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Capitulo 2 | A Identificagdéo da Ambiguidade Nosso ponto de partida é a ambiguidade notavel do nosso vo- cabulario politico, uma ambiguidade que possui tanto méritos como a as bordas ¢ modera as diferengas que, de uma s6 vez, esconde e revela, essa ambi- defeitos. Seu mérito é prético: como um véu que suav’ guidade da linguagem serviu para ocultar cisées, cuja exposigao plena incitaria a violéncia e o desastre. Seu defeito é basicamente filos6fico: a ambiguidade torna dificil para nés a pensar com clareza sobre nossa politica e obstrui qualquer conhecimento profundo sobre ela. Pode-se acrescentar, também, que a oportunidade dada ao politico dissimula- do para espalhar confusao é um defeito pratico a ser apontado contra sua utilidade. Meu objetivo ndo é denunciar a traigéio da linguagem, nem resol- ver ou remover a ambiguidade, mas compreendé-la. E a hipdtese que propus para a andlise é a de que a ambiguidade do nosso vocabulério politico decorre do fato de ter sido compelida, por quase cinco sécu- loswa'seivir a dois senhores: Chamei esses dois senhores de politica da fé e politica do ce- polos ou extremos por entre os quais oscilam, nos tempos modernos, nossa atividade ticismo, expressdes que representam os dois de governar e nossa compreensio acerca do que é proprio A fun- c4o do governo. Como extremos, sao ideais: os horizontes de uma 4 Politica da Fé @ a Politica do Ceticismo | Capitulo 2 - A Identificacao da Ambiguidade atividade e um entendimento que, em grande parte, ocuparam me- NOS espago que os extremos permitem. Mas, na medida em que a atividade ¢ 0 entendimento sio definidos na diregao de um desses extremos ideais, surgem dois estilos de politica histéricos, cujas caracteristicas correspondem as do extremo a que se aproximam, modificadas, é claro, pela incompletude da abordagem. Durante os cinco séculos da histéria moderna, esses dois estilos de atividade politica tém coexistido, lado a lado, sem dificuldade (salvo em raras ocasides, quando um estilo oscilou muito perto do seu extremo teé- tico) e, devido 4 ambiguidade do nosso vocabulirio politico, mui- tas vezes mal se distinguem entre si. Além disso, uma vez que sao estilos de atividade politica e nao doutrinas estdticas e invaridveis, cada uma surgiu ndo apenas em varios graus de completude mas também em uma variedade de verses. Por “verso” de um estilo Politico, refiro-me a utilizacao dos recursos em certo contexto para aplica-los a uma situacéo politica particular, Consequentemente, em qualquer localidade e em qualquer periodo da histéria da Euro- Pa moderna, € possivel detectar ndo apenas a intensidade de cada um desses estilos de politica (ou seja, 0 grau em que se aproxi- mam de seus respectivos extremos ideais), mas também a versio atual de cada um, isto é, a forma como estdo sendo utilizados no momento politico atual. Uma analogia com a arquitetura tornard mais claro 0 que quero dizer. Na atividade de construgéo, podem ser discernidas certas regularidades de tratamento e, por meio de um processo de abstracao, podem ser formulados principios ideais de um estilo arquiteténico. Nao é de esperar que um tinico edificio represente exatamente esse estilo ideal, mas é possivel observar se ele se aproxima do estilo em maior ou menor medida. Além disso, as exigéncias do local, ou dos materiais disponiveis, ou do uso para © qual 0 prédio foi projetado podem, ainda, condicionar a forma de sua construcao, de tal mancira que podemos no apenas observ ro rau_em que se aproxima de um estilo ideal, mas também deteetar 56 | 57 nele © emprego (em alguma ou outra medida) dos princfpios do estilo para um propésito especial. ; _ Agora, iremos nos ocupar com algumas das versbes' dos lois esti- los em que a politica moderna tem operado. Nao ifeitios, infeliamente,, rastrear em deralhes seu surgimento e sucessio (que é tarefa do his- toriador}, mas buscaremos ampliar nosso conhecimento dos préprios estilos observando seu comportamento em diferentes cincunstineias Antes de comegarmos a considerar as contingéncias hist6ricas des- ses dois estilos de politica, todavia, é conveniente esclarecermos seus princfpios abstratos, tanto quanto possivel. Dewemoe nos lembrar * que esses principios foram alcangados por meio de um processo de alpstragio. O material que empregaremos € tudo que pudemos en- contrar sobre a maneira como os povos da Europa moderna tém li- dado com a atividade de governar eo entendimento a que chegaram (expresso em palavras) acerca da atividade prépria do governo. Ao refletir sobre isso, poderemos distinguir o que denominei diferentes estilos da atividade politica e, ao extrapolar as tendéncias representa- das, poderemos conceber 0 extremo ideal para o qual apontam. Consideremos, primeiro, a politiea da fé. Acredito que a pert Jo, que talvez tenha algo paradoxal, aparecera a éncia da expres medida que avangamos. coda pes Na politica da fé, a atividade de governar esta a servigo da per- iste uma doutrina de otimismo césmico feigio da humanidade, E: i que atribui uma inevitivel perfeigao ao universo, no pela obser- cia da perfeigio de seu criador. Hi, ainda, vagiio, mas pela infe a uma doutrina na qual a perfeigio humana surge-como.umdom divi- ‘ srecida, Contudo, a ideia da perfeigio no, assegurada, porém rio merecida, Contu hum, 1, caracteristien da politica da fé, longe de ser derivada de A Politica da Fé e a Politica do Ceticismo | Capitulo 2 ~ A Identificacao da Ambiguidace qualquer uma dessas doutrinas, é, na verdade, contraria a Na politica da 6, a perfeicéio humana é buscada nao esta presente; ambas. , justamente, porque além disso, acredita-se que néio devemos, nem po- demos, depender da providéncia divina para a salvagao da humani- dade. A perfeigdo humana deve ser alcangada pelo esforco humano, © nesse caso, a confianga na efemeridade da imperfeigdo provém da f€ no poder do homem e nao na providéncia divina. Talvez sejamos incentivados a crer que nossos esforgos contem com aprovagéo até mesmo suporte da perfeicao, e que chegaremos inevitavelmente a ela pelo nosso préprio esforgo caso nao relaxemos, © primeiro principio esté associado a outros trés. A perfei- S40, ou salvacao, é algo a ser buscado neste mundo, visto que 0 homem ¢ redimivel na historia. Justamente por causa dessa cren- $a, torna-se relevante ¢ revelador designar esse estilo de politica como “pelagiano”.! Além disso, a perfeigdo da humanidade é en- tendida nao apenas como algo mundano, das circunstanci mas como uma _condig q as humanas. Isso é algo que gera muita confusio, 1 Pelagianismo & uma doutrina que sustenta que os seres humanos podem al- cangar a perfeisio moral apenas pelo livre-arbitrio, sem a necessidade da grax ga divina, A expresso remonta a Pelagio (Pelagius), te6logo laico britanico Que viveu entre os séculos IV e V, estabelecendo-se em Roma por volta de 405 4.C. Ficou conhecido na histéria por seu forte contraponto a visio de Santo Agostinho a respeito do pecado original, pela predestinacio & salvacao e pela confianga absoluta da humanidade na graca de Deus. Agostinho sustentava que pecado de Adio foi herdado por toda a humanid: homem tenha livre-arbittio, Para Peligio, ess lade ©, por mais que 0 éle esta inevitavelmente escravizado pelo pecado. 4 visio constitui uma espécie de fatalisno que estimula a apa- ba moral; ainda que os homens tenham o habito de pecar, em consequéncia da Queda, nao foi perdida a capacidade de superar esse hébito, A huma- nidade teria, portanto, total controle sobre suas proprias sem precisar da vontade de Deus para sua salva de Oakeshott, a doutrina do pelagianismo aplic: Politica da fé, Esse estilo de pol fou s agdes e destinos, 10. No contexto da obra -se com grande acuidade A a acredita que a salvagio da humanidade plesmente a perfeigio) € algo nao apenas desejavel, mas plenamente possivel de ser obtido neste mundo. Cahe ao 4 soverno a misao de conduzir ov mente adlequado, (N.'t) esforgos coletives no eaminho supo 58 | 59 Se o cardter humano fosse pensado para ser independente ou mesmo parcialmente independente das circunstancias humanas, o cone seria, entdo, excluir das finalidades da politica da ie toda ite ‘s perfeigio, 0 que acabaria impondo alguns limites & ambigao dess : estilo, Mas, em geral, isso nao ocorre, Aqueles que abracam ste ° tilo enxergam os homens como criaturas de suas oe & modo que sua perfeigao ¢ identificada como uma condigao esas ce cunstancias. No fundo, ¢ justamente essa identificagao, a qual permi que se busque tudo aquilo que o homem possa vir a desejar, ame = esse estilo de politica distinto de qualquer outro. Por fim, acre i ; que © governo seja 0 principal agente do gem ene tard na perfeigao. A fungiio do governo, portanto, ¢ entendida « " cao da atividade hum com_0.proposito de o controle e a organi alcancar sua perfeigiio., a ene le Entre essas ideias, hd varias que apresentam uma aparéncia inde A i itic é, seria levelmente modernista e, se essas so as raizes da politica da fé, “ i! zo da histéria moder- imprudente retroceder seu surgimento ao comego da hist6ria m tiveram uma historia muito mais longa na. No entanto, essas cren¢a a do que geralmente se supde, e, embora eu as tenha ee we maior parte, na linguagem confiante ¢ adulta do século ie : eclodiram muito mais cedo, Numa etapa posterior, farei meu metho para remover a suspeita de que estou atribuindo uma vida demasio do longa a algo que, muitas vezes, se considera de aparigéo mn se mas tal suspeita pode ser contida, por enquanto, se observarmos dua imei i ea condigao principal do surgimento da coisas. Primeiro, acredito que a condig&o princiy ‘gi A i riante er hu- politica da fé (ou seja, um aumento notavel e inebriante do poder ori erna endo apenas mano) é caracteristica do comego da historia moderna e nao ay p 88 p ‘a abre es: de tempos recentes; em segundo lugar, esse estilo de politica a v s nas) pago p a le de intery (algumas nad dlernas) SSC C5 ve Ja palavra-chave “perfeigio”, O milénio inseparivel desse estil “ », ¢ claro, por Loeke Jin naciocinio precoce dessa erenga fal forneet VT A Politica da Fé e a Politica do Ceticismo | Capitulo 2 - A Identificacao da Ambiguidade onéy een ser, € verdade, uma condigao mundana das circunstancias humanas nas a iia i 7 Pode variar de uma condigao de vistude moral ou de salvacio religiosa a * ; : igiosa_para-uma-condigéio de “prosperidade”, “abundancia” ou “bem-estar” i 3 } m: estar Em suma, existem_versdes desse estilo de politica apro- priadas néo apenas As circunstdncias dos séculos XVII « XIX mas _até mesmo as do século XVI. Ha, no entanto, duas caracteristicas desse primeiro esbogo da politica da fé que nado devemos confundir, Primeiro, a atividade de governar nao é concebida meramente como um agente auxiliar na busca por aprimoramento que resulta na prépria perfeigao ou que deve culminar nela; € 0 principal inspirador e o tinico administrador dessa busca. Se a politica da fé se resumisse meramente 4 assertiva de gue 0 papel do governo é contribnir para algum reconhecido benefi- cio da humanidade, nao haveria nada para diferencia-la de qualquer outra, exceto, talvez, a doutrina do anarquismo. E importante ficar claro que estamos considerando uma compreensao da atividade de ov “ i governar que atribui ao proprio governo (oferecendo razdes para tal) © dever € 0 poder de “salvar” a humanidade, embora seja provavel que surja uma série de interpretagdes acerca da *salvagio'y © segundo ponto se refere 4 “perfeigao”. Afirmei que esse estilo de politica tem vigorado por um longo periodo, e pode-se pensar que estou sustentando esse estilo com base em doutrina bastante ita algo que s6 pode ser atribuido a uns poucos excéntricos e a alguém insignificante no cenatio amplo da politica moderna. Todos nds ¢: tamos familiarizados com um estilo de politica que busca tnelhorar as circunstncias humanas; a perfeigiio, por outro lado; € um excesso incomum. Mas a distinc E certs iti é “ © que, na politica da fé, estou delineando o que geralmente se conhece com iti Opic: c ‘ no-politica utépica, mas penso que aqueles que tentam escapar a a i capar disso, alegando apenas a busca do aprimoramento e nao da perfec sae (© no pode ser sustentada nessa conexiio. Ao, acharao essa saida muito estr i ! 4, caso insistam em manter a nogio de aprimoramento A qual ainda estio apeyados 60 | 61 Deixando de lado os milenaristas* intrusivos, uma classe espe- cial nas fileiras da politica da fé, consideraremos os aprimoradores que negam pretenses utdpicas. A tarefa de aperfeigoar 0 destino da humanidade pode ser realizada de duas maneiras. Podemos projetar, ipropriar ou desenvolver todo tipo de modificagéo que se proponha como mudanca para o melhor, em que “melhor” significa, nas mes inas circunstancias, um modo aperfeigoado de realizar essa ou aquela atividade ou de apreciar 0 mundo, Aqui, o aprimoramento das cir cunstancias nao segue nenhuma diregao, ¢, se uma melhora entrar em conflito com outra (como pode muito bem ocorrer), havera um ajuste (emporario entre suas pretenses: nesse caso, nem as melhoras nem scus ajustes insinuam ou impem uma tinica via. © outro modo de alcangar © aprimoramento das circunstincias humanas consiste em decidir primeiro em que direcio o “melhor” se encontra e passar a persegui-lo, pouco importa como a deci tomada. Isso nao pressupde um conhecimento detalhado do melhor, mas pelo menos uma ideia dele, pois a diregao é escolhida nao em vir tude de ser superior a qualquer alternativa, mas justamente porque ¢ a melhor, Essa éa maneira de buscar © aprimoramento na politica da {é, Como veremos, muitos dos adeptos desse estilo de politica negam que sejam perfeccionistas ou utépicos, e sua negagdo (caso nao seja mero autoengano) significa algo: o estado de coisas que desejam ver estabelecido nao é de todo presumivel e nao se espera que caia pronto Milenarisino (ou milenialismo) vefere-se & crenga que anuncia 0 regresso, de Jesus Cristo para constituir um reinado com a duragio de mil anos (cn tendido tanto de forma literal como simbdlica, referindo-se a um periodo de longa duragio). © niléaio € um momento transitorio, em que as condighes dla vida mondana seriam radicalmente transformadas em preparagao para a salvagao divina, No representa 0 destino final da histéria da humanidade, mas um estigio preparatério para a salvagio final, Na linguagem politica, a expresso mifenarismo passon a designar, coloquianente, toda © qualquer outeina, crenga ou mOeyvIento Jal que aeredita na existé a de um ideal 1 on perfeigio da human cle waly ‘Holllica da fee a Politica do Ceticismo | Capitulo 2 —A Identificacéo da Ambiguidade lo céu. Nao significa, porém, que demonstrem qualquer hesitagao acerca da diregdo em que o aprimoramento deve ser buscado. Fm suma, se vocé admitir uma tinica estrada, pouco importa Gude lentamente esteja preparado para se locomover ou quio abun- ante seja a colheita que espera reunir, vocé é um perfeccionista, ndo Porque conhega em detalhes o que ha no final, mas porque exclain todas as outras rotas e esta satisfeito com a certeza de que a perfeicao se encontra onde quer que a estrada termine, O papel atribuido ao Boverno nessa iniciativa no € apropriado apenas pela quantidade de poder que ele pode exercer, mas também pela necessidade de ser exercide em uma tinica ditegio. Portanto, um dos pressupostos caracteristicos da politica da fé © que 0 poder humano € suficiente, ou pode vir a sé-lo, pata obter a salvagao. O outro pressuposto é que a palavra “perfeicao” (@ seus si- nOnimos) denota uma condig&o tinica e abrangente das circunstancias humanas. Essa condi ‘© pode nao ser prontamente estabelecida nem premeditada com grande distingéo, mas podemos, ao menos, identifi- carscu contorno geral; trata-se do objetivo de toda atividade politica, mio restando alternativa. Como consequéncia, esse estilo de politica requer dupla confianga: a conviegiio de que o poder necessario esta lisponivel ou pode ser gerado e a conviccio de que, ainda que nao saibamos exatamente 0 que seja a perfeigao, pelo menos conhecemos estrada que conduz a ela. A confianga de que o poder necessério esta isponivel pode aumentar com a busca da perfeicao; a confianga de sue estamos no caminho certo pode set adquirida de diversas manei- ts. Pode ser uma certeza visiondria, bem como o fruto da pesquisa, tellexdo ¢ argumentagao. Na politica da fé, a decis do € a iniciativa politicas ¢ a iniciativa podem ser entendidas como respostas a uma perceps > inspirada do que € o bem comum ou podem ser entendidas como a concluséo que acompanha um argumento racional; mas ja- mais podem ser entendidas como um expediente temporario ou ape Mis como algo que se faga para manter s coisas funcionando, Como 62 | 63 z aa fates a 6 tado, nes eens litica as instituigdes de govern ssa compreensio da po rest lo, i i fazer_a sero interpretadas ndo como meios_para.faze! s mas como meios para se chegar permitir decisées de qualquer.ordem, Z para Se cee a “verdade”, ou para excluir 0 “erro” e fazer a “verdade” pre a t ‘ i Cr atividade A politica da fé compreende 0 governo como uma » s! ve é nas mitada”; 0 governo ¢ onicompetente. Isso, na verdade, é ape , z é “sal 35? i lvagao” Ou a uma maneira distinta de dizer que seu objeto € a “sal ns ae “perfeigéio”, o que nos permite observar uma importante isting? perfeigao”, ti », A doutrina do absolutis- entre “absolutismo” ¢ “onicompe mo, sfepeomen falando, refere-se ao estabelecimento ie aur dade do governo, Implica um direito de governar que, na sail, nao se estabelece sozinho (algo desconhecido pela historia, e bors teoricamente possivel), mas é outorgado de tal modo que, ume See estabelecido, n&o pode ser facilmente retirado, modificado, tani do ow obstrufdo de qualquer maneira; talvez isso implique, também, i fpic ve para uma uma outorga que transmite todo o poder tfpico do governo F i Tees ‘cio com ou corpo de pessoas que ndo compartilha seu exercicio co on me que todos pes wale ninguém. Em alguns aspectos iniportantess pared ane todos os governos sao “absolutos” nesse sentido. No ee naoven no” cuja autoridade pode ser retirada tao logo enka lo set in sob 0 menor ou qualquer pretexto, ¢ que seja obrigado a co par tlhar sua responsabilidade com pessoas ou drgios que nS state ram a mesma ou qualquer autorizagao, parece-me estar vesenng “e dle maneira diversa da maiotia dos governos nos tempos modernos. o € completamente distinto de um governo Mas, ainda assim, tudo is nt Moni igaga as cirel cias em que © “onicompetente”. A investigagdo revelou as circunstancias “ q ; st jescobrir foverno “soberano” surgiu no mundo moderno, restando : ig erno “minucioso”;’ ainda rquclas que suscitaram a aparigiio do governo “minucioso”s ininucioso (mnimtte) © niinuciosidade ' Oake (miniteness) para ear Tratacne de expreswen enidad emproga os terme 5 ‘pate torizar a atnagio dos governos na politica da fé, ollnid nolo autor © que ear amente ¢ pelo autor © 4 nificativo dentro de sua obra, rogam um contenido simbélica bastante sip A Politica da Fé e a Politica do Ceticismo | Capitulo 2 ~ A Identificagao da Ambiguidade que paregam quase id@nticos, nao sao de modo algum a mesma coisa. “Minuciosidade” ou “onicompeténcia” nao se referem A autoridade do go ividade e aos objetivos de governar. Sobre Hob- ‘bes, é justo dizer que ele compreendeu 0 governo como 0 exercicio de verno, uma autoridade “absoluta”, tendo sido o primeiro grande tedrico do governo soberano, mas nao mostra nenhum sinal (muito pelo contra- rio) de que a fungao do governo é onicompetente. Em suas paginas, nao hd nenhuma mengio a ideia do governo como o agente do apri- moramento e da perfeigio do homem (a nogao de perfeiggo humana Ihe parece um absurdo), mas ha a presenca de algumas ideias muito precisas ¢ profundas acerca dos objetivos adequados da atividade de governar, que so limitados, mas muito importantes. Q govern é supremo, mas suas atividades sao limitadas, ; "Na politica da £6, a ati dade de governar é onicompetente, mas nao necessariamente absoluta. Em outras palavras, 0 “coletivismo” de toda espécie pertence a politica da fé, mas o cesarismo, que, como se tem dito, transformou o Império Romano “em uma feliz arena de ior que a todos idiossincrasia”) nao Ihe pertence em nenhum grau ti E importante esclarecer esse contetido para que 0 leitor nao seja induzido a erro de interpretacao em virtude de uma possivel ambiguidade dos termos, Isso sucede porque, na lingua inglesa, a palavra mite pode significar tanto diminuto (algo extremamente pequeno, insignificante, reduzido) como tam- bém minucioso (meticuloso, pormenorizado, detalhista). A confusio que pode ser suscitada aqui envolve os papéis antagénicos que 0 governo desempenha nos dois estilos. De fato, 0 governo cético tende a ser dintizuto em seu am- bito de atuagio quando comparado a seu extremo oposto. Mas nio & nesse contexto que Oakeshott emprega as expressées. Vale lembrar que enquanto 0 ceticismo é pautado no formalismo estrito, em que a ordem publica é mantida com base em regras gerais de conduta, indiferentes a qualquer propésito com- preensivo, a politica da fé tem uma caracterizagZo sensivelmente distinta. Ela busca a “perfeiga }0” da humanidade e, por esse motivo, os governos rejeitam 0. formalismo ¢ o carter meramente adverbial das regras de conduta, prefe tindo um controle minucioso e pormenorizado de toxlas.as.atividacles de seus governados, justamente para garantir que nio haja neahum desyio que alaste 08 homens do caminho da salvagio. (NT) 64 | 65 os governos, Para a politica da fé, governar é uma atividade que se propaga de maneira interminavel, integrando todas as atividades do yovernado e (se fiel ao seu dever) sempre até o limite do esgotamento, Das muitas consequéncias desse trago da politica da fé, uma deve ser mencionada de imediato. As palavras ¢ expressdes do nosso vocabu- Lirio politico podem ter um significado estreito ou ampliado (e, claro, uma variedade de significados entre esses limites). Na politica da fé, dada sua alianga com a busca da perfeigdo humana, a cada palavra expresso sera atribuido o seu significado mais amplo e abrangente, inirando sempre o limite e (por meio de adjetivos) as vezes além da- quilo que 6 vocabulitio pode tolerar sem perder seu sentido. © esbogo da politica da fé é imperfeito mesmo quando tomado para aquilo que pretende ser, ou seja, um projeto abstrato; mas, ao jelletir sobre isso, certas inferéncias Gbvias se apresentam. Descrever brevemente algumas, além de ampliar o proprio esbogo, serviré de preparagdo para o que vamos encontrar quando passarmos das abs- IvagGes para as verses concretas desse estilo de politica na pratica. De maneira clara, é tipico dessa politica acalher, opoderemvez de _ sentirse Constrangido por ele; nenhuma_quantidade de poder jamais send considerada excessiva. De fato, remoer a cada atividade, manter 1s iniciativas na linha, nao hesitar em expressar sua aprovacgdo ou Uesaprovagio de cada projeto e, em suma, concentrar todo o poder a da_perfeigdo, certificandosse.de_. © recursos da comunidade na bu que todos esses recursos sejam explorados ¢ que nao se desperdice nenhum, obviamente seré apropriado para a atividade de governar so da perfeicao humana, Nao como de- cntendida como a organiza cito, sendio como virtude, 4 medida que o poder é colocado em pra- stilo de politica ser4 minuciosa, fica, a atividade de governar nesse iniquisitiva ¢ inclemente: a sociedade se tornara um panopticon; e seus overnantes serio panoverseers. Nao por descuido, mas de forma ine- Vitavel, essa concentragio de esforgos, novamente na proporgio do noo representante da sociedade num projeto seu poder, fara do gove A Politica da Fé e a Politica do Ceticismo | Capitulo 2 - A Identificacao da Ambiguidade de autoafirmagao coletiva cujo propésito sera a conquista espiritual, se nfo a conquista fisica do mundo: esconder a “verdade” seria trai cao, ser negligente em propaga-la, uma desgraca. Além disso, um alto grau de formalidade na atividade do gover- nar seria considerado inadequado. Para esse estilo, governar é uma “onstituicdes sera aventura divina, e a estrita observancia de regra’ prontamente sentida como um freio ao seu impeto. Os direitos e os meios de reparacSo serio incongruentes, tendo perdido lugar por um tinico e compreensivo Direito — 0 direito de participar do aprimo- ramento que leva a perfeigio. O que j4 passou no teré muita im- portancia nesse estilo de governo; 0 presente ser mais importante que o passado ¢ 0 futuro [muito mais importante] que qualquer um. A Raison d’Etat, redimida e santificada pela sua associagio com a busca da perfeigdo, seré reconhecida como um argumento apro- priado, vilido e até mesmo moral. A aversao & legislago pretérita esta fora de lugar; a preven mento do inocente pareceré menos reprovavel que a impunidade do (0 seré melhor que a punicaos o sofri- culpado, ¢ a culpa sera mais facilmente presumida que a inocéncia. A oposic&o, apropriadamente entendida como um meio para alcangar a “verdade”, teré apenas uma funcao temporal e esporddica, sendo considerada nao mais que um obstaculo, ou algo ainda pior caso a “verdade” seja aparente, Além do mais, seria adequado para uma atividade de governar que busca a perfeicdo requerer nao apenas obediéncia ou submissio do governado, mas também aprovacao e, até mesmo, amor. O dissenso as, Mas como “erro” e “pecado”; A falta de entusiasmo sera considerada um crime a ser prevenido por meio da educagio ¢ punido como trai Por outro lado, esse estilo de governar, com seu obstinado impulso a perfeigéo, pode provocar muito descontentamento, visto que cla sera alcangada apenas no futuro, ¢ estamos sempre mais insatisfeitos quan do sentimos falta de uma coisa que de varias. Por fim, a fungio de 66 | 67 governo aleangara uma estatura moral que a colocara acima de qual- quer outra, entendendo-se que os politicos ¢ seus colaboradores sao, 20 mesmo tempo, os servos, os lideres ¢ 08 salvadores da sociedade. Tl Uma vez que estamos lidando com extremos abstratos, é oportu- no (endo mero exagero) observar na politica do ceticismo (que agora podemos examinar) um estilo oposto, em todos os aspectos, & politica da 6, Todavia, ha um erro a ser apontado ¢ evitado neste momento, porque, se nao o fizermos agora, iremos encontra-lo ampliado quan- do chegarmos a analisar as contingéncias hist6ricas desses dois estilos it opostos 16- icos com inimigos hist6ricos, considerando a fé como uma reagio do de politica, Estou me referindo ao equivoco de confunc coticismo ou vice-versa, bem como compreendé-los apenas na medida em que estao, espelhad wutuamente. . Em alguns aspectos, penso que ~ existem versdes da politica do ceticismo que, no mundo moderno, an- razées Obvias para que tecedem qualquer uma da politica da fé, ¢ h: isso seja assim. Mas, dado que sustento estarem presentes ambos os estilo de politica (embora, naturalmente, ndo com © mesmo vigor em todos os momentos) desde o inicio e ao longo da histéria moderna, cles devem ser considerados contemporaneos para nossos propésitos, inalar a precedéncia de um estilo sobre outro. © seria inoportuno as N do os examinamos, vemos que sio coincidentes. Minha visio é que ‘sta exposigao, um estilo deve ser analisado antes do outro, e, quan- a historia da politica moderna (referente a atividade de governar) é a concordia discors desses dois estilos; ¢ creio que esto enganados aqueles que veem o surgimento da fé na derrocada do ceticismo, ou © nascimento do ceticismo no colapso da fé, Evidentemente, entrela- gados como foram, cles agiram e reagiram entre si, e até mesmo che: garam a modifiear un ao outro (cada tm tentando impedir o outro A Politica da Fé e a Politica do Ceticismo | Capitulo 2 - A Identificacao da Ambiguidade de chegar ao seu extremo te6rico), mas seus fundamentos encontram- -se de maneira independente nas circunstancias da politica moderna. E, como disse, nenhum deles deve ser identificado com as diferengas, divisdes, antagonismos, alinhamentos ¢ partidos que compdem a su- perficie da nossa historia politica e que existem em grande medida ou por completo tal como se refletem mutuamente. Estamos consideran- do, portanto, dois estilos de politica que esto em oposic¢ao abstrata, mas que formam juntos 0 nosso complexo e ambiyalente modo de governar e nosso complexo ¢ ambiguo entendimento daquilo que é proprio a funcio do governo. Na pratica, 0 ceticismo nunca é absoluto: a diivida total é, simples- mente, uma contradi¢ao em si mesma. E, como modo de compreender a atividade de governar, o ceticismo nio deve ser identificado nem com a anarquia nem com o individualismo radical que frequente- mente est associado a ela.’ Pelo contrario, a politica do ceticismo compreende a atividade de governar de forma bastante especifica, desvinculada da busca da perfeigéo humana. Intelectualmente, esse desprendimento é aleangado quando a perfeigao deixa de ser perce- bida como uma condigZo mundana das circunstancias ou, no caso de sua busca ser reconhecida como prépria da humanidade, nao é 0 governo o encarregado de tomar conta dela. Com algumas reservas, pode-se dizer que a politica cética tem sido a modalidade caracteris- tica da Europa medieval. A desvinculagao do governo da busca da perfeigdo pode, no entanto, ser aleangada de outras maneiras; nos tempos modernos, pode-se dizer que a politica do ceticismo (vista como um estilo abstrato de politica) tem suas raizes na crenca radical de que a perfeigio humana é uma ilusio, ou, na visio menos radical, de que sabemos tio pouco sobre as condigdes da perfeicio humana que se torna imprudente concentrar nossas energias em uma tinica ‘ Historicamente, a anarquia esta mais proxima da politica da fé que da poli tica do ceticismo, A tendéncia antinomiana da {6 é em si mesma anarquica ¢ 0 mesmo tempo tiranica 68 | 69 diregdo, associando sua busca a atividade de governar, De acordo com esse argumento, a imperfeicao humana pode ser instavel e, além di hora isso possa vir a ser questiondvel), mas, mesmo nessas hipéteses, 0, uma Unica e simples condig&o das circunstancias humanas (em- buscar a perfeigéio em apenas uma diregio (especialmente sem des- vios, independentemente do que seja necessario fazer para alcanga-la) © um convite para o desencanto e (o que pode ser pior que a insa- tisfagdo por nao aleangé-la) a afligéo no caminho. No geral, j4 que estamos considerando os tempos modernos, acredito que seja mais correto encontrar as rafzes da politica do ceticismo nessa desconfian- ga cautelosa que em alguma diivida mais radical. A divida radical nao tem estado ausente, como tampouco a concepgio (nao abordada aqui) de que a busca da perfeicéo é demasiado importante para ceder seu controle e diregio a um grupo de pessoas que, por sangue, forca ou eleigao, adquiriram o direito de intitularem-se “governantes”; con- tudo, nem a diivida radical nem essa outra concepgaio sio necessdrias para afastar a atividade dé go - Esse desprendimento priva a atividade de governar do propésito compreensivo (a busca do bem comum) de que desfruta na politica da fé. Aqui, o governo nao deve ser o arquiteto de um modo perfeito de vida, ou (como a £6 0 compreende) de uma maneira aprimorada de fa busca da perfeigao. ‘iver, ou mesmo (como se mostra} de qualquer modo de vida. Con- tudo, privar-se disso néo significa estar privado de tudo. E acredito que as afirmagées que a politica do ceticismo faz sobre a atividade de yovernar, ao contrario da politica da fé, nao esto baseadas em uma doutrina sobre a natureza humana, mas em uma leitura da conduta humana. O cético na politica observa que os homens vivem em proxi- inidade wns com os outros ¢, ao perseguirem varias atividades, podem catrar em contlite, Quando aleanga certas dimensdes, esse conflito nao apenas torna a vida barbara e intolerivel, como pode extingui-la abruptamente. Portanto, a atividade-de-governar subsiste nio_por que € boa, mas porque é necessirin, Sua fungio primordial consiste A Politica da Fé e a Politica do Ceticismo | Capitulo 2 - A Identificacao da Ambiguidade em diminuir a gravidade do conflito humano ao reduzir as ocasiées em que ocorre. Pode conferir um “bem” desde que seja executada de uma mancira que se harmonize com o tipo de conduta correntemente aprovada ¢ nao o prejudique. Essa ordem superficial pode parecer insignificante (algo que a politica da fé aceita sem contestagio), e preserva-la pode parecer uma ocupagao menor, Mas 0 cético a entende como uma conquis- ta grandiosa e ardua, porém nunca fora do alcance da decadéncia e da dissolugao. Ele tem aquilo que Henry James chamou de “a imaginagao do desastre” e, por isso, lembra-nos de que essa ordem pode ser tao fragil quanto valiosa e, quando colapsa, a vida torna- -se rapidamente “solitdria, pobre, desagraddvel, brutal e curta”, sem nenhuma oportunidade para buscar a perfeico e muito pouca para contemplé-la. Mas, embora essa ordem superficial nao deva ser desprey ao cético insistir que nao devemos gastar mais recursos que 0 ne- cessario para sua preservagao. Agora, 0 custo que isso acarreta 6 a concentragao daquilo que, na melhor das hipéteses, sera uma grande quantidade de poder dis- da, ela nao significa tudo. Consequentemente, compete ponfvel na comunidade e também o destacamento de atividades hu- manas com finalidades mais agradaveis. O governo fraco é inctil. Na compreensao do cético, o governo forte nado deve ser visto como um passo na direcdo da politica da fé, pois nao se trata de um go- verno minucioso: sua forga est4 sempre limitada pelo estreito campo de sua atividade. Mas, seja como for, é claramente um atributo do cético considerar a economia no uso do poder ao governar, ¢ a maio- ria das nossas praticas e ideias nesse assunto originam-se desse estilo de politica. Nao estamos preocupados com essas praticas e ideias que pertencem, propriamente, as varias versdes da politica do ceticismo, mas € oportuno, mesmo neste esbogo abstrato, observar a adequagaio, em termos de economia, da conduta do governo (isto 6, a manutengio da ordem) por meio de leis conhecidas ¢ estabelecidas, bem come por 70|71 un sistema_de direitos ligado a (que,.na verdad ¢, 6 historicamente jue, em geral, sua tinica alternativa possivel — a interrupeaio continua ou esporadica das atividades humanas por medidas corretivas ad hoe que requerem no uma pressdo constante e moderada em diregio dav ordem, mas a constante mobilizacio e desmobilizagao de grandes uantidades de poder. © ponto de partida,na visio do cético, é que a (iu ial, e o poder concentra- do pelo governo nao esta disponivel para_quem.queira-promever_ou u projeto favorito. Além disso, ha outr: ‘a razao pela qual é apropriado que o cético esteja especialmente preocupado com a economia do poder no go- verno, Partindo, teoricamente, de uma leitura da conduta humana «jue supSe o conflito entre os homens, e nao vé nenhuma forma de uprimi-lo sem eliminar muito mais coisas ao mesmo tempo, 0 cético iio esta disposto a ignorar que a func&o do governo é ocupada por homens da mesma estirpe dos sujeitos que eles governam — isto é, homens sempre suscetiveis, quando se tornam governantes, a ir além lo ambito de sua atuagao e impor a comunidade uma “ordem” parti- cularmente favordvel aos seus préprios interesses ou (num excesso de jencrosidade ou de ambigdo) para impor algo mais que uma ordem. Por essa razdo, € também apropriado que a politica do ceticismo seja comedida na quantidade de poder outorgado ao governo. E se for necessirio desta mais atividade humana para constituir um org: hismo, nao de governantes, mas de guardides do governo, isso sera considerado parte do custo inevitavel do bom governo, um custo a ser muntide, todavia, no nivel mais econdmico, Na compreensao cética de governar, portanto, a manutengao da ordem & © primeiro objetive do governo. Mas ha, também, 0 que parece ser_unr segundo abjetivos a busea por melhorias e, quando conveniente, o aprimoramento do sistema de direitos e deveres ¢ de A Politica da Fé @ @ Politica do Ceticismo | Capitulo 2 ~ A Identificacao da Ambiguidade seu correspondente sistema de meios de reparacao, que, juntos, com- poem a ordem superficial. A atividade do “aprimoramento”, é claro, deve ser distinguida do que, na politica da fé, compreende-se como o propésito abrangente do governo. Aqui, 0 que deve ser aprimorado nao sao os seres humanos ou suas condutas, nem mesmo suas cir- cunstancias de maneira ampla, mas o sistema existente de direitos, deveres ¢ meios de reparagio. As direcées em qué o aprimoramento deve ser buscado sao inconfundiveis; algumas sao mais radicais que outras, mas nenhuma afasta a atividade de governar do seu primeiro objetivo. Na verdade, o “aprimoramento” é, simplesmente, uma parte da articulagéo da manutengao da ordem. Sera observado que tanto a maneira de manter a ordem como, © carater da prépria ordem estarao sempre condicionados pelo tipo de atividade em que os membros da comunidade estao engajados. De fato, nas comunidades europeias modernas, essas atividades mu- dam constantemente; cada um dos milhares de invengdes mecanicas Provocou uma mudanga dessa espécie. A tarefa do governo, portan- fo, ndo € determinar quais serdo essas atividades, porém evitar que se tornem prejudiciais aquela ordem, sem a qual qualquer atividade (exceto as mais primitivas e desagradaveis) torna-se impossivel. Rea- lizar mudangas correntes na atividade, mediante ajustes necessdrios no sistema de direitos, deveres e meios de reparagao, é a forma mais radical de aprimoramento de que o governo é capaz nese estilo de politica. No entanto, deve-se observar que a atividade do “aprimora- mento” nao é uma atividade independente, subsididria 4 manutengao da ordem; é, em si mesma, a manutengao de uma ordem apropriada. Negligenciar isso nao equivale a deixar de cumprir uma obrigacio: Precisamente, permitir que a desordem se institua. Por essa razao, o aprimoramento, estritamente falando, nao é um s gundo objetivo do governo, mas, tio somente, um aspecto do primeiro e tinico objetivo, N paragiio esti, internamente, em um estado ¢ s, além disso, todo sistema de direitos, deveres ¢ meios de re desequilibrio, O sistema 72|73 nunca foi concebido como um todo, ¢ a coeréncia que possui é pro- duto do reajuste constante entre suas partes. E, ainda que aia tenha ocorrido nenhuma mudanga na diregdo das atividades, o sistema da ordem superficial é sempre capaz de se tornar mais coerente. Meditar sobre esse sistema e torna-lo mais coerente ao responder a suas insinu- agées é uma forma de aprimord-lo que pertence (no entendimento : cético) a fungao do governo, embora suspeite do desmedido amor pela simetria e de um impulso demasiado Avido por abolir as anomalias. Outras direcdes apropriadas do aprimoramento so ainda mais Sbvias. A atividade de governar sempre pode tornar-se mais econdmi- ca em seu uso de poder e recursos; sempre haverd espago para todo tipo de melhoria que torne a ordem menos onerosa, sem, Por it torné-la menos eficaz, Sera um ganho evidente se_uma_quantidade menor de atividade humana for desviada para a ocupagao infrutifers «le contomnar algum excesso de ordem, ou de procurar uma saida para escapar da frustragdo imposta por uma ordenagio muito-insistente. Para 0 cético, ha uma espécie de barbarie na ordem que deve ser evi- tada tanto quanto a barbarie da desordem; a barbarie da order surge quando a ordem é buscada por si mesma e quando sua sacs cnvolve a destruicao daquilo sem a qual ela se torna apenas a ordena- cao de um formigueiro ou de um cemitério. _ A atividade de governar, portanto, da forma como © cético a compreende, pertence a um complexo de atividades; € uma entre i ‘enas de outras, sendo superior a todo o complexo apenas em virrude de ser a atividade que tudo vigia do ponto de vista da ordem publica. ‘inic: i i , tonica Governar nio é impor de uma tinica moral ou outra diregao, tonic is atividades de seus governados. O aleance e a diregao ou mane’ oe das atividades na comunidade sio 0 que sio e, é claro, er E se encontra a aprovagio ou reprevagio moral da conduta corrente. Mas @ aproyagaoou reprovagio moral nao fazem parte da fungao do governo, que nio esta, de modo aljgui, preocupado com as almas dos homens: Farquatquer sentido derradeiro, mio ve decide ¢ nao ¢ A Politica da Fé e a Politica do Ceticismo | Capitulo 2 ~ A Identificagao da Ambiguidade preciso decidir quem esta certo ou quem esta errado; tampouco € ne- cessdrio invocar uma teoria especulativa das individualidades sacros- santas (como a doutrina da liberdade de J. S. Mill) ou (por outro lado} da solidariedade social; a tinica preocupagio do governo € o efeito da conduta na ordem publica. O governiante modesto desse estilo nao se considera mais apto que seu vizinho para determinar um curso geral da atividade humana. Mas sua modéstia termina af: em seu reduzido campo, pode se dar ao luxo de ser inexoravel. E. preciso manter em funcionamento os meios de reparacgdo para que possam recorrer a eles todos os que tiveram seus direitos negados, observar se tais direitos € deveres esto adequados a condigdo momentanea da sociedadé, bem a_corrupgao dessa “justica”. Se acrescentarmos a isso como preveni: a tarefa de estar preparado para proteger a comunidade contra um inimigo estrangeiro, ou para defender seu interesse (se tiver algum) no mundo em geral, nao estamos acrescentando nada de novo. Ff verdade que a defesa da ordem deve ser exercida de uma maneira mais empi- rica e que se trata menos de uma questao de garantir 0 cumprimento de direitos e deveres que de buscar uma politica; mas seus limites so os mesmos, € liderar uma cruzada moral contra um um. pais. estrangeiro tao incomum nesse estilo d de governo quanto com nanda: puma cruzada Em resumo, na politi- ca do ceticismo, o governo é como bom humor e sétiray um nao nos moral contra qualquer um de seus s governados. Jevard ao céu ¢ 0 outro nao revela “verdade”, s 0 primeiro pode nos salvar do inferno, o segundo da estupidez.. Agora, como ocorre com a politica da é, podemos preencher este esbogo abstrato da politica do ceticismo considerando algumas de suas implicagdes. Para esse estilo de governo e esse entendimento da atividade de governar, é apropriado que haja certo nervosismo quan- to ao exercicio do poder lidade de ultrapas onde os limites sio severos, ar sponsabi- ida ou ambiciosament clos, inadver . & grande, Nao acho que devamos atribuir ao eético na politica, como questio de principio, uma espécie de erenga no valor absoluto da diversidade 74/75 na conduta humana; de forma mais apropriada, ele observa que essa diversidade existe ¢ nao reconhece que ele mesmo ou qualquer ou- (ra pessoa tenha autoridade para destrui-la. No entanto, o governo exerce certo controle sobre a conduta de todos os habitantes de um \errit6rio; para realizar sua limitada atividade, ele inevitavelmente se encontra em posse de um poder que, se usado para esse propésito, é suficiente para impor uma uniformidade mais extensa que a neces- siria para a manutencdo da ordem superficial. Consequentemente, o defeito caracteristico da virtude-desse estilo de governo nao sera a lraqueza no caso concreto, mas-uma-tendéncia a subestima-lo. Acre- ditando que assim como o alho na cozinha, o governo deve ser utili- yado de forma que apenas sua auséncia seja notada, a desconfianga iva. Con- do cético é imediatamente despertada pela atividade intrus tudo, ele nao tem diivida de que a auséncia do governo seria notada. Além disso, nesse estilo de governar, um alto grau de formalidade iorna-se apropriado, e hayera consideravel atencio aos precedentes. Mas isso no é devido a uma erenga de que o precedente represen- ta “verdade” e que se afastar dele é um “erro”, mas simplesmente porque se a manuteng&o da ordem nao for disciplinada, ela rapida- inente se corrompera em parcialidade ou na busea de projetos favo- ritos, A formalidade é valorizada pelo cético porque é uma maneira ccondmica de evitar 0 excesso em um campo em que o defeito lhe é preterivel. Da mesma forma, no estilo cético da politica nio havera etroativa e para toda transgressio das leis que puna uma conduta que nao esteja claramente proscrita; 0 castigo sera lupar para a legislagao ‘lefinitivo para os condenados por crimes em um ou outro de seus yraus conhecidos; o veredicto barbaro “ndio comprovado”,’ resquicio © grande matoria dos sistemas processtiais penais no mundo opera tendo por base dois possiveis veredictos: citlpado ou irocente, Oakeshott meneiona uma terceira possibilidade, até hoje presente no direito eseacés, a chamada ndo comprovagao (not proven). Vin fermon priticos, © réu nde comprovado fre nenhun \ inplicagos legais da absolvigho, ou yejay nie A Politica da Fé e a Politica do Ceticismo | Capitulo 2 - A Identificacao da Ambiguidade da intransigéncia tribal disfargada em trajes de rigor cientifico, que pertence a politica da fé, nao tera lugar aqui. No que diz respeito 4 conduta do sujeito individual, a punig&o sera preferida A prevencao, porque, em geral, ¢ impossivel impedir agdes sem assumir 0 controle de uma vasta drea de comportamentos que as rodeiam sem 0 exerci- cio de um grande poder — em suma, sem transformar a sociedade civil em uma sala de aula mal administrada, em que cada ligao é precedida de estilingues, brinquedos e pegas de xadrez, algo que torna os alunos e professores igualmente infelizes ¢ ansiosos pelos feriado: Novamente, a convicc&o cética de que governar nao € uma questdo de estabelecer a “verdade” de uma proposicao e traduzi- -la em uma conduta, mas de impor certa ordem superficial, deter- minara sua compreenso acerca de algumas instituigées familiares do governo moderno. A discussio e a “oposicéo” nao serao vistas como. meios para a “descoberta da verdade”,” mas uma forma de chamar a atengio para algo que, de outro modo, poderia ter sido esquecido, bem como para manter o governo dentro de-seus_pré- prios limites e, consequentemente, serdo atividades desempenha- das de forma continua e nao ocasionalmente ou com relutancia. Em geral, 0 cético nao dara mais valor aos aspectos que tornam as instituig es aptas a despachar negécios, sendo aos aspectos que reduzem o dano que pode ocorrer quando as instituigdes estao nas mos de homens ambiciosos. Ele reconhece que, por mais limita- da que seja a esfera do governo, sera, sempre, uma atividade para punig2o ¢ é considerado inocente aos olhos da lei. Contudo, a percepsio por tras desse veredicto é que ele acaba sugerindo a condenagao, ou seja, 0 promo- tor ou 0 jurados consideram o réu culpado, mas nao possuem provas suficien tes para condend-lo. Isso gera bastante controvérsia, tanto por estigmatizar 0 acusado como também por frustrar as expectativas leg as das vitimas de terem uma solucao definitiva do caso. Oakeshott considera esse instrum uma barbarie, pois ele vai de encontro & pr cipiologia do moderno direito penal, que tem na presungao de inocéneia um de seus pilares. (N. 1.) Lindsay, Pssentiats of Democracy, p. 35, a salific: St e um 1 qual os seres humanos esto plenamente qualificados: exig dlesinteresse que est sempre ausente. Conseque «s, 0 cético acolherd a “corrupgio” com boa ese a uma parcialidade mais séria ow a uma .quentemente, em certas a m boa vontade se circunstancia for o meio de contrapo! ambicado mais devastadora. Por iiltimo, na politica do ceticismo, e tampouco requer entusiasmo nrado e re éevidente que a atividade de wovernar nao é nada entusiasmante, 0 governantes ocuparao um lugar honra ; peitavel, mas nao elevado; sua qualidade nia notavel = eae pretendam reivindicar uma capacidade divina para dicigir as atv lis te minorem quod geris, imperas.” por seus servigos. Os des de seus governados - d Iv Com 0 esbogo abstrato desses dois estilos de politica diante de forma minha afirmacio de que a ambivaléncia nds, comega a tomar a onfusio a respeito tanto da atividade da politica moderna € uma ¢ f a i i, as duas como de sua compreensio, cujos polos sio esses estilos. Aqui, le conduzir e de entender o governo sdo totalmente opostas rrespondem aos extremos abatiato’ He qu * os extremos abstratos sao ideais; histo- ompreensio do governo ocuparam xcutsdes esporddicas aos maneiras di entre si, porque cor politica é capaz. Mas, € claro, s de que nossa ricamente, nossa pratica e nossa ido intermediaria, somente com © uma regi ‘ eas 20s No entanto, tanto a pratica quanto a compreensao mi tais olhares e movimentos horizonte’ a ram € avancaram em ambas as diregdes; tém constituide nossos dois estilos de politica. nr aos deuses, voce comanda. se comporta como inferio ndido com o politica do ceticismo possa ser confu ino”, Se possivel, essa confuse SYiste que vos Temo que meu esbogo da que tem sido chamado de “estace vinta aqui considerando So estado”, mas somente jo estou aqui considers dove ser evitada, Ni wividade de governar A Politica da Fé e a Politica do Ceticismo | Capitulo 2 ~ A Identificagao da Ambiguidade Nao resta diivida de que o lugar que salus passou a ocupar no vocabulario da religiao crista, com o sentido de salvacao do pecado € seus castigos, estimulou a exploragao na politica de alguns de seus significados mais amplos. A Idade Média parece ter dado pouco uso para essa frase de Cicero; mas a encontramos pela primeira vez na moderna politica inglesa na férmula da prerrogativa real, aquela “massa de poderes, direitos e imunidades que distinguia o rei de um individuo privado” e que, no século XVI, comecava a ser entendida como o poder discricionario real, que nao estava contido na soma i exercido fora do Par- lamento, Essa prerrogativa, sem dtivida, é a autoridade para corrigir aquilo que se perdeu em uma emergéncia. Mas nao apenas isso. Ao se apropriar de salus populi como sua formula, o que pretendia denotar era 0 “beneficio geral do reino”,"' algo mais amplo que “se- guranga publica”. Assim, a palavra subiu, mas nao muito, na escala de seus possiveis significados. Mas nao demorou muito para que a expresso estivesse voando para além dessa altura média. Bacon, caracteristicamente, depois de lembrar os juizes que sua funcdo é jusdicere ¢ nao jus dare, também os aconselha a serem guiados pela maxima salus populi suprema lex, os quais, caso tivessem escutado © conselho, teriam transformado suas cortes no tipo de tribunais com os quais estamos familiarizados - “tribunais populares” que nio julgam crimes, mas maus comportamentos indefinidos, e que nao aplicam a justiga de acordo com a lei conhecida, mas algum ou- do direito escrito ¢ consuetudinario ¢ que er tro tipo de “justiga”, talvez a “justica social”, Quando aqueles que haviam abolido a monarquia e sua prerrogativa passaram a consi derar 0 principio regulador do governo, sua “lei fundamental”, com frequéncia escolheram essa citagio ciceroniana. Foi atribuida uma grande diversidade de interpretagéo, surgindo como a férmula do Ch Chief Baron Fleming in Bates’s Case (1606) Prothero: States ard Constitutional Doctments (1558-1625), p. 341 80 | 81 antinomianismo radical e também de um constitucionalismo estrito. O significado de salus foi ampliado: significava 0 “bem publico”, “o bem-estar ptiblico”, “a prosperidade da nacdo”, ¢ essas expres- sdes, por sua vez, foram interpretadas de alguma maneira como “o estabelecimento da verdadeira religido”, “o império da retidao” e a “salvagio”. Nao é surpreendente que o sardénico Selden descubra que “nao ha nada no mundo mais deteriorado que essa sentenca, salus populi suprema lex esto” .!* ‘Tampouco salus era a tinica palavra ambigua nessa expressao. Entre os romanos, populus era o equivalente de civitas ou respublica. Cicero sempre usa salus, geralmente com o significado de “garantia ou “seguranca”, em um sentido estrito em relagio a civitas.'" Esta claro que quem tomou essa expressao como a formula da prerroga- tiva leu populi como “reino”. Outros que vieram depois mantiveram essa interpretagao. Mas havia aqueles para quem populi adquiriu um significado exclusivo, nao populus, mas plebs; ¢, assim, surgiu 0 vul- gar significado contempordnco de “o povo”. Alguns até leem a ma- xima como se populi se referisse a cada sujeito individual; de fato, Locke, com inadverténcia tipica, faz isso em mais de uma ocasido. Suprema mostrou uma ambiguidade similar: algumas vezes signifi- cava “fundamental”, outras vezes “avassalante”; representava 0 que deveria ser considerado em primeira instancia e o que deveria ser 0 ultimo recurso quando todos os indicadores falhavam. Acredito que ninguém interpretou lex como “lei” em sentido estrito; salus populi era considerada como o ditame da lex naturalis, mas frequentemente se escrevia a respeito da lex como se fosse jus. Quando o latim dew lugar ao inglés em nossa linguagem politica, oalcance do significado e da ambiguidade de salus foi herdado pel: iS palayras que vieram a substitui-lo, no caso, “salvagao” e “seguranga”. Valk, CAL Vo Uy 94, $14 2,23, 43) 6, 12, 12, Vor, 2. 2.6, 165 2. 1, 2.4, ‘A Politica da Fé e a Politica do Ceticisrno | Capitulo 2 A Identificagao da Ambiguidade Pitt afirmou que a Inglaterra “salvou” a Europa com seu exemplo ¢ a si mesma pelos seus esforgos, e esté claro que ele estava falando desde o fundo do alcance do significado. Ele quis dizer “salvo” de ser “conquistado”, “tesgatado” de um opressor. E se os revoluciondrios tivessem traduzido isso como “salvo” de ser “libertado”, “resgatado” de ser “salvo”, a extensio do significado seria notavel, mas mediada de tal forma que se tornaria ininteligivel. Mas hoje, quando um poli- tico na oposigio diz a seus eleitores, “quando a eleigao geral chegas, vocés precisam derrotar o atual governo para entao, e somente entao, termos a chance de salvar a humanidade”, sabemos que estamos indo para outro mundo. F.0 que é verdade sobre a palavra “salvar” é igual- mente verdadeiro para a palavra “seguranca”; na verdade, sua gama de significados ¢ sua ambiguidade so notérios demais para exigir uma ilustragao. Meu segundo exemplo diz respeito a palavra “Direito”, e aqui a situagao nao precisa de muita elaboragao. A palavra “direito”, quan- do precedida pelo artigo indefinido, apresenta uma escala de signifi- cados que varia de um extremo a outro, e tais extremos, em minha opinido, sio os significados apropriados para nossos dois estilos de politica. Na extremidade inferior dessa escala, “um direito” denota a autoridade de desfrutar de certo tratamento pelas maos de outros ou de condurir-se de determinada maneira, 0 que se une a um mé- todo de buscar reparago ou compensacio por qualquer frustracao que possa ter sofrido. A respeito dos “direitos” nesse extremo da escala, acredito que, em linhas gerais, os meios de reparacao surgi- ram primeiro e 0 “direito” tenha sido subsequentemente formulado como uma inferéncia; geralmente, a formulagdo é um pouco mais liberal que o meio de reparacao € capaz de assegurar. Dessa maneira, normalmente, temos 0 direito de nao ser presos por mais que um curto periodo sem que um julgamento seja marcado, ¢ 0 direito de seguir em liberdade se, aps 0 julgamento, nao formos condenados, © nenhuma outra acusagao reeair sobre nds. Um pedido de habeas 82 [83 corpus é, em geral, nosso meio de reparago. Novamente, com certas excegdes, tenho o direito de que meu ingresso em uma universidade britnica n&o seja recusado por causa de minhas crengas religiosas; isso significa que posso interpor uma agao contra quem me recusou com base nesses motivos; 0 que, por sua vez, significa que devem pensar em outra razio para me recusarem, caso seja isso que dese- jem. Meu direito é, de fato, o de nao aceitar esse motivo ao ser recu- sado. Além do mais, tenho o direito de nao ser preso por um policial, a menos que ele alegue uma base razoavel para acreditar que cometi um crime, e, se for preso, posso propor uma ago contra o policial, Iambém tenho certa liberdade de expresso, e, se quero saber pre- cisamente 0 que isso significa, posso apenas descobrir ao averiguar qual liberdade de expressio possuo que nao me torne suscetivel a sofrer um processo. Em outras palavras, meu direito é o dever de outra pessoa, e direito e dever se definem mutuamente. ‘Agora, alguns dos direitos que foram proclamados parecem bem mais amplos que aqueles que estamos considerando; os direitos, por exemplo, a “vida, liberdade e busca da felicidade”. E, com isso, 0 sig- nificado da palavra “direito” comega a se expandir. Durante muito tempo, estivemos acostumados a nos: tranquilizar sobre essa expan- sido por meio de adjetivos; reconhecemos os direitos do extremo infe- rior da escala como direitos “legais”, e logo denotamos outros como direitos “morais” ou “sociais”. Mas esse estratagema nao resolve cnigma nenhum. O que é significativo sobre os direitos na extremi- dade inferior da escala no é que eles sejam “legais”, porém limita- dos; ¢ 0 que é significative sobre os direitos que surgem medida que subimos a escala do significado nao € que eles sejam “sociais” ou “morais” em vez de “legais”, mas que so amplos — como veremos, alguns deles sito, de fato, “legais”. Agora, © que significa 0 “direito vida"? fo direito de néo ter minha vida eliminada a nao ser pelo Uevido processo le al? Ou Go direito de desfrutar de certo tipo ou padvio de vida? Se & 0 primeiro, entao ainda estamos na extremidade A Politica da Fé e a Politica do Ceticismo | Capftulo 2 - A Identificacéo da Ambiguidade inferior da escala; se é 0 segundo, comecamos a nos mover na dire- ao do outro extremo, embora ainda possamos estar falando sobre um direito “legal”. A vida, em suma, é uma palavra ambigua, e o “direito a vida” revela a potencial ambiguidade da palavra “direito”. E 0 que é verdade sobre a “vida” também o é sobre a “liberdade” e “a busca da felicidade”, exceto que aqui (mas nao em toda parte) a iltima 6 mais cautelosa ~ nao chega a proclamar o direito de obter felicidade. Desse modo, podemos subir na escala e, quem sabe, pos- samos considerar que chegamos ao topo quando aleangamos o di reito proclamado em outra famosa declara¢ao, o direito a “liberdade de viver sem miséria”,"* embora nao haja motivo para que tal direito se sinta sozinho no topo — ha muitos outros da mesma espécie. Mas se isso € um “direito” (e pode ser um dircito legal, embora carega de definigao), entao sem dtivida nao é um “direito” no mesmo sentido que a liberdade de nao ser preso arbitrariamente é um “direito”. Compreendemos com facilidade 0 que Scaliger quis dizer quando afirmou que na Franga “todo mundo tem o direito de escrever, mas '* Oakeshott refere-se aqui ao discurso do presidente Franklin D. Roosevelt proferido diante do Congreso dos Estados Unidos no ano de 1941, poucos meses antes do ataque a Pearl Harbor e do posterior ingresso americano na Segunda Guerra Mundial. Em sua fala, que ficou conhecida como o Discurso das Quatro Liberdades, Roosevelt procurou sintetizar quatro objetivos ou es- feras de liberdades fundamentais de que todos os seres humanos deveriam dis- por: liberdade de expressao (freedom of speach), liberdade religiosa (freedom of worship), liberdade de viver sem miséria (/reedom from want) ¢ liberdade de viver sem medo (freedom from fear). A liberdade de viver sem miséria significa, em linhas gerais, que todos os homens possuem direito a um nivel adequado de vida, Uma versio elaborada desse conceito pode ser encontrada no artigo 25 da Declaracéo Universal dos Direitos Humanos: “Toda pessoa tem direito a um nivel de vida suficiente para the assegurar e 4 sua familia a satide ¢ o bem-estar, principalmente quanto a alimentagio, ao vest alojamento, ai assisténcia médica ¢ ainda quanto aos servi io, a0 cos sociais neces sirios, e tem direito & seguranga no desemprego, na deenga, na invalidez, na viuver, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsist por cireunstincias independentes da sua vontade”. (N.T) 84/85 poucos tém a capacidade”: ingressamos em um mundo diferente quando proclamamos a capacidade de escrever como um “direito”. lo que dizer dessa palavra numa famosa expresso da Revolugdo Francesa: “Todo francés tem o direito de enfrentar os inimigos do seu pais no campo de batalha”. ‘Assim, observamos aqui a mesma amplitude de significados que vimos no caso de salus como um termo politico. Em um extremo da cseala, posso ter o dever de impedir que ervas daninhas que crescem ha minha propriedade corrompam a terra do vizinho e posso vir a onado caso no cumpra o meu dever; no outro extremo, posso ter a obrigacdo de cultivar a minha terra “de acordo com as regras do bom cultivo” e uma penalidade penal também pode ser atribuida ao fracasso. Em um extremo da escala, ha o direito de nao ser preso arbitrariamente; no meio, talvez, encontra-se 0 “bem-estar”, o direito da mulher gravida de ter suco de laranja 4 custa da comunidade; ¢, ho outro extremo, esta o diteito proclamado a liberdade de viver sem mis¢ria, No fundo, ou perto do fundo, esta 0 droit de travail; no meio (ou talvez um pouco mais acima) esta 0 droit au travail; no topo, esta 0 “campo de trabalhos forgados”. Acredito que os extremos do significado tém correspondido ao (jue € proprio, respectivamente, da politica do ceticismo e da politica ua {@ De fato, tomei esses dois estilos de politica com base nos ex- tvemos da conduta e da compreensao que se revelam em nossa ma- neira de falar, e sto formulagées convincentes apenas na medida em que tornam inteligivel a confusao atual ¢ histérica da nossa politica. implesmente do emprego de uma éni \ ambiguidade, é claro, surge G1 palavea para concepgées diversas e oposta \té agora, entio, temos diante de nds esbogos abstratos dessas diay maneiras de governar e de entender 6 que é proprio da fungio do govern, ‘Também observames 0 que pode ser chamado de me- canismo da ambiguidade, Nossa préxima tarefa sera considerar as contingéneias da politica da {¢ ¢ da politica do ceticismo,

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