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Kato, Eliade, Mineo, Misroein ons Ceengas € Das Wikies Rebeins4s, Give. foun: Zaher eld , 1923, , / ane lespiraxo ri) IDKIAS RELIGIOSAS E CRISES: POLITICAS NO ANTIGO EGITO 25. O inesquecivel milagre: a “Primeira Vez”. © nascimento da ci maravilhar os historiadores, 08 di antecederam a formagéo do “Reino Un neoliticas continuaram a desenvolver-se, das modi las sem profun- ‘des. Contudo, no IV milénio, os contatos agao sumeriana provocam uma verdadeira _. mutagao. O Egito toma emprestados o sinete cilindrico, =" a atte da construir com tijolos, a técnica da fabricagao de barcos, intimeros motivos artisticos e, sobretudo, a a escrita, que surge bruscamente, sem antecedentes, no ‘co- meco da primeira Dinastia (~ 3.000, aproximada. mente)'. Mas, sem demora, a ci + estilo caracteristico, que tr: eriag6es. Sem dtivida a propria geograti desenvolvimento diferente daquele peculiar as sumério-acadianas. Pois, ao contrério da M: de todos os lados vulnerdvel As inva exatamente © vale do Ni ago egipcia elaborou um HisTOnUA DAS CreNgas # DAS Infus Reticiosas Pelo deserto, © mar Vermelho ¢ 0 Mediterrtineo, Ate 20 prowedids hnlesos (— 1.674), o Byito nao conheceu to 80 broveniente do exterior, Por outro lado, dade do Nilo permitia que os através de uma administragao © Egito na $40 daquela inaugurada por Menés. Nao ere eS Criading 205 feitos de Mens, mas a renovacde da ‘jonte oriadora presente ao acontecimento original: onisnaigdo do Estado unificado equivalia a uma cos: » Nove, ange F&™8S, deus-encarnado, instaurou um mung, superior he geet llzacdo infinitamente mais complowe > a pormansces, Mdelds neoliticas. O essenclal era mere vias modelo ancl dessa obra efetuada de acordo oo nt 'S.palavras, evitar as crises sus- €ncarnado para um outro deusencarn seq encarnado e, consegtien. temente, a continuidade da oo , ordem 06: ees césmica ¢ social, estava de"notar q politicas e cultura’ Indus Cases no Antico Foro ur fol acrescentado ao patriménio cultural, Esse “imobilis- * mo” que caracteriza a civilizagdo egipeia, mas que se en. contra nos mitos e nas reminiscéneias nostilgicas de ou. tras sociedades tra de origem religiosa. A fi- xide2 das formas chierdticas, a repeticdo das gestas ¢ das faganhas efetuadas ‘na ‘aurora dos tempos sdo a conse. “qiiéncia Idgica de uma teologia que considerava a ordem césmica' como obra essencialmente divina, e via em toda mudanga 0 risco de uma regressio ao caos ¢, por con, seguinte, o triunfo das forgas demotilacas. A tendéncia designada pelos eruditos europeus coma “imobilismo” esforgavase por manter intacta a primel- Ta criagio, pois era perfeita sob todos os pontos de vis. ta — cosmolégico, religioso, social, ético. As fases sucessi. vas da cosmologia séo evocadas nas diferentes tradiges mitolégicas. Com efeito, os mitps, referem-se_ exclusiva. mente aos acontecimentos qué tiveram lugar no fabuloso tempo das origens. Essa época, denominada Tep zepi.-, © “A Primeira Vez", durou desde’ aparecimento-do_ deus criador sobre as Aguas Primordiais até a entronizagao> de Horus. Tudo aquilo que existe, desde fendmenos nati. rais"“até realidades reli templos, cal deve a sua do no decorrer da época inicial. Evidentemente, a “Pri. meira Vez” constitui a Idade de Ouro da perfelcdo abso. luta, “antes que a raiva, ou o barulho, a luta ou a desor " dem fizessem_o seu aparecimento”, Nio havia nem mor. te nem doenga durante essa era maravilhosa denominada “o tempo de Ré”, ou de Osiris, ou de Horus*, Em de- terminado momento, que se seguiu & intervencao do mal, » Surgiu a desordem, pondo um termo a Idade de Ouro, Mas a época lendaria da “Primeira Vez” no ficou rele. gada entre as reliquias de um passado definitivamente © terminado. Por constituir a soma dos modelos que devem HisTOnia DAS CReNcaS # Das: IDEs Reuiciosas 26. Teogonias e cosmogonias. j Como em todas as religiées tradicionais, a cosmogo- (a origem do homem, da reale- , dos rituais etc.) constituiam da ciéncia sagrada. Naturalmente, existiam itos_cosmogénicos, que davam destaque a deu- diferentes € localizavam 0 comego da criagio num iosos. Os temas aos deuses criadores, cada cidade importante colocava 0 sou em primeiro plano. As mudangas dindsticas eram litas_vezes acompanhadas . ‘Tais acontecimentos obrigavat tal a integrar ‘diversas tradigdes cosmogoni cando 0 principal deus local estava as voltas com deuses facilitada pela sua semelhang: Bos elaboraram, além disso, sinteses audaciosas, assimi. lando ‘sistemas ‘religiosos heterogéneos e associando lhes figuras divinas claramente antagonicas‘. Semelhante a tantas outras tradigées, a cosmogonta cia comeca com a emergéncia de uma colina nas © aparecimento desse “Primeiro lu. Sobre a imensidio aqudtica significa a emergéncia ¢ também da luz, da vida e da consciéncia’, Em © local denominado “a Colina de Areia", que ‘mplo do Sul, era identificado com a “Co- Hermépolis era celebrada por seu lago, Lotus cosmogonico. Mas outras lo des orgulhavam-se-do mesmo privilégio®, Com e! eg NA forma coi or assim dizer, “versdes candnicas’ obrigados a ree rados nas mais antigas colegdes, espect rides (~ 2.500-2. coxima 2.300-2.000, aproximadamen e no Livro dos Mortes op. city p. 36 dos € comentados por Frankfort, La Reyauté, “Q\ da cidade e cada santuério eras Infuse Cuises No “ANTIGO Barro 13 considerados um “Cen- tro do Mundo”, o lugar onde havia comegado a Criagao. outeiro inicial tornava-se as vezes a Montanha Césmica Sobre a qual subia 0 Faraé para encontrar 0 deussol. Outras versées falam do Ovo primordial que conti. nha 0 “Passaro de luz” (Sarcéfagos, IV, 181c s.), ou do Lotus original trazendo o Sol erianga*, ou, finalmente, da Serpente primitiva, primeira e witima imagem do doun Atum. (Na verdade, o capitulo 175 do Livro dos Mortos anuncia que, quando 0 mundo voltar ao estado de Caos, { Atum de novo se transformar em Serpente. Pode-se 10. * conhecer em Atum 0 Deus supremo e oculto, a0 passo que Ré, o Sol, é por exceléncia o Deus manifesto; cf. § 32). , 4s etapas da criagio — cosmogonia, teogonia, criagio dos seres vivos etc. — sto apresentadas de maneira df. ferente, Segundo. a teologia solar de Helipolis, cidade situada ‘na extremidade do Delta, o deus Ré-Atum-Khé. pris criou um primeiro casal divino, Xu (a Atmosfera) € Tefnut, pais do deus Geb (a Terra) e da deusa Nut (0 Céu). O demiurgo realizou a criagéo masturbando-se Ou escarrando. As expressdes so ingenuamente grossel. Fas, mas © seu sentido é claro: as divindades nascem da. Propria substancia do deus supremo. Tal como na tra, Gigdo sumeriana (§ 16), 0 Céu e a Terra estavam unidos num hierds gdmos ininterrupto, até 0 momento em que foram separados por Xu, 0 deus da atmosfera’. Da uniio deles nasceram Ositis e Isis, Seth e Néitis, protagonistas no Médio Egito, os tedlogos elabo- raram uma doutrina bastante complexa em torno da Og. éade, o grupo de oito deuses, aos quais veio juntarse Pls. No lago primordial de Hermopolis eniergiu um L6- tus, de onde saiu “a crianga sacrossanta, o' herdeiro per. feito dado & luz pela Ogddade, semente divina dos pri © Yoyote, in: La Naissance du Mi das em Morens, ba és PP. 46-47. Acres: est exchisivamente reservado ados por Morenz p. 228, onde o autor da sepa ‘HISTORIA DAS CieNcas # Das IDéus RELIGIOsAS Deuses Anteriores”, “aquele que amalgamou os 9s deuses e dos homens’ nto foi em Menfis, capital dos Faraés da I Di- nastia, que se articulou, em torno do deus Pld, a teolo. gia mais sistemdtica. O texto capital daquilo que se de- nominou a “Teologia menfita” foi inscrito em pedra época do Farad Shabaka (,~700, aproximadamente), mas 0 original foi redigido cerca de dois mil anos antes. # surpreendente que a mais antiga cosmogonia egipcia até hoje conhecida seja também a mais filoséfica, uma vez que Pt cria com 0 seu espirito (0 seu “coracao") © o seu verbo (a sua “lingua”). “Aquele que se manifes. tou como coragio (= espirito), aquele que se manifes. tou como lingua (= verbo), sob a aparéncia de Atum, € Ptd, 0 muito antigo..." Pté 6 proclamado 0 maior dos deuses, sendo Atum considerado apenas o autor do primei. To casal divino; Foi. Pta “quem fez com que os deuses exis. tissem”, Mais tarde, os deuses penetraram em seus corpos visiveis, entrando “em todas as espécies de plantas, de Pedras, de argila, em toda coisa que cresce no seu relevo (i.e, a Terra) e pelas quais eles podem manifes. tarse”, Em suma, a teologia e a cosmogonia siio efetundas através do poder criador do pensamento e da palavra de um unico deus. Trata-se certamente da mais elevada ex. presséo da especulagio metafisica egipcia, Conforme ob- Serva John Wilson (ANpr, p. 4), € no comeco da histé. ‘gipcia que se encontra uma doutrina que pode ser ximada da teoria cristd do Légos, Comparados & teogonia e & cosmogonia, os mitos Sobre a origem do homem mostram-se bastante apaga dos. Os homens (erme) nasceram das ligrimas (erme) do deus solar, Ré. Num texto escrito mais tarde (~ 2.000, aproximadamente), em periodo de crise, 1é-se: “Os ho: mens, rebanho de Deus, foram bem aquinhoados. Ele 0 Deus-Sol] fez o céu e a terra em sua intengio... Fez 0 ar para vivificar-lhes as narinas, pois sio as suas 10 Textos traduzidos ec Inés Crises,.No. Antico Eorro 1s imagens, oriundas das suas cames. Ele britha no céu, bara cles fez a vegetacio e os animais, as aves e os pelt Xes, a fim de alimenticlos..."™2, Entretanto, quando Ré descobre que os homens cons. piraram contra a sua pessoa, decide destruf-los. Quem so encarrega da matanga ¢ Hathor. Mas, como essa deuse ameagasse aniquilar por completo a raga humana, 26 re forte a um estratagema e consegue embriagéla!® A revel, (2 dos homens e as suas conseqiiéncias ocorreram duran, te a epoca mitica. Evidentemente, os “homens” exam oi primeitos habitantes do Egito, visto que 0 Hgito fol mitica dos primei- empenha um papel importante. Na época prodigiosa da “Primeira Ven", os dois momentos decisivos foram a cosmogonia e o advento do Farad 27. As responsabilidades de um deus-encarnado. "Como observa Henri Frankfort", a cosmogonia 6 0 acontecimento mais importante poratie representa « ea mudanca real: a emergéncia do Mundo. Desde ga 86 as mudancas implicadas nos ritmos da vida césmicg Possuem significagio,| Mas, nesse caso, tratase dos mar Mentos sucessivos articulados em diferentes ciclos ¢ quo tragdes para Meri-ka-ré, passagem tradurida para o francés neron-Yoyote, pp. 75-76. "Ver a tradugio integeal feita, por Wilson, nen, pp. 414-418, ‘Ver os exemplos se de uma c ra 0 francés por Saue em Morenz, 'p. 80. 116, ° HISTORIA pas Ceuncas 2 pas Infus Rewiciosas Ines garantem a periodicidade: os movimentos dos as- tros, a ronda das estagées, as fases da lua, o ritmo da vegetacio, 0 fluxo ¢ o refluxo do Nilo etc, Ora, é justia. mente essa periodicidade dos ritmos edsmicos que cons titul a perfeicéo instituida nos tempos da “Primeira Vex" A desordem implica uma_mudanca Por conse: guinte, nociva, no ciclo exemplar das mudaneas perfei. tamente ordenadas, [94 que a ordem social representa um aspecto da or- a, julga-se que a realeza existe desde o come. go do mundoj O Criador foi o primeiro Rei”; ele trans. nite essa fiingao ao seu filho e sucessor, o primeiro Fa. rad. Essa delegacio consagrou a realeza como institu: gao divina, Com efeito, os gestos do Farad sio descritos nos mesmos termos que foram utilizados para descre, (ma'at) no lugar do Caos.” E é nos mesmos termos que se fala de Tutancdmon quando este restaurou a ordem depois da “heresia” de Akhenaton (cf. § 32), ou de Pe. “Ele pés a ma’at no lugar da mentira Da mesma forma, 0 verbo khay, “brilhar’ pregado indiferentemente para descrever a emergéncia do Sol no instante da Criagio ou em cada aurora, € 0 apa. recimento do Faraé na cerimonia da coroagio, nas fes. tividades, ou no Conselho privado” © Farad 6 a encarnagdo da m duz por “verdade”, mas cuja significagdo geral é “ ordem” e, conseatientemente, ma‘at pertence & Criagio original: e perfeicao da Idade de Ouro|Por constituir o proprio fun. damento do cosmo e da vida, a ma’at pode ser conhecida Por cada individuo isoladamente. Em textos de origens ¢ €pocas diferentes, encontram-se declaragdes como a se 38 No Livro dos Mortos (cap. 17), 9 Deus pr quando estava sozinko em Num (0 Oceano pi ma sua manifestagio, quando ele comecou a governac a pease ents a Sein expiagio: iso significa i comegau & parecer como rei, como aquele que existia antes de spender o Céu sobre a Terva’” (Frankfort, Ancient Eyyp! Rel, pp. 64-65) ie, Gianktort, ibid. pp. 64 s. Ver outros exemploa em La Rovauté et les Dieuz, pp.'202 s. Eu sou i , termo que se tra: Ifuas e-Ceises No ANTIGo Estro 7 ‘Incita 0 teu coracio a conhecer a ma’at’ conhegas a coisa da ma‘at possas fazer 0 que € correto para ti!” Ou: homem que amava a ma’at e odiava 0 pecado, pois sabin que (0 pecado) € como que uma abominagio' a Deus”: Com eteito, ¢ Deus que concede o conhecimento neces. . Um principe € designado como “alguém que co. nhece a verdade (ma’at) e que é instruido por Deus", © autor de uma oragio a Ré exclama: “Oxala possas roduzir a ma’at no meu coragio!®". FEnquanto encarnagio da ma’at, 9 Farad constitui o Modelo exemplar para todos os seus stiditosJ Como se exprime 0 vizir Rekhmi le 6 um deus que nos faz viver por Ji obra do Farad assegu- 10 Estado, e por conseguin- te a continuidade da vidaf De fato, a cosmogonic & eae, mada todas’ as‘manhis, quando odes solar “expulsa” @ serpente Apdfis, sem contudo conseguir © Caos (= as Trevas) representa avi tanto, “indestrutivel. A a facanha de Caos. Quando os inimigos aparecerem nas fronteiras, so- ai liados a Apdfis, ¢ a vitdria do Farad reprodu, fo de Ré, (Essa tendéncia a interpretar a vida / €.8 historia em termos de modelos exemplares e do on tegorias 6 especifica as culturas tradicionais%2) © Fa, Tad..era decerto.o Unico protagonista dos acontecimen tos historicos particulares, que ndo se deviam repetir. campanhas militares em diferentes paises, vitéria contra diversos povos etc. I todavia, quando Ramsés IIT cone truiu 0 seu sepulero, reproduziu os nomes das cidades conquistadas inscritos no templo funerdrio de Ramsés Tt Mesmo na época do Antigo Império, os libios, que “apa, recem como vitimas das conquistas de Pepi Il, tram Zi Textos tradusides para o francés por Morent, op, cit, Frankfort, uma concepeao.semelhante explica res. Durante as perturbaco 250-2.04 ram nos relevos iecer OS tragos individuais dos dos nos ‘monumentos e nos racteristicos, como, por tiva e a coragem de ‘Tutmésis TIT duran- ia de Meguido, A. de Buck reconheceu os el convencionais do retrato de um Soberano ideal. ‘sea mesma tendéncia para a impessoalidade a Tepresentagao dos deuses, A excegéo de Osiris ¢ de S, OS outros deuses, apesar das suas formas e fungoes distintas, sio evocados nos hinos e nas oragées quase que nos,.mesmos termos*, flim principio, 0 alto devia sor colorado pelo Fa rad, mas ele del vitoria qui poral. mai ses. Em suma, repetia'se ritualmente a fundacdo do Esta. do (cf. § 25). A ceriménia sagrada era retomada por gcasiéo da festa de sed, realizada 30 anos depois da en- tronizagao e que continuava a renovacéo da energia di- vina do Soberano*. Quanto as festas periédicas de certos deuses (Horus, Min, Amilis ete.), dispomos de informa. Ges muito reduzidas: Os sacerdotes conduziam em pro- cissao, sobre os préprios ombros, a estétua do deus ou o ieapdo engenhosa para ae ises em formas animais: enquanto nos seres iduais cont 20° Ci Le Blythe de kfort, Lu Roysulé, pp. 122-36. Vandier, Le Religion p. 200 201, Iéus ® Cases No ANniGo Eorro 9 arco sagrado; a procissio compreendia cantos, misica ¢ dangas, ¢ desenrolava-se em meio As aclamagGes dos ficis, A grande festa de Min, uma das mais populares em todo o Egito, nos é melhor conhecida gracas ao {ato de ter sido associada mais tarde ao culto real. Originariamen, te, era a festa das colheitas; o rei, a rainha e um touro bran. co participavam da procissio. O rei cortava um feixe de espigas ¢ oferecia-o ao touro; mas a seqiiéncia dos ritos € obscura. As ceriménias de fundagio e inauguragio dos templos eram presididas pelo Farad, Infelizmente sso conhecem certos gestos simbélicos: no fosso aberto no terreno em que se ergueria o futuro templo, o rei introdu. zia os “depdsitos de fundag3o” (um tijolo modelado pelo Soberano, lingotes de ouro ete.); na inauguragio, ele con. Sagrava 0 monumento levantando o brago direito etc. © culto divino didrio era dirigido a estétua do deus guardada-na nave-do templo. Depois de realizada a puri. ficagao ritual, 0 oficiante aproximava-se da nave, quebra. Va 0 sinete de argila e abria a porta, Prosternava-se diante Ga estétua, declarando que havia penetrado no Céu (a nave) para contemplar 0 deus. Em seguida a estatua era purificada com @iatrio) para “abrir a boca” de deus te nalmente, o oficianté tornava a fechar a porta, lacrava o ferrolho ¢ retirava-se as afFéctia’ AAs informagées referentés a0 culto funerdrio sio sen- sivelmente mais abundantes. A morte e 0 alémbimulo Preocuparam os egipgios mais do que aos outros povos | do Oriente Préximo./Para o Faraé, a morte constituia o Ponto 'de partida“da sua viagem celesté da sua “imorta: lizagdo”. Por outro lado, a morte envolvia diretamente um dos mais populares deuses egipcios: Osiri 28. A ascensio do Faraé ao Céu. Na medida em que podemos reconstituilas, as mais antigas crengas relativas & existéncia post mortem asseme- Ihavam-se &s duas tradigdes mais amplamente atestadas no mundo: a morada dos mortos era ou subterranea ou 120 -Hist6nia AS Crengas ® pas Iovias Reticiosas celeste, mais exatamente estelar. Depois da morte, as al- de que o morto deveria nas- Sar Pela segunda’ vez: depois do seu renascimento celeste gle era amamentado pela Deusa-Mie (representada sob forma de uma vaca)2*, A localizagao subterranea do outri seus Plexo ‘mitico-ritual osiriano. Oraf Osiris, o tinico deus egipcio que teve morte violenta, estava também pre sente no culto real/ Tremos examinar rmais adiante.as con. seatiéncias desse encontro entié' um deus que morre e a frologia solar que explicitava e validava a imortalizasio do Faras, ‘Os Textos das Piramides exprimem quase exclus: mente as concepgGes relativas ao destino do Rei devols da morte. Apesar do esforco dos tedlogos, a doutrina nao esta perfeitamente sistematizada! Descobrese uma cote Oposicdo entre concepe6es paralelas e por vezes antagénit A mnaloria das f6rmulas repete com énfase que o Farad, Ce Atum (— Ré), gerado pelo Grande Deus antes dz éo do mundo, néo pode morrer; mas outros textos conheceré decompo: leologias religiosas dis. fegradas”, Entretanto ntemente Hue eiotla das formulas alude & viagem celeste da Fares, Be oa sob a forma de uma ave — faleHs- garg Heal sa: SO selvagem (Livro das Pir., 461-3, 890-91, 918, 1.048), de Os vente elho (866) ou de um gafanhoto (890.91 ete), Nontos, as nuvens, os deuses devem acorrer em sett ay. As vezes o rei sobe ao céu trepando por uma eecats \eestuosa do Farag morto, denomle ia Mae". Cf. Frankfort, La Royauté, 8 propri nado 0 007-9) ensinam que se devem juntar: os bbandagens embros para garan. ta de um complexa ye tim lago “de contornos sinuosos” (Livro das Pir, 2.061) Totus © Crises xo ANTIGo Ecrro 1m rn 40, O71, S 2.088). Durante a. sua ascensio, 0 Rei ja Geus, de esséncia totalmente diversa da ica dos homeris(650, 809), Entretanto, antes de chegar & morada celeste, no Orien- fe, denominada “Campos das Oferendas”, o Para tinh le Passar Por cerlas provas. A entrada era protegida por © © barqueiro tinha o poder de um juiz. Para ser admit ha barca, era necessdrio haver cumprido todas as puri cagoes rituais (Livro das Pir,, 619, 1.116) e, sobretudo, ros Ponder a um interrogatério de estrutura iniciatdria, isto é, Teplicar com férmulas estereotipadas que serviam de se’ nha de passagem. As vezes o Ref recorre a um discurso de defesa (1.18889), ou & magia (492 s.), ou até mesmo & ameaga. Implora os deuses (sobretudo Ré, Tot, Horus) og Toga aos dois sicdmoros)entre os-quais 0 sol s¢-levanta to, dos 0s dias que o transportem aos “Campos dos Canigess, ‘Tendo chegado ao Céu, o Farad 6 triunfalmente tecebi, =] Pois, embora lade solar, 0 Farad & iditos, em primeiro In 122 HisrORiA DAS CRENCAS E DAS Infias: Reucrosas gar os membros da sua familia e os altos funciond- ‘do identificados com as estrelas, e chama- jorificados”. Segundo Vandier (p. 80) passagens estelares dos textos das Pirdmides estéo im- pregnadas de uma poesia de excepcional qualidade: en- contramos nelas a imaginagao simples e espontéinea de um Povo primitivo que se move com facilidade no mis- terio. mo j4 observamos, a doutrina soteriolégica dos Textos das Pirdmides nem sempre € coerente. Ao identi- ficé-lo com Ré, a teologia solar insistia no regime privi- Jegiado do Fara6: este nfo caia sob a jurisdigéo de Osi- ris, 0 Soberano dos mortos. abres o teu lugar no ‘Céu entre as estrelas, pois é uma estrela... Olhas por cima de Osiris, dés ordens aos defuntos; ‘tu te conser- vas afastado deles, pois absolutamente ndo és um de- Jes”. (Livro das. Osiris, que nao jul ele... Osiris, tu nao te apoderarés dele, o teu filho (Ho- rus) também dele néo se apoderard...” (Livro das Pir. 145-46; trad. francesa de Weill, p. 116) . Outros textos sdo até agressivos; lembram que Osiris é um deus morto, pois foi assassinado e lancado na agua. Todavia, certas passa- gens aludem & identificagdo do Faraé com Osiris, Encon- tramse formulas como a seguinte: “Tal como Osiris 0 rei Unas esté vivo e, tal como Osiris nao morre, também © rei Unas nfo morre” (Livro das Pir., 167 s.). © teu coragao nem tem poder sobre 29. Osiris, 0 Deus assassinado, Para apreciar o significado dessas f6rmulas, devemos apresentar sinteticamente os mitos e a fungao rel Osiris. Lembremos antes de mais nada que a mai ta versio dé mito osiriano é aquela transmitida por Plu- tarco (século II A.D.) em seu tratado De Iside et Osiride. Pois, como salientamos a propdsito da cosmogonia (§ 26), os textos egipcios referem-se exclusivamente a episodios de certas incoeréncias e contradigées, explicaveis pelas tensdes e sineretismos que antecederam a 5 Tato €, 03 que foram enterrados na viginhanga das tumbas reais. 251). “Ré-Atum nfo te entrega a Ibias 2 Cuses No Antico Eorro 123 um Rei lendario, célebre pelo vigor e justiga com’ que go vernava 0 Egito, Mas o seu irmao Seth preparowthe uma armadilha e conseguiu assa . isis, Sua esposa, “gran- de feiticeira”, consegue ser fecundada por Osiris ‘morto. ‘Apés ter sepultado 0 corpo, fsis refugiase no Delta; ali, cculta nas moitas de papiros, dé & luz um filho, Horus. AO tornar-se adulto, Horus faz com que os.seus direitos sejam reconhecidos perante os deuses daCEnéade)e ataca 0 tio. ‘No comeco da luta Seth consegue atfancar-lhe um olho (Livro das Pir., 1.463), mas 0 combate prossegue ¢ final- monte Horus triunfa. Recupera o seu olho e oferece-o a Osiris. (Foi assim que Osiris readquiriu a vida; Livro das Pir., 609 s. etc.) Os deuses condenaram Seth a carregar a propria vitima’* (por exemplo, Seth é transformado na rea que transporta Ositis sobre as éguas do Nilo). Mas, I Goriio ApOfis, Séth ndo pode ‘ser definitivamente elimina- do, pois também encarna uma forga irredutivel{ Depois da vitria, Horus desce ao pais dos mortos e dé a Boa noticia: imo do pai, 6 coroado Rei. ‘segundo 0s textos, “ele co- wvimento”. imo ato do drama que esclarece assim que “acorda” loca_a sua alma em sobretudo este © modo de ser especifico a Osiris. Horus encontra-o num estado de torpor inconsciente e consegue reanimélo. “Osiris! olha! Osiris! escuta! Levanta-te! Ressuscital” (Li- 258 s.). Osiris nunca é representado em mo- vimento; aparece sempre impotente e passivo™. Depois da 9 perioda de do eriquanto “pessoa espiri- |. Hele quem, doravante, vai , 026-27, 661-62 ele. Segundo uma vi arco, Seth desmembrou o cadéver de O: ‘em 1 pedagos, e di 124 HisTORIA as CRENGAS E DAS IofiAs: ReiGiosAs assegurar a fertilidade vegetal ¢ todas as forgas do re- produgio. Ele € deserito como sendo a Terra inteira ou comparado ao Oceano que circunda o mundo. Ja por vol liza as fontes da fecundidade ¢ do crescimento". Em outras palavras, Osiris, o Rel as. sassinado (= 0 Fara6 falecido), garante a prosperidade fo reino regido por seu filho Horus (representado pelo Farag que acabava de assumir 0 poder) } seeGivinham-se em seus contornos Pfincipais as rela: g0es entre Ré, 0 Farad e 0 casal Os sepuleros dos’ reis constituiam as principais fontes Ge sacralidade. Segundo a teologia solar, o Farad era 0 filho de Ré; como, porém, sucedia ao soberano falecidy {= Osiris), o Farad reinante era igualmente Horus A fersio entre essas duas orientagdes do espitito religioso eeipcio, a “solarizacso" ¢ a “osirianizacdo"™, apa fungio da realeza.{Como vimos, a civilizacao egipcin 60 -esultado da unido do Baixo e do Alto Egito em um tnico Teind, NO inicio, 40: “Vivendo ou morrendo, eu sou Osiris. Fenetro em tie reaparego através de ti; definho om the an Ui creio. . . Os deuses vivem em mim porque vivo ¢ creo nn trigo que os sustenta, Cubro a terra; vivendo ou motren, go, Sou a Cevada, ninguém me destroi, Penetrel na On gem... Tomeime o Senhor da Ordem, emerjo na Or jrata-se.de uma audaciosa valorizagio da morte, as- Sumida doravante como uma espécie de transmutagao = % Frankfort, La Royauté, pp. 256 8, (Osiris na colheita e no partir de certo entre ulm deus morto, im "'morria” todas'as tard 80 Teste dee Sareophagues, rk, p. 142, ad na aurora do novo Fao frances por Ipéus ® Cxtses No ANtiGo Esto 125 exaltadora da existéncia encarnada. A morte pée um ter- mo & passagem da esfera do insignificante para a esfera do significativo. O ttimulo € 0 lugar onde se cumpre a transfiguraco (sakh) do homem, pois o morto se.trans- forma em um Akh, um “espirito transfigurado”’/O que nos interessa é 0 fato de Osiris tornarse progressivamen- te 0 modelo exemplar nio sé para os soberanos, mas tam. bém para cada individyof #-certo que o seu culto jé era popular sob o Antigo Império, o que explica a presenca de Osiris nos Teztos das Pirdmides, apesar da resisténcia dos tedlogos heliopolitanos. Mas uma primeira crise grave, que vamos relatar daqui a poueo, tinha encerrado brusca. mente a época clissica da civilizacao egipcia, Restabeleci- da a ordem, encontramos Osiris no centro das preocupa. ges éticas e das esperancas religiosas. 0 comego de um Proceso que tem sido descrito como a “democratizagao de Osiris”. «De fato, ao-lado dos ‘Farads;-muitos' outros professam a sua participagio ritual no drama e na apoteose de Osi ris. Os textos outrora inscritos nas paredes das criptas ocultas nas pirdmides erguidas para os Faraés so agora reproduzidos no interior dos sarcofagos dos nobres e até de pessoas desprovidas de privilégios Osiris torna'se 0 mba delo daqueles que esperam vencer a morte/Um Teslo dos Sarcéfagos (IV, 276 s.) proclama: “Tu é5 agora o filho de um Rei, um principe, e 0 serds por todo 0 tempo em que © teu coracéo (i.e., espirito) estiver contigo.” Seguindo © exemplo de Osiris, e com a ajuda dele, os finados conse- guem transformarse em “almas”, isto 6, em seres espit tuais perfeitamente integrados ‘e’ portanto indestrutive Assassinado e desmembrado, Osiris foi “reconstitui por isis e reanimado por Horus. Desse modo, ele inaugu- Tou uma nova forma de existéncia: de sombra impotente, ineira, o defunto estava cercado, no seu ataide, pelas personificagdes de todo o Cosmo; ef. A. Piankoff, The Shrines of Trt-AnkheAmon, pp. 21-22. 126 HisrOR1A DAs CxeNcas # pas Inins RELIGIOsAs tornou-se uma “pessoa” que “sabe”, um ser espirituat wine oO aoe aber, amo pion de 0s de tsis e de Osiris tenham desenvolvido idéias semelnantes. Osiris toma de Ré a fungio de juiz dos mor- tos; torna'se 0 Senhor da Justica, instalado em um pali- cio ou no Outeiro Primordial, isto é, no “Centro do Mun- do”. Entretanto, como veremos (§ 33), a tensio RéOsiris encontraré uma solugio durante 0 Médio © © Novo Im- 30. CA sincope} anarquia, desespero e “democratizacio” ~—~“da vida do além-timulo. Pepi I foi o ultimo Faraé da VI Dinastia. Pouco tem- Po dengis de sua morte, por volta de ~ 2.200, 0 Egito foi gravemente sacudido pela guerra civil, e 0 Estado desmo- ++ -fonous:@-enfraquecimento-do poder central tinha encora- Jado as ambigées dos dinastas. Durante algum tempo, a anarquia assoiou o pais. Em determinado. momento, pais fol dividido em dois reinos, 0 do Norte, com a ca pital em Heracledpolis, e 0 do Sul, que tinha’ como capi- tal Tebas. A guerra civil terminou'com a vitdria dos te- anos, e os ultimos reis da XI Dinastia conseguiram rew- nificar 0 pals. O periodo de anarquia, denominado pel historiadores o Primeiro Periodo Intermedidrio (ou Pri melro Interregno), terminou em —~ 2.050 com 0 advento da XII Dinastia, A restauragio do poder central assinalou © epineco de um verdadeiro renascimento. Foi durante o Periodo Intermedisrio qu: a "demoeratizagao” da existéneia post morlem: os nobras Tecoplavam sobre os seus sarcsfagos os Tertos das Pird- mides, redigidos exclusivamente para os Farads. B tam- bém a tinica época da histéria egipcia em que 0 Farad foi acusado de fraqueza e até de imoralidade{Gragas a varias composigées literérias de- enorme inteFésse, podemos a. companhar as profundas transformagdes que se verifica- ram durante a crise. Os textos majs importantes so co- nhecldos pelos seguintes titulos:] Instruoes. para 0. Rei 41 Quando Horus desceu a0 Outro Mundo ¢ ressu: Infus © Caises No Antico Eorro 127 Meri-karé; As Adverténcias do Profeta Ipuwer; 0 Canto do Harpista; A Disputa entre um Homem Cansado e a sua Alma, Os seus autores evocam os desastres provoca- dos pelo desmoronamento da autoridade tradicional, ¢ so- bretiido as injustigas e os crimes que induzem ao cepticis- mo e ao desespero, oul até ao suicidio. Mas esses documen- tos indicam ao mesmo tempo uma mudanga de ordem in- teriog,} Ao menos certos dignitdrios se interrogam sobre a stia Tesponsabilidade na catistrofe e nio hesitam em se reconhecer culp: ‘Um certo Ipu-wer apresenta-se diante do Faraé para relatarhe as proporgdes do desastre. “His 0 pafs despo- jado da realeza por alguns individuos~irresponsaveis!.. ‘Os homens rebelamse contra oUracus}real... que ti- nha pacificado os Dois Paises... A Residéncia real pode ser demolida em uma hora!” As provincias e os templo: néo pagam mais as taxas por causa da guerra civil. Os tu- mulos..das.Pirimides..foram .selvagemente. pilhados. “O Rei foi dominado pelos pobres. Eis que aquelé que havia sido enterrado como um falcéo (divino) jaz agora sobre um (simples) coche mortudrio; a cimara oculta da pi- ramide agora est vazia.” Entretanto, & medida que fala- va, 0 profeta Ipuwer iase tornando mais audacioso e acabou por censurar o Farad pela anarquia geral. Pois 0 Rei devia ser o pastor do seu povo, e contudo o seu rei- nado entronizava a morte. “A autoridade e a justiga estdo contigo; mas 6 a confusdo que instalas em todos os ro- cantos do teu pais, juntamente com o rumor das querelas. Eis que cada um se langa sobre o seu préprio vizinho; os. homens executam as ordens que thes deste. Isso mostra que os teus atos criaram essa situagéo e que S6 proferiste mentiras.”""2 ‘Um dos reis do mesmo perfodo compos um tratado para o seu filho Meri-ka-ré, Ele reconhece humildemente ‘05 seus pecados: “O Egito combate até nas necrdpoles. .. e eu fiz a mesma coisal” As infelicidades do pais “foram provocadas pelos meus atos, e 6 compreendi (o mal que fizera) depois de havé-lo causado!” Ele recomenda ao filho “que aja com justiga (ma’at) por todo o tempo em que viver sobre a terra”, “Nao confies na extensio dos Lea Remontrances d'Ipu-wer; trad. de Wilson, aver, pp. 441-444; Ermaa-Blackwan, The Anciont Bgyptians, pp. 128 HISTORIA Das CRENGAS E DAS IDEAS ReLIGIOsAS anos, pois para os juizes (que te irdo julgar depois da morte) a vida nfo dura mais do que uma hora...” S6 0s atos do homem permanecem com ele. Por conseguinte, “n&o face o mal". Em vez de erguer um monumento do pedra, “faze com que o teu monumento persista pelo amor que te devotam”. “Ama todas as pessoas!” Os deuses dio mais valor & justiga do que as oferendas. “Consola aque. le que chora © nao oprimas a vitiva. Nao afastes um ho- mem da propriedade do seu pai... Nao punas. injusta. mente, Nao mates!,..", Um certo vandalismo tinha sobretudo consternado os egipcios. Os homens destrufam os tiimulos dos ancestrais, desembaracavam-se dos corpos e retiravam as ped para as suas proprias sepulturas. Como observava Ipu. wer: “Inlimeros mortos sio sepultados no Rio. O Rio trans. formousse numa sepultura...” Eo rel aconselhava a seu tilho Merika-ré: “Nao danifiques 0 monumento de ou trem... Nao construas 0. teu sepulero_ com ruinas!" 0. Canto do Harpista evoca a pilhagem e a destruicao dos timulos, mas por razées completamente distintas, “Os Geuses que outrora viveram (ie., os Reis) e repousam em suas piramides, e também os mortos beatificados (ie, os nobres) enterrados em suas piramides — as suas mo. radas nao existem mais! Veja o que foi feito delas!... As Paredes estio quebradas, e as suas casas nao existem mais, como se nunca tivessem existido!” Mas, para o au. tor do poema, esses crimes s6 fazem confirmar o mis terio impenetravel da Morte. “Ninguém retorna I de bai. Xo para nos descrever como esto, e nos contar das suas necessidades, a fim de.nos tranqililizar os coragdes até 0 momento em que também iremos caminhar para o lugar onde desapareceram.” Conseqiientemente, conclui o Har- pista, “Procura satisfazer 0 teu desejo enquanto vive. Tes)... Nao deixes 0 feu coragao enlanguescer..., TX raina de todas as instituicoes tradiclonais traduz-se 20 mesmo tempo pelo agnosticismo e pelo pessimismo, Por uma exaltagao do prazer que ndo chega a esconder 0 profundo desespero. A sincope da Realeza-divina leva {a talmente & desvalorizagio religiosa da mortef'Se o Farad 42 Byadusto de Wilson, aver, pp. 414418; Erman-Blackman, pp. 725 4 Trad, de Wi é Develop: ment of Religic DB. 182 (p< Trad. de Wilson, Aner, pp. 405-07; ef, Bre Inés x Crises No Antico Ectro 129 Jo se comporta mais como um dous-encarnado, tudo vol- {aa ser questionado; em primelro lugar, a signifieagio da vida e, portanto, a realidade da pds-existéncia de além+u- mulg/ 0 Canto do Harpista lembra outras crises do deses- perd — em Israel, na Grécia, na india antiga —, crises provocadas pelo desmoronamento dos valores tradicionais. © texto mais comovente é, sem dhivida, “O Debate so- bre o Suicfdio". % um didlogo entre um homem atormen- tado pelo desespero ¢ a stia alma (bd). O homem esforga- or convencer sua alma sobre a conveniéncia do sui- cidio. “A quem eu falaria hoje? Os irmios sio maus, os ‘companhelros de ontem néo se amam... Os coragées siio aividos: cada qual deseja os bens do seit vizinho.., No xistem mais justos. O pais estd abandonado aos que cul- tivam inigiiidades.., O pecado que ronda sobre a Terra nfo tem fim.” Evocada em meio a esses flagelos, a morte parecelhe mais que desejével: cobre-o de beatitudes esque- cidas ou raramente conhecidas, “A morte esta hoje diante de mim como a cura para um doente... como o perfume de mira... como 0 aroma das flores de I6tus. .. como 0 ‘odor (dos campos) depois da chuva... como 0 desejo ar- dente de um homem de retornar ao’ seu lar, apds longos anos de cative "A sua alma (bd) lembra-lhe primei- ro que o suicidio impedird que ele seja enterrado e rece- ba os servigos funerérios; ela esforgase em seguida por persuadi-lo a esquecer as ‘preocupagdes buscando os pra- zeres sensuais. Finalmente, a alma garantelhe que ficard Junto dele mesmo na hipdiese de ele decidir por cobro & vidas, JAs composigées literdrias da Hpoca, Intermediéria con- tinuaram a ser lidas e recopiadas muito tempo apés a res- da unidade politica sob os Farads do Médio Im- io que nfo deixou de ampliar-se desde entio. Trata-se de uma corrente de pensamento diffeil de descrever sinte- ticamente, mas Cuja principal caracteristica é a importin- cia concedida & pessoa humana como réplica virtual do mo- delo exemplar, a pessoa do Farad,/ ed, op. cit, pp. 189 Erman-Blackman, pp. 86'5. Retscrosas 130 Hlisr6wia pas Cuengas © vas Ibi 31. Teologia ¢ politica da “solarizagao”, © Médio Império foi governado por uma série de mag- soberanos, quase todos pertencentes & XII Dinas- tia, Sob esses reis, 0 Hgito conheceu uma época de expansio econdmica de grande prestigio internacional', Os nomes escolhidos pelos Farads no momento da coroacao tradu- zem & sua. vontade de comportarse com justica (méat) para com os homens e os deuses". Foi durante a XII Di- hastia que Amon, um dos oito deuses adorados em Her- mépolis, aleangou a categoria suprema, sob o titulo de Amon-Ré. (O fundador da Dinastia chamavase Amenem- hat, “Amon esta i frente”.) O deus “oculto” (cf. § 26) foi identificado ao sol, deus “manifesto” por exceléncia, 5 gracas & “solarizagio” que Amon so torna o deus tini. versal do Novo Império. Paradoxalmente,’ e8sé"Iifipério "6 tinico que alids ‘merece esse nome — foi a conseqiiéncia, retardada mas ine- lutavel, de uma segunda crise, deflagrada depois da ex- tingio da XTT Dinastia. Um grande nimero de soberanos sucece-se rapidamente até .a invasio dos hicsos, em -~ 1.674. Ignoram-se as causas da desintegragdo do Estado, duas geragées antes do ataque dos hicsos. Mas, de qual. quer forma, os egipcios nfo poderiam resistir por muito tempo ao ataque desses guerreiros temiveis, que utiliza. vam 0 cavalo, 0 carro de assalto, a armadura e 0 arco composto. Conhecemos extremamente mal a histéria dos hiesos**; entretanto, a sua investida em diregéo ao Egito atentarmos para 9 fato de rentes regides haviam conservado inteiram fe Roum aoberania’ Toa 4 "Ver'usexemplanetadoa por Wilson, Phe Culture of A DAS verdade fue'an apple i (a unanoss adog ‘os ie phe) ian han us # CRISES NO AntiGo Earro 13 era certamente conseqiiéncia das migragdes que haviam sacudido o Oriente Proximo no século XVII. Depois da vitéria, os conquistadores instalam-se no Delta, Da sua capital, Avaris, governam por intermédio dos vassalos a maior parte do Baixo Egito; mas cometem o erro de tolerar, em troca de um tributo, a sucessio dos Farads no Alto Bgito, Os hiesos importaram alguns deu- ses sirios, em primeiro lugar Baal ¢ Teshup, que identi- ficaram com Seth. A promogio a categoria suprema do assassino de Osiris constituia sem divida uma rude hu- milhagio, Cumpre determinar contudo que o culto de Setgra praticado no Delta jé na época da IV Dinastia. Para oS egipcios, a invasio dos hicsos representava uma catdstrofe dificil de compreender. A confianca em sua posigio privilegiada, predeterminada pelos deuses, foi gra- vemente atingida/ Além disso, enquanto 0 Delta era colo- nizado pelos asidticos, os conquistadores, entrincheirados em seus campos fortificados, ignoravam’ com desprezo a civilizagio egipcia, Mas os egipcios compreenderam a li- gio. Progressivamente, aprenderam a manejar as armas dos vencedores. Um século apds a derrota (i.e., cerca de ~ 1.600), Tebas, onde reinava um Faraé da XVII Dinastia, Geflagrou a guerra de libertagio. A vitdria final” coinei. de com 0 advento da XVIII Dinastia (~ 1562-1308) e a fundagiio do Novo Império. [A libertagio tradueiuse pela ascenso do naciona- lismo e da xenofobia/ Foi necessdrio pelo menos um sé- culo para aplacar a sede de desforra contra. os.hicsos. Ini ciaimente, os soberanos empreendiam reities’ punitivos. Mas em ~ 1.470, Tutmdsis IIT inaugura a série de campa- nhas militares na Asia com uma expedicao contra as an- tigas pragas fortes dos hicsos. O sentimento de inseguran- ca produzido pela ocupagio estrangeira demorou a desa- ‘parecer. para tornar o Egito invulnerdvel As agressdes externas que Tutmdésis III procedeu a uma série de con- quistas que redundaram no Império, & provavel que as frustracées sofridas durante os primeiros 22 anos do seu reinado exacerbaram suas ambigoes militares, Pois du- rante todo esse tempo o verdadeiro soberano era sua tia ‘A 132 HisrOnia pas Cuencas pas Ipélas Reiciosas preferia @ €xpanisio cultural e comercial as guerras de conquista, Mas 15 dias apds a queda de Hatshepsut, Tut- mosis jd estava a caminho para a Palestina ea Siria — a fim de subjugar os “rebeldes”. Pouco tempo depois, triun- fou em Meguido. Felizmente para o futuro do Império, Tutmdsis mostrouse generoso com os vencidos. fiera o fim do isolacionismo egipcio, mas também o declinio da cultura tradicional egipcia, Nio obstante a duragao relativamente curta do Império, as suas reper- cusses foram irreversiveis. Em decorréncia da sua poli- tica internacional, 0 Egito voltase paulatinamente para uma cultura cosmopolitaJ Um séculd depois da vitdria de Meguido, a presenga maciga dos “askiticos” é atestada por toda a parte, mesmo na administrago e nas residéncias reais. Numerosas divindades estrangeiras eram nao s6 toleradas, mas assimiladas &s divindades nacionais. E, além disso, os deuses egipcios comegam a ser adora- dos nos paises estrangeiros, e Amon-Ré passa a ser um deus universal, A solarizagéo de Amon facilitara ao mesmo tempo o sineretismo religioso e a restauracio do deus solar na primeira categoria, pois 0 sol era o tinico deus universal- mente acessivel>!. Os mais belos hinos a Amon-Ré, exal- tando-0 como eriador universal ¢ cosmocrata, foram com- postos no comego da época “imperial”. Por outro lado, a adoragao do deus solar como deus supremo por excelén. cia preparava uma certa unidade religiosa: a supremacia de um tinico e mesmo prinefpio, divino impunha-se grada tivamente, desde 0 vale do Nilo até a Siria e a Anatolia. No Egito, essa teologia solar de tendéncia_universalista encontrava-se fatalmente implicada nas tensbes de ordem politica. Durante a XVIII Dinastia, os templos de Amon- Ré foram consideravelmente ampliados e os seus rendimen- tos decuplicaram. Como conseatiéncia da ocupagao hicsa ¢ sobretudo da libertagéo do Egito por um Farad de Tebas, 0s deuses foram convocados a dirigir mais diretamente os negécios do Estado. Isso queria dizer que os deuses — em primeiro lugar Amon-Ré — comuinicavam os seus conse- op. eit, pp. 189 5, que eximinamos em outro local (§ 20; ver exmbé Traité, & 14, 30), of deuses celestes tinhantse transformado em di otis Intus B Crises No Antico Eorro 133 thos por intermédio do corpo sacerdotal. © sumo sacerdo- te de Amon obteve uma autoridade consideravel; situava- se imediatamente depois do Farad, O Egito estava se trans- formando numa teocracia; 0 que, alids, nfo reduzia a luta pelo poder entre o sumo sacerdote e os Farads. Foi essa excessiva politizagao da hierarquia sacerdotal que agravou a tonsio entre as diferentes orientagées teolégicas em an- tagonismos &s vezes irredutiveis, 32, Akhenaton ou a Reforma fracassada. Faquilo a que se chamou a “Hevolugio de Amarna” (1375-1350), isto 6, a promogdo de Aton, o disco solar, a tinica divindade suprema, explica-se em’ parte pela von- tade do Farad Amenhotep'IV de libertar-se do dominio do sumo sacerdote/Com efeito, pouco tempo depois de subir a0 trono, 0 jovem soberano arrebatou ao sumo sacerdote de Amon a administragéo dos bens do deus, retirandothe assim a fonte do seu poder. Mais tarde, o Farad trocou 0 seu nome (“Amon-esté-satisfeito”) para Akh-en-Aton “Aquelequeserve-Aton”), abandonou a velha capital, Te- bas, a “cidade de Amon”, e construiu uma outra a 500 km mais ao norte, a que chamou Akhetaton (atualmente Tell-el- Amarna), onde ergueu os palicios e os templos de Aton, Ao contrario’ dos santudrios de Amon, os de Aton néo eram cobertos; podia-se adorar o Sol em’ toda a sua gldria. Mas essa nao foi a tinica inovagio de Akhenaton. Nas artes fi gurativas, estimulou 0 estilo que foi depois denominado o “naturalismo” de Amarna; pela primeira vez a linguagem popular foi introduzida nas inscrigdes reais e nos decretos oficiais; além do mais, o Farad renuneiou ao convencionalis- mo rigido imposto pela etiqueta, e deixou que a esponta- neidade regesse as relages com os membros de sua fa miljae com os seus intimos. [Todas essas inovages justificam-se pelo valor reli- gioso que Akhenaton reservava a “verdade” (ma‘at), € por conseguinte a tudo o que era “natural”, conforme aos ritmos da vida. Pois esse Faraé raquitico e quase disfor- me, que deveria morrer muito jovem, descobrira o sen- tido religioso da “alegria de viver”, a felicidade de desfru- tar a criagdo inesgotiivel de Aton, em primeiro lugar a luz divinaj A fim de impor a sua’“reforma”, Akhenaton 14 HistéRia pas Ceengas # pas Tofas Rurictosas afastou Amon e todos 0s outros deuses ® em favor de Aton, Deus Supremo, identificado ao disco solar, fonte universal de vida: era representado com seus raios que terminavam em maos, levando aos seus fiéis 0 simbolo de vida (0 ankh). O'essencial da teologia de Akhenaton encontra-se em dois hinos enderegados @ Aton, os tnicos que foram conservados, Trata-se, certamente, de uma das mais no- bres expressGes religiosas egipcias. O Sol “é o da vida", 0s seus raios “beljam todos os paise: bora estejas muito distante, os teus raios esto sobre a Terra; embora estejas sobre os semblantes dos homens, os teus tragos sio invisivels.”™ Aton 6 “o criador do gér- men na mulher", e é ele quem anima o embriio e zela pelo parlo € pelo crescimento da crianga — como alids dé o alento ao passarinho, e mais tarde o protege. “Quio di- versas sio as tuas obras! Blas esto escondidas diante dos homens,’6 Deus*tinico,-a ndovser que exista-um-outro*.” Foi Aton quem criou todos os paises, e os homens e as mu- Ineres, e colocou cada um em seu lugar proprio, atentan- ra as suas necessidades. “O mundo subsiste por “Cada qual tem o seu alimento.” Esse hino tem sido, com razSo, comparado ao Salmo J. Jé se falou até do cardter “monoteista” da reforma ‘ae Axhenaton. A originalidade e a importanela desse “pri meiro individuo da histéria”, como o caracterizava Breas- ted, sio ainda controvertidas. Mas nao se pode duvidar do ‘seu fervor religioso. A prece encontrada em seu sar- céfago continha estas linhas: “Vou respirar 0 doce hdli- to da tua boca. A cada dia, vou contemplar tua beleza. .. ‘Dé-me tuas méos, carregadas de teu espirito, a fim de que eu te receba e viva por ele, Chama 0 meu nome no decor- rer da eternidade: ele jamais faltaré ao teu apelo!” De- pois de 33 séculos, essa prece ainda conserva 0 seu co- movente poder. a Terra esta nas trevas, semelhante & mor- jes e at serpontes circulant, ‘Akthenaton e¥oca, com Inés e Caises No Anmico Ecrro 135 {Durante o reinado de Alhenaton, ¢ justamente em virtude da sua passividgde politica e militar, o Egito per- deu o império asidtica,|O seu sucessor, Tut-Ankh-Amon (~ 1.857-1.349), restabeleceu as relagdes com 0 sumo sa- cedote de Amon ¢ retornou a ‘Tebas. Os tragos da “reforma atonista” foram apagados em sua quase-totalidade. Pou- ‘co tempo depois, morria o tiltimo Faras da longa e glo- riosa XVIII Dinastia. ‘Segundo © consenso geral dos eruditos, a extingao da XVIII Dinastia assinala também o fim da criativida- de do génio egipcio. No que se refere as criagdes religiosas, podese indagar se a sua modicidade até a fundagio dos mistérios de Isis e de Osfris nao se explica pela grandeza e pola eficdcia das sinteses estabelecidas durante 0 Novo Império", De fato, sob certo ponto de vista, essas sinteses Tepresentam 0 ponto culminante do pensamento religioso ~egipcios-elas constituem.um sistema perfeitamente articu- lado que estimula apenas inovagdes estilisticas. Para melhor apreciar a importancia dessas sinteses teoldgicas, voltemos por um momento ao “monoteismo ato- niano”. Cumpre precisar antes de mais nada que a ex- pressio utilizada por Akhenaton em seu hino — “o deus tinico, a ndo ser que exista um outro” — jé era aplicada, mil anos antes da reforma de Amarna, a Amon, a Ré, a Atum e a outros deuses. Ademais, como observa John Wil- son‘, havia pelo menos dois deuses, pois 0 proprio Akhe- naton era adorado como divindade. As oragdes dos fiéi (isto 6, do grupo restrito dos funciondrios e dignité- rios da Corte), eram enderegadas nfo a Aton, mas direta- mente a Akhenaton. Em seu admirdvel hino, 0 Farad de- clara que Aton é 0 seu deus pessoal: “Tu estés no meu co- ragio e ninguém mais te conhece com excegao do teu fi- lho (i., Akhenaton) que iniciaste em teus planos e em teu poder!” Isso explica o desapatecimento quase inst; téneo do “atonismo” depois da morte de Akhenaton.fNo fim das contas, era uma devogao limitada & familia real ¢ aos cortesiog,/ Pensa sas is quais cram acessi- is as significagies profundas dessas eriagoes. Op. cit, pp. 228 8, 136 HISTORIA Das CRENCAS F Das IDfIAS RELI osas Acrescentemos que Aton era conhecido e adorado muito tempo antes da reforma de Amarna‘', No Livro do que Bxiste no Outro Mundo, Ré 6 denominado “Senhor do Disco (Aton)”, Em outros textos da XVIII Dinastia, Amon (0 “deus escondido”) é ignorado, enquanto Ré apa” rece descrito como 0 deus cujo “rosto éstd coberto” e que “se esconde no outro mundo”. Em outras palavras, 0 ca- réter misterioso e a invisibilidade de Ré sdo declarados aspectos complementares de Aton, deus plenamente ma. nifestado no disco solar, 33, Sintese final: a associagio Ré-Osiri Os tedlogos do Novo Império insistem na comple mentaridade dos deuses opostos, ou até antagonicos. Na Litdnia de Ré, o deus solar 6 denominado “O.Um-Conjun- to"; ele’é representado sob a forma de Osiris-muimia, osten- tando a coroa do Alto Egito. Em outros termos, Osiris é pe- netrado pela alma de Ré®, A identificagio entre os dois deuses efetua'se na pessoa do Farad morto; apdés 0 pro- cesso de osirificagéo, 0 Rei ressuscita como jovem Ré. © curso do sol representa o modelo exemplar do destino do homem: passagem de um modo de ser a outro, da vida & morte ¢, depois, a um novo nascimento. A descida de Ré ao mundo subterrdneo significa a0 mesmo tempo a sua morte e ressurreigio. Certo texto evoca “Ré, que vai repousar em Osiris, e Osiris que vai repousar em Ré"®, Numerosas alusdes mitoldgicas enfatizam o duplo- aspecto de Ré: solar e osiriano, Ao descer no mundo do além, 0 Rei torna-se o equivalente do binémio Osiris-Ré. Segundo um dos textos citados anteriormente, Ré “es- condese no outro mundo”. Diversas invocagées da Litania (2023) ressaltam o carter aqudtico de Ré ¢ identifica © deus solar com 0 Oceano primordial. Mas a unio dos contrérios € expressa sobretudo pela solidariedade oculta entre Ré e Osiris, ou entre Horus e Seth*!, Recorrendo a 8 C£. Wilson, op. cit, pp. 210 s, Amen, pp. ba Ot PP 210 85" Piankoff, op. eit, p. 12, £8 Cf. Piankott, The Litany of Re, p. 11. ® CE Plankotf, Ramessea Vi, p. 36. “Cf. os exemplos citados por Piankoff, Litany, p. 49, nota 3 Piankotf, Les Shrines de Tut-Ankh- Iogus & Crises No Awnico Eciro 137 uma formula feliz de Rundle Clark (p. 158), Ré enquanto deus transcendente e Osiris enquanto deus emergente constituem as manifestacdes complementares da divinda- de, Em ultima instaneia, trata-se do mesmo “mistério”, e especialmente da multiplicidade das formas emanadas pelo deus tinico, Segundo a teogonia e a cosmogonia desenca- deadas por Atum (§ 26), a divindade é ao mesmo tempo una e multipla; a eriagdo consiste na multiplicagao de seus nomes e formas. sc A associagao e a Goalescéncia dos deuses sio opera- Ges familiares a0 pensainento religioso egipcio desde a mais remota antigitidade. 0 que constitui a originalida- de da teologia do Novo Império é, por um lado, 0 postu- lado do duplo processo de osirificagio de Ré'e de so- larizagdo de Osfris; por outro lado, a convicgéo de que esse duplo proceso revela o sentido secreto da existéncia humana, e precisamente a complementaridade entre a vida ea mérte®, De eeito pontd de vista, o&sa sintese teoldgica confirma a vitdria de Osiris, ao mesmo tempo em que Ihe acrescenta nova significagio. O triunfo do deus_assassi- nado jé era total no inicio do Médio Império.fA partir da XVIII Dinastia, Osiris torna-se 0 Juiz dos mortos. Os dois atos do drama de além-timulo — 0 “processo” e a “pesagem do coragao” — desenrolam-se diante de Osiris/ Distintos nos Tertos dos Sarcdfagos, 0 “processo” 7a “pesagem da alma” tendem a se confundir no Livro dox Mortos*'./Tsses textos funerdrios, organizados durante o Novo Império mas contendo materiais mais antigos, go- zaréo de incomparavel popularidade até 0 fim da civiliza- ¢4o egipcia. O Livro dos Mortos é o guia por exceléncia da alma no além. As oragdes e as férmulas magicas que ele contém tém por objetivo facilitar a viagem da alma e, sobretudo, assegurar-lhe 0 sucesso nas provas do “pro: cesso” e da “pesagem do coracao”s %2 Ja nos Testor das Pirdmides, Atum fax os devses emanarem da seu proprio ser. Sob a sua forma primordial de Serpente (ef. § ‘Atum foi identificado também com Osivis (o que implica que el também pode fe eonseqtientemente com Horus: ef. of textos hoff, Litas, jement des morta dans p. 45. Convém notar que o julgamento dos mortos ¢ @ nogio de um: ‘ntervindo depois da morte de todos, homens e re atestados a partir da IX Dinastia; Yoyote, wid, p. OX CE. Yoyote, tf HISTORIA DAS CRENGAS F DAS Tofas Retiorosas if: curso”do sol —, aquilo que nao passava de um episddio trgica mas, no final das contas, fortuito — 0 assassinato de Osiris —, e aquilo que pareceria por definigao eféme. ro ¢ insignificante: a existéncia humana. Na art dessa soteriologia, o papel de Osiris foi essenci no outro mundo. Em titima insténcia, 0 Farad constituia © modelo universal A tensio entre “privilégio”, “sabedoria iniciatéria” e “boas agées” € resolvida de uma forma que pode &s vo zes decepcionar. Pois, se a “justiga” estava sempre asse gurada, a “sabedoria iniciatéria” podia ser reduzida & pos- se das {érmulas mégicas. Tudo dependia da perspectiva em que alguém se situava em relagdo a stimula escatologi- ca, canhestramente articulada no Livro dos Mortos e em outras obras similares. Esses textos exigiam varias “leitu ras", efetuadas em nfveis diferentes. “A leitura magica era, sem duvida, a mais facil: ela s6 implicava a {6 na oni- poténcia do verbo, Na medida em que, gragas & nova esca. tologia, o “destino real” torna-se universalmente acessivel, © prestigio da magia nao cessaré de aumentar. O creptiscu lo a izacio epipeia seré dominado pelas crengas e priticas magicas**. Convém lembrar entretanto que, na teologia menfita (cf. §.26), Pta havia criado os deuses © mundo através do poder do Verbo. 70 Ver o segundo tomo desta obra,

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