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TRABALHOS DE ( rENCrAS SOCIAIS Série Antropologia ne so Brasilia-or 1985 A COMIDA, A FaMfira EA CONSTRUCAD DO GENERO FEMININO(*) Klaas Woortmann “-<© #aFa publicagao em panos. ' ‘y Une Leitura da Comida Alimentos s80 necessérios Para 8 reprodugtc dos ines vfduos, e portanto, dos membros de uma familia. sao iguaimente ne cessérios para que se Pestaurem as energias gastas No trabelho, e por isso, comer € preciso para que se reproduze a forga ye traba- tho da familia. was, a Comida € mais que apenas elimente Em qualquer Sociedade, os alimentos $8, n80 apenas Comidos, mas também Pensados. Em outras Palavras, a comiga possue um significado simbélico _. ela "fala" de aigo mais que nutrien- tes. A familia, por Seu lado, n&o se reprodyz apenas no plano bio construcao ideolégica, ela S€ reproduz no plano Simbdlico, © uma das dimensdes dessa Teproducao pode ser SPTEeNdida pelo moda ge comer. Finalmente, @ familia © © parentesco de forma mais ge. Tal — supée homens e mulheres e, como veremos, 0 género é também construido, no plano das representages, através da Percepcao da comida. Com isso queremos Cizer que a comida “fajan da familia, de homens e de mulheres, tanto para o antropdlogo que Tealiza una leitura consciente dos hébitos de comer, como Para os — pr6- Prios membros do grupo familiar — © através deste, da sociedade ~ 94ue Tealizam uma prética inconsciente de um habitus alimentar(1), Qualquer cultura Giscrimina, dentro do universo de alimentos possiveis em cada Pcossistema, o que se deve e © que mos em algum detalhe, no Brasil a comida 6 Sempre pensada com re. Jagao ao corpo, e a partir desta relacgo Perzebida constroem-se Telagdes sociais representadas, (1) A noc&o de habitus, como cultura internalizada sob forma de disposicdes permanentes @ informar uma Tética, e como culty Ta “histérica e Maturalizada, 6 desenvolvida por Bourdieu (1980), crigdes alimentares. Na medida em que diferentes grupos ou cate- Gorias nacionais, étnicas ou regionais elegen diferencialmente o que se pode ou n&o comer, ou discriminam entre o que é comido ‘por nds" @ 0 que € comido pelos “outros”, os h4bitos alimentares alimentam identidades e etnocentrismos. © como se come, tanto quantoo que secome 6 também carregado de significado. Em Bali, como mostra Geertz, deve-se co mer em isolamento: ia repulsa balinesa contra qualquer comportamento yous) gO animal n&o pode deixar de ser superenfati 7208; E Por isso que nao se permite aos bebes onco= tinharem ... N&o apenas defecar, mas até comer, é visto como uma atividade desagraddvel, quase obscena qee Gove ser feita apressadamente © em particular. Gevido As suas associagdes com a animalidade’ (ar. Geertz, 1978: 286). &m varias culturas islamicas deve-se comer com as m&os, © mais especificamente com a mao direita(2), Comer e defe- car, direita e esquerda sao oposigdes que expressam as noches de impureza. Esta € uma das razSes pelas quais a punigio impesta a criminoses — a amputagao da mo direita — 6 tao severa, pois © Punido € obrigado a comer com a mema m&o (a “sinistra® dos ro. manos) com que limpa o trazeiro, condenado assim a uma cont {nua Poluigao. Nossa prépria cultura pensa o comer de forma distin- ta. Entre nés poluicdo seria comer com as maos, ¢ seguramos ° gerfo com a m&o esquerda. Para nés a refeicé> € um ato social mao privado. A rigor, como veremos adiante, sé é refeicéo 0 ato de comer em grupo, © hé diferencas significativas entre o comer cotidiano © 0 comer cerimonial (ainda que ambos sejam ritualiza. dos), ou entre o comer em casa e o comer em piblico. 0 caréter simbélico-ritual do comer se expressa claramente no hdbito de (2) © simbolismo da mao direita & comum a muitas culturas, em as- Sociacao com as categorias de pureza/poluicao, tao ben anali Sadas por Mary Douglas em seu “Pureza e Perigo”. convidar pessoas | ). 0 comer “mais associa ~se a0 descanso que, na opini&o dos informantes de Souto ce 1 veira, permite uma refeic&o mais “pesada", numa interessante transformaga&o da Telacdo entre tefeigao e€ trabalho. 0 almocgo de domingo inclui sempre uma carne “melhor — que pode, as vezes, Ser um ehurrasco — ov um assado ao invés do cozido. Assim, o al moco de domingo distingue-se pela presenca do “mais” e do me- Ihor"; mas, fundamentalmente, distingue-se pela Presenca do pai de familia. Zaluar (1962), ao analisar o papel da dona de casa ne organizac&o do consumo doméstico, ressalta a centralidade da conida nessa organizacao e seu significado na definicao tanto do Papel masculino como do feminino. “A importancia fundamental da comida nesta hierar- guia de consumo fica clara nas afirmacdes ouvides constantemente de que “o dinheiro tem que dar para a comida", ou que “a comida no pode falter’, afirma gbes essas que se referem tanto ao papel masculine (15) Nao se esté querendo aqui minimizer os aspectos simbélicos Ga refeic&o dominical. 0 almogo de domingo, € bom notar, 6 pode agembem 805 estratos mais abastados da sociedade. ‘onde pode assumir a forma de “almocar fora" —e aqui talver a m&e de familia seja a figura ritualmente Privilegiada - ou Ge'vreunir @ Familia". 0 almoca de domingo é “especial” mes reset e eee UDOS gue Podem comer bem todos os dias. o "que seeseite seu cardter ritual. 0 que se deseja aqui é apenas enfatizar a especificidade da condic&o operéria. +22. de botar a comida para dentro de casa quanto ao pa- pel Feminino de controlar o consumo, economizando na compra e n&o desperdicando na producéo do alimento dentro de casa... 0 que € comida dentro de casa, termOmetro do papel masculino bem desempenhado? Na verdade limita-se ao que eles chamam as compras e que consiste nos v4rios Guilos de feijao-.-, de-arros.... dos pacotes, de macarrao Estas ‘compras” sao em geral feitas pe- lo chefe da familia e cabe & mulher, ent&o, economi- zar para que durem até o préximo pagamento. Se o di-~ Nheiro do chefe no dé para as compras, ent&o a mu her ou algum filho “ajuda” o chefe, sinal de que este n&o consegue sustentar a familia, o que o dimi- Qui ante os seus olnos (grifos nossos). Bom marido & aquele, portanto, que gosta de trabalhar, isto prolonga suas horas de trabalho de modo a poder a car sozinho com essa despesa” (Cf. Zaluar,1982:170). As observacdes de Zaluar s&o coerentes como que j4 foi dito, assim como com outras dimensdes da ideologia familiar por nés estudadas (Cf. Woortmann, 1984). S&o coerentes também com © que se segue. Em determinados momentos do ciclo de vida do grupo doméstico 0 pai pode nao ser mais o chefe da fam{lia, num sentido objetivo. Sua contribuigéo ao orcamento doméstico pode néo mais ser a Gnica ou a principal. Mas o uso de sua contribuigdo € sim- bélica de sua chefia, ainda que esta seja agora uma ficc&o. Nessa situacdo pode-se observar que “a primeira feira é a do marido', ou que “a primeira feira é a do feijao", o que significa que no planejamento da despefa familiar pela m&e, o primeiro dinheiro a ser gasto € 0 do pai, e que este dinheiro é gasto com comida, no sentido restrito do termo, aqui representado pelo feijao. € com © dinheiro do pai que se compram os alimentos, ficado as demais despesas por conta de outros membros da familia. A centralidade da co! um drama, € ele que continua trazendo para casa “o de comer da associa-se & centralidade do pai; ainda que se trate de —m grupos camponeses tanto a venda dos produtos como a compra de outros é normalmente feita na feira, pelo pai. Em de- terminadas circunsténcias, todavia, é preciso comprar na venda. Mas, como mostra Garcia Jr. (1983), comprar “fiado" na venda (sei pre vista em oposig¢ao & feira) & negativo, pois significa nagéo e ter de adquirir produtos de qualidave inferior. Portenta de uma ameaca ao status do pai enquanta che €. Po & compra “fiado’ € sempre realizada por um f: iho. sitaeSt8s Compras para o abastecimento da casa sto feitas sob controle do pai que mands 5 filho faze jdas; De mesma forma, o Gono de venga-so oy enderé @ ym filho quando é para por na conta da familie, se est® tem autorizacao do Pai pare Fazé-lo” (cr. Gar cia Jr., 1983:140). Desenvolve-se ent&o um pequeno drama. A venda € ° Sposto da feira, e o pai esté para esta como o filho esté para aquela. Deste drama participam o pai, o Filho © © vendeiro. © pai Manda o filho comprar; o vendeiro sé “fia» mediante autorizagto do pai, simbolicamente resgatado por este "rito de inversao”. Referimos, pouco atrés, eos dados ge Zaluar (referen fes a trabalhadores de um conjunto habitacional Proletério do Rio Ge Janeiro) © ressaltamos a convergéncia dos mesmos com as demais evidencias aqui apresentadas. Para aquele Grupo comida também € aquilo que “sustenta", que “enche a barriga", e a auséncia da co Riga € percebide como fome. Igualmente, a carne é a comida mais forte. Contudo, Zaluar afirma que suas observactes contradi zem outros estudos num ponto central para a Nossa andlise cEstas informacées negam os dados de outras Thadonegundo as quais haveria nas famfliae de ~ ihadores urbanos pobres a norma de privilegiar a a- -os primeiro e melhor. Nas minhas observacdes nem a gegen nem @ quantidade ou qualidade da conids fonoe pert ee Os gue estivessem trabalhando naquele mance ) E diz também a autora que: mide registrei nem um sé caso de preferéncia pelo ho mem que trabalha, excec&o feita aos operérios de Apenae seo, C4vil que levam marmita para seu travalle. apenas neste caso, a comida melhor & tesecvada para ele, de modo a n&o envergonhé-lo Da frente dos cole- gas" Tr. Zaluat, 1582 TI grifos nossos). +24, © segundo trecho portanto relativiza o primeiro, e confirma o que antes dissemos a propésito da refeico piiblica do chefe da famflia. No entanto, a autora registra que “ao lado de adultos gordos, viviam criangas muito magras, como corpo cober- to de feridas infecciosas e baixas para a ioade" (Idem: 177) .Afir- ma também que: poprincipio seguido na distribuicao dos alimentos, feita pela me, segundo o qual recebe mais comida em come mais, favorece os que jé “aprenderam™ a goster des sth mentos por eles valorizados, deixando Ge lado as dificuldades infantis de aceitar um ali- mento de que no gostam" (Idem: 178; grifos nossos). E diz ainda a autora: 40 Processo de inculcacao desses hébitos alimentares faz-se, portanto, de um modo violento, e que as ve. zes inclui a violéncia fisica ... Ndo'é de surpreen- der, portanto, que os sinais de desnutrigao este jam mais visiveis nas criangas* (Idem: 177). E, finalmente: “s+: a distribuicaéo feita pelas mies, segundo todas as entrevistadas, é o de encher mais o prato de quem $555 Mais © encher menos de quem come menos" (Idem: Considerando que naquele grupo as criancgas sao obri- gadas @ comer "a comida que todo mundo come, o que significa ob viamente a comida destinada aos adultos, néo é de surpreender, Tealmente, que os sinais de desnutric&o este jam mais vis{veis nas criangas. 0 que ocorre neste grupo parece ser apenas uma outra forma de privilegiar o homem adulto, equivalente em seu significa do so registrado nos demais estudos. De um lado, & muito possf- vel que, tal como na fam{lia de Miguel, estudada por Gross, nfo haja consciéncia do que realmente ocorre. De outro, é preciso ir além da “exegese nativa”. Esta 6 a "leitura" consciente que fazem de sua prética. Mas, como dizia Geertz, € preciso ler “por cima dos ndrosn( 18) | (16) ma tal “leitura" nao deve, todavia, ignorar as condigdes neretas de existéncia que conformam a prética. No caso, a vobreza. 25. No infcio desta secc&o do presente trabalho dissemos aue pela comida o homem-espécie se separa da natureza, pois ele n&o deve ser comido, E dissemos também que no discurso alimentar eePara-se © homem-género da milher-género, devolvendo-se esta Ultima 4 na tureza. E 0 que veremos @ seguir. até aqui analisanos o significado do que Se Geve comer, com relac&o ao homen; vejamos agora o que nao co deve comer, com relag&o.& mulher. Proibicdes Alimentares ¢ a Construggo Social da Mulh Fxistem ainda outras formas de perceber os alimentos, quais podemos também extrair uma leitura que agora nos re ré & mulher © & construg&o do género feminino dentro da familia. ete Em muitas regives do Brasil, os alimentos s8o per- cebidos por sue "natureza" como “quentes” ov *frios", o que nada tem a ver com sua temperatura, mas com uma “qualidade. De um modo geral n&o se explica diretamente o que & quente ou Frio a n&o ser pela relac&o percebida para com o organismo humano, ou por associac&o @ outras caracteristicas. Assim, no Paré, como mos tram Maués & Maués (1977) uma carne tenderé a ser definida come frig se 0 animal: a) vive no barro ou se alimenta de barro; b) é branco ou tem a carne branca. E seré quente se o animal tiver a carne amarelada ou vermelha, for sangiiineo © possuir cascos (*sa- patos"). Assim, 0 porco € considerado frio e a carne de gado Guente. Os hébitos de vida do animal talvez sejam outro fator: o porco habite a lama © seu corpo “recebe muita frialdade® mente © oposto do boi que vive exposto ao sol ¢ pisa o ch&o quen te © seco. A ostra sernambi vive na lama, que é fria,enquanto a ostra comum vive nas pedras, exposta ao sol. £ Possivel ent&o que © Porco © @ ostra sernambi sejam percebidas como escapando a Classe geral a que pertencem, © por isso definidos como inversos aquela classe. 0 mesmo ocorre com os peixes quentes: a categoria Peixe € definida como frie, mas existem alguns peixes quo s&o Guentes. Se o peixe normal, com carne branca € frio, o pcixe and- malo, de carne amarelada e sangiineo seré, por uma questéo de exata- 26. légica, quente. Tais percepgdes sfo extremamente variadas, e 0 ali- mento que & quente numa regiao poderé ser frio noutra. Mas, nao s&o essas classificagSes em s{ mesmas que nos interessam, e 4 as analisamos em outro trabalho (Cf. Woortmann, 1978). 0 que im- porta é a universalidade da chamada “sindrome quente-frio", que n&o se limita ao Brasil mas abarca também o mundo mediterraneo e a América Latina (e mesmo, em outras formas, culturas africanas, a0 que saibamos). H4 um critério geral que define a qualidade do ali- mento: sua relag&o percebida com o organismo humano. Comidas quentes so aquelas percebidas como ofensivas ao aparelho diges- tivo, enquanto as frias s&o as consideradas ofensivas ao aparelho cizculatério. Novion (1977) analisou em detalhe a relac&o entre a classificag&o dos alimentos em quentes e frios e os estados do organismo, mostrando a existéncia de uma relac&o entre o sistema alimentar e 0 sistema org&nico. Nao sao apenas as comidas, mas. tanbém as doengas e as partes do organismo que se classificam em quentes e frias. Também Maués & Maués registram a percepgio de doengas que contém “frialdade” e outras que contém "quentura®: de um lado, os ferimentos sem pus, o reumatismo de "frio" e doengas dos rins; de outro, a “dor d'olhos", a alergie, a diarréia, hemor réidas, ferimentos inflamados. Mas, como observa Novion, as oposigdes entre quente e frio nada indicam em s{ mesmas; sé fazem sentido quando se in- corpora o princ{pio de equilfbrio dos contrdrios. Os elementos con tririos devem existir, no corpo, em interdeperdéncia, para que se efetue o equilfbrio da ordem (sadde) e se cvite a desordem (doenga). Para tanto, as partes frias do orgarismo nao podem ser imsadidas pela "quentura". As categorias quente e frio transcendemo dominio dos alimentos. Poderia-se dizer que s&o categcrias cosmélogicas globais, onde se opoem o dia e a noite; o sol e a lua; o nervoso € 0 calmo; © racional e o emocional; a luz e » escuridio. Todo o zie universo se classifica em quente ou frio. No Brasil, plentas sto Frias ou quentes, como o s&o também os solos. Mas, se de um lado 8S categorias se opoem, de outre se combinan, © é de sue combina- gao equilibrada que depende a harmonic universal. Em Sergipe, con Sorcian-se plantas quentes com outras frias para que o Togado “prospere". Uma dieta equilibrada deve combinar comida quente fon comida fria. Se o dia € necessério, a noite o é igualmente, © deles precisamos em doses iguais. A oposic#o dos contrérios, que é tambén a uni&o dos opostos, atinge ainda a outros dominios. Existem olhares *c&1i- Gos" © olhares "gélidos". Ambientes sociais que devem ser essen- cialmente dotados de “calor”, como o familiar, e outros que de- vem ser "frios". Existem pessoas que “irradiam calor humano", en- Quanto outras séo “frias", assim como existem pessoas “quentes* e “frias", inclusive no que concerne & sexualidade. A proépria linguagem cientifica incorpora categorias simbélicas quando defi- ne estados de apatia sexual feminina como "frigidez". Mais ine teressante ainda é que somente mulheres sofrem de "frigidez". Os homens no s&o “frios“, mas “impotentes, £ que as mulheres sao Percebidas como seres "quentes” em sua "normalidade", enquanto o homem deve ser “potente", isto é, forte, em contraste coma mu- iher fraca. A representag&o cientifica da disfungao sexual reme- te claramente & representac&o ideolégica do género, Mas, se existem dominios frios e quentes, tais do- minios devem coexistir, sem contudo se contaminar. 0 ambiente fa- miliar “quente" deve coexistir com o ambiente de trabalho “fri pois © primeiro € 0 dominio da afetividade c © segundo o da cionalidade, o primeiro o da mulher e 0 segundo 0 do homem. diferentes atributos nao devem invadir o ambiente ao qual nao per tencem: a racionalidade levaria & Gestruigao da famflia, onde de- ve predominar o amor; de forma equivalente, a afetividade levaria & destruicao dos negécios. No primeiro dominio deve haver um “co Tago quente"; no segundo uma “cabeca Fria", Mas para que 0 ho- mem de negécios mantenha seu equilibrio é Preciso que, ao sair do escritério "Frio" encontre um lar “quente" — do contrério, +28. poderd substituir o lar pelo bar. Por outro lado, para que a fa- milia mantenha seu equilibrio é necessério que se desenvolva, ex- ternamente a ela, o trabalho “racional" de alguém capaz de usar uma "cabega fria". Por isso nas representacdes coletivas se opoem @ se complementam a mulher, essencialmente emocional e afetiva, e 0 homem, essencialmente racional. 0 homem é tido como mais frio € a mulher como mais quente, e o dominio social do primeiro é 0 mundo dos negécios, um dominio onde é necesséria uma alta dose de tacionalidade, enquanto o da mulher é 0 lar, onde deve predomi- nar a afetividade. Nao & outro o sentido contido nos _conceitos Parsonianos de papéis “instrumentais" e “expressivos". € interes- sante notar que os papéis ocupacionais tradicionalmente def ini- dos como os mais adequados & mulher s&o aqueles percebidos como altamente carregados de "expressividade", ou afetividade, como é © caso da professora priméria, da enfermeira ou da assistente so- cial (Cf. Woortmann, 1965). Pode-se opor ent&o dominios quentes e frios, mas a oposicdo € também complementaridade, pois o universo é um todo em equilfbrio. Ele € cosmos, portanto ordem. 0 corpo humano € parte do universo, e uma parte mui- to especial, pois é nele que "existe" 0 préprio individuo que per cebe o universo. & ele também que sedia a pessoa. Esse corpo é igualmente percebido como composto de partes quentes e frias (que se integram numa totalidade harm6nica) e, correlatamente, sangiif- neas e sem sangue; vermelhas e brancas. Segundo as observagdes de Novion 0 organismo humano € percebido como composto fundamentalmente de duas partes: a cabe Ga e 0 corpo, © dois érgaos fundamentais, o “miolo" e 0 coracao. 0 primeira, sem sangue e branco, tem por fung&o “Governar as idéias" © 0 segundo, vermelho e sangiiineo, tem por func&o "gover- Nar o corpo". Mas a mulher distingue-se do homem por possuir um $rgao a mais, o Gtero, vermelho e sangiiineo e cuja fungfo é go- vernar a menstruaga&oe gerar criangas. Note-se que o homem possui dois drg3-s, simétricos e opostos, enquanto a mulher possui tres. +29, nome assimetria © imparidade com predominio do corpo. Temos ent&o que: - Sanglfneo + Nao sangiiineo HOMEM: Branco + Vermelho Equilfbrio Idéia + Corpo i Vermelho + Vermelho + Branco MULHER:Sanglifneo + Sangiiineo - Nic sengiiineo Desequilt- Corpo + Corpo + Idéia a A percepcao do corpo conduz a uma diferenciagéo de género, transcendendo a simples diversidade anatOmica e fisiciégs ca. Mais adiante se trataré dessa Gisting&o e de suas relactes com hdbitos alimentares. Deve-se acrescentar aqui, porém, que a cabeca (branca, no sangiifnea) ¢ “frie”, enquanto o corpo (verme Iho, sangiiineo) &€ "quente. Possuindo a mulher dois 6rgios rela- clonados ao corpo, ela & percebida como mais "quente", e por isso tendendo para a natureza e para o desequilfbrio, Mas 0 corpo humano € percebido também como uma tote- lidade indivisivel, onde cabeca e Corpo constituem duas éreas em equilibrio recfproco, com o corag&o regulando o fluxo do sangue e © *miolo" regulando o fluxo das idéias. Possuindo um 6rgao a mais, o dtero, a mulher é per- cebida como tendo mais sangue que o homem (nao obstante ser ele mis “fraco"). As implicagbes simbélicas sao claras, codificando a Gefinic&o social da mulher, tudo fazendo com que @ mulher seja me nos Tacional que o homem, visto ter uma “natureza quente".€ como se ne mulher 0 corpo predominasse sobre a cabeca c a natureze so- bre @ cultura. 0 mesmo foi também observado no Pard por Maués Maués, confirmando a conclusto de Novion de que na mulher o equi-~ lfbrio esté em permanente perigo de Tuptura, notadamente durante © fluxo menstrual e a gravidez. Menstruago € gravidez s8o estados em que a mulher, em estado de “poluigao" se torna "perigo", para usarmos 0s conhe -30. cidos termos de Douglas (1966). 0 Utero desempenha o papel de evi tar a contaminagdo de uma 4rea nao-sangifnea, branca (a cabega) por outra, sangiinea, vermelha (corpo), o que causaria o “reinado de um céos corporal". 0 Utero evita o desequilfbrio fisiolégico, mas a mulher 6 também percebida como potencial causadora de dese- quilibrio social, notadamente durante a menstruag’o eo “resguar do". A percepcao da mulher biolégica gera a representac&o da mu- her social. A neutralizagao da periculosidde social da mulher de pende de uma conduta ritual onde se destacam as proibigées ali- mentares. Homens e mulheres também diferem com relagdo a seus angues" e ao papel de cada um no processo reprodutivo. Distin- guem-se dois tipos de sangue, o “branco” e 0 "vermelho", sendo o primeiro uma transformagao do segundo. No homem o sangue “bran- co" & © liquido seminal cujo encontro com o sangue “vermelho" do ‘itero ird originar um novo ser. Cada um deles seré —_respons4vel pela formag&o de certas partes desse novo ser: 0 sangue "branco” masculino dar& origem as partes brancas e frias, sobretudo a ca- bega © o cérebro. 0 sangue “vermelho” da mae dard origem ao cor- po, isto 6, & carne, tero e coragao. 0 significado simbélico-ideolégico é claro, opondo © papel “cultural” do homem (pai) ao papel “natural" da mulher (mie). Do pai vem a raz%o e da mie a emoc&o; do primeiro o dom{- nio da vidaintelectivae da Gltima o dominio da vida animal. 0 corpo nos interessa ainda em outros sentidos, bas- tante andélogos ao que foi dito acima. 0 organismo é uma totalida- de em equilfbrio entre "frio" e "quente", "branco" e "vermelhe". © rompimento desse equilfbrio se d& quando “o sangue sobe & cabe 2", ou quando se "esquenta a cabega", isto é, quando um dominio "frio" € invadido pela “quentura" do outro, ou uma érea sem san- gue pelo sangue de outra. Sintomaticamente, diz-se de alguém a quem o “sangue subiu & cabega" que esse algiim "perdeu a cabega": a razto foi tomada pela emogao. A mulher é vista como particularmente sujeita ao 31 Perigo de tel invasto, notadamente pela “suspenséo da Tegra", Suendo © sanguemenstrual ao invés de "descer para fora", “sobe pe re & cebeca". As interdicbes alimentares sto formas oe impedix esse desequilibrio. Na presencga de uma doenca, ou de e como equivalentes a doengas, como a menstruacéo, tem-se como fun tados percebidos Gamental 0 cuidado com 6 alimentagéo, no que se refere &s pro priedades de "quente" e "Frio. £ j§ vimos gue as doencas sto também "quentes" ou "frias", antes de Prosseguir, fixemos logo Gue a menstruaggo € como que uma “doenca"’. Uma pessoa atacada de doenca “fria* deve abster-se de alimentos “frios"; se atacada de doenga "quente", deve evi- tar alimentos igualmente "quentes*. po contrério, agravar-se-ia o desequilftrio organico. Inversamente, quem tem doenga “fria" deve comer alimentos “quentes" e quem tem doenca "quente" deve comer alimentos "frios”, © individuo sadio pode comer qualquer tipo de ali- mento, “quente” ou "frion, & na presenca da doenga, ou de um or- ganismo n&o-sadio que as Prescricgdes/proscricdes alimentares se apresentam. Estando a mulher num permanente estado de tr&nsito en tre a sadde € a doenca; numa permanente Oscilago entre o “quen- te" © 0 "Frio", © num estado em que o dominio do “Frio” pode ser invadido pelo "quente", € a ela que se aplica com mais fregiiéncia © modelo simbélico-ritual das proibicoes alimentares e outros cui dados médico-mégicos. Estas Proibicdes, por seu lado, operam co- mo uma linguagem simbélica que reafirma a Posi¢&o social do ser feminino. Os alimentos sao ainda percebidos em torno & nog8o ge “reima". De um modo generalizado, a "reima” nao é definida, Trata-se de uma qualidade que torna o alimento “ofensivo" para certos estados do organismo. Assim, por exemplo, o alimento rei- 32. moso "faz mal para o sangue”, A reima “agita o sangue", “agita o corpo da pessoa® engrossa o sangue", "pée a reima (do corpo) para fo ra" (sic)" (Cf. Brand&o, 1976:91). "A palavra “reima" n&o faz parte do vocabulério do itapuense. Ele usa somente os termos "reimoso" e "manso", que s&o aplicados para classificar os aii~ mentos. Se se pergunta 0 que é reimoso, a resposta indica ... que se trata de um alimento que “faz mal®, s6 podendo ser consumido por alguém em — per- feitas condicées de sadde. 0 contrério acontece com o alimento manso, considerado inofensivo. Existe uma associac&o entre reimoso e venenoso, pois muitas ve~ zes certos alimentos sao chamados de venenosos para indicar que sua reima é excessiva" (Cf. Maués & Maués, 1976: 104-105). “Reimoso ... tem a ver com a mecAnica que envolve os Fluidos corporais de quem venha porventura a comer (alimentos reimosos)" (Cf. Novion, 1976:53). Se hé uma dificuldade em definir a reima, torna-se todavia evidente que essa nogdo exprime uma relagdo entre o or~ ganismo eo alimento: o alimento reimoso nao pode ser comido por quem esteja com o préprio corpo reimoso. “Uma leitoa, sendo novinha ... 2ode comer; mas se ela j4 té... perto de produgao ela jd tem —reima. Uma mulher AS vezes n&o t4 podendo comer, se comer S13 Seueet a estrago”, (CF. Brand’e, 1976:92). “Reimoso € 0 que tem reima: um corpo reimoso, 0 san- gue reimoso, um alimento reimoso” (Idem: 93). H& portanto uma relag&o entre o alimento reimoso © 9 corpo reimoso, ¢ a mulher tem o corpo reimoso por sua prépria na- tureza. A mesma relag&o foi também observada na Paraiba por Melo Marin (1979). Alimentos reimosos, ou “carregados" nao podem ser conidos por criangas, doentes e mulheres, cujo organismo esté sob constante suspeite. uma série de critérios existem para definir um mento como reimoso ou sem reima. Um deles é a idade do ani ser tornado alimento: o animal “maduro" tem reima (em oposicgto a 33 slimentos vegetais, que a tem quando verdes). No caso dos animais, maduro significa ter atividade sexual, o que remete 2 nogo de im- pureza. Andlogamente, animais castrados nfo tem reima, o que rene te & mogao de “castidade". Um segundo critério &€ 0 que opte do mesticado © ndo-domesticado, sendo os Gltimos reimosos, ov mais reimosos, que os primeiros; aqui o que esté em jogo como “opera dor® € 0 maior ou menor afastamento com relacao & nature cultura (Cf. Peirano, 1975). A ambigiidade € outro critério fun- demental, € talvez o principal. S& reimosos os animais dc cil classificag&o, aqueles que, desde um ponto de vista l6gico, Pertenceriam @ um "conjunto intersseg&o". S&o impuros, ¢ assim teimosos, 05 animais que ocupam posigdes intermediérias ou que pertencem simultaneamente a dominios opostos. A impureza, como se sabe, constitui perigo (Douglas, 1966). No contexto da reima, a impureza se associe & liminalidade. Por serem impuros, perigosos © liminais, sao também tabu para quem é iguelmente impuro, peri- goso e liminal. ou a fe Estes e outros critérios que aqui deixamos de ado Podem ser subordinados ao critério mais amplo da normalidade/anor malidade, isto € da ordem e da desordem. No entanto, n§o basta Gefinir @ reima segundo os atributos do alimento em si.f preciso também considerar o estado do corpo de quem o come, isto é, 0 es- tado de reima do préprio corpo, que se manifesta em certas doen- Sas (pera os homens) e na menstruacao e “resguardo" para a mu~ ther. A andlise de Maués & Maués revela ainda, num plano mais amplo a relag&o entre a liminalidade (desordem) do alimento e aquela da pessoa. var ob Gecisto a respeito de um dado alimento... de ve levar em conta o estado da pessoa que vai consu= mi-lo ... esses estados incluem a satde, a doenga & um conjunto de situacbes de liminalidadé...: a crian G@ nos dois primeiros anos de vida, a menstruacho, 2 grevidez, o puerpério, a menopause, o luto, a conva- lescenca, a purga, o xamanismo... A mulher, particu- larmente durante a menstruacao, a gravidez, 0 puer- pério © a menopausa se encontra numa situag&c limi- nar .., Tanto a mulher como o homem durante o luto encontram-se em situag&o idéntica® (Cf. Maués& Maués, 1976:113). +34, De um modo geral trata-se de estados que representam momentos de passagem onde o fisioldégico é captado como simh@lica e cercado de cuidados apropriados & situagado de liminalidade. Significativo € que o processo culinério pode elimi- nar a reima, Este processo é também uma passagem, da natureza pa- ra a cultura, equemrealiza a mediacdo é a mulher, ser ambiguo. bastante sabido que mediadores simbélicos ou mitolégicos sao se res ambiguos. Significativa também é a percep¢do do estado da crianga, que até os dois anos € percebida como um n&o-ser. Seu es tado de liminalidade sé cessa com a locomocao bipede e a fala, quando passa a constituir um ser humano (contanto que tenha sido batizada, o que marca outro rito de passagem). Até entdo a crian ca é um simples prolongamento do organismo materno, que continua a se alimentar do sangue materno (tornado leite) tal como em sua vida intra-uterina. 0 leite materno é 0 sangue uterino transfor-~ mado no seio (Cf. Novion, 1976). Os dois priseiros anos de vida s4o entdo um perfodo liminal devendo a crianga ser cercada de cuidados rituais, inclusive alimentares, para que se assegure a "passagem". A liminalidade do resguardo se prolonga pelos dois anos de vida da crianga e se extende da mae para o filho. Em muitas culturas, se nado em todas, o ciclo fisio~ 1égico da mulher & apreendido simbolicamente e tornado critério definidor de sua posicdo na sociedade. Trata-se de "passagens” cer cadas de perigos e cuidados. Tais cuidados, particularmente as interdigfes alimentares, s&o uma linguagem “econédmica", como o é toda a linguagem simbélica, pela qual se fala da mulher enquanto ser social. A mulher, ser liminal, & "perigosa”, e as concepgdes relativas a ela sio parte de um modelo de dominagao; mas sao tam~ bém interiorizadas pelas préprias mulheres. € 0 que mostra Maués (1977) para um grupo rural do Pard: pegeverificarmos 0 discurso das mulheres de Itapué Podemos constatar que a visto de sf mesmas .., ven permeads dos elementos que compoem o modelo masculi. No de sua sociedade, com uma recorrencs pecificidades que tem a ver com os processoe reis que lhes sdo exclusivos...em Itapud os proces. sos naturais peculiares & mulher séo aproveitados pela cultura (ou sociedade) para, através das clans. facdes simbélicas construfdas a partir do dado hic. légico, exercer sobre ela (mulher) um controle | - os préprios processos naturais incontrolaveis forme. cem og elementos para que o simbélico se transtorme numa area de controle do soclal, na medida em que Sada contr ibuem para determinar a posic&o social ou. Pada pela mulher" (cf. Maués, 1977:123-123), E com a menarca que o ser feminino se torna mulher; € com ela também que se instala a “vergonha” da mulher. Por outro tao, @ menstruagao € percebida como um perigoso estade de dese. quilferio organico e€ periculosidade, © sto proibidos os alimentos “quentes" e reimosos. Sendo um periodo de “des-ordem" n&o apenas So proibidos os alimentos reimosos, mas também a mistura de alimentos percebidos como pertencentes a dominios distintos ou opostos, como por exemplo, a mistura de peixe com carne de caga, ou Os alimentos provenientes de dominios em sf ambiguos, como os animais cujo habitat € o mangue ou a lama. Se a mesntruagao é um momento liminal € de desequilibrio, deve-se eviter tudo que acentue a liminalidade ou o desequil{brio. No apenas € a mulher menstruada sujeita a perigos, mas € ela mesma perigosa, por ser “reimosa” e "venenosa". A mens~ truagdo é vista como anomalia (Cf. Novion, 1976) © as proibig&es alimentares destinadas a completar a “passagem" sao também uma afirmac&o simbélica da prépria "reima" da miher e do Perigo que Tepresenta para a sociedade. Essa periculosidade expressa-se, por exemplo, pela nog&o de “panema" na Amazonia (cr. Galv8o, 1955). Por isso as prescrigdes/proscricdes alimentares destinam-se n&o apenas apaivteger a mulher mas também a comunidade. Com a menopausa, oposto légico da menarca, cessam as restrig®es alimenteres. Se cada menstruag&o € uma “passagen” a ciclos curtos, a menarca e a menopausa representam os momentos 36. extremos de uma "passagem" a ciclo longo, mas uma "passagem" de certa forma invertida, pois passa-se de uma indiferenciagéo ini- cial para uma especificidade intermediéria, desembocando finalmen te em nova indiferenciagao. Precisamente o oposto do que se obser va comunmente em "passagens" rituais, onde se passa de um estado definido para outro pela mediac&o de um "nac-estado" liminal in- termedidrio, Antes da menarca a menina é indiferenciada; com 0 surgimento da primeira menstruagdo ela se torna mulher e sua am- bigiiidade e liminalidade s&o uma especificidade; apés a menopau- sa ela “vira homem* (express&o comum no Par4, em Goiés ena Ba- hia) e se torna novamente indiferenciada e novamente inofensiva. A conjugagao desses dois ciclos acentuam no plano ideolégico a ambigiiidade feminina. A gravidez € 0 oposto da menstruacdo e n&o implica em comportamentos alimentares especiais. No entanto, sendo todo 0 processo de reprodugao uma “passagem", a gravidez envolve peri- go. De fato, a mulher grévida é considerada “venenosa" no Paré: "0 "veneno" da mulher é uma espécie de poder — des- truidor de que ela fica possuida ... Em Itapud so sempre relatados casos de mulheres que fizeram Arvo res frut{feras "secarem" porque foram apanhar seus frutos nesse estado. Também sdo referidos casos de mulheres que mataram cobras venenosas s6 de olharem para elas ... As pessoas dizem que "o veneno da — mu lher é mais forte do que o do bicho” (Cf. Maués, 1977: 157). Na realidade, ao que parece, nfo é a mulher em sf que é 0 perigo; ela é a hospedeira de um ser liminal — perigoso, © feto. € durante o resguardo, perfodo de reintegrag3o sim- bélica, e de restabelecimento do equilfbrio organico, que sto im- postas restrigdes alimentares, sendo proibidos os alimentos “quen tes" e os reimosos. Em resumo, os cuidados alimentares durante @ — mens- truagao e o puerpério, relacionados com a capacidade de "bruxa~ ria" da mulher em estados liminais visam assegurar uma "passagem* ’ 37. simbélica e um equilibrio org&nico. Eles revelam a interpenetra- G80 de planos — cognitico e simbélico — na construgio social da mulher. Se de um lado refletem os prinefpics de uma medicina Popular, de uma “etno-ciéncia", constituem igualmente uma Lingua- gem de classificaco social.Separam-se alimentos de corpos perce- bidos como iguais: ambos "quentes" e “reimosos". € se o far para Poder reaproximar a mulher da sociedade. Os estados normais da mulher s&o equiparados aos es- tados patolégicos do homem (menstruago/doenca). Mas se a anoma- iia no homem € causade por algo a ele extrinseca, a anomalia da mulher lhe € intrinseca. Quando se diz & mulher o que cla nao de- ve comer, se esté dizendo o que ela é. Idioma da Comida Acreditamos ter mostrado que a comida, como niicleo de tepresentacbes ou categoria nucleante, gera discursos sobre outros temas culturais que n&o a préprie comida. As prdticas a}i- mentares s8o textos culturais que podem ser lidos pelo antropé1o go € falam, entre outras coisas da fam{lia, do pai e da mulher. Sempre que se come na familia — @ no plano dos modelos deve-se comer “em familia" — produz-se um comentério social sobre essa fam{1ia enquanto constructo simbélico. Por outro lado, quando se constrée a refeic&o, constrée-se também o género feminino. N&o foi nosso objetivo realizar uma anélise exausti, ve de fam{lia ou des representagdes sobre a mulher. Nosso propé sito, muito mais modesto, foi apenas o de uma proposta: a de que existem muitos caminhos para se chegar & familia e diferentes pon tos de partida. Nessa proposta esté embutida uma quest&o relati- va 8 “ontologia” da familia: confundir o constructo cultural com © grupo doméstico seria uma redug&o empiricista, A famflia é mais bem uma categoria cultural que “existe" no grupo doméstico em um Plano de sua reelidade, mas que existe igualmente em cutros do- minios, como as representagées religiosas e a ideologia do estado, 38. por exemplo. Sendo ela uma construg&o cultural e sendo ela, mais que um grupo social, um valor cenlial de nossa tradigéo, cla "0 xiste" nos hébitos de comida, nos padrées de sexualidade, etc. Por outro lado, sendo um valor central a familia é também uma categoria nucleante, tal como a comida. Quando esta fala daquela estabelece-se assim uma cadeia de significagdes que em sua tota- lidade iré constituir a cultura como universo de representacdes @ de “conexdes de sentido". Se os modos de comer falam de outras coias que nao a comida, qual o idioma em que se expressam? No que se refere 2 familia, o corte que aqui nos interessa, podemos destacar dois as pectos: o da pureza e o da honra, que se entrelacgam ao falar-se da mulher e do pai de famflia. A linguagem da pureza poderie ser pensada como uma linguagem de hierarquia, como mostra Dumont em seu Homo Hierar- quicus e como mostra também Mary Douglas em sua “Introducao & Edi ao Paladin® da mesma obra. Para Dumont, h!2rarquia nfo se confun de com autoridade ou com poder, ainda que possa haver superposi- Go entre ambas. Qual 2 relagao, no Ambito da famflia, entre hie- rarquia e autoridade? Em trabalho anterior (Woortmann, 1984) mostramos que a etnografia existente sobre a fam{lia das camadas trabalhado ras urbanas e do campesinato indica que a mulher nao € objeto pas sivo mas sujeito ative, que possui seu dominio préprio e que ao longo do ciclo evolutivo do grupo doméstico, o seu prestigo e sua ascendéncia sobre os membros da familia tende a crescer. é ela que governa o consumo doméstico e, freqientemente, organiza © dirige formas de produg%o doméstica de mercadorias. Mas ¢ ela, tembém que decide quem come o que, quando e em que quantidade © ao fazé-lo privilegia material ou simbolicamente o pai de fa- milia, alimentando" a honre deste pela distribuigfo desigual da comida. Nesse processo a comida nao apenas repde a forga de tra- palho mas, na construg&o simbélica da honra reproduz o trabalho enquanto categoria moral referida ao pai. 39. Se no plano do grupo doméstico @ mulher ngo é to submissa quanto se imaginave, no plano da famflia, isto é, das representacdes, ela € impura. A partir de seu ser biold constrée seu ser cultural — reafirmado pela prética alimentar — onde ela € poluida, "perigosa" e inferior. Como mostra Douglas, © idioma da pureza € usado quando o org&nico irrompe no social © esse idioma se expressa notadamente com relacéo a ingestho de alimentos. Nos diz ela ainda que: 0 se “z7;,0 Papel sacerdotal consiste em realizar ceri- monias que impoem fronteiras em torno aos processas organicos ... Ele prové o quadro de referencia si. tual através do qual categorias intelectua!s sdo ime Postas sobre a experiéncia fisiolégica. 0 ato de con mer, © casamento, o parto s&o

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