You are on page 1of 5
MARIA ELIZABETH LUCAS SOBRE O SIGNIFICADO DA PESQUISA EM MUSICA NA UNI- VERSIDADE A expansiio dos cursos de p6s-graduacao de forma regular no Brasil a partir dos anos 70 grouxe como uma de suas conseqiiéncias positivas a clevacio dos padrdes de exig€ncia académica para o exercicio do magistério superior. A capacidade dos docentes em transcender o nivel da reprodugao de informagio, de posicionar-se criticamente na sua area de especialidade, de desenvolver projetos de pesquisa e de contribuir para a criagio de conhecimento, sao qualificagdes que passarama compor 0 perfil desejével do magistério superior. Nao € por acaso que a produgiio académica do professor-pesquisador tomou-se a marca de credibilidade e a razfo de ser dos cursos e universidades que construiram uma reputagdo de exceléncia no pais. No Brasil, ainsergao dadrea de artes neste processo, vemocorrendo mais recentemente, S6cios menores e emergentes emum sistema j4 plenamenteestruturado, écompreensivel que muitos docentes se sintamperplexos diante da discussao de temas eproblemiticas que até ha pouco no eramconsideradas pertinentes ao campo das artes. Depois de receber uma formagiio totalmente empfrica, baseada na trans- missdo oral de concepgées técnicas, estilisticas e histéricas, sem qualquer referéncia quanto asua génese intelectual ou I6gica de adogio, a pés-graduagiio veio oferecer aos que aela recorreramos recursos intelectuais necessarios arompet comos preconceitos ¢limitagdes causados por um sistema de ensino-aprendizagem baseado na crencaena posicao de autoridade do professor. A pés-graduacéo nao € por si s6 garantia de exceléncia académica, mas sema formaco que ela possibilita, fica muito mais dificil o acessoas informag6es ¢ aos procedimentos intelectuais que possibilitamuma contribui- cdo efetivano meio académico, E através dela quena priticadocente atual podemos optar Porto Arte, Porto Alegre, v.2, n.4, nov.1991 SI pela depuracao do empirismo, recorrer a reflexdo critica e combater a reificagao do conhecimento na sala de aula. Estas considerag6es nos remetem a questo da atividade de pesquisaem artes, mais especificamente 0 caso da misica. Qual o significado da pesquisa emmiisica? Ouvimos freqiientemente dos nossos pares na universidade a seguinte indagacao: — ‘Mas o qué se pesquisa em misica?’’ Se a questao € colocada, devemos considerar que a desinformagao de quem nos interpela € provocada pelo vazio que criamos. A nossa auséncia como fonte de referéncia e a suposta irrelevancia daquilo que somos e fazemos em termos intelectuais é a imagem que temos autorizado sobre nés mesmos. O reconhecimento de nosso mérito acad@mico, baseado na qualidade da nossa producao, faz parte de um sistema de interagdes dentro e fora da universi- dade que implica na difusiio do conhecimento que produzimos e na troca deste conhecimento com outras Areas, isto ¢, na interdisciplinariedade exercida de fato. Grande parte da perplexidade e confusdo existente quanto a sistema- tizagfio € produgao de conhecimento na misica parece advir do fato de que nosso senso comum assimilou ¢ continua a reproduzir as dicotomias criadas pela cultura ocidental: razdo/emocat ciéncia/arte'. No entanto, € possfvel constatar que no préprio meio académico, os praticantes daciéncia despreocupadosemmantera mistica que os envolve, admitem que as descobertas cientificas também sao guiadas pela intuicao, que o pesquisador necessita ser criativo para oferecer uma contribuicdo relevente na sua area e que a subjetividade nao os abandona a porta do laboratério, A separacdo rigida dos dominios da arte e da ciéncia através de atributos que seriam exclusivos acada um dos campos, corresponde a uma divis4o arbitrada pela hist6ria, Portanto criada pela cultura.’ A nogiio de que o fazer musical est4 totalmente calcado na intuigéo/emogio/adestramento remete ao mito da produgiio sem trabalho, da naturezaagindo porsis6. Seguindo esta linha de pensamento, aprodugdoartistica seria destitufda de procedimentos l6gicos‘o que implicaria em negar-lhe o estatuto de produgo intelectual ereconhecer-Ihe como uma atividade pritica escudadaapenas no dom, ¢ na repeti¢ao/imitacao, ‘Nao constitui novidade afirmar que as escolas de miisica no Brasil, por 1az6es hist6ricas bem identificaveis, foram criadas e direcionadas para o adestramen- to técnico € reprodugao de concepgdes “‘impressionistas”’ sobre a interpretacio do texto musical. N&o queremos com isso negar o contetido pratico que existe em todo © fazer musical. Contudo, 6 importante salientar que a propria ‘‘ciéncia’” vale-se 52 tambémda transmissiio de “‘prdticaa pratica’’. Emumartigo emque dissecao processo de pesquisa, o socidlogo francés Pierre Bourdieu refere-se ao carter pratico da aquisigao do offcio de cientista, firmado do contato direto e duradouro entre aquele que ensinae aquele que aprende: Os historiadores e os fildsofos das ciéncias - e os préprios cientistas, sobretudo - tém freqiientemente observado que uma parte importante da profissao de cientista seobtémpor modos de aquisi¢dointeiramente praticos...(BOURDIEU, 1989, p.22). No entanto, a explicitagiio dos critérios e decisées de caréter prético requerem a teflexio sobre © processo de conhecimento que os codificou. Ao transmitir a informacao dissociada da sua génese intelectual abre-se 0 caminho para a reprodugao autémata e limitante mesmo daquilo que diz respeito a performace istromental. A prética docente associada A pesquisa produz uma disciplina de trabalho apoiada no pensamento relacional, portanto capaz de sistematizar teorias, conceitos, técnicas, criar metodologias de trabalho que proporcionem ao estudante desenvolver o seu potencial de realizacdo, andlise e critica. A pesquisa em miisica obedece ao principio basico da pesquisa em qualquer frea, qual seja, o de ultrapassar 0 senso comum e produzir conhecimento de forma organizada e coerente; néo h4 um receitudrio pronto para atingir tais objetivos, mas protocolos norteadores da conduta de investiga¢io que originam-se na teoriae tomam+se familiares através de uma pritica continuada. A aquisigao deste modus operandi na dea de artes est4 ainda restrita aos cursos de pés-graduacio, embora a formagao de futuros pesquisadores, tal como acontece em outras especi- alidades académicas, deveria ser trabalhada desde a graduagio através da iniciagio cientifica, A formagao profissional nos cursos de mUisica enfrenta os desafios da transi¢4o de um modelo educacional que escudava na intuigdo, nas capacidades inatas do individuo, para uma praxis educacional informada sobre os processos de cogniga0 referentesa musica. O ensino “‘diletante" tendease esgotarna medidaem queadocéncia académica em misica comega a reciclar-se em fungio das expectativas do ensino de terceiro grau como um todo. Fazemos parte de um universo em que o nosso mérito profissional depende cada vez mais da nossa capacidade de captar recursos materiaise humanos e transformé-los em producio intelectual. Aquilo que a universidade oferece emseus cursos deve ter 0 sinal de sua distingao: areflexao critica, acapacidade de gerar conhecimento e preparar pessoas para esta tarefa. A finalidade maior da universidadeé construir conhecimento ¢ nfo reificd-lo, preparar para propor 0 novo, seja qual foro 53 campo de especialidade, das ciéncias exatas As artes. A docéncia das artes na universidade deve ser entendida como uma op¢io profissional por um tipo de conduta académica que nfo pode prescindir do ensinoaliado a pesquisa. As especificidades existem emqualquer dreado conhecimen- to endo constituem motivo para criar subterfiigios do tipo “‘as artes sio inconpatfveis coma pesquisa”. Se existea transmissiio de conhecimento nas artes, sejaeste de cardter Pritico ou tedrico, em forma visual, sonora, gestual ov textual, € por que este conhecimento foi produzido ¢ codificado pelos que pensaram ¢ propuseram a problematizagao de certos temas, logo nada impede que fagamos 0 mesmo. NOTAS 1) Para uma visdo histérica desta questo ver a discussao de Fubini (1971) sobre a musica na cultura Iluminista e no Romantismo. 2) A histéria da ciéncia (ou ciéncias)na cultura ocidental aponta para as transforma- g6es sofridas ao longo do tempo da concepgiio de ciéncia. Pensamos aqui, em ter- mos das criticas que vém sendo formuladas ao paradigma da ciéncia moderna (so- bretudo na sua vertente de cientificidade positivista) e na discussiio sobre o surgi- mento de um novo paradigma - 0 da ciéncia pés-modema - que se valeria da con- vergéncia entre processos cognitivos ¢ nao-cognitivos, entre ciéncia e emogao, pa- ra criar uma proposta de ciéncia mais adequada a sociedade contempéranea. Um e- xemplo de abordagem competente de assunto to complexo encontra-se em Santos (1989). 54 BIBLIOGRAFIA BORDIEU, Pierre, Génese hist6rica de uma estética pura. In: O Poder simbdlico. Lisboa : DIFEL, 1989. p. 281-298. ---.Intrudugao a uma sociologia reflexiva. In: O Poder simb6lico. Lisboa: DIFEL, 1989. p.17-58. FUBINI, Enrico. La Estética musical del siglo XVII a nuestros dias. Barcelona : Barzal, 1971. SANTOS, Boaventura de Souza. Inwoducao a uma ciéncia pés-modema. So Paulo: Graal, 1989. WOLF, Janet. The ideology of autonomousart, In: LEPPERT, Richard, McCLARY, Susan, {eds.). Music and society, the politics of composition, performance and reception. Cambridge : Cambridge University Press, 1987. p.1-12. MARIA ELIZABETH LUCAS - Doutora em Etnomusicologia pela Universidade do Texas, Austin, EUA; Professora do Departamento de Miisica e Vice-Coordenadora do Curso de Pés-Graduagdo - Mestrado em Musica, UFRGS. 55

You might also like