserever-se que se entendeu . Dai o interesse em se estudar e conhecer a reali- dade social do Direito, a qual visa a «infra-estrutura> UMA ABORDAGEM SOCIOLOGICA DA MAGISTRATURA 129 social das normas. habitos regras de comportamento, usos ¢ pritieas consnetudindrias sobre a qual se edi- fica o Direito. Resta indiear alguns dos conceitos operatérios quase todos erigidos em prineipios juridicos que sina lizam ¢ orientam o juiz na sua diuturna tarefa de me- diador da lei e. do mesmo passo. de executor ¢ criador do Direito. A titulo exemplificative, apontarei a pressupo- sigdo. o abuso do direito, 0 estado de necessidade, as vircunstineias do caso, a hoa ea maé-f6. 0 motivo gra ve. o dolo. a equidade. 0 interesse social, os hons cos- Lames. 0 justa motive. a justa causa. o prudente arbi- trio. F do conhecimento de todos nds, como juristas, os muitos artigos do actual Cédigoe Civil que consagram esses principios ¢ conceitos que, de ponto de vista em que ora me coloco, nado deixam de constituir uma vasta pandplia de conceitos ao servicn do juiz, pois que, como lucidamente advertiu o Prof. Vaz Serra no dis- curso que proferiu no Supremo Tribunal de Justiga em 24/1/94, quando Ministro da Justiga, «o juiz nfo uma pura maquina de subsungao regida pelas leis da légica formal, mas um auxiliar da lei e da vida». Finalmente, como podera o jurista, ¢ mais especificamente o juiz, responder ao desafio tecnolégico dos tempos hodiernos de que acima falei? Pois néo vamos dando conta. embora a sociedade portuguesa esteja ainda na fase do arranque, do crescimento planificado das indiistrias-chave. da implantac&o de pélos de desenvolvimento regional, dos primeiros ensaios da téenica urbanistica e da arqui- tectura paisagistica no ordenamento territorial, da generalizagao do ensino a todas as camadas populacionais e da reforma da es- trutura, da gestdo e da metodologia escolares — dizia eu — nao vamos j4 dando conta de que o Direito codificado, a normativi- dade oficial, a justica institucionalizada, o aparelho judiciario 130 FLAVIO PINTO FERREIRA -e mostram. sintumaticamente, inadequados a regulamentagao capaz © sati-fatéria da realidads econdmice-social em transfor macao? Dato recurso. cada vez mais vaste. A arbitragem em lugar da magisteatura profissional. nos conflitos « dissidios de grande sulto econémico-finaneeiro. particularmente nos sectores de ponta do capitalismo empresarial, onde a celeridade, eficdcia e dinamismo de accie sie palavras de orden, Vais solugies arbitrais so. pois. procuradas por mais répi- das emais ajustadas ao ritmo das realizacdes ¢ dos investimentos dos grandes grupos e cartéis da indistria o da finanga que as fornecidas jurisdicionalmente pelos tribunais. instituidos pelo Estado: embora o custo econdmico daquelas seja mais elevado do que destas. 1 evi- tar que o fosse entre o direito legislido eo direito autogerado nos conclayes arbitrais (que podemos apelidar de direito espon- Hidividualmente, 6 dbvio. 0 juiz nada poder fazer pa 160) attnente © se torne irremedidve Demitirese © oferecersse para presidir a esses tribunais arbi- trais nde resolve o problema nem seduzini. atrevo-me ao prognés- tieo. A maioria dos magistrados, Jas, come grupo social. integrados na sua corpo ago, o- Jo. por intermédio do seu drgio re- presentative ——o Conselho Superior Judicisrio — reestruturado que soja este pela forma que atris deixei esquissada. dar um contribute til para a superacdo da crise institucional que se desenha ja ¢ que vird a deflagrar mais tarde ou mais cedo. Tudo dependera, em dltima andlise. quanto ao auge dessa crise. da maior ou menor aceleragio do processo de industrializacao do Pais ¢ do seu avanco para formas mais tecnocriticas do capita- lismo. magistrados judiciais pode Tal contribute dos juizes - e de todos os juristas, alias poder-se- cifrar na colaboragéo com os governantes e legisla- dores na elaboragio de projectos legislativos dotados de grande elasticidade e¢ visando actualizar o Direito através da sua forma- lizagdo em conjuntos normativos sem a rigidez, a completude. a vastidiio ea longevidade dos cédigos UMA ABORDAGEM SOCIOLOGICA DA MAGISTRATURA 131 Conjuntos normativos que sejam a expresso legal de uma sociedade programada e que busquem o seu simile nas leis que regulam os planos de fomento econémico: — leis que tém uma vigéneia curta. coincidente com a duragdo do plano, que entre ns. como & sabido. © quinquenal. F evidente que me estou a referir ao Direito privado. dado que no campo do Dircito criminal — para nio falar no Direito idministrative ou no fiscal — as leis penais terdio que ter, em homenagem & sua natureza e finalidade, uma outra rigide? uma outra duracio. Por conseguinte. subsereve, por avisadas e Itcidas, as pala- \ras que a seguir transereve do livro tendo justamente por titulo O DESAFIO TECNOLOGICO — da autoria de Sérgio Cotta: F oportano que a estrutura juridiea permanega aberta, de mode que seja possivel completar movelmente consoante as exi- géneias do desenvolvimento». Prosseguindo, aquele professor de Filosofia do Direito na Universidade de Roma escreve que o sistema juridico da idade teenologica se deve assemelhar ciquelas casas japonesas eujo inte- rior muda, mediante um jogo de paredes méveis, segundo as necessidades contingentes de quem as habita». Cotta lembra ainda que a sociedade tecnolégica assinala a superagio completa do modelo juspositivisticn do jurista, eujo cardcter abstractamente ideoligico e nao real ela pde em foco. Daqui o grande papel que o juiz pode vir a desempenhar na sociedade futura. cujas potencialidades, linhas de forga e vec- tore: de direcefio ja hoje se descortinam. Na verdade. se for evitado —o que é perfeitamente vidvel, como intentei mostrar — 0 divéreio entre as instituigdes judiciais cas realidades econémico-sociais de uma sociedade cada mais vez industrializada, é ao juiz que cabera aplicar o direito novo, pois € no processo — como também refere Sérgio Cotta—— que se experimenta o Direito, nele se ensaiando a validade da norma. Ora, no processo — auténtico laboratério donde brota o direito vivo © que para ser vivo tera de ser novo — é seu regulador su- premo o juiz. 132 FLAVIO PINTO FERREIRA 6-0 JUIZ QO ADVOGADO Como servider do Direito, tal como o qualifiea o art.” 5760 do Estatute Judicidrio, ou agente do Direito, numa linguagem inais proxima da nomenclatura socioligiea. o advogado tem cola- borado, desde sempre, com o juiz. na administracao da justiga, ¢ dai a sua corresponsabilidade no pre-tigio ou nao prestigio social da justica. Conhecenrse, pois. de longa data. Hlementos de um frequente hindmio judicial nao se podem ignorar reciprocamente, Tém uma histéria em muitos pontos comum e, nao raro, as suas biografias profissionais eruzam-se ¢ completam-se mutuamente, No entanto, ao contrario do juiz, o advegado dos nossos dias pode dispensar o tribunal para exercer a sua profis A imagens elassiea do advagade vem, assim, sofrendo, av lon yo dos Gltimos decénios. retoques ¢ correcgdes, quando nao alte- racdes © metamorfoses. que se nao desfiguram a tornam de difi cil reconhecimente, Pois, nao existe jad um significative niimere de advogados. inseritos na respeetiva Ordem, que se cireunsereyvem como juris- tas, se confinam sécio-profissionalmente ao~ gabinetes de con- tenciose de tantas companhias e sociedade> comerciais. ds sedes dos conselhos de administragdn de grandes empresas privadas e. até mesmo, aos quadros administratives ou ao= servicos consul- livos de certos organismos oficiais? M dos sobe quase todos os dias as escadas dos tribunais, ou faz che- _ como quer que sejt. a falange maioritaria dos advoga- gar quase todos os dias, de uma mancira ou de outra — desde um simples requerimento a uma minuta de recurso —, as secre- tarias judiciais o testemunho escrito da sua actividade tradicio- nal: — pleitear. Claro, é da lei da vida que quem se visita com frequéncia nem sempre procede conforme as boas regras de convivio social. E como. por veves, as divergéneias de opinide e, até, as irre- dutibilidades de entendimento face a uma dada questéo — duma simples interpretagéo dum preceito legal & controvertida valora- cio de um dado meio de prova — Jo consideradas nio, como UMA ABORDAGEM SOCIOLOGICA DA MAGISTRATURA 133 seriam de desejar, transitérios pontos de friegde, mas sim graves conflitos de honra, yém por isso mesmo A tona dos processos, come manehis de dleo sujo. ox exeessos, os quais nem sempre sao de Hinguagem. Mas. de um modo geral, as relagdes entre juizes © advogados slém de urbanas — como pretende o Estatuto Judicidrie —. sao até, se ndo cordiais. respeitosas e dignas e, tantas vezes, repassa- das de mitua estima ¢ sincera admiracdo reeiproca. Nao quero, contudo, prosseguir nesta senda impressionistico- cliterdria, de cunho moralisticn © de sabor vivencial. Escasseia-me o tempo e, na impossibilidade de imprimir a este ponto do sumdrio o maior desenvolvimento, como era meu desejo. limito-me a focar o seguinte : A necessidade (com vista a permitir o levantamento ¢ subse- quente exame day condicionantes sociais a que se eneontram sub- metidos, no plano funcional ¢ operative, os érgios que realizam o Direito) de se efectuar um inquérite dirigido aos advogados inscritos na Ordem ~~ 2.572 em 1970, dos quais 292 nesta cidade do Porto, havendo em todo o Pais um jui: cada sete advogados. as pessoas para Esse inquérito deveria ser particularmente dirigido a apurar qual a sua formacao, origem social, antiguidade na classe, fins ou motivagdes reais que tém em vista no exercicio da profi prerrogativas reais (¢ ideais) do exerciciy da profissdo, a inci- déncia de desvios éticos nela verificados, os limites 4 constitui- ¢do de advocacia de grupo ou sociedades de advogados. E, muito principalmente, visaria determinar esse inquérito qual a inde- pendéncia dos advogados no seu duplo aspecto: em relagio aos juizes e em relagio aos clientes. Nu primeiro aspecto, muito in- teresse teria averiguar-se de que lado partem as ameagas mais sérias e os ataques mais fundos a essa independéncia: se do lado dos jufzes, por supostament2 prepotentes, atrabilidrios e surdos aos apelos e vindicagGes justas dos advogados; ou se, do lado dos préprios advogados, por demasiado submissos e conformistas, com vista a assegurar ao cliente 0 sucesso esperado. No segundo aspecto — independéncia do advogado em re- lagfio ao cliente — interessaria pdr em relevo qual a importancia sao, 14 FLAVIG PINTO FERREIRA moral © autonomia efectiva do advogado na direcgao do pleito econdmicas que comprometem essa © dete sutonomia e afectam essa importir ar quais as servidé cia. Socorro-me aqui do testemunhe autorizado de dois advogados dy foro de Paris, um deles muito conhecido, justamente Robert Badinter, que, com o seu colega, Jean-Denis Bredin, publicaram um artigo em Setembro de 1967 no «Figaro Littéraires, no qual. entre muitas outras tomadas de posigdo, escreveram: que a mais pendéncia em relagio ao cliente. © forma de submissio que ameaca o advogado ¢ a sua de- Pois dizem cles: «Nesta vasta competigio que cerea os gran- des clientes, onde muitos advogados, pequenos o grandes. riva- lizam em complaccneias © em intrgas para ficar com um «dos: siers, ou para o conservar, que fica da tio proclamada indepen- déneia? Mais do que o Fsado, =80 os clientes rieos, os chefes de contencioso importantes. os conselhos juridicos muito habeis, que ameagam quotidianamente a independéneia do advogado. EB é a esta degradagao vaga, inconsistente. secreta que final- mente ele sucumbe enquanto ressoam ainda herdicas proclama- cies». Estou certo de que o ammeiado Congreso Nacional de Advo- gados nao deixard de, frontal e corajosamente. debater esta can- dente problematica — a independéncia do advogado na sua du. pla feigéo: — em relagao ao juiz ¢ em relagdo av cliente, 7—O JUIZ E O PUBLICO O juiz, julgador por definigéo ¢ investidura, & por sua vez, julgado por um tribunal que, embora desprovido de poder juri- dico e de forga coerciva, é temivel, pois, além de anénimo e ten- tacular, monstruoso mesmo, das suas decisdes nao ha recurs Tribunal absoluto, todo-poderoso, invisivel e omnipresente. Trata-se, como é evidente, da opiniao publica, a quem é vul- gar também chamar, um tanto enfaticamente, de tribunal da opi-

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