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istoria Essencial traz ao leitor brasileiro grandes historiadores da atualidade, Cerca oe ena nna Gna ease Te ccc nceac econ Qo miso nate eae rc contetido, Leitura obrigatéria para todos os que PM ul eC inectne Tnacdna introdugio para os que querem ampliar seus conhecimentos sobre diferentes assuntos. Neceot Ue Tear nT aon Ta mente cerns Cot ein si are mtutetutter nti GaN Cnn en Cel anne teccerd Cron onnlecsaceren Teese ect IN tac en (oe Mela See ed = “O Cenirio Histérico e Econdmico”, on crest aoa etch m enti un VaR EM set Mie esi oa Br xecra tates cr en aroon Occ ROR ten Mann n isi coesate ey rte earn eye a Renascimento” —, Johnson nao sé elucida Er seacoast Genesee icoltetnls arpa Preyer ar eh orcas Ger ae mecca T Sete atari UYESear MUU Com a acurada preciso de historiador, johnson Cree MT aes ae lg Gen eer en etna rac Peon n Min ut Met CTE eee CoN Catt UieeMerals (ola O Renascimento ‘QUTEUUEURWUMEUPapUUTEEEUETEREETEbOUSaaRa Nee bbb 2 Ladi 2 USE EUs UEECEUSdCaUaescetatncaiiiinorinnart) PAUL JOHNSON | O Renascimento Tradugéo Myriam Campello HISTORIA WP ESSENCIAL Originalmente publicado no Reino Unido sob o titulo THE RENAISSANCE: a short history de Paul Johnson. ©Copyright Claimant, 2000. “A Weidenfeld & Nicolson Book” Todos os direitos reservados. © 2001 Paul Johnson Todos os direitos desta edicdo reservados & EDITORA OBJETIVA LTDA. Rua Cosme Velho, 103 Rio de Janeiro — RJ — CEP: 22241-090 Tel.: (21) 2556-7824 — Fax: (21) 2556-3322 www objetiva.com.br Capa Silvana Mattievich Reviséo Antonio dos Prazeres Umberto Figueiredo Damido Nascimento Editoragao Eletronica Abreu’s System Ltda. 2001 J68r Johnson, Paul O Renascimento: Paul Johnson. — Rio de Janeiro: Objetiva, 2001 221 p. (Histéria essencial) ISBN 85-7302-420-8 Tradugio de: The Renaissance: a short history 1, Europa — Histéria — Séculos XV e XVI. 2. Renascenga. I. Titulo, I. Série. CDD 940.21 Parte 1 PARTE 2 PARTE 3 Parte 4 PARTE 5 PARTE 6 SUMARIO Cronologia O Cendrio Histérico e Econémico... O Renascimento na Literatura e na Cultura vcscseeeseseeseserseeeeeneereeereseereneees 33 A Anatomia da Escultura do Renascimento.., As Construgdes do Renasciment0 ....s.seeree 101 A Sucessao Cronolégica da Pintura do Renascimento « 133 A Difusao e o Declinio do Renascimento..... 189 Bibliografia Ud Lnddice REMmissiv0 cessscsisssssseesssssisessiessseeiss 215 Sobre 0 AULOP siussssssssssesrsussesineeeinnnees 221 CRONOLOGIA Algumas datas so aproximadas ou especulativas, 1260 1302 1311 1334 1341 1353 1386 1390 1401 1417-36 1435 1450 1455 1465 Nicola Pisano decora 0 ptilpito do Batistério de Pisa Dante inicia A divina comédia Duccio usa perspectiva em Siena Giotto encarregado de obras publicas em Florenga Petrarca coroado poeta laureado em Roma Publicagéo do Decameron, de Boccaccio Chaucer inicia 0s Contos de Canterbury Livro de pintura, de Cennino Cennini Ghiberti vence a competi¢io pelas portas do Batistério de Florenga Brunelleschi cria a cupula da Catedral de Florenga David, de Donatello Alberti inicia seu tratado sobre arquitetura A Biblia de Gutenberg, o primeiro livro impresso Giovanni Bellini e Mantegna pintam verses de A agonia no jardim 1470-80 1479-88 1480 1494 1498 1497-1500 1500 1504-5 1505-7 1512 1513 1516 1517 1525 1533 1563 1564 1588 1594 A pintura a dleo chega & Itdlia A estdtua eqiiestre de Colleoni por Verrocchio Primavera, de Botticelli Carlos VIII de Franga invade a Itdlia Erasmo visita a Inglaterra Pieta, de Michelangelo Tempestade, de Giorgione Mona Lisa, de Leonardo da Vinci Diirer em Veneza Madonna Sistina, de Rafael Machiavelli inicia O principe Leonardo vai 4 Franca Lutero inicia a Reforma Protestante A Batalha de Pavia Ticiano ¢ indicado pintor da corte do imperador Carlos V Sessao final do Concilio de Trento Morte de Michelangelo Morte de Veronese Morte de Tintoretto O CENARIO HIsTORICO E ECONOMICO Core DE ACONTECIMENTOS pequenos e grandes que se furtam a uma avaliagao precisa, o passado é¢ infinita- mente complicado. Para obter dele um sentido, o historia- dor precisa selecionar, simplificar e dar forma. Um dos mo- dos de se modelar 0 passado é dividi-lo em perfodos. Cada perfodo seré mais perduravel na meméria e mais facilmente apreenstvel se puder ser rotulado com uma palavra que sin- tetize seu espirito. Assim, surgiram termos como “o Renas- cimento” [ou Renascenga]. Desnecessdrio dizer que os ter- mos nfo siéo cunhados pelos que vivem de fato no periodo, e sim por autores posteriores, geralmente muito posteriores, sendo a periodizac&o e rotulagado da histéria um trabalho principalmente do século XIX. O termo “Renascenga” foi empregado pela primeira vez de forma proeminente pelo his- toriador francés Jules Michelet em 1858, ¢ gravado em bronze dois anos depois pofJaeOBIBUREKAARt, quando este publi- cou seu grande livro(A eivilizagao da Renascenga na lidlin O uso se firmou por ter-se revelado um modo conveniente de descrever o perfodo de transigéo entre a época medieval, quando a Europa era a “Cristandade”,’e 0 infcio daiidade Tinha também uma certa justificativa histérica porque, embora as clites italianas da época nunca usassem as palavras “Renaissance” ou “Rinascimento”, estavam cons- 11 cientes de que ocorria uma espécie dé{Renaseiimento eulea- Gl que pare da yrander ATES EES cs — vinha sendo recriada. Em 1550, 0 intor’ publicou uma obra ambiciosa,Aswidaswosar- ry na qual buscou mostrar como esse processo ocorrera € continuava a ocorrer, na pintura, escultura e arquitetura. Comparando as glérias da Antiguidade com as realizag6es do presente e do passado recente na Italia, ele se referiu ao degenerado perfodo entre elas como “a Idade Média”. Este nome também se firmou. Assim, um termo do século XIX foi empregado para assinalar o final de um periodo batizado no século XVI. Mas quando ocorreram exatamente, em termos cronolégicos reais, o final de uma época € 0 inicio de outra? Aqui nos depara- mos com o primeiro problema do Renascimento. Por mui- to tempo os historiadores concordaram que o chamado pe- rfodo moderno inicial da histéria européia comegou no fim do século XV e no inicio do XVI, embora seja datado de modo diferente em pases diversos. Assim, a Espanha en- trou nos primérdios da era moderna em 1492, quando a conquista de Granada foi completada com a expulsdo dos mouros ¢ judeus, ¢ Cristévio Colombo desembarcou no Hemisfério Ocidental sob as instrugdes da rainha Isabel e do rei Fernando. A Inglaterra entrou no perfodo em 1485, quando o ultimo rei plantageneta, Ricardo III, foi morto em Bosworth e a dinastia Tudor ascendeu ao trono na pes- soa de Henrique VIL. A Franga ea Itdlia juntaram-se 4 Espa- nha ea Inglaterra devido ao mesmo acontecimento, em 1494, quando o rei francés Carlos VIII invadiu a Itdlia, Finalmen- te, a Alemanha entrou na nova época em 1519, quando Car- los V uniu o trono imperial da Alemanha 4 coroa de Espa- nha e das Indias. Contudo, no perfodo em que tais eventos ocorreram, o Renascimento ja era um fato consumado em 12 seu esboco principal, e movia-se rapidamente para 0 que os | historiadores de arte chamam dc QUSRSECSTEEA seu i pice. Além disso, j4 comegara a época européia seguinte, a r datada geralmente pelos historiadores do ato de Martinho Lutero pregando suas 95 teses na porta da igreja em Wittenberg, em Assim, vemos que a conexio en- tre o Renascimento e os primérdios do perfodo moderno é mais esquematica do que cronologicamente exata. O problema seguinte, entio, é definir a cronologia do Renascimento em si. Se o termo tem qualquer significado ; util, 60 d Ss. nos } ON séculos barbaros que se seguiram ao colapso do Império j Romano no Ocidente, geralmente datado do quinto século d.C. Mas aqui nos deparamos com outro problem ; -réncia comum na histéria. A maioria das geragées, em todas Ap’ associedades humanas, tem a para idades de ouro, e procura . Assim, a longa civilizagao do antigo Egito, nitidamente dividida por arqueé- logos modernos em Antigo Reino, Médio Reino e Novo Reino, foi pontuada por dois colapsos, denominados perfo- dos intermedidtios, sendo 0 Médio Reino ¢ 0 Novo Reino renascimentos definitivos e sistemdticos. Por mais de trés milénios, a histéria cultural do antigo Egito é marcada por arcaismos conscientes, 0 revival deliberado de antigos padroes de arte, arquitetura ¢ literatura para substituir modos reco- nhecidos como degenerados. Este era um padréo comum em sociedades antigas. Quando Alexandre, o Grande criou um império mundial no século IV a.C., os artistas de sua corte buscaram recapturar o esplendor da civilizacao ateniense do século V a.C, Portanto, a Grécia helenistica, como a cha- mamos, testemunhou um renascimento de valores classicos. 13 SSeS Se ee ee ee TS Se SEE ee ea A propria Roma tentava periodicamente recobrar seu passado virtuoso e criativo, Enquanto criava um império as vésperas do perfodo cristo, Augusto voltava os olhos para trds, para o nobre espirito d4{R@publiea ¢ mesmo além dela, para as préprias{oHigens daleidadeya fim de estabelecer con- tinuidades morais e culturais e assim legitimizar seu regime. Livio, o historiador da corte, fez a ressurreigio do passado em prosa e Virgilio, o poeta ¢pico da corte, contou em ver- sos a historia das origens divinamente abengoadas de Roma. O império nunca foi tao autoconfiante como na Republica, j4 que era mais submetido aos caprichos de um autécrata falivel do que 2 sabedoria coletiva do Senado, ¢ estava sem- pre olhando por cima do ombro para um passado mais dig- no de admiracio, tentando Taner esntgieus alas A idéia de um renascimento republicano nunca esteve longe das mentes das elites imperiais romanas. Apés «GQUEERMOTRPEHOTGAEHEI) 0 séulo V d.C., 0 anseio pel: natural- mente intensificou-se nas que sucederam & ordem imperial. Na Biblioteca Vaticana ha \, um cédice, conhecido como Virgilio Vaticano, datado do sé- culo V ou VI ¢ escrito numa monumental Capitalis Rustica, onde ocorre uma constrangida tentativa de reviver a maitiscu- la caligrdfica romana, j4 caida amplamente em desuso nos tem- pos degenerados dos séculos III ¢ IV. O escriba-artista, talvez natural de Ravena, que ilustrou o texto com miniaturas, in- clusive uma do préprio Virgilio, evidentemente teve acesso a0 trabalho romano de alta qualidade pertencente a uma data muito anterior, e que ele imitou e simplificou ao maximo. Este é um dos exemplos iniciais da tentativa de renascimento das habilidades romanas perdidas. Houve muitos assim. Uma renascenga mais bem-sucedida e consciente; GQACEEMD ocorreu durante e depois do reino d 14 "los Magno, rei dos Francos, de 768 2814, reuniu virtu- alent todos tetris critios da Europa aiden ir unico grande reino. No ano quase milenar ae se coroara imperador do que se tornou Gn: um , diferente do antecessor pagao pelo adjetivo que 0 qualificava. A coroa- Go ocorreu em Roma, durante a missa de Natal na antiga Igreja de Sao Pedro, celebrada pelo papa Leao III. O novo imperador romano, contudo, nao viveu 14, preferindo er- guer um palacio em Aachen, o centro vital de seu império. No entanto, o palacio foi construido de materiais transporta- dos de Roma e Ravena, tendo, assim, 0 selo ea beleza antiga corretos. Em Aachen, Carlos Magno criou uma cultura da corte dentro de linhas que acreditava romanas, tendo ele. prdprio ensinado@@tif ¢ um pouco de(GiegB. Convocou eruditos de todo o mundo conhecido para servi-lo. Alcufno, © principal assistente intelectual do imperador, escreveu sob suas ordens a Epistola de litteris colendis (785), que delineou um programa para o estudo da lingua latina e de textos sa- gtados e profanos em todas as catedrais ¢ escolas mondsticas do império, Sumério do conhecimento considerado autén- tico ¢ indispensdvel, SICHoln oi preparado e posto em circulagao. No préprio scriptorium de Carlos Magno, e posteriormente em outros centros intelectuais onde seus tex- tos escritos vigoravam, os escteventes desenvolveram o que se tornou conhecido como a mintiscula carolingia, uma es- crita clara e bela transformada em padrao nos primérdios da Idade Média. Sobrevivem na Biblioteca Vaticana dois cédices que ilus- tram o impacto do programa de Carlos Magno. O primeiro, © Sacramentarium Gelasianum, data do perfodo imediata- mente anterior 4 subida do imperador ao trono, e distingue- se pelas pinturas soberbas ainda que barbaras de plantas ¢ 15 animals, Pe est EERO RS CORES Bs outras evidéncias documentais do passado, ¢ é escrito numa refinada uncial, embora a mintiscula que Carlos Magno po- pularizou faca seu primeiro aparecimento em locais oportu- nos. Foi sobre essa heranga que 0 novo imperador construiu. Contrastando com isso est o Terentius Vaticanus, muito mais sofisticado, datando de poucos anos depois da morte de Carlos Magno, escrito inteiramente na refinada minus- cula carolingia e ilustrado com pinturas de atores atuando em pegas de Teréncio. O livro é interessante em si ao mos- trar como os primeiros eruditos medievais estavam familia- tizados com os escritos de Teréncio, mas [trabalho /arustied é nitida e constrangedoramente(Saseadojein anitigos mode: GRRRARPEAoiAA— as figuras de atores em folio 55 reto, com seus gestos vigorosos, sio poderosas recapitulagdes de habilidades supostamente perdidas ha séculos. Assim, a experiéncia carolingia tinha algumas caracte- risticas de genuino renascimento, embora permanecesse uma experiéncia, BAlRavaM A sociedade do séculoiX os recursos: para@ustenear um império do tamanho do de Carlos Magno, e qualquer coisa a menos significavall@s- ESEMe recursos econdmicos para @@nsolidat ¢ expandir um programa cultural tio(@Mbieiesd. Mesmo assim era algo no qual se(Ba8eab, ¢ no devido curso os otonianos da Alema- nha, que também se haviam autocoroado imperadores ro- manos em Roma, fizeram isso. No século XI 0 Sacro Impé- tio Romano, WNestado sUeeNsO? (visto por ele proprio)@@) QM era um elemento permanente na sociedade medieval eum lembrete de que as realizagdes da antiguidade romana nao constitufam apenas uma lembranga nostdlgica, mas mostravam-se passiveis de serem rectiadas. Isso era subli- nhado visualmente pela difusao de formas arquiteténicas que chamamos de(@SRiaiieas, as robustas(Oltinas REAOHUA sus- 16 tentando@beos semicirculares suspensos que os pedreiros dos primérdios medievais e seus empregadores clérigos acredita- vam ser caracteristicos da arquitetura da Roma imperial no apogeu. Além disso, o préprio renascimento otoniano pro- vocou uma resposta papal, a do monge Hildebrando, entro- nizado como papa Gregério VII, o que incluiu um: QRS fundamental de todo o rO- gramas ambiciosos para a educagao e aperfeigoament: GAMBIAE ¢ sua liberacdo fisica ¢ intelectual das autorida- des seculares. Isso naturalmente conduziu ad[€Onflite)papa> -do-império, erpetuado nas lutas politico-militares entre (guelfos na Italia. Mas o lado positivo foi que as reformas (hildebrandinas expandiram-se com seu préprio impulso em cada parte da cristandade ocidental, produzin- do uma que incluja em suas fi- leiras um crescente nimero de No devido tempo, os novos estudiosos se congregaram em ntimero decisivo para formar o que se passou a ser conhe- cido om a extensfo e o amélgama de escolas de catedrais e centros de treinamento mondsticos. A primeira surgiu durante o século XII em(@PAes, onde Peter Lombard ensinava nd(@sebladaleatediali de NotesDame, Abelardo em Ste. Geneviéve e Hugo e Ricardo em Sao Victor. Um desen- volvimento semelhante ocorreu em Oxford, onde ha evidén- cia de que, desde o segundo quartel do século XII, mestres independentes ensinavam artes, teologia e¢ lei civil e canénica em escolas agrupadas no centro da cidade. As novas universi- dades foram o amago do que agora chamamos de renasci- mento do sécul@KD, e ¢ especialmente significativo que uma xistisse exORFOre jd por volta da década deG20, uma vex quéfRais[etisos fomnecerain a) base pArayS _ yerdadeito Renascimento, mais de 200 anos depois. 17 Esse proto-Renascimento foi importante nao apenas porque introduziu melhorias@UWalitativas no ensino, escrita e uso falado do(latim) transformado na lingua franca ou hie- ratica de uma classe culta composta sobretudo mas nfo in- teiramente do clero, mas também porque foi uma(@xplosa) . O crescente ntimero de(@seidioses|elliteratos estimulou um enorme aumento na producéo de manuscri- tos dos@@MpMHAMONASHEOS e centros de producao seculari- zados das cidades. Alguns dos escribas profissionais eram artistas também, e suas tornaram-se um| através do qual a Apenas as eli- tes letradas faziam_uso-dos cédices e manuscritos, mas-suas GOMER cram vistas cG@ENZAGAD pelos Pintores das pare- des das igrejas, por trabalhadores de vitrais, @Q@MIOres, Pe outros{aftesads engajados no enorme programa de CORSE MECN que, comegando no inicio do sé- culo XII, transformou milhares de igrejas e catedrais roma- nicas em(@Otieas. Vale notar que o novo coro da catedral de Canterbury, que substituiu um coro romanico depois de um incéndio em 1174, com um cimécio de cornija a ele acres- centado para abrigar o altar do assassinado Thomas Becket, inclufa colunas corfntias, que datarfamos da Italia do século XV se nfo tivéssemos evidéncia documental provando serem obra de William of Sens no ultimo quartel do século XII. Com o surgimento das novas universidades, a época e o ambiente estavam @HAGHEOS para o revival dAPSEOELES, © maior@Meiclopedista ¢ fildsofo sistemético da antiguidade. Os primeiros pais da Igreja haviam olhado Aristételes com suspeita, alinhando-o como(fiateHialista, em contraste com a quem viam como:um_pensador. mais espiritual ¢ um genuino precursor-de idéias cristas, Boethius comentara Aristételes com entusiasmo no século VI, mas teve poucos imitadores, em parte porque os textos eram conhecidos ape- 18 nas em extratos ou versdes revisadas. Entretanto, os textos de Aristételes a comegaram a circular no Ociden- te a partir do sécul embora sé estivessem completa- mente dispontveis por volta d4ii30: AGRD tornou-se dis- ponivel em traduco latina por volta deG200, ¢ a Politica meio século depois, com varios textos cientificos traduzidos do arabe, com comentarios eruditos nessa lingua, na mesma época. Devido a transmissao através dO) Aristdteles per- maneceu suspeito aos olhos da Igreja como uma possivel fonte de heresia, o que nao impediu que os grandes filésofos do século XIII, Alberto Magno e ROARS, cons- trufssem suas swmmae sobre uma base aristotélica. De fato, usaram Aristételes brilhantemente, em especial Aquino. O nitido efeito disso foi colocar a crenga crista sobre um sélido fundamento tanto de razio quanto de fé, ¢ realizou-se no século que o Renascimento como tal tivesse comecado. Se tantos elementos do que constitui o Renascimento HBBAia antes del 300, por que o movimento levou tan- to tempo para anhar ¢ tornar-se@uto=sustentae @EP Para isso devemos procurar duas explicagées, uma eco- némica e outra humana, Atenas, em seu auge, era um rico centro comercial, o miolo central de uma rede de colénias maritimas; o Império Alexandrino que a sucedeu era muito maior e dispunha de recursos muito mais amplos; e o Impé- tio Romano, que incorporou o de Alexandre em sua ala ori- ental, era ainda maior, dispondo de recursos nao igualados até tempos comparativamente modernos(Palibiquezltonnon (POSSIVE) nA0 apenas colossais programas de obras publicas e generoso PatrORInIOjestatalldaslartes, como também classes ociosas, de amplos recursos, que patrocinavam as artes e tam- 19 bém as praticavam. O Império Romano era um monume tal fato fisico, legal e militar, reunindo e gastando grandes somas de’ do qual a MD occocl. mente se beneficiaram.. Quando tal fato monumental desmoronou em irrecu- perdvel ruina, causada em parte pela(lilipetiilagad)— a inca- pacidade de manter uma moeda honesta —, 0 produto eco- némico bruto das partes componentes do império do Oci- dente declinou radicalmente para o desastre nos séculos VI e VII, emergindo dele lentamente e com regressdes periddi- cas. Contudo, mesmo quando a economia ocidental come- cou a reunir forgas, fez isso numa base fundamentalmente bem mais promissora do que qualquer coisa na antiguidade. Os gregos eram inventivos, produzindo alguns cientistas e engenheitos de génio. levando a cabo projetos numa escala que é geralmente impressionante, mesmo pelos pa- drdes de hoje, ¢ pareciam super-humanos para o homem medieval. Mas havia algo suspeito na monumentalidade ro- mana: o fato de ser construfda mais com o poder muscular do que com o cerebral. Os fortes, as estradas, as pontes, os enormes aquedutos, os espléndidos edificios municipais ¢ estatais eram levantados gragas a uma_multiddo recrutada ou(Séivil) que tinha na energia humana sua principal forca propulsora, Os bandos def@§efaves, constantemente abaste- cidos por guerras de conquista, estavam sempre dispontveis em numeros quase ilimitados. A auséncia de incentivo para o desenvolvimento de novas possibilidades de engenharia, em contraposigao a forca bruta de paredes e arcobotantes imensamente espessos, era continua. De fato, hé uma des- concertante evidéncia demonsttando que as autoridades ro- ‘manas relutavam em usar métodos que poupassem o esforgo humano, mesmo quando disponiveis, por medo do desem- 20 prego e da insatisfacao. Considerando-se a riqueza da Repti- blica Romana no auge (SHA teChOlogiaerAMIniMa, pouco mais avangada do que a da Grécia ateniense e amplamente confi- nada A esfera militar. Contudo, mesmo na Marinha, os roma- nos fizeram lamentavelmente pouco uso da vela como fonte de energia, preferindo remos acionados pelos escravos das ga- lés. A | tecnologia estagnou e, no império tardio, enquanto a garra da inflaco aumentava o aperto, chegou até a regredir. A Europa medieval nao participou desse luxo no uso do esforgo humano. Sob o impacto dos(@asiiaimentos|eris; (GS, a escravatura declinou lenta e depois rapidamente, so- bretudo no norte germAnico, mas posteriormente mesmo no sul do Mediterraneo. Na época do Domesday Book (1086)* 0 ntimero de escravos registrados, na Inglaterra, era muito pequeno. A maioria de homens e mulheres eram gie- bae adscripti, vinculados ao solo de um determinado lugar por claboradas obrigagées feudais, reforgadas ao longo do tempo por lei estatutaria que(Proibialalliberdade|de|imovi- GER Para os servos das glebas, era dificil afluir 4s cidades para constituir um mercado de trabalho. Havia escassez até mesmo de trabalhadores nao qualificados, e ambiciosos pro- gtamas de edificagées logo tiveram problemas por causa dis- so. Quando Eduardo I da Inglaterra encetou seu gigantesco esforco de construgao de castelos no norte de Gales no final do século XIII, viu-se competindo com as autoridades ecle- sidsticas, que reconstruiam suas catedrais, por um limitado grupo de habilidosos projetistas e mesmo pela mao-de-obra dos construtores. O impacto da escassez de mao-de-obra ope- ratia é refletido na elevagao dos custos registrados nas contas das Obras do Rei. A experiéncia francesa foi semelhante. Ao reduzir a populacdéo da Europa Ocidental de 15% a 30%, * Registro das terras da Inglaversa feito por ordem de Guilherme, © Conquistador. (N.T.) 21 em meados do século XIV, afpestelegi@ tornou a m4o-de- obra ainda mais escassa, mesmo em areas agricolas. Os por- tos de mar também foram atingidos. Por todas essas raz6es houve fortes incentivos, acresci- dos na Idade Média tardia, para a@melhenaldemaguinas que poupassem a mao-de-obra ¢ desenvolvessem fontes al- ternativas de energia 4 forca muscular humana. Algumas i vengées medievais foram muito simples, embora importan- tes, como o(G4#Hinho demaa) Os romanos haviam sido ex- traordinariamente lentos em fazer um uso efetivo do cavalo, contentando-se com uma espécie de junta de bois ou arreios consistindo principalmente em uma correia peitoral. Em con- traste com isso, no século XII os lavradores medievais haviam desenvolvido varais, pouco utilizados pelos romanos, ¢ ti- rantes, transformando a ineficiente correia peitoral pelo ri- ? gido e acolchoado @ifeloldeleavald, quintuplicando, assim, o poder de tragao do animal. Para sustentar 0 cavaleiro me- dieval, com sua armadura pesada, os-franceses criaram cava- los cada vez mais fortes, que resultaram no moderno cayalo de puxar carroca, Esses poderosos animais, ao tomarem o lugar dos bois na lavoura, mais do qu tornando possivel aos agricultores substi- tuir por arados totalmente de ferro os arados de madeira, ¢ assim, aumentando mais ainda a produtividade. Tais cava- los também puxavam carrogas maiores, equipadas com um eixo frontal giratério e rodas céncavas mais eficientes. Na Inglaterra do século XIV, os{€tistos|doeatretop quando a jornada de volta podia ser feita em um dia, caiu a um centa- vo por tonelada por milha [1.609 metros], eo aumento cada vez maior de pontes tornou, pela primeira vez, a viagem por terra competitiva em relac&o ao transporte hidrovidrio. Os romanos conheciam 0} , € fizeram alguns modelos grandes. Mas foram lentos em cons- 22 trui-los, preferindo escravos, mulas ¢ cavalos para o forneci- mento de energia; diz-se mesmo que Vespasiano, imperador de 69 a 79 d.C., chegou a se opor A expansdo da energia hidrica porque esta deixaria homens sem trabalho. A escas- sez de ferro também fez os romanos relutarem em substituir ineficientes engrenagens de madeira. Na Idade Média, a pro- ducao dS aumentou continuamente, tornando-o mais barato e dispontvel para uma variedade de objetivos, inclu- sive engrenagens. As forjas medievais também produziram, pela primeira vez, ferro para molde, precioso para a energia vinculada a arreios de todos os tipos. Assim, outros milhares de moinhos d’4gua foram construfdos. Na Inglaterra, ao sul de Trent, 0 Domesday Book lista 5.624 moinhos Pgua. Gradualmente, moinhos movidos a 4gua foram usados para serrar madeira, para o tratamento de tecidos, pata amassar minério, para martelar metal e na mineracao. A ubiqiiidade e importdncia deles refletem-se em complexas leis regulando o controle dos rios. Além disso, a partir do século XII, 4 ener- gia hidrica juntou-se a energia edlia no acionamento de pe- sada maquinaria para moer metais. Desconhecidos dos ro- manos, os@Oimhos WelVEntO foram construfdos em grande ntimero e, freqiientemente, em tamanhos prodigiosos. $6 nos Paises Baixos havia oito mil moinhos, sendo usados nao apenas para moer milho mas para bombear 4gua, possibili- tando, assim, esquemas de@tenageniqu GSA um processo que vinha ocorrendo em mui- tas partes da Europa. A complexa energia extrafda por meio de pds usada no acionamento dos moinhos de vento € o desenvolvimento da @@ para impulsionar navios eram vinculadas, e ajudaram a explicar por que os marinheiros medievais foram capazes de melhorar de forma tao acentuada os transportes marftimos romanos, largamente confinados a galé impelida a remo. A 23 roda dentada, acionada inteiramente a vela, apareceu no sé- culo XIII, principalmente nas aguas setentrionais da Liga Hanseatica. Foi sucedida no século XIV pelas caravelas por- tuguesas, navios de velas latinas, com dois ou trés mastros, conveses multiplos ¢ uma grande quilha — em todos os as- pectos essenciais, modernos navios a vela — pesando fre- qlientemente 600 toneladas ou mais, e transportando seu proprio peso em carga. Tais navios podiam atravessar os mares do Atlantico e postetiormente o fizeram, ajudados pela nvengio da bissola magnética, relégios mecinicos e mapas de navegacao, que se aperfeigoavam o tempo todo. Com a energia maritima revolucionada ea melhoria do transporte por terra, @)SOMBeIO HteEnOIe extennO nal BULO- Gainueneaplicowaredst GERD O comerco ata vés dos mares, especialmente com.o Oriente, tornou a peste mais comum, e surtos como a peste negra (1347-51) dizi- mou a populacao. Mas nfo ha evidéncia de que a peste te- nha interrompido o processo de produgio de riqueza. E mais provavel que o tenha acelerado a longo prazo, fornecendo ainda mais incentivo ao uso de mao-de-obra nao humana, dispositivos de metal e dispositivos que economizassem o esforgo do homem. Ao mesmo tempo, a expanstio do co- mércio_produziu_praticas subsididrias, tais como @egurole eae numa escala sempre crescente, ajudada pela inveri¢éo det@SH como o iGSeRe—TeTRRES Assim, na Idade Média tardia, aGHGWeZ estava sendo produzida em quantidades tao grandes como jamais fora antes na hist6ria, e@OHeehttavaese freqiientemente em cida- des que se especializavam em novas ocupagées de comércio e atividade bancdria em larga escala, como(Vénezale Bloren- © Cidades assim cram encontradas principalmente nos Paises Baixos, o Vale do Reno, e no centro e no norte da 24 Itdlia..A medida que a riqueza se acumulava, aqueles que a possufam gratificavam seus sentidos patrocinando.a litera- tura eas artes, e a eles se juntaram soberanos, papas e princi- pes, que descobriram modos de taxar a nova tiqueza dos stiditos. Mas s6 a riqueza nao teria produzido o fendmeno que chamamos de Renascimento. O dinheiro pode ordenar © aparecimento de arte, mas sua ordem é em.vao se.nao hd artistas que a produzam. Felizmente, h4 evidéncia em toda parte que a Europa, na Idade Média tardia, estava entrando num perfodo que os economistas modernos chamam défee Principalmente nos Pafses Baixos, Alemanha e Itdlia surgiram milhares de GAGS de todo tipo especializadas em pedra, couro, metal, madeira, gesso, pro: dutos quimicos e tecidos, e produzindo uma crescente varie. dade de produtos de luxo e maquinaria. Eram principalment. as familias dos que trabalhavam nessas oficinas que produ ziam os pintores, entalhadores, escultores e arquitetos, escri. tores e decoradores, professores ¢ estudiosos responsiveis pel: enorme expansao da cultura que marcou o inicio da Idad Moderna. Um aspecto do crescimento da tecnologia intermedid- ria teve um efeito direto € estrondoso nessa disseminagao cult: RSROTAETSRESD seule por sua Qi extraordinariamente répida. Este foi, na verdade, of@¥éfito Os romanos produziram uma granddlliteratuna. Quanto & sua(Publicagao, entretanto, eram, como em muitos outros terrenos, acentua- damente @BnseWadoreenConheciam of@bdig — isto é, uma colegio de folhas cortadas e dobradas, costuradas juntas e fechadas por uma encadernag’o — masse apegavam ao an- tiquado ®eRgAMIAR como a forma normativa de livro. Fo- ram os cristéos dos primérdios que preferiram 0 cédice, ea substituigao do pergaminho por cddices cada vez mais sofis- 25 ticados foi trabalho da denominada Idade das Trevas [de 476 acerca de 1000 d.C.]. O que os cristéos pegaram dos romanos foi uma versio de sua prensa-de-rosca-para-vinho para encadernar o cédice. O material no qual os romanos escreveram original- mente era olpapito) as folhas postas a secar de uma relva que crescia As margens do Nilo, e foi desse termo que se originou posteriormente a palavra “papel”. Mas entre 200 a.C. ¢ 300 d.C., 0 papiro foi substituido pelo@@lin® couro de bezerro deixado de molho na cal, depois amaciado a faca e pedra- pome, ou pergaminho, feito da pele raspada de ovelhas ou cabras. O velino era um material de luxo, extremamente durdvel, e foi usado durante a Idade Média para os melhores manuscritos, Na realidade, continuou a ser usado no Renas- cimento, mesmo para trabalho impresso, embora exigisse um cuidado especial para produzir resultados satisfatérios. O pergaminho era barato mas durdvel, e continuou a ser usado_ para certos documentos legais até meados do século XX, Contudo, durante a Idade Média, ambos foram amplamen- te superados pelo(papel, ou pergaminho de tecido como era originalmente chamado. Este foi produzido por um proces- so industrial que transformava (@iiatetiallibfOs0, como pa- lha, madeira, linho ou algodao, em polpa, que era entao es- palhada em folhas sobre uma moldura de arame. Ele veio a Chinn GiaAUAAOTTUGUIAIAND) cle onde chegou a Spa GRAEMSIAMA. Por volta de 1150, os espanhdis haviam aper- feigoado 0 processo original desenvolvendo um dispositivo manual que utilizava uma roda ¢ ressaltos para suspender e abaixar pildes em almofarizes. No século XIII, os moinhos de papel extrafam sua energia da 4gua, ¢ a.lideranga na in- duistria passara a ser da Itdlia, que, por volta de 1285, desen- yolvera a pratica de costurar uma figura de arame no molde para produzir uma marca-d’4gua. Produzido eficientemen- 26 te, o papel era de longe’ do que qualquer outro Pap 8 que qualq' material para escrever. Mesmo na Inglaterra, atrasada no co- mércio, uma folha de papel (paginas em oito oitavos) custa- va apenas um centavo no século XV. A disponibilidade de papel barato em quantidades cres- centes foi um fator importante em tornar a inveng3o da im- prensa por tipos mdveis o acontecimento tecnoldgico cen- tral do Renascimento. Imprimir em GISG6Sde Ada era uma idéia antiga: os romanos usaram a técnica pata téxteis € o Império Mongol a usou para fazer papel-moeda. Por volta de 1400, cartas de baralho e retratos de santos estavam sen- do impressos por meio de blocos de madeira em Veneza e no sul da Alemanha. Contudo, a novidade principal foi a invencio do@GpelmMevel para a impressio tipografica, que apresentava trés vantagens: podia ser usado repetidamente até gastar; podia ser facilmente renovado, sendo fundido num molde; e introduzia uma estrita uniformidade nas letras. O tipo mével foi um trabalho de dois gurives de Mainz, Jo- hannes Gutenberg e Johann Fust, nos anos 1446-48. Em 1450, Gutenberg comegou a trabalhar numa Biblia impres- sa, conhecida com ou a Biblia de Quarenta e Duas Linhas (do ntimero de linhas numa pégi- na), que foi completada em 1455 e é 0 primeito livro im- presso do mundo, Gutenberg teve que resolver todos os pro- blemas do corte, fundigao e composicao do tipo, imposicao do papel e da tinta, e a impressfo real, para o qual usou uma modificacgio da imprensa de rosca. O livro resultante, que surpreende quem o vé e o manuseia pela primeira vez por sua nitidez e qualidade, é um triunfo do artesanato germani- co do século XV em seu apogeu. Assim, imprimir com tipos méveis foi uma. inyencio (GERD o que mina o rdtulo “a Renascenga italiana”, Os ger- manicos foram répidos em explorar as novas possibilidades 27 para livros religiosos, especialmente Biblias, e obras de refe- recs, mas STS ERETELSICDD A preci ra enciclopédia impressa, 0 Catholicon, surgiu em 1460, e no ano seguinte um impressor de Estrasburgo, Johan Men- telin, produziu uma Biblia para leigos. A seguir, fez uma ——_ Colénia teve sua prépria impressora por volta de 1464, Ba- siléia dois anos depois. Esta ultima cidade tornou-se rapida- mente famosa por @digoes erliditas! dos classicos; posterior: mente com Desidéric{Bfa8im).o humanista holandés, como seu conselheiro literario.- Nuremberg conseguiu a primeira’ impressora em 1470 e logo se tornou o centro mais antigo /’ do comércio de impressdo internacional, onde Anton Ko- berger acionava 24 impressoras e tinha uma rede de cone- xOes com comerciantes e eruditos por toda a Europa. Em Augsburgo, as novas impressoras foram construfdas ao lado da Abadia de Santo Ulrico, que tinha um dos mais famosos (GG ba Europa. Parece ter havido pouco conflito co- mercial entre os seriptoria ¢ as novas impressoras, os scripto- ria concentrando-se nos livros de luxo, cuja beleza e com- plexidade eram crescentes, geralmente ilustrados por artis- tas conhecidos, ¢ os impressores em quantidade e prego baixo. Assim, o primeiro best-seller do novo mundo da imprensa foi De imitatione Christi, de Thomas 4 Kempis, que teve 99 edicdes nos 30 anos de 1471 a 1500. Embora oD 20 fossem os primeiros no livro impresso, logo assumiram al por sua grande industria de fabricagao de papel, sua experién- cia em imprimir em blocos.e sua forte tradigao de seripto- rium. Perto de Roma, 0 mosteiro beneditino de Subiaco ti- nha ligagdes com a Alemanha, e em 1464-65 0 mosteito contratou dois impressores germanicos, Sweynheym e Pan- nartz, para instalarem impressoras ao lado de seu seriptorium. 28 Impressoras na Alemanha tinham uma importante desvan- tagem no comércio internacional. Gutenberg e outros im- pressores alemies baseavam seu tipo na imitagio dos tragos caligraficos da escrita oficial, usando caligrafia gética ger- mianica de meados do século XV como modelo (conhecida mais tarde na Inglaterra como tipo “letra preta”), Fora da Alemanha, os leitores achavam esses tipos repelentes e diff- ceis de entender, Os impressores alemaes de Subiaco recebe- ram ordens de fazer um tipo baseado no estilo-padrao da | caligrafia usada pelos humanistas italianos no século XV, por sua vez baseado na mintiscula carolingia, admiravelmente | clara. Esta tornou-se conhecida como romana, ¢ foi o verda- deiro tipo do Renascimento. ! Mestre da Real Casa da Moeda em Tours, Nicolas Jen- son foi enviado pelo rei Carlos VII de Franca a Mainz em 1458 para aprender a nova arte de imprimir. Contudo, em vez de voltar 4 Franca, Jenson passou o resto da vida em Ve- neza, onde estabeleceu a mais famosa imptessora do mundo, Talhou soberbos exemplares de tipos romanos que foram imitados por toda a Europa. A partir de 1490, suas impresso- ras rivalizaram em Veneza com as de Aldus Manutius, que nao apenas desenhou um util tipo grego para imprimir textos antigos no original, como também desenhou e popularizou tipos baseados na caligrafia cursiva usada na chancelaria papal do século XV. Aquela se caracterizava por uma aguda inclina- ¢ao para a direita e serifas exageradas, e 0 tipo nela baseado passou a ser conhecido como itélico. Aldus usou-o inicial- mente em 1501, apenas em caixa alta. A caixa baixa surgiu por volta de 1520, sendo alguns livros produzidos inteira- mente em itdlico. Posteriormente, este deslizou confortavel- mente para o sew papel moderno de énfase, contraste e citacao. A velocidade com que a impressao se espalhou, a quali- dade ¢ a quantidade da producao e a extraordindria enge- 29 nhosidade mecénica exibida constituiram juntas uma espécie de revolucio industrial. Por volta de 1500, menos de um sé- culo depois do primeiro livro impresso, havia firmas impres- soras em 60 cidades alemas, e sé Veneza tinha 150 impresso- ras, Trabalhadores alemaes levaram a impressav pata Utrecht, nos Paises Baixos, em 1470, para Budapeste, Hungria, em 1473, e para Cracévia, Polénia, em 1474. A impressao che- gou a Valéncia, na Espanha, em 1473, e 25 anos depois, sob o patrocinio do cardeal Francisco Jimenez de Cisneros, 0 pais ’ comecou <. produzir o que continua sendo até hoje um dos... mais extraordindrios livros j4 concebidos, a Biblia Poliglota -Complutense, em cinco linguas da Antiguidade — hebreu, siriaco, latim, grego e caldeu —, com os textos dispostos em colunas paralelas, Na outra extremidade do mercado, Manu- tius produzia textos latinos baratos para uso de.estudiosos pobres, A disseminagao da imprensa no verndculo foi o modo pelo qual o mercado se expandiu. Assim, William Caxton, que aprendeu a imprimir em Colénia e dirigiu sua primeira impressora em Bruges, em 1474, trouxe a impressio para a Inglaterra em 1476, de olho no publico leitor em verndculo. Dos aproximadamente noventa livros que publicou, 74 fo- ram em inglés, sendo 22 tradugdes do préprio Caxton. O comércio dos livros impressos, portanto, poderia ser descrito como a primeira industria pan-européia de fato eficiente ¢ inovadora. Antincios dos livros comegaram a aparecer em 1466, e os catdlogos dos editores surgiram logo depois. O impacto quantitativo foi esmagador. Antes da imprensa, apenas as bibliotecas muito grandes continham 600 livros, e o ntimero total de livros na Europa cra bem abaixo de 100 mil livros. Em 1500, apés 45 anos de livro impresso, o total foi calculado em nove milhées, Assim, o cendrio do_que chamamos. Renascimento_foi um crescimento cumulativo e disseminado de riqueza nun-_ 30 ca antes havida na-histéria.do_mundo, eo surgir de uma_ sociedade na. qual .a-tecnologia. intermediaria tornava-se a_ norma, produzindo, no devido tempo, uma surpreendente revolucao no. modo. como as palavras cram publicadas_e di vulgadas. Mas isso nao significa que o Renascimento fosse um acontecimento econémico, sem se falar em acontecimen- to tecnoldgico. Sem desenvolvimento econdmico e tecnold- gico ele no teria assumido a forma que tomou, sendo ne- cessdrio, portanto, descrever primeiro seu conhecimento ma- terial. Mas é preciso notar-se que o Renascimento foi pri- mordialmente um acontecimento humano, impulsionado por um determinado ntimero de individuos de extraordina- rio talento, o que, em alguns casos, chegava & genialidade. Consideraremos agora a linha de frente humana. e em pri-_ meiro lugar, os escritores. | ~ ALD 31 PARTE O RENASCIMENTO NA LITERATURA E NA CULTURA RENASCIMENTO FOI OBRA de individuos, e num certo sentido, diz xespeito ao individualismo. O primeiro e maior desses individuos foi Dante Alighieri (1265-1321). Aptopriadamente florentino, j4 que o papel desempenhado por Florenga foi mais importante que o de qualquer outra cidade no Renascimento, Dante corporifica também o para- doxo central do perfodo: embora este fosse essencialmente vinculado & recuperagdo ¢ compreensao de antigos textos gtegos e latinos e a escrita de um latim elegante, tinha a ver também com o amadurecimento, ordenamento e utilizagao de Iinguas verndculas, especialmente o italiano. Sabemos pouco do infcio da vida de Dante, exceto que perdeu os pais antes de completar 18 anos. Ficou noivo aos 12 € casou-se aos 28 anos de idade, em 1293. De modo tipicamente italia- no, tal aspecto da existéncia era uma questio familiar de pouco significado emocional, Acredita-se que a vida emocio- nal de Dante tenha comegado aos nove anos, quando em 1274 vislumbrou pela primeira vez sua Beatriz (Bice [Bea- trice] Portinari, a filha de um respeitavel cidadao de Florenga). Sua vida poética foi devotada 4 presenga da jovem e, a partir de 1290, quando esta morreu, & sua meméria; num certo sentido, toda a vida e obra de Dante foram dedicadas a ela. 35 \Houve trés elementos-chave na educacao de Dante, O primeiro elemento foram os dominicanos florentinos, com quem estudou na década de 1290. Jé entao o grande profes- sor e escritor dominicano Santo Tomés de Aquino morrera, deixando atrds de si a obra completa, o que permitiu a Dan- te absorver toda a filosofia atistotélica do modo como fora recebida e cristianizada por Aquino, O aristotelismo tomis- ta dA uma estrutura & sua obra, trazendo-lhe consisténcia interna e rigor intelectual. O segundo elemento foi Dante ter tido como mentor o erudito versado nos cléssicos Bru- netto Latini, também aristotélico. A primeira parte do Livro Dois do trabalho principal de Latini, Li Livres dou trésor, escrito em francés porque o italiano ainda nao era conside- rado_uma I{ngua apropriada para uma obra séria, contém uma tradugio da Etica de Aristételes, uma das primeiras em verndculo. Gragas a Brunetto Latini, Dante foi capaz de en- tender a importancia da retérica, isto ¢, a capacidade de apre- sentar um caso e usar o latim — ou qualquer outra lingua — com forga e elegdncia. Também através de Latini ele pas- sou a conhecer pelo menos parte dos trabalhos de Cicero e Séneca, Virgilio, e especialmente sua Eneida, a sucessora épica da Iada e da Odisséia de Homero, nunca deixara de ser lido, mesmo no perfodo mais opressivo da Idade das T'revas, sempre encontrando defensores cristéos. Outros cristaos, contudo, inclusive alguns dos mais destacados, como Sao Jerénimo e Santo Agostinho, 0 condenaram como um ar- quétipo pagao. Latini, porém, ensinou a Dante que Virgilio devia ser tao utilizado quanto usufruido. Assim, na Divina comédia de Dante, que pode ser vista como uma sucessora crista da Eneida, o poeta aparece como o guia de Dante pelo Inferno e Purgatério, embora Dante seja suficientemente or- todoxo como cristo para exclui-lo do Paraiso, deixando que 0 poeta latino afunde no Limbo. 36 O terceiro elemento na educagao de Dante foia influén- cia e o.incentivo de seu.amigo_e contemporaneo Guido Ca- yalcanti, outro erudito cl4ssico mas um homem cuja pai- x4o era promover o italiano. Foi ele quem persuadiu Dante a escrever na versao toscana ou florentina da lingua italiana. No devido tempo Dante forneceu, em seu Convivio, escrito em italiano, e em seu De vulgari eloquentia, escrito em latim, a primeira grande defesa renascentista do verndculo como uma I{ngua apropriada a obras de beleza e peso. O De vulga- ri. contém_uma frase que faz..uma_profecia sobre_a lingua italiana: “Esta serd a nova luz, 0 novo sol, que se ergue quan- do o que est4 exaurido se puser, e dard luz aos que estZo na. sombra e na escuridao por causa.do velho sol, que no os. iluminou” — um astucioso reconhecimento, por parte dele, de que as massas jamais teriam uma compreensao significa- tiva do latim mas poderiam ser ensinadas a ler em sua pré- pria lingua falada. Mais importante do que tais argumentos, porém, foi o exemplo fornecido por ele com A divina comé- dia, escrita em italiano, demonstrando que a lingua comum ‘toscana poderia ser _usada para escrever a_mais requintada poesia e lidar com material da mais alta importdncia. Antes ~ de Dante, 0 toscano fora um dos muitos dialetos italianos, nao havendo nenhuma lingua italianada escrita que fosse aceita através da peninsula. Depois de Dante, porém, o ita- liano escrito (A maneira toscana) tornou-se um fato. Real- mente, italianos do século XXI e estrangeiros que tiverem algum dominio do italiano podem ler a maior parte de A divina comédia sem dificuldade. Nenhum outro escritor teve um impacto tao decisivo numa lingua moderna. - A divina comédia de Dante, descrevendo sua jornada através do Inferno, Purgatério e Céu, e o que viu 14, é um épico cristao sobre vicio e virtude, recompensas e punicées. Tem um enorme elenco de personagens, muitos deles con- 37 gE HEH HEPES c HE Heeb - HE SHEE SoC Hea HCH C He CP CHEECH EE=ste Cece temporaneos de Dante. Em 1294, ele se envolveu na politica de Florenga, uma cidade ela propria altamente politica, pro- fundamente comprometido com os guelfos ou a causa papal. Florenga estava dividida em duas partes, como a maioria das cidades italianas e, tendo 0 partido ao qual Dante pertencia se oposto ao ultratriunfalista papa Boni- facio VIII, perdeu a partida, sendo 0 poeta exilado em 1302, { sentenga renovada em 1315. Essas lutas entre facgdes na cidade italiana eram perversas ¢ mortais. A propriedade de Dante foi confiscada e ele préprio condenado & fogueira caso voltasse 4 cidade. Assim, passou boa parte de sua vida no exilio, principalmente em Ravena, onde morreu, e com yersos que inspiraram piedade lamenta a dor de “comer o pao de outro homem e usar a escada de outro homem para ir para a cama”. Contudo, hd pouca amargura em sua grande Comme- dia, Dante era um homem de magnanimidade excepcional, de um abarcante amor pela humanidade, assim como pelos individuos, e compreendia também a natureza do amor.di- ' vino que permeia o universo ¢ lhe da significado. Seu poema € moralista e didatico, ¢ isso de muitos modos € tao clara- mente como um grande ret4bulo numa catedral medieval Dante considera a fé cristé com uma seriedade cheia de te- mor reverente, e nao procura descontar as misérias dos da- nados ou as dores do Purgatério. Nesse sentido, foi um ho- mem medieval, construfdo para ter certezas numa escala gi- gantesca, mas intocado pela duivida sobre a mecinica do universo como descrita pela Igreja. Dante foi também um narrador de imensos recursos e um poeta de génio. A narra- tiva avanga num ritmo rapido ¢ é cheia de incidentes delicio- sos, surpreendentes e aterrorizadores, iluminados por relam- pagos de vivida cor verbal e pelo que sé pode ser chamado de inspiragao. 38 ‘Além disso, Dante nao foi apenas um homem medie- val; foi também _um renascentista, Era altamente critico da [greja, como tantos eruditos que se seguiram a ele. Embora um guelfo, impressionava-se com © imperador germanico Henrique VII, que foi a Itdlia em 1310 € converteu Dante 4 idéia de uma monarquia universal expressa num tratado la- tino, De monarchia, condenado como herético depois da morte do poeta. Dotado de grande fé, Dante compreendeu o argumento da Cristandade medieval, que defendia ser sub- miss4o a divina vontade, por mais dificil que as vezes fosse, 0 tinico caminho para a paz pessoal. Entretanto, poeta tinha © espirito critico dos novos tempos que chegavam. Enxerga- va no coracao das coisas, com um olhar penetrante. Todos os homens (e mulheres), ricos ¢ pobres, instruidos ou nao, podiam encontrar algo nele, ler ou escutar-lhe os versos, maravilhados. Sua fama seguiu-se 4 sua morte, e continuou acrescer firmemente. Florenga, que o havia expulso, passou a lutar com Ravena pela custédia dos honrados ¢ agora alta- mente valiosos ossos de Dante. Este nao apenas deslanchou a lingua. italiana como um veiculo para a alta arte; num_cer- to sentido desencadeou o proprio Renascimento, como ume nova era de esforgo criativo por parte de individuos com dons sem precedentes. Dante tornou-se um modelo, um fa- rol, um mentor, como Virgilio para ele, uma fonte energi- zante e vivificadora para talentos de uma ordem menor, € um gigante planando nas alturas contra quem os mais ambi- ciosos podiam medir-se. Depois do poeta, nada pareceu além do alcance humano. _Ne Essa era a visio de outro toscano, Giovanni Boccaccio, nascido em 1313 — quando Dante ainda tinha algum te! po de vida — e destinado pelo pai metcador a uma vida de negécios. Com esse objetivo Boccaccio foi enviado a Napo- les, mas lA enconitrou, como Dante, seu amor da vida intei- 39 “7 negra de 1 a # PReceace a Liane ian ra, Fiammetta, que emerge em toda a sua obra como um palimpsesto. Boccaccio foi o herdeiro de Dante no que tan- ge A capacidade de lidar com a lingua recém-amadurecida, ¢ em sua incomparavel habilidade de contar uma histéria. De_ mie francesa, ele agrupa em sua obra o legado dos romances medievais franceses. Pegou a ottava rima dos menestréis e deu-lhe um status literdrio, tornando-a, na verdade, a mais dinamica forma de verso da literatura italiana. Seu Decame- ron, atras apenas da A divina comédia como fonte de encan- tamento para a Europa renascentista, é um produto da peste 1348. O autor descreve a fuga de Florenga de sete mogas e trés rapazes do contdgio da peste. Eles permanecem no campo por uma quinzena, sendo dez dias gastos em con- tar histérias, num conjunto de 100 histérias ao todo. Cada histéria termina com uma canzione, ou cangio. Assim, é um compéndio de histérias e versos, que espititos menos inven- tivos saqueariam em busca de inspiracdo nos préximos dois séculos. A Igreja e os elementos mais rigidos da sociedade nao apreciaram a obra, pois esta representa a abordagem mais liberal de estilos de vida e opinides da geracio mais joven, contrastada com as formalidades e a tacanhez do passado. O resto gostou dela precisamente por essa raz4o. Assim, é um livro “progressista”, o precursor de uma crescente tendéncia renascentista. Boccaccio exibe a caracterfstica capacidade do Renas- _cimento de fazer muitas e étimas coisas di pericia e garbo. Serviu como conselheiro municipal e como “embaixador para o papa em intimeras ocasi6es, ¢ na Alema- nha; era um homem do mundo e um cortesio, ¢ tanto um estudioso quanto um escritor, Tinha uma energia prodigio- sa € sua produgao é vasta. Por quase 40 anos, uma equipe de eruditos italianos vem produzindo uma maciga edigio cole- tiva de sua obra, com um completo apatato critico, revelando, 40 talvez pela primeira vez, a escala e 0 alcance de seu trabalho. O primeiro romance de Boccaccio, Filocolo, outrora descar- tado como uma obra menor, tem na realidade mais de 600 paginas impressas ¢ foi lida por toda a Europa. Ele escreveu nove outras consideraveis obras de ficco em italiano. Como homenagem, produziu uma vida de Dante que circulou amplamente em varias edigdes e resumos, Mas mergulhou mais profundamente do que o mestre no corpus emergente da literatura da antiguidade. Entre 1360 e 1362, cedeu alo- jamentos para Leonzio Pilato, e obteve para este 0 posto de leitor de grego no Studio, o velho nome para a universidade de Florenga. Ele providenciou para que Pilato fizesse uma traducéo aproximada de Homero para o latim, meio pelo qual ele e muitos outros (inclusive Petrarca) comegaram suas jornadas para os classicos literdrios gregos. Ajudou no pro- cesso de recuperagao de textos auténticos de Martial, Apu- leio, Varro, Séneca, Ovidio e TAcito. De fato, a redescoberta de Tacito foi principalmente obra sua. Traduziu Lfvio para o italiano, Produziu um numero de obras de referéncia, in- clusive duas macigas enciclopédias cldssicas. Uma delas é uma topografia do mundo antigo, listando todos os lugares como bosques, fontes, lagos e mares mencionados na literatura gtega e latina, dispostos alfabeticamente. Para isso usou Pli- nio, o Velho, diversos gedgrafos romanos como Pomponius Mela e Vibius Sequester, ¢ os textos classicos, discorrendo em éxtase, por exemplo, sobre o local de nascimento de Vir- gilio em Petola. Mais importante ainda foi sua grande compilacio As genealogias dos deuses pagitos, que classifica todas as confusas deidades citadas nos classicos da antiguidade. As vezes lia ou entendia textos de forma equivocada, produzindo assim pu- ras invengGes, como Demogorgon, que se desenvolveu e criou uma vigorosa vida prdpria. Mas a maioria das pessoas ansio- 41 sas pata entender a literatura do passado considerou esses volumes um presente dos deuses, Eles se tornaram minas de informagio e inspiragéo nao apenas para eruditos e escrito- res mas, talvez até mais ainda, para artistas & procura de te- mas. Escrevendo em tal extens%o sobre as deidades pagis, Boccaccio atriscou-se a desagradar a Igreja, e defendeu-se dizendo que os homens e mulheres a quem os pagios cultua- vam nao eram absolutamente deuses, mas meramente seres humanos excepcionais, cujas faganhas haviam sido imorta- lizadas por serem recontadas incessantemente. Assim, nao constitufam nenhuma ameaga a teologia crista. Na verdade, como tantos outros materiais fornecidos pela recuperagéo da antiguidade pelo Renascimento, a obra de Boccaccio cons- tituiu um verdadeiro desafio ao monopédlio cristéo dos inci- dentes que os artistas retratavam. Na segunda metade do século XIV, os temas deles eram quase inteiramente cris- téos, Claro que continuariam a usar episédios da vida de —T Cristo e dos santos, e cenas do Antigo Testamento até o final do século XVII ¢ além dele. Mas agora tinham uma alternativa, e em alguns aspectos uma alternativa mais atra- ente, porque a mitologia classica fornecia muito mais opor- tunidades para a exibigao da beleza — especialmente a carne feminina — e de joie de vivre do que a interminavel ténica de'piedade e dos sofrimentos dos martires. Esse foi o modo pelo qual a garra de ferro da Igreja sobre as artes visuais, assim como nas mentes de homens e mulheres simples que nao sabiam ler, foi gradualmente se afrouxando. Essa nfo era intengio de Boccaccio, longe disso. A sua frivola juventude, na qual o melhor de sua ficgdo foi produ- zido, sucedeu-se uma maturidade e velhice cada vez mais séria ¢ mesmo piedosa. Precisamos reconhecer que esses mestres dos séculos XIV e XV, e mesmo posteriores, arrefe- ciam e moldavam-se inteiramente na intensidade de suas 42 paixdes religiosas, Por tr4s de um verniz renascentista cres- centemente terreno, havia um substrato medieval, que emer-_ gia de forma poderosa quando 0 yerniz se dissipava, como tende a acontecer com a idade. De Dante em diante, esses gtandes homens tinham um pé no excitante Renascimento ¢ outro firme no passado medieval, com suas supersticdes € crenga inabaldvel. A personalidade dividida, 0 rosto de Jano, 0 cabo-de- guerra da rivalidade entre passado, presente e futuro tiveram. sua epitome no camarada de toda vida de Boccaccio, Fran-, cesco Petrarca (1304-74). Este era mais velho e instrufdo que seu amigo, tinha uma carreira intermitente a servigo do papado, depois no exflio em Avignon, e era um poeta muito mais dedicado e talentoso. Tinha também uma musa, Laura (e embora sendo cénego, gerou uma filha). Mas enquanto Dante era essencialmente um poeta épico, Petrarca era um poeta lirico, A forma de seu soneto de 14 linhas ainda sobre- vive, ¢ ele inventou outras. Podia compor ¢ organizar letras curtas em seqiiéncias, e reuni-las juntas numa antologia coe- rente, Assim, aspirou a reviver 0 culto da poesia como a mais alta forma artistica, depois do que via como uma brecha de todo um milénio. O mundo reconheceu seus esforgos e, em 1341, ele foi coroado publicamente poeta na Colina Capi- tolina em Roma, como seus precursores da antiguidade, em- bora tivesse 0 cuidado de depositar a coroa de louros no ttimulo de Sao Pedro, na antiga basilica que leva seu nome. Petrarca estava diretamente preocupado com o renas- cimento da cultura classica, procurando e descobrindo ma- nuscritos de classicos perdidos em velhas bibliotecas monds- ticas. Diz-se freqiientemente que o Renascimento foi esti- mulado pela chegada de manuscritos de BizAncio, E verda- de. Mas a maioria da literatura classica estivera 14 0 tempo todo, em pergaminhos esfarelando-se e antigos cédices co- 43 0 ee \ RONDA Lydd : bertos de poeira, preservados — mal e mal — por monges piedosos mas ignorantes que desconheciam os tesouros que guardavam. Petrarca era muito mais viajado que Dante ou Boccaccio. Em.1333_viajou através do Reno, Flandres, Bra- bante e Franga, conhecendo eruditos e saqueando bibliote- cas..Em Lidge, por exemplo, ele descobriu cépias de dois discursos perdidos de Cicero. Em 1345, em Verona, esbar- rou numa descoberta muito mais dramatica, as cartas de \ Cicero para Atticus, Brutus e Quintus — textos que trouxe- ram o grande orador a vida pela primeira vez. Tal descober- ta persuadiu Petrarca a preocupar-se mais com suas préprias cartas, e assim ele se tornou responsdvel pelo revival de outra forma de arte. Suas préprias cartas foram preservadas, coli- gidas e editadas e, mais tarde, no devido tempo, publicadas. Petrarca gostava tanto de uma reclusao estudiosa quanto de uma atividade frenética e gregdria. Tinha uma propriedade em Vaucluse e depois em Arqua, nas colinas préximas a Veneza, onde sua deliciosa casa, amada por Byron, Shelley e outros poetas romanticos, evoca seu espirito a visitantes modernos que se dao ao trabalho de ir até la . Ela é 0 préprio Renascimento em tijolos, estuque e pedra, embora nao sem um sussurro também da Idade Média. Contudo, ainda mais evocativo e sugestivo do que se tratava realmente o inicio do Renascimento, so os manus- critos que sobrevivem, escritos na prépria caligrafia de Pe- trarca. Ele nao era apenas um grande poeta, mas um caligra- fo — um artista, na verdade — de habilidade profissional. Trés manuscritos em especial, todos na Biblioteca Vaticana, testemunham sua paixdo pelo ato de escrever. Em 1357 ele transcreveu seu Bucolicum carmen com uma.soberba mintis- cula gética. A escrita € em preto, com algumas maitisculas em azul, e uma sentenca no final em vermelho, testemu- nhando que o texto foi escrito por ele. Em 1370, Petrarca 44 usou uma mintiscula gética de livro mais refinada ainda para transcrever o todo de seu cédice De sui ipsius et multorum ignorantia, anotando o trabalho (“seripsi his iterum manu mea’) no verso de seus 38 folios. Mais espetacular ainda é 0 manuscrito original de sua coletanea de versos, 0 Canzonie- re, ou livro de cangées. Este é também em mintiscula gética de livro, mas nem todo o texto é de Petrarca, sendo um scriptor profissional o responsvel por parte dele. Por outro lado, o reto do primeiro félio tem uma primeira inicial decorada com ramos ¢ folhas multicoloridas, feita pela mao de Petrar- ca, que continuou a corrigir ¢ embelezar 0 manuscrito até sua morte, Todo o Renascimento vive nessa nobre pagina originada da mente e dos ageis dedos do poeta. Petrarca pode ser chamado 0 primeiro humanista, ¢ foi certamente 0 primeiro autor a pér em palavras a nogio de | que os séculos entre a queda de Roma e o presente foram. uma idade das trevas. Na universidade medieval, as sete “hu- manidades” haviam sido os temas menos estudados. Petrar- ca colocou-as em primeiro lugar ¢ alinhou-as do modo que se segue. Primeiro vinha a gramatica, bascada no estudo das linguas da antiguidade do modo como eram usadas pelos antigos (inclusive a prontincia correta). Isso envolvia a imi- taco e o estudo dos grandes autores classicos. Uma vez a linguagem dominada gramaticalmente, poderia ser usada para atingir o segundo estagio, a elogiiéncia ou a retérica, Essa arte de persuaso nfo era arte pela arte, e sim a aquisi- gao da capacidade de persuadir os outros — todos os ho- mens e mulheres — a viver corrctamente. Como Petrarca colocou: “E melhor almejar o bem do que conhecer a verda- de,” Assim, a retérica levava d filosofia ea abarcava. Leonar- do Bruni (c. 1369-1444), o destacado erudito da nova gera- Ao, insistiu ser Petrarca quem “abriu o caminho para que mostrassemos como se adquire o aprendizado”, mas foi na 45 época de Bruni que a palavra umanista foi empregada pela primeira vez, ¢ seus objetos de estudo eram cinco: gramati- ¢a, retérica, poesia, filosofia moral ¢ histéria. E importante perceber que, antes da Reforma, os hu- manistas nunca tiveram uma posic&o dominante nas uni- versidades estabelecidas, que continuaram a ser organizadas em torno do estudo da teologia, “a rainha das ciéncias”, e cujos métodos de ensino eram moldados de acordo com ela. Os humanistas nao sé nao gostavam do curriculo das uni- versidades como também de que esse se baseasse na técnica académica altamente formalizada do debate puiblico e em perguntas e respostas para comunicar conhecimento, e rea- giam contra isso. Encaravam-no corretamente como inefi- ciente e um desperdicio de tempo, acarretando longos cur- sos, de sete anos ou mais, fazendo com que um estudante de teologia normalmente sé pudesse obter o doutorado aos 35. anos pelo menos, numa época em que a média de vida era_ 40 anos_ou menos. O método também tornava dificil que aluno e professor estabelecessem uma relagao préxima — e a nogao de amizade no estudo estava no centro do amor humanista pelas letras. Por isso, os humanistas eram intrusos, e em certa ex- tensdo nao-académicos. Associavam as universidades ao tipo de sindicalismo fechado encontrado também nas associa- Ges (guildas) de arteséos. Em sua opiniao, as universidades pisavam no individualismo e na inovagao. Eruditos huma- nistas tendiam a vagar de um centro de aprendizado a outro, colhendo os frutos que escolhiam, depois seguindo adiante. Eles estabeleciam suas proprias academiazinhas. Em 1423, Vittorino da Feltre fundou uma escola em Mantua que en- sinava o novo currfculo humanista. Seis anos depois, Guari- no da Verona fez 0 mesmo em Ferrara. Os humanistas pe- netraram nas universidades como uma espécie de elemento 46 subversivo e protestador, Mas ligavam-se também a casas nobres e principescas, que podiam fazer suas préprias regras ¢, freqiientemente, estavam ansiosas para abragar a novida- de cultural. Um dos humanistas mais capazes, Angelo Poli- ziano (1454-94), escreveu sob o nome profissional huma- nista de Politian e tornou-se preceptor dos filhos dos Medi- ci, embora fosse também professor no Studio de Florenga. Politian pertencia & geragio de meados do século XV, que considerava como certo um erudito humanista saber um pouco de grego. Dante e Boccaccio nao conheciam gre- go. Petrarca conhecia um pouco, 0 bastante para enché-lo de angustia por sua insuficiéncia ¢ fazé-lo perceber que, na literatura grega da antiguidade, havia um tesouro ultrapas- sando qualquer coisa escrita em latim, Na Idade Média tar- dia, o grego era bem diferente do Jatim num aspecto impor- tante: ainda era uma lingua viva, embora em forma rebaixa- da, no Império Bizantino. Este também se encontrava dimi- nu{do e encolhido. Os italianos, ou latinos, como eram cha- mados pelos bizantinos, encaravam a capital, Constantino- pla, mais como um depésito de maravilhas da antiguidade do que como um centro cultural vivo. A arte bizantina con- temporAnea era uma tradicfo estatica e moribunda com que ),, os artistas italianos da Idade Média tiveram que lutar para se © libertar. No inicio do século XIII, os yenezianos aproyeita- ram a Quarta Cruzada para ocupar Constantinopla, que viam como uma rival no comércio. Portanto, pilharam-na, rou- bando os quatro grandes cavalos de bronze, antigos, que l4 encontraram, colocando-os triunfalmente sobre a arcada da catedral veneziana de Sao Marcos. Constantinopla era também conhecida no Ocidente como um local que abrigava depésitos de literatura grega antiga ¢ alguns eruditos familiarizados com tal literatura, Em 1397, 0 erudito grego Manuel Chrysoloras foi convidado a 47 fazer palestras em Florenga, permitindo que a partir desse onto o grego classico comecasse a ser estudado seriamente e de modo amplo no Ocidente. O erudito italiano Guarino da Verona foi efetivamente a Constantinopla, passando al- guns anos no cfrculo de Chrysoloras. Voltou 4 Itdlia em 1408 nao apenas fluente em grego mas com uma importante bi- blioteca de 54 manuscritos gregos, inclusive algumas obras de Platao, até entdo desconhecido no Ocidente. O resto de Platao foi levado de Constantinopla nos anos 1420 por Gio- vanni Aurispa. Essa foi a primeira grande transmissao da jiteratura cldssica grega. A segunda ocorreu durante 0 conci- io ecuménico de Florenga, nos anos 1430, uma tentativa para cicatrizar o cisma entre as igrejas latina e grega. A tenta- tiva falhou, mas a delegacdo grega, que incluia intimeros eru- ditos destacados, trouxe com ela muitos manuscritos im- ortantes que permaneceram em Florenca. Uma terceira re- messa chegou na bagagem de refugiados fugindo do domi- nio turco para o Ocidente, na onda da queda de Constanti- nopla em 1453, Enquanto isso, a redescoberta de classicos latinos continuou, com o trabalho, entre outros, de Poggio Bracciolini (1380-1459), um saqueador infatigdvel de biblio- tecas monasticas da Europa e que trouxe 4 luz mais Cicero, Quintiliano e outros autores. Um motivo que permitiu aos humanistas penetrar a tal ponto na sociedade, embora ndo conseguissem dominar as velhas universidades, foi sua capacidade de se infiltrar_nas cortes. De fato, cles dirigiam uma maconaria escoléstica, obtendo uns para os outros empregos, recomendagoes e chan- ces de patrocinio dos ricos e poderosos. Como Petrarca, Brac- ciolini trabalhava no servigo papal e assistiu o Conctlio de Constance, 1414-18, onde houve muito trafico de manus- critos. Também trabalhou por um tempo com o cardeal Beaufort, inglés eminente, Os humanistas tinham penas dgeis 48 que podiam ser usadas para objetivos politicos, em latim ou na lingua verndcula. Coluccio Salutati (1331-1406), feito chanceler de Florenga, defendia ferozmente os interesses dessa cidade com sua capacidade literdria, Os Visconti de Milao afirmavam que a pena de Salutati causava mais dano que “30 esquadrées da cavalaria florentina”, ao que o chanceler replicou: “Eu nao refrearia minhas palavras em ocasiGes em_ que nao deixaria de usar minha espada.” Os humanistas fo- ram proeminentes no governo florentino, dando chancele- res 4 cidade em quatro ocasides. Por exemplo, Leonardo Bruni, que adquiriu experiéncia diplomatica e administrati- va na Ctiria Papal, sendo também o autor de uma laudatéria histéria de Florenga baseada em modelos cléssicos, foi eleito chanceler em 1427. Quando morteu, em 1444, a cidade ig- norou-lhe o pedido de um funeral modesto e uma ldpide tumular simples, dando-lhe funerais de estado no modelo romano e¢ encomendando ao escultor Bernardo Rossellino um elaborado monumento renascentista, de linhas classi- cas, colocado sobre a camara mortudria de Bruni na igreja franciscana de Santa Croce. Por tras desse interesse dos grandes ¢ poderosos na eru- digéo humanista estavam nao apenas a comichao de obter propagandistas, como também o desejo de recriar a aparén- cia externa da Roma imperial — os desenhos, insignias e slogans latinos —, na expectativa de que a realidade do po- der romano a seguisse. A imitacao da antiguidade tornou-se a moda. Alunos da academia particular fundada em Roma por Pomponio Leto (1428-98) nao apenas estudavam his- téria antiga mas, em certas ocasiGes, usavam trajes tomanos, faziam banquetes romanos, colecionavam inscrig6es e ence- navam discuss6es alla romagna, até mesmo cuidando de seus jardins segundo os principios classicos colhidos em Virgilio e Horacio. Em Florenga, os Medici foram mais longe, enca- tando a recuperagio da antiguidade classica quase como um principio de governo. De fato, é importante perceber que 0 poder dos Medici na Florenga no século XV, embora basea- do no dinheiro deles — eram uma familia de doutores trans- formados em banqueiros —, foi expresso pela lideranga cul- tural, pois nao tiveram nenhuma autoridade formal ou titu- lo legal até 1537, quando Cosimo de Medici (1519-74) tor- nou-se duque de Florenga ¢ finalmente grao-duque da Tos- cana. Foi através do entusiasmo cultural deles pelo novo, o perfeito e o magnifico, que se identificaram com o destino da cidade, tornada por volta do ano de 1400_uma autocons- ciente e emocionalmente cidadela das artes. Pans O padrao foi estabelecido por Cosimo de Medici (1389- 1464), que dominou a vida publica florentina por toda uma geragio. Claro que era rico: a riqueza pessoal de seu pai — mais de 80 mil florins em 1427 — poderia ter pago, avalia- va-se, o saldrio anual de dois mil trabalhadores na industria da a, Mas era também um suposto e entusidstico erudito. Em 1427 estava em Roma ajudando Poggio Bracciolini a encontrar inscrigées antigas. Encomendou e pagou a tradu- ga0_de Platao por Marsilio Ficino, apresentado em um dos mais requintados manuscritos de todo o Renascimento. Em certo momento empregou nada menos que 35 escribas pro- fissionais na cdpia de classicos para sua biblioteca. Significa- tivamente foi seu livreiro, Vespasiano da Bisticci, que escre- veu sua Vida, na qual afirmou: “Ele tinha um conhecimento de latim que era surpreendente num homem mergulhado em questdes puiblicas.” Também usou seu dinheiro para acrescentar uma capela na igreja franciscana de Santa Croce, construir alojamentos para as novicas, uma biblioteca para San Lorenzo assim como restaurd-lo, construir a igreja Ba- dia fora de Fiesole — todos projetos publicos — como tam- bém erigir 0 palacio da familia em Florenga, desenhado por 50 Michelozzo, e patrocinar todos os mestres de primeira li- nha, de Donatello para baixo. Tudo isso além de subsidiar os exércitos de Florenga ¢ a diplomacia a ponto de, na Paz de Lodi em 1454, a cidade ser reconhecida como uma das cinco maiores poténcias da Itdlia, juntamente com Veneza, o papado, Milao e Népoles. Lorenzo_“o Magnifica” (1449-92), neto de Cosimo, enquanto governava Florenga de fato embora nao nominal- mente, e com uma yara mais de ouro e marfim do que de ferro, saiu-se melhor do que Cosimo. Nao sé era um erudito e patrono de eruditos, apoiando o trabalho de Ficino, como fizera seu avd, ¢ de Pico della Mirandola e Angelo Poliziano na traducgao e edicdo de textos latinos e gregos, mas também um poeta destacado. Seu modelo era Petrarca, mas seus ver- sos esto cheios de conceitos, formas e idéias originais. Eles celebram a caga, os bosques, a natureza, o amor das mulhe- res; deploram a brevidade e a transiéncia da vida; respiram alegria e humor devasso, assim como tristeza. Foram ampla- mente lidos assim que publicados; alguns ainda sao lidos e) apreciados hoje em dia. Lorenzo encomendou obras da maio- ¢ tia dos grandes-pintores-e-escultores da época — Verroc-- chio, Ghirlandaio, os Pollaiuoli ¢ Botticelli — e construiu numa escala monumental. Seu filho Giovanni tornou-se 0, papa Leo X, e seu sobrinho Giulio, Clemente VII. Sua so- brinha-neta Catarina casou-se com um tei de Franga e teve trés filhos, Porém Lorenzo, como alguns afirmam, foi a fi- gura-chave de todo o Renascimento e quem mais se aproxi-, mou de seu ideal do Uomo _universale,-principalmente por ser também um autor. Os Medici de Florenga nao foram a tinica familia go- vernante que se identificou com a nova cultura — felizmen- te, pois a propria competitividade entre as cidades indepen- dentes e os regimes e governantes que se esforgavam para _ SI ' sustentar o proprio poder com o embelezamento cultural ¢ artistico é que deu ao Renascimento seu empurrao. Foi uma das poucas vezes na histéria humana em que o sucesso no jogo do mundo — a luta pela supremacia militar e o domi- nio politico — foi julgado, pelo menos em parte, segundo.o desempenho cultural. Assim como a hipocrisia, freqiiente- mente o patrocinio cultural era a homenagem que o vicio pagava A virtude. Os governantes das cidades italianas eram geralmente implacaveis. Bernabo Visconti, que consolidou o poder de sua familia em Milao no século XIV, foi barbara- mente cruel, e seu filho Gian Galeazzo (1351-1402) era um especulador inescrupuloso que ampliou o dom{nio de Mi- lao para cobrir toda a Lombardia, partes do Piemonte e¢ até mesmo fatias da Toscana. Mas foi um colecionador genero- so e de bom gosto, amigo de eruditos e patrono da nova »/ cultura. A familia Sforza, que sucedeu aos Visconti em Mi- ldo, foram patronos notdveis de Leonardo da Vinci e Bra- ‘mante, Outra cidade humanista foi Ferrara, controlada pela familia Este, Era uma caracteristica do humanismo prestar quase tanta atenc&o na educagao das senhoras quanto na dos _ cavalheiros. Ercole, duque de Ferrara de 1471 a 1505, tinha duas filhas belas e talentosas, Isabella e Beatrice, recebendo as duas uma ampla educagao classica. Isabella (1474-1539) casou-se com Francesco Gonzaga, marqués de Mantua, e viveu I4 por quase meio século. Por boa parte do tempo atuou como regente para seu marido, um soldado profissional ou condottiere. No proceso, ela se transformou na maior cole- cionadora e patrona do Renascimento. Seu studiolo — uma combinacio de estiidio e gabinete de curiosidades de colecio- nador — tornou-se um dos mais requintados da Itdlia, sen- do decorado por Andrea Mantegna, Pietro Perugino, Cor- teggio € outros artistas importantes, ¢ t4o apinhado de livros e objetos de arte — jdias, medalhas, pequenos bronzes e mar- Zo ay ° eae 452 mores, pegas de 4mbar, um “chifte de unicérnio” e outras curiosidades naturais — que ela lhe acrescentou um “grotto”, um dos mais antigos exemplos de uma forma de arte treslou- cada mas geralmente encantadora dos ricos nos 300 anos se- guintes, Ela possufa um Michelangelo ¢ um Jan van Eyck, ¢0 inventatio compilado depois de sua morte lista mais de 1.600 itens, de medalhas a vasos de pedra. Um studiolo ainda mais famoso foi construido por Fe- derigo da Montefeltro (1422-82), um dos grandes persona- gens do Renascimento, e cujo inequfvoco perfil, com o na- riz protuberante que parece ter sofrido uma endentacao por golpe de espada, figura em muitas obras-primas renascentis- tas. Como varios outros governantes de pequenos estados italianos, ele se alugava e 4 soldados em troca de _paga- mento, e tornou-se um dos mais bem-sucedidos condottieri manchados de sangue, o destacado mestre do que era entio uma profissao honrosa. Sua familia dominava Urbino desde o século XIII, e ele governou a cidade por quase 40 anos, os oito finais como duque. Esse mercendrio miliondrio adqui- rira um bom conhecimento do latim e aprendera muitas outras coisas, juntamente com um gosto excelente, ¢ em sua aposentadoria da guerra expiou os préprios pecados através de muitos patrocinios sagazes das artes e até mesmo um pouco de piedade religiosa. Ele transformou o velho lar medieval de seus ancestrais em Urbino num dos mais requintados paldcios da Itdlia, militar na aparéncia externa mas com in- teriores magnificos, a tiltima palavra em gosto da época. No coragao do paldcio estava seu studiolo, uma obra-prima de madeira marchetada disposta como uma série de painéis trom- pe loeil, LA, 0 velho guerreiro podia conversar com eruditos e bancar 0 Uomo universale. A corte do duque Federigo era um modelo de seu tem- po, e nao é por acaso que quando Baldassare Castiglione 53 (1478-1529) decidiu escrever um manual de comportamento cortés, que devia ser tanto um tratado de boas maneiras no mais alto nivel como uma popularizacao das idéias da Re- nascenga, o cendrio escolhido por ele foi Urbino. I/ Cortegiano . (O cortesao) expde uma série de didlogos imagindrios entre /experientes membros da corte, discutindo e descrevendo o , cavalheiro e a dama ideais, e como estes podiam se tornar aptos para a melhor sociedade cortesa. O autor, de Mantua, era bem versado nos classicos e tinha feito servigo de corte "nfo apenas em Urbino mas sob os Gonzaga em sua cidade natal, e sabia 0 que estava escrevendo. Quando o manual foi publicado em 1528, ganhou a aprovacio das autoridades e, mais importante ainda, encantou os jovens, permanecendo um cldssico desde ent&o, embora pouco lido nos dias que correm, Em sua época foi um vencedor, e nenhum livro fez mais para converter as nodes da elite renascentista na cul- tura tradicional da Europa. Para completar a boa fortuna de, Castiglione, cle se transformou em tema do melhot retrato’ de Rafael que sobreviveu, €ontudo, enquanto Castiglione descrevia o lado enso- larado e elegante da vida cortesa no Renascimento, seu con- temporaneo Niccolé Machiavelli (1469-1527) completava © quadro com o lado mais escuro, é preciso que se diga, mais realista, I! Principe (O principe) foi escrito em 1513, depois que Machiavelli, que estivera envolvido tanto no lado diplomatico quanto no militar do governo florentino, fora dispensado do posto quando os Medici voltaram ao poder em 1512. Ele foi nao sé um historiador como um homem do mundo, autor de livros sobre a histéria florentina ea arte da guerra. Preocupava-se nao tanto com ideais, como dava a entender Castiglione, e sim com 0 que realmente acontecia num mundo dspero e implacdvel. Disse ao leitor: “Isso nao é © que os governantes devem fazer, mas o que sei, por minha 34 propria experiéncia, que fazem de fato, ou tentam fazer, a fim de sobrepujar os inimigos internos e externos.” Nao ¢, sel firmaram a época e vém a afirmando des- de entio, um livro diabélico, destinado a desencorajar o vir- tuoso_€ corromper_o ambicioso. E a obra fundadora sobre realpolitik, nao sem uma certa sabedoria resignada, e tam- bém uma obra patridtica, escrita do ponto de vista de um orgulhoso florentino que vira os ideais republicanos ¢ liber- dades locais arruinados por exércitos invasores. Alguém que reconhecera tristemente que, se as grandes cidades da Italia deviam sobreviver como Estados independentes, tinham que ser governadas por homens astuciosos e sem ilusGes, que se embebessem das ligdes histéticas recentes. Castiglione abrandava e Machiavelli chocava, mas am- bos forneceram informagao valiosa tipo faga-vocé-mesmo, e nenhum outro tratado fez mais para disseminar por toda a Europa o conhecimento duramente conquistado de uma Italia que, na época em que os dois livros foram publicados, passara por uma revolugao cultural j4 velha hé mais de um século e por uma série de invasdes que destrufam suas liber- dades ¢ torturavam sua alma. Foram itens-chave no comér- cio de exportagdo do Renascimento, Entretanto, exatamen- te como as cidades italianas foram r4pidas em absorver € assimilar as mudangas no comércio de impressao, apropri- ando-se delas, é claro que o resto da Europa também estava dvido por idéias ¢ técnicas italianas, e assim estivera por boa parte dos dois tltimos séculos. A velocidade com que as idéias italianas irradiaram-se pela Europa, porém, foi determinada em grande extensio pelo acidente histdrico, assim como pela disponibilidade de talento. De inicio, pelo menos, a Franga foi lenta em reagir, ou pareceu sé-lo,.o que era surpreendente. No século XHI a Franga, mais do que a Itdlia, parecia o coragio cultural da 55 Europa. Paris tinha indubitavelmente a universidade mais atarefada do mundo, e cuja influéncia continuava a crescer & medida que o século progredia. Houve trés cortes impor- tantes de lingua francesa, entre elas a Borgtindia, mais rica do que o Reino da Franga em alguns aspectos, e Navarra, também um centro cultural francéfono de alguma impor- tancia. Como lingua, o francés amadurecia rapidamente, e em 1250 ou mesmo 1300, um poeta provavelmente seguia mais as formas de verso francesas do que as italianas. A Pro- venga era também o teatro de um movimento poético, e de 1309 a 1378 uma de suas cidades, Avignon, tornou-se a sede da corte papal durante 0 “exilio babilénico” desta, atraindo homens de letras e os primeiros humanistas de todo 0 Oci- dente latino, inclusive Petrarca, que ocasionalmente escre- via em francés, Contudo, a Franca nao conseguiu produzit nenhum Dante, 0 que foi provavelmente decisivo na batalha das lin- guas. Além disso, o sul da Franga passou a ser devastado por surtos endémicos de heresia militante e dos esforgos cres- centemente violentos para suprimi-los. A partir dos anos 1330, foi vitima de invasées inglesas periédicas e devastado- ras, as quais a Burgtindia se juntou, fazendo com que, a par- tir dos anos 1420, a coroa francesa se engajasse num longo e custoso esforco para recuperar suas provincias perdidas com a ocupacao inglesa, Na segunda metade do século XV, a Fran- ga estava adquirindo a base de sua composicio territorial moderna, absorvendo_a Gasconha em 1453, 0 Armagnac em 1473, a Burgtindia em 1477, a Provencga em 1481, 0 Anjou em 1489 ea Bretanha em 1491, A longo prazo, essa enorme consolidagio (seguida pela anexagao do territdrio Bourbon em 1572) ia tornar a Franga incomparavelmente o Estado mais rico da Europa. Na época, porém, o impacto foi absorvido pelas conseqiiéncias da decisdo de Carlos VIII, 56 em 1494, de adiantar sua reivindicagao ao Reino de Napo- les invadindo a Itdlia, Essa incursao, catastréfica para a Ité- lia, tornou-se uma fonte de fraqueza para a Franga também, pois foi repetida pelos sucessores de Carlos, Lufs XII e Fran- cisco I, com grande custo ¢ pouco efeito, culminando na derrota e na trégica captura de Francisco na Batalha de P4- via (1525). No decorrer das longas décadas de preocupag6es mili- tares € politicas, a Franga nao estava, naturalmente, imune ao novo espirito do Renascimento. Pelo contratio: este foi, usado para pincelar com um verniz classico o expansionis-_ mo francés. A corte francesa tornou-se poyoada de italianos. espertos, exilados de Florenga, da corte papal e das lutas de facgdes em Génova e Milao, atigando os reis Valois na espe- ranga de que uma conquista francesa da Itdlia revertesse suas prdprias fortunas caidas em desgraca. As sombras heréicas da antiguidade eram invocadas pelos propagandistas france- ses. Carlos e Lufs eram comparados a Anibal cruzando os Alpes. Francisco era apresentado como se dialogasse com Julio César (um italiano que revertera a conquista ao invadir a Galia). Essa obra era acompanhada pelos Commentaries de César, numa versdo requintadamente enfeitada de iluminu- ras de Albert Pigghe e Godefroy le Batave, que deve alinhar- se como um dos melhores manuscritos de todo o Renasci- mento, estando entre os grandes tesouros da Bibliotheque Nationale. As invasées foram celebradas em medalhées, tra- balhos a esmalte, estatuas, arcos do triunfo e gravuras, todos num modo classico ¢ freqiientemente feitos com a ajuda de artesdos italianos. Mas o grande escritor francés do Renasci- mento tardou a aparecer. Frangois Villon (1431-652), 0 tinico poeta francés de destaque no século XV, curiosamente nao foi tocado pela Renascenga. Nas meras trés mil linhas de seus versos que sobreviveram é dificil encontrar tragos do 57 novo espirito — ele é a Idade Média em todo o brutal es- plendor daquela época. Contudo, a longo prazo, o Renascimento atingiu a Fran- ga com forca abaladora. Carlos VIII voltou da Itélia com um grupo de trabalhadores especializados, mas foi Francis- co I quem abragou a nova cultura entusiasticamente em be- neficio de seu pais. Ja em 1516 ele estava empregando Leo- -nardo da Vinci na Franga, leyando também para [4 artistas da estatura de Primaticcio e Rosso Fiorentino. Esses homens trabalhavam lado a lado com artistas franceses como Jean Goujon e Jean Cousin para formar a Ecole de Fontaine- Aleau, 0 primeiro centro artistico importante.do Renasci- mento fora da Itdlia. Francisco realizou, com a ajuda e @ inspiracio de italianos, o que é provavelmente o maior pro- ama de construcio de castelos ou paldcios da histéria, prin- \cipalmente no vale do Loire. _¥ Igualmente importante foi a paixdo francesa pelos tex- ~ tos do Renascimento. Chegou bastante tarde, mas uma vez tendo a Sorbonne estabelecido_sua_ propria imprensa_em 1470, _as edigdes € tradugées francesas dos classicos comega- ram a aparecer em grande ntimero. Robert Gaguin (c, 1433- 1501) tocou uma nota gaulesa popular combinando estu- dos renascentistas com 0 borbulhante nacionalismo francés que marcou a segunda metade do século XV. Ele publicou seu Compendium supra Francorum gestis (1495), uma histé- tia da Franga em latim até o presente, ensinou retérica em Paris e produziu um tratado de como apre: verso latino. Juntaram-se a ele Guillaume Fichet e Jacques Lefevre d’Etaples, que viajou pela Itdlia para recolher a tlti- ma erudicao, e professores gregos como Heronymus e Las- caris. Ainda mais influente foi Guillaume Budé (1467-1540), que em 1532 publicou A correta e apropriada instituigao do estudo do aprendizado. Seu tema era que a cristandade, em si e escrever 58 5 eth perfeita quando pristina, fora enterrada por “séculos de bar- barismo”, sendo tarefa da presente época “reformar os coros das antigas musas”. A Igreja nao apreciava exatamente essa abordagem, tantas de suas instituigdes sendo associadas, a olhos humanistas, com os séculos barbaros. Assim, quando Budé persuadiu Francisco I a subsidiar a nova cultura huma- ‘nista fundando cadeiras de latim, grego, hebreu e drabe, elas foram agrupadas no que foi denominado Collége Royal (pos- teriormente o Collége de France), fora do controle da Univer- sidade de Paris. Foi nesse momento que.o.Renascimento lite- rario francés amadureceu — quase se pode dizer explodiu. Alguns escritores, como Frangois Rabelais (1483-1553), foram educados a maneira antiga. Sacerdote ordenado, acre- dita-se que ele tenha freqiientado 0 ultra-estrito Collége de Montaigu da Universidade de Paris, notério por seu cheiro, inundagées e m4 comida, conhecido como “a fenda entre as nddegas da Madre Igreja”. Como Erasmo, que também a freqiientara, ele se sentia infeliz la, embora possa ser dito \ que outros alumni, como Jean Cauvin, o grande heresiarca, e Indcio de Loyola, fundador dos jesuitas, glorificaram:o en- sinamento da instituigao — mas tais julgamentos nos dizem tanto sobre os temperamentos dos quatro homens quanto sobre a institui¢4o/ Rabelais qualificou-se como médico, Essa era uma 4rea em que os estudos franceses haviam sido revo- lucionados por contatos e experiéncias durante as cam- panhas italianas. Ambroise Paré (1510-90), que serviu em uma delas, prosseguiu na carreira e tornou-se o maior fisio- logista da época. Ele se estabeleceu em Lyon, uma cidade colonizada por banqueiros italianos — na época da morte de Francisco I foi dito que a Coroa devia 0. dobro de sua renda anual aos banqueiros de Lyon —, que trouxeram com eles os ornamentos da Renascenga italiana, Rabelais escre- veu extensamente em latim e francés sobre uma variedade de assuntos, inclusive medicina, mas foi sua obra-prima sé- tio-cémica — publicada por 20 anos em cinco partes mas conhecida geralmente como Gargdntua e Pantagruel, um compéndio de humanismo, humor devasso, sdtira e descri- 40 — que tocou os coragées franceses. O autor cobriu qua- se todos os aspectos da sociedade francesa, de camponeses a académicos, de mercadores e advogados a cortesiios, ¢ escre- veu num francés vivido, conciso, expressivo e poderoso, com um vocabuldrio enorme, usando dialeto, giria e neologis- mos. Seria ir longe demais dizer que ele inventou o francés como lingua literéria, como Dante havia inventado o italia- no. Mais precisamente, Rabelais demonstrou as enormes po- tencialidades da lingua, deixando os franceses alvorogados com sua heranca lingiiistica pela primeira vez. A Igreja o condenou; as autoridades civis ordenaram que seus livros fossem processados e queimados; a Sorbonne lhe era inces- santemente hostil. Mas a corte e as pessoas alfabetizadas ama-_ vam tanto a diversdo quanto ‘suas criticas selvagens A socie- dade, e 0 enorme ¢ desordenado livro serviu como inspira- gio a escritores tao diversos quanto Moliére e Voltaire, além de se tornar um apelido para iniqiiidade no mundo anglo- saxo e na Europa do norte. _ Escritores mais jovens se beneficiaram das reformas educacionais levadas a efeito por Budé com as béngaos de Francisco I. Jean Dorat, primeiro professor de grego no novo colégio, teve entre os alunos Joachim du Bellay (1522-60), que buscou conciliar conhecimento dos cldssicos com a re- cém-amadurecida I{ngua nacional e publicou, em 1549, 0 primeiro trabalho-chave de filologia, Defésa e ilustragio da Ungua francesa, uma solicitagdo para que os.poetas franceses escrevessem odes ¢ clegias adaptadas dos classicos ¢ usassem a nova forma do soneto de Petrarca, Seu colega Pierre de Ronsard (1524-85) publicou suas primeiras odes no ano se- 60 guinte, e os dois homens, juntamente com seu colega Jean- Antoine de Baif (1532-89), nascido em Veneza, filho do embaixador francés e que havia absorvido o humanismo desde a infancia, constituiram uma constelacao de “novos” poetas conhecidos como a Pléiade. Eles estabeleceram as re- gtas para a poesia francesa por quase trés séculos, mas tam- bém influenciaram o drama, pois outro membro da Pléiade, Etienne Jodelle (1532-88), escteveu O auto-sacrificio de Dido, uma pega que fez época e se tornou o exemplo do teatro _ francés classico, , estabelecendo, assim, o cendrio para as gldrias do século XVID Esses espiritos vivos criaram uma lingua que escritores podiam manejar indefinidamente e numa_mirfade de for- mas. Uma das mais duradouras foi o Por volta dessa época nasceu Geoffrey Chaucer, que se tornaria 0 maior poeta da Idade Média depois de Dante e, como este, prenunciaria as caracteristicas da literatura re- nascentista. Vinha de uma familia de fabricantes de vinho de Ipswich que comerciavam com a Espanha, Franga e Por- tugal, e, como muitos filhos de fabricantes de vinho (John Ruskin foi outro exemplo), desenvolveu cedo uma larga vi- so internacional, especialmente em questées culturais. Uma temporada como pajem de Lionel, um dos filhos de Eduar- do III, introduziu-o na vida da corte. Serviu em um dos exércitos do rei que invadiu a Franca — um pais visitado com freqiiéncia por ele — e ento juntou-se ao séquito de Eduardo, que o utilizou como enviado diplomatico mais de uma vez. Assim, foi a Génova e novamente a Flandres, estando em 1378 na Lombardia como parte de uma missio negociando com Bernabo Visconti e com 0 grande condottiere Sir John Hawkwood “sobre certas questées que diziam res- peito a presteza da guerra do rei”. Chaucer j4 havia produzi- do uma versio do Roman de la rose e escrito também poesia. 62 Ao aprender italiano, abriu para si o novo mundo de Dante, Boccaccio e Petrarca, aos quais — especialmente ao segun- do — passou a dever. Mesmo quando nfo estava no estran- geiro, mantinha-se em comunica¢do com 0 continente atra- vés de seu espléndido trabalho como superintendente da Al- fandega em las, couros e peles no porto de Londres, Seguiu- se uma série de poemas, com Boccaccio como seu modelo e fornecedor de idéias. Mas Chaucer era inteiramente pessoal ¢ muito inglés, De fato, foi um inglés importante, tornan- do-se escrivao das Obras do Rei e assim encarregado da.cons- trugio.da Torre de Londres,.do Palacio. de Westminster ¢ de mais oito_casas reais, bem como juiz de paz e membro do parlamento por Kent. Assim, ajustou-se ao padrao renas- centista em desenvolvimento, do homem cortés e de negd- cios que praticava a arte da poesia. Ele também partilhou do fascinio do Renascimento pelo individuo, como oposig4o ao arquétipo ou mera categoria. O individuo domina sua obra-prima, The Canterbury Tales (Os contos de Canterbury), que escreveu entre 1386, quando foi para um semi-retiro em Kent, e sua morte em 1400. A obra nao tem nenhum modelo preciso, pois Chaucer nao lera 0 Decameron, ¢ a moldura de uma peregrinagao ao fa- moso altar de Sao Thomas Becket em Canterbury, com cada qual no grupo brilhantemente diverso contando uma histé- ria, é inteiramente de Chaucer. Mais importante é 0 modo animado e direto com que o autor torna vivo os persona- gens, tanto ao descrever suas peregrinacdes quanto dentro das histérias que contam. Eo equivalente literdrio da formu- lacao das leis de perspectiva.e.escorgo pelos artistas de Floren- ga. Homens ¢ mulheres saltam das paginas e continuam vi-- yendo na lembranga-do leitor de um modo que nem Dante pode conseguir/O génio de Chaucer é inexplicavel; ele é um dos quatro escritores ingleses — sendo os outros trés Shak peare, Dickens e Kipling — cuja extraordindria capacidade de descortinar as diversas mentes humanas desafia explica- Gao racional ¢ sé pode ser atribufda a um misterioso daemon. / ¥ estranho que a literatura inglesa tenha explodido subita- mente através de um magico desse quilate. ; s assim é a natureza da cultura. Todos nés podemos | dar explicacées satisfatérias sobre o porqué de o Renascimen- | to ter ocorrido, quando ocorreu, e como se transmitiu. Mas nao ha explicacéo para Dante, assim como nao ha explica- | fo para Chaucer. O génio surge subitamente, e fala a partir de um vécuo. A seguir o siléncio se instala, igualmente mis- terioso. As tendéncias continuam e se intensificam, mas o génio est4 ausente, Chaucer nao teve nenhum sucessor cuja estatura sequer se aproximasse da sua. Nao ha nenhum poe- ta importante na literatura inglesa do século XV. Mas a pa- gina nao est4 em branco. Muito pelo contrario: houve um sdlido progresso na criac&o da infra-estrutura de erudicao e letras. Henrique V, 0 maior dos monarcas plantagenetas e conquistador da Franga, morreu jovem, em 1422, Seu filho, Henrique VI, tinha apenas um ano, ea regéncia recaiu sobre seu tio, Humphrey, duque de Gloucester. O duque Hum- phrey era um governante medjfocre, assim comegando a fia- queza e os erros de cdlculo que levaram & perda da Franga e a Guerra das Rosas, Mas foi o primeiro patrono da cultura do Renascimento, Ele reuniu os classicos gregos ¢ latinos, inclusive a maior parte de Aristételes e Platao, em requinta- dos manuscritos e edicdes lindamente ilustradas de mestres modernos, inclusive Dante, Petrarca e Boccaccio. Legou-os todos 4 Universidade de Oxford, onde se tornaram o nticleo da futura Biblioteca Bodleian — na verdade, o “Duque Humphrey ” é ainda o centro fisico e de estudos de antigui- dades da instituig4o inteira. Na época de Chaucer, William of Wykeham, bispo de Winchester, iniciara o processo de 64 traducao da recém-descoberta riqueza da Inglaterra, baseada principalmente na 4, em pedras eruditas, com suas funda- gdes gémeas do Winchester College e New College, Oxford. Henrique IV, um rei lastimavel mas piedoso e generoso, pros- seguiu sua obra. com 0 Eton College eo. King’s College,.em. Cambridge. Outras faculdades se seguiram numa imponen- te procissao, incluindo o All Souls de Oxford, que se torna- ria o equivalente inglés ao Collége de France, e o St. John’s, Cambridge, que desde 0 comeco especializou-se em estudos caros ao homem renascentista. Robert Flemmyng, o primeiro humanista inglés im- portante, visitou a Itélia, estabelecendo conexdes na corte de Sisto IV, 0 culto papa, e conquistando a amizade de seu famoso bibliotecdrio, Platina. Ir 4 Itdlia tornou-se a praxe. Thomas Linacre (1460-1524) viajou até 14 para sentar-se aos pés de Poliziano lado a lado com Giovanni de Medici, posteriormente papa Ledo X, formando-se em medicina em Padua e voltando para fundar o College of Physicians, escre- ver uma gramitica latina e atuar como preceptor dos filhos do rei. Seu amigo William Grocyn (c. 1446-1519) também estudou com Poliziano e 0 erudito grego Chalcondyles, ain- da mais culto. Ao voltar, deu a primeira palestra publica sobre o grego em Oxford (1491). Desidério Erasmo (c. 1466- *1536), Thomas More (1478-1535) e John Colet (c. 1467- 1519) estudaram todos com Grocyn, vindo Erasmo para Oxford em 1498 porque, segundo ele, nao era mais necess4- rio fazer uma longinqua viagem 4 Italia para recolher a ulti- ma palavra em erudigéo grega — Oxford oe fornect-la de modo igual ou melhor. : Um traco da erudigao inglesa, tanto em : Oxford q quan- to em Cambridge, era seu espirito critico. Isso foi um ponto imensamente importante, e vale a pena nos alongarmos um pouco nele. Claro que 0 espirito critico — isto é, a tendén- 65 ‘cia a nao aceitar simplesmente textos por seu valor aparente mas examinar sua proveniéncia, credenciais, autenticidade e contetido com um olho cauteloso — nfo foi inventado em Oxford. Era uma caracteristica renascentista, e que se pro- varia fatal para a unidade da Igreja, uma vez que fosse aplica- do aos textos sagrados e as credenciais eclesidsticas. Desne- cessdrio dizer que antecedia em muito ao Renascimento. De fato, remontava a Marcion no segundo século d.C., 0 pri- meiro a submeter os textos candnicos do Novo Testamento a uma cuidadosa exegese, aceitando alguns e rejeitando ou- tros. Mas esse tipo de abordagem era rara na Idade das Tre- vas e mesmo-na Idade Média como um todo; é estranho que os eruditos-eclesidsticos do calibre de Santo Agostinho ou Tomas de Aquino dessem tao pouca atengao a integridade e ao conhecimento dos textos que lhes chegavam as mios, e sobre os quais comentavam tao copiosamente. Mas essa era a verdade. Portanto, 0 revival da abordagem cética de Marcion foi um dos aspectos mais surpreendentes da recuperagao da antiguidade, assim como o mais explosivo. A trilha foi iluminada por Lorenzo Valla (c. 1407-57), um estudioso arguto, dificil, brigao mas também cuidadoso € preciso, que se especializou em retérica e palestrou sobre ela em Padua, Roma e Napoles. Era um homem de negé- clos, tanto na corte papal quanto sob Alfonso de Aragio, rei de Napoles. Nas periddicas lutas entre as forgas seculares e eclesidsticas, ele tendia a simpatizar mais com principes do que com papas. Isso 0 levou a examinar criticamente a Doa- | cdo de Constantino. Este documento, elaborado em algum | momento entre 750 e 850 d.C., parecia ser um registro da conyerséo do imperador Constantino e dos diversos princi- pados que ele conferia ao entao papa, Silvestre I (314-35), e a todos os seus sucessores. Tornava-o primaz de todas as outras igrejas cristés, com dom{nio secular sobre Roma “e 66 todas as provincias, lugares e civitates da Italia e das Regides Ocidentais, e supremo juiz de seu clero em toda parte”. O documento registra ter sido oferecido a Silvestre até a coroa imperial do Ocidente, mas o papa recusou-a. A Doagao foi © texto fundador para o triunfalismo papal, a credencial bé- sica para a revolugao hildebrandina do século XI e para a declaragao de reivindicaggo ainda mais extrema de Bonifé- cio VIII no século XIV, assim como a das escrituras de posse das terras dos Estados Papais na Italia. Isso ja fora questio-_ nado antes, mais como um gesto de desafio politico por monarcas magoados do que do ponto de vista erudito. Mas Valla submeteu-o ao escrutinio textual com base nos princ/-. pios do-que.se.tornaria.a critica histérica moderna, e mos- trou, além de qualquer dtivida razodvel, que-o.documento, havia sido deliberadamente forjado, apresentando.suas.des- cobertas em De falso credita et ementita Constantini Donati- one declamatio (1440). Valla j4 havia tido problemas com as autoridades da Igreja quanto a sua critica das técnicas dialé- ticas de ensino dos eruditos da Igreja, especialmente frades, nas universidades. Como sua exposigao da fraude fazia tam- bém um ataque frontal ao poder temporal do papado, que Valla sustentava devia ser unicamente uma instituigdo espi- ritual, ele foi convocado. ante a Inquisicg0 (1444) esalvo somente com a intervengao do rei Alfonso. Nao é de causar surpresa que Valla passasse a ser mal- visto pela Igreja, pois sua abordagem de todos os documen- tos antigos tinha em mente que nada era sagrado e tudo devia ser examinado ante uma poderosa luz critica, Ele em- preendeu uma comparagao entre a Vulgata Latina (traducao da Biblia) de S40 Jerénimo e o Novo Testamento grego. Isso no sé foi importante em si, tendo posteriormente uma influéncia proeminente na critica textual de Erasmo, como encorajou outros estudiosos a fazer o mesmo, num amplo es- 67 ¥ ae pectro de textos. Assim, em 1497, John Colet, que estivera na Itdlia nos quatro anos anteriores reunindo informagao sobre como examinar textos antigos, deu uma histérica ¢ sensacio- nal série de palestras em Oxford sobre a Epistola de Sao Paulo aos romanos. Abandonou completamente a abordagem esco- ldstica e, em vez disso, colocou a Epistola — um dos mais. centrais documentos cristaos, j4 que inclui a teologia da justi- ficagao pela fé — contra seu contetido histérico romano, usan- do autoridades pagis como Sueténio. Essa nova abordagem histérica foi delirante para jovens inteligentes. Era inebrian- te, envolvente, irreverente, iconoclasta e imensamente atraen- te, Era uma daquelas revolugées omnium garherum na com- preensdo (como foi posteriormente a andlise de classe na His- téria, de Marx, ou.a teoria do inconsciente, de Freud) que podia ser aplicada a todo tipo de coisas e problemas, com resultados espantosos. . Em suma, 0 que estava se desenvolvendo era a primeira grande guerra cultural na histéria européia.)Tem-se um ni- ~ tido vislumbre do futuro quando, em algum momento en- tre 1511 ¢ 1513, Erasmo ¢ John Colet visitam juntos 0 fa- moso altar de Sao Tomas em Canterbury, Este rivalizava em riqueza e fama com o altar de Séo Tiago em Compostela, sendo rodeado de negécios fraudulentos e falsas maravilhas de todos os tipos. Os dois eruditos revoltaram-se com 0 que viram, especialmente com as riquezas, que Colet afirmou raivosamente que deviam ser dadas aos pobres, Ele se recusou _adar um beijo reverencial numa preciosa reliquia, 0 “Braco. de Sao Jorge”, descartou um trapo supostamente mergulhado _ no sangue de Sao Toms “com um silvo de desprezo” e explo- diu quando um mendigo licenciado espargiu-o com Agua _ benta e ofereceu-lhe 0 sapato de So. Tomas para ser beijado. Colet disse, entao, a Erasmo: “Esses tolos esperam que beije- mos 0 sapato de cada bom homem que ja viveu? Por que 68 n&o nos trazer sua saliva ou seus excrementos para serem beijados?” Ja se passara mais de 100 anos desde que os pere- grinos de Chaucer tinham vindo a Canterbury, “ao santo martir abengoado buscar”, cheio de inquestionavel fé na capacidade miraculosa do santo. Nesse meio tempo, o Re- nascimento vinha fazendo seu trabalho. A certeza medieval — ou credulidade, dependendo do ponto de vista da pessoa — deftontaya-se agora com.o escrutinio ou-ceticismo.do. Renascimento. Com o beneficio da visdo retrospectiva, parece estra- nho que a Igreja nao visse 0 que estava chegando e tomasse providéncias para se preparar para tal, ou mesmo resistisse a isso. Na Europa central de fala alema, a guerra cultural mo- via-se nitidamente na segunda metade do século XV, com. livros jorrando das impressoras. em ntimero.e quantidade sempre-crescente. Da metade do século até 1500, quase 25 mil obras foram impressas na Alemanha, e dado o tamanho médio de edicgdo, 250, isso significa que seis milhdes de li-. vros impressos estavam circulando apenas na Alemanha. A maioria dos humanistas alemaes havia-se tornado critica da Igreja. O arquétipo deles, Ulrich von Hutten (1488-1523), um poeta cujo laurel fora concedido pelo imperador Maxi- miliano, atacou entre outras coisas o ensino ao velho estilo na Universidade de Colénia (ele préprio freqiientara nao menos que sete universidades, inclusive Bolonha, onde apren- dera grego), a.venda de indulgéncias, a vida inuitil dos mon- ges, a corrupcio.em Roma e 0 comércio de reliquias. ficativamente, ele trouxe 4 luz uma nova edigao do livro de Valla sobre a Doagao de Constantino, Hutten escrevia um fluente novo tipo de alemAo, espirituoso, vigoroso e cheio de expressdes populares, carreando com um novo tipo de nacionalismo que, ao norte dos Alpes, era um dos produtos do redemoinho da Renascenga. De fato, era de ponta a pon- 69 ta um renascentista, mesmo sua morte foi obra do novo fla; gelo do Renascimento, a sifilis. Ele pronunciava o latim ao novo modo erudito, denunciando a Igreja por seu uso “bar- baro”, e orgulhava-se de sua prontincia “correta” dos classi- Cos gregos, outro ponto em que a Igreja falhava. Na verdade, a prontincia de latim e grego era um teste infalivel para mos- trar de que lado alguém se alinhava na guerra cultural. Como outros humanistas, Hutten buscava protegao do poder se- cular quando as autoridades da Igreja moviam-se contra ele, e o obtinha. Esse foi um padrao crescente 4 medida que o Renascimento progredia. Mesmo.na Espanha, terra do ultimo grande povo cru- zado.e.que finalmente “purificou-se” nos anos 1490, expul- sando _muculmanos.e judeus,a Igreja_parecia inconsciente do.perigo que para ela significava.as novas forcas_progressi- vas.corporificadas pela cultura renascentista. A Espanha es- tava emergindo como uma poténcia proeminente no. Medi- terraneo, de fato um poder italiano também, absorvendo as ilhas Baleares, a Sardenha, a Sicilia e Napoles, mesmo antes da subida ao trono de Carlos I de Espanha em 1516, e sua eleic&éo como Carlos V do Sacro Império Romano em 1519) criou o maior aglomerado de poder na Europa e no mundo. Através do século XV, os contatos espanhdis com a Itdlia renascentista aumentaram, e nao apenas as cortes e€ escrité- rios de chancelarias, mas os paldcios dos arcebispos (como em Saragoga) tornaram-se centros de aprendizado humanis- ta, onde os cldssicos da antiguidade eram traduzidos e, a partir de 1470, impressos. E significative que o incémodo Loren- zo Valla escrevesse a vida do pai de Alfonso V (“O Magnani- mo”), rei de Aragao, que passara boa parte de seu reino, 1416- 58, absorvendo a nova cultura em seus territérios italianos. Quando Fernando de Aragio e Isabel de Castela uniram suas coroas, deram um apoio conjunto A propagacao de cultura 70 nA CArtoruk P54 tat ; humanista pela Espanha. Foi com o encorajamento pessoal de Isabel que 0 mais vigoroso dos humanistas espanhdis de formagio italiana, Antonio de Nebrija (1444-1522), moveu céus e terras contra.o-yelho-ensino-em Salamanca, a mais antiga e melhor universidade da Espanha. Ele se chamava.a si mesmo uma [terra] conquistada e seu inimigo.“barbaris- mo”. Substituiu os manuais de latim do velho estilo usados em Salamanca e em outros lugares por seu novo livro Intro- dugoes ao latim (1481), dedicado a Isabel, traduzido e em circulagéo por toda a Europa. Os “reis catélicos”, como Fernando e Isabel eram conhe- cidos, foram impelidos numa direcio humanista nado apenas por seu gosto pessoal como também pelo conselho de seu gran- de primaz, 0 cardeal-arcebispo de Toledo, Francisco Jiménez de Cisneros (1436-1517). Foi ele que em 1509 fundou em Al- cal de Henares a Universidade Complutense (usando o nome latino do local de Alcal4) para o estudo de hebreu, grego e latim € 0 treinamento de sacerdotes nos novos métodos humanistas. Por sua vez, isso deu origem a grande Biblia Poliglota Complu- tense, impressa pela primeira vez em 1514-17. Patrono de Eras- mo, Cisneros mostrou-se ansioso para que.o humanista holan- dés fosse ensinar na Espanha. O vinculo com os Paises Baixos fortaleceu-se a partir de 1516, quando os territérios Habsburgo de Carlos foram unidos & cotoa espanhola. Os. humanistas es- panhdis encantaram-se com a satira de Erasmo, sendo_O elogio da loucuraa obra favorita deles. Este livro teve profunda influ- éncia em Miguel de Cervantes (1547-1616), o primeiro grande escritor espanhol de estatura universal, ¢ cujo romance Dom Quixote é, a0 mesmo tempo, a tiltima palavra sobre o desapare- cido mundo da cavalaria medieval quanto.a primeira a enfren- tar_o_pathos.da.vida-moderna. Se Erasmo era o heréi dos humanistas espanhdis, seu proprio herdi, na medida em que tinha um, era Valla. Ele 71 SE escreveu: “Em mim vocé vé o vingador das iniqitidades co- metidas contra Valla, Empreendi defender sua cultura, a mais notdvel que conhecgo, Nunca permitirei que sua erudigao seja atacada ou destrufda com impunidade devido A insolén- cia de alguém.” Erasmo bateu-se especialmente pelo Elegan- tiarum latinae linguae, um manual pata escritores em latim que estabelecia novos padrdes de exceléncia. Mais de 50 ma- nuscritos dessa obra e 150 edigées iniciais impressas sobre- vivem, o que indica sua ampla circulacdo e popularidade. Em 1489 Erasmo, quando ainda estudante, escteveu uma versio resumida dela, e produziu outro resumo para publi- cacao em 1498, que chegou a, pelo menos, 50 edigoes. E digno de nota que tanto Valla quanto Erasmo se referissem a seus oponentes como “barbaros”, e é um fato melancélico que, 4 medida que o humanismo se difundia, especialmente no norte da Europa, sua linguagem tornava-se mais vitupe- fante, provocando, por sua vez, uma linguagem dspera dos que cram classificados pejorativamente e que mantinham as posigdes de lideranga na Igreja. Assim, a guerra cultural in- tensificou-se e se tornou mais perversa, Temos lidado_até_ agora com sua expressao aberta, liter4ria, em manuscritos e livros impressos. E tempo de nos yoltarmos para suas ima- gens mudas mas visfveis em bronze ¢ pedra, tinta e estuque, tijolos e argamassa. 72 PARTE A ANATOMIA DA ESCULTURA DO RENASCIMENTO ae pa NA HisTORIA da humanidade, as artes vi- a : 4 i ani suais usufrufram um perfodo de esplendor tao intenso _- € prolongado quanto durante o Renascimento. As riquezas ~~~ eam de fato quase infini revé- mas especiais. Uma abordagem puramente croni tediosa e geralmente pouco esclarecedora. Por outro iado, traté-las por categorias — escultura, pintura, arquitecura — atropela o fato de que artistas individuais cruzatam freqiien- temente essas fronteiras, e a maioria deles emergiu de estii- dios que praticavam muitas artes. No entanto, desde que “Mmantenhamos isso em mente, o tratamento por categorias é © mais claro, e parece correto comegar-se pela escultura, ja que a preocupacao do Renascimento com a apresentagao da realidade humana era central. A escultura, com sua evoca- ¢40 tridimensional dos homens, é a mais direta em atender a esse objetivo. ACS A histéria da’escultura renascentista comeca co i pe cola Pisano, que viveu aproximadamente entre 1220 ¢ 1284. 284 Vindo da Aptilia, no calcanhar da Itélia, a maior parte ‘aior parte da vida profissional do escultor, no entanto; passou-se em Pisa, Bolonha, Siena, Pertigia e outras cidades do centro da Itdlia. Pisano foi um produto da brilhante embora precdria cultura da corte criada pelo imperador Frederico II, conhecido como 7S stupor mundi, ou O Assombro do Mundo. Frederico cons- truiu castelos magnificos no sul da Itélia, patrocinou artistas ¢ artesdos de todos os tipos, importou idéias ¢ leste do Mediterraneo e do Oriente e, nado menos importan-_ ‘bus isano foi claramente buscou reviver as formas classicas. treinado em uma das oficinas do imperador no sul da Itdlia, € trouxe para a Toscana algo novo: a ansiedade classica para tepresentar o corpo humano de forma acurada, mostrar emo- _c6es nao simbolicamente mente mas como de fato eram vistas nos rostos humanos, distinguir com infinitas gradages a juven: tude da idade madura e apresentar homens ¢ mulheres como criaturas individuais vivas ¢ respirando. é, por qualquer critério cronolégico, um _ . Sua primeira. obra registrada,_o prilpito.no batistrio de de Pisa le Pisa (1260), foi esculpido dois anos dey depois do- témino da Sainte-Chapelle ¢ do inicio da Catedral de Co- Tonia e edo See Westminster. Mas seu-espi- i > pulpit ito _preocupagées ¢ ansiedades. Pisano i incorpora en em seu traba- tho as conquistas da escultura gética francesa, mas suas figu- ras, extremamente vivas, estao todas em uma época distante dos anjos ¢ santos alongados da fachada oeste da Catedral de Chartres, por mais bonitos que sejam, que permanecem sim- bélicos ¢ inanimados em comparacao. O Juézo Final, em relevo de marmore de seu ptilpito na Catedral de Siena, dos tiltimos anos dos 1260, é uma cena medieval em concepgao, com deménios ferozes torturando os danados. Mas a execu- Gao traz ténues ecos da Grécia cldssica: as almas corporifica- das, se salvas ou danadas, emergem como individuos, nao tipos; tém rostos que se veria nas ruas de Siena e corpos que se pode imaginar caminhando ou correndo — corpos reais, em funcionamento. Giovanni Pisano (c. 1250-1320), filho 76 de Nicola, levou esse processo humanizador ainda mais lon- ge: por exemplo, feitas por ele, trés figuras de marmore na Capela Arena em Padua (cerca de 1305) praticamente pode- riam se originar da Acrépole de Atenas, Ag PODS Ja por essa os com _um gosto erudito e vol- tado para antiguidades remexiam as ruinas da antiga Roma ¢ outras cidades, ruinas essas que cram muito mais extensas. em tempos medievais do que agora, estudando inscrig6es, coletando medalhas e moedas com cabegas-em_baixo-televo e manipulando pedagos de escul. webradas-encontra- das nos nos destrogos. Os artistas estavam freqiientemente entre esses grupos saqueadores, procurando.nao.apenas as formas da antiguidade mas a tecnologia que as produzira. Desta época em diante houve um revival de objetos fundidos em bronze com intengoes artisticas. A técnica nao se perdera mas havia sido usada, na Idade das Trevas e na Idade Média, principalmente para a fundigao de sinos, Quando Andrea Pisano (c. 1295-1348), nado aparentado com Nicola e seu filho, criou uma série de relevos de bronze para as portas do portal sul do Batistério de Florenga, em 1330, apenas mo- delou-os em cera. Entdo tiveram que ser fundidos por Leo- nardo Avanzi, um veneziano fundidor de sinos, e sua equi- pe. Posteriormente, entretanto, o sucesso dos baixos-relevos de bronze fizeram com que as oficinas artisticas estabeleces- sem suas prdéprias fundigdes. “4 Lae ws hers 2 De Litern Andrea Pisano comegou a vida profission: ves, como a maioria dos primeiros escultores em bronze. No_ final do século XIV, um artes4o-artista numa oficina atare- fada — especialmente em Florenga, j4 emergindo como a mais rica e artisticamente consciente das cidades italianas — esperava trabalhar com quase todo tipo de pedra, de cal- cdrio e marmore de Carrara a pedras preciosas ¢ semiprecio- sas, ¢ lidar com metais aquecidos, indo do ouro ao cobre eas 77 ” il Ors x 2 /| DV (merca tenets ligas de cobre como o bronze, que tinha uma mistura de estanho. Ourives representavam um papel muito mais cen- tral na arte renascentista do que se nota geralmente. Suas habilidades eram absorvi ores e seus desenhos pelos pintores, Os ricos de Florenga ¢ de outras cidades.co- y “merciais gostavam de ostentar riqueza. Provavelmente gas- Ul tavam mais em jdias do. que em arte, ¢ uma das fung6es dos pintores era registrar em_detalhes.realistas e exatos as jdias usadas pelos que posavam para eles, homens e mulheres — sendo a pintura brilhante. de jdias uma habilidade que qual- (quer.retratista do. Renascimento.precisava dominar. Portas de bronze com soberbos painéis representando cenas do Velho e Novo Testamentos eram 0 modo proeminente pelo qual a arte do joalheiro podia ser transferida para o adorno de uma nova catedral em forma realista e permanente. As molduras ¢ partes adjacentes nas quais os painéis ilustrativos eram colocados sao basicamente cendrios de jéias. Daf a importancia que os florentinos davam, assim como os artistas que os serviam, as portas de bronze de sua catedral ¢ Batistério; esses artefatos crescentemente elabora- dos eram as jdias da casa de Deus, para perdurar para a eter- nidade. Imensos cuidados e anos de trabalho eram devota- dos a eles. Isso teve conseqiiéncias importantes. Mesmo no século XIII cidades voltadas pata 0 comércio, ao encomen- darem obras elaboradas aos attistas, insistiam em contratos detalhados e vinculadores. A fim de obter a encomenda para fazer o ptlpito na Catedral de Siena, Nicola Pisano teve de assinar_um contrato, que sobrevive, datado de 29 de setem- bro.de 1265, pondo por escrito 0 que prometera fazer de um_modo meticuloso, que materiais usaria e quanto tempo . gastaria no local. T.ais contratos tiveram o efeito de identifi- car 0 artista de Sasa see a vam-no da massa de artesfos andinimos-e.o tornavam famd- OO Cobos 2 a _Cwppreidies, obesewe., {\ Al famypheod, od bettas. so, ou consciente da fama./Escultores e Loud comecaram a assinar suas obras. Assim, os relevos das portas do Batisté- rio de Florenga estao assinados Andreas Ugolini Nini de Pisis Me Fecit. A emergéncia do artista como individuo coincidia com a emergéncia da. individualidade de.suas_obras — os. dois processos reforgando-se mutuamente. Outra conseqiiéncia do comercialismo urbano italiano foi que patronos, conscientes de que seu gasto cada vez maior com arte atrafa crescentemente jovens talentosos para o ne- gocio, comegaram a espicagd-los, mantendo_competicoes publicas por contratos importantes. No final do século XIV,. ia Florenga usufrufa um perfodo de paz, prosperidade e orgulho civico, seus cidadaos importantes decidiram en- comendar uma segunda porta para o Batistério. As portas de_ Andrea Pisano eram o padrao de exceléncia contra o qual a nova geracio de escultores devia ser julgado. A competigao de 1401 que se seguiu tem sido freqiientemente tratada como 9 acontecimento tinico marcando o verdadeiro inicio do Renascimento florentino. Foi certamente uma ocasiao ex- traordindria. Havia 34 jufzes, no somente autoridades da catedral, mas também pessoas das guildas da cidade e das cidades circunvizinhas. Eles anunciaram o concurso por toda a Itdlia, € mestres ou : supostos mestres acorreram de toda a_ peninsula. Q campo estreitou-se para sete, inclusive trés dos maiores artistas de todo.o.periodo: Filippo Brunelleschi (1377-1446), Jacopo della Quercia (1374-1438) e Lorenzo Ghiberti (1378-1455). A cada um dessa curta lista foram entregues quatro folhas de bronze para que concebessem um desenho que ilustraria “O_sactificio de Isaac” nee Desses + desenhos enas dois sobreviveram, os de Bru- nelleschi_e os de i, e os jufzes tiveram uma dificil tarefa para decidir entre eles. De fato, levaram dois anos para, chegar a Ao, conscientes do tamanho do proje- 79 to e da enormidade do gasto. (O custo posterior foi de 22 mil florins, o mesmo de todo o orgamento de defesa de Flo- renga.) Ghiberti obteve 0 contrato, provavelmente porque os juizes acharam ser ele o homem mais indicado para levar _ 0 trabalho a uma conclusfo triunfante. E estavam certos. Como Ghiberti se vangloria em sua Autobiografia, ele colo- - cava.a arte antes da “perseguicao.pelo lucro”. Era tremenda- , Mente consciente e um perfeccionista obcecado. Para nés parece um artista muito lento, mas é preciso ter-se em men- " te que os padrées de artesanato exigidos e fornecidos no fi- nal da Idade Média e principio do Renascimento eram de uma qualidade inconcebivel para a época moderna, ¢ a velo- cidade de execugao no seria possfvel. Ghiberti gastava anos numa tinica jdia ou ldpide, meses aperfeigoando 4 mao uma peca de bronze. Trés anos era o tempo normal para que ele criasse uma grande estdtua de mérmore. Ghiberti era um rapaz em 1403 quando iniciou_as por- tas de bronze, completando 0 contrato original 20 anos de- pois, Foi-lhe dada entao outra encomenda, para decorar um terceiro conjunto de portas, conhecidas posteriormente como o Portao do Paratso por Michelangelo. Ghiberti terminou-os em 1452, és anos antes de morrer, passando assim virtual- mente sua vida profissional inteira — mais de meio século- — naquelas portas florentinas. Tinha muitos assistentes ta- lentosos, inclusive Donatello (1386-1466), Benozzo Gozzoli (c. 1420-97), Paolo Uccello (1397-1475), Antonio del Po- Haiuolo (1431-98) talvez Luca Della Robbia (c. 1399- 1482), fazendo de sua_oficina uma_das,grandes_fornalhas criativas do Renasci . Mas ele prdprio era o axtista- criador até 0 4iltimo mil{metro, Como o-préprio Ghiberti afirmaya, esse gigantesco trabalho cumulativo (sé a sua pri- meira porta continha 28 painéis, que, com as bordas, pesava aproximadamente 15 toneladas) foi executado “com muito 80 , A 2 —rey tin oh A 24 cuidado e esforgo (...) compreensio e artificio”. O estagio art{stico era tao sofisticado que algumas pegas fundidas fa- Iharam e tiveram que ser refeitas, e mesmo os moldes mais bem-sucedidos exigiam acabamento, 0 que em alguns ca- sos levou anos. As portas de Ghiberti, recriando vivi dramaticamente as escrituras, foram a estrela-guia de artis- tas e colecionadores de toda a Italia, que vinham admira- las e aprender, Elas inclufam tudo que o Renascimento havia realizado até entio, ¢ apontaram_o caminho aos artistas O escultor que absorveu mais produtivamente as licdes de Ghiberti ¢ realizou.com mais .confianca.o proprio traba- tho foi Donatello. Sua vida e obra nos contam muito sobre o Renascimento, 0 que este foi e o que nao foi. As idéias por tras do perfodo, especialmente o desejo esmagador, nas le- tras, de conhecer a verdade, e na arte, de apresentar a verda- de como a vemos, foram a forga a empurrar escritores e ar- tistas para os nfveis mais altos. Q Renascimento, porém, nao era coercitivo. Os artistas, especialmente, nao eram forgados a ajustar-se a seus objetivos pelo compulsivo espfrito renascen- tista. Na verdade, o Renascimento lhes dava oportunidades muito maiores do que a Idade Média para serem eles préprios edesenvolverem completamente suas capacidades, Dat ter feito os _génios florescerem. E nao houve nenhum que possufsse génio tao dbvia e persistentemente quanto Donato di Nic- cold Betto di Bardi, que nasceu em Florenga em 1386 e mor- reu 80 anos depois. Donatello foi um dos maiores artistas que ja viveu, ¢ em certos aspectos a figura central do Renascimen- _to, Antes dele, os artistas tinham consciéncia dos limites defi nidos do que podia ou devia ser feito em arte. Donatello foi t4o consistentemente original e impactante que, depois dele, todos os limites pareciam ter desaparecido, deixando o artista, limitado unicamente por sua propria capacidade. 81 ilho de um _humilde entalhador de madeira, Dona- tello continuou por toda_a sua vida um homem que traba- lhava com as maos. A diferenga de muitos artistas renascen- tistas de sucesso, como Ghiberti, de quem foi aprendiz entre 4 ¢ 1407, ele nao.tinha pretensdes sociais, nenhum or-_ gulho estético, nenhuma_bazdfia. Falava _e vivia de modo 4spero, como o artesfo_queera.Jamais ganhou muito di- nheiro e, em sua yelhice, viveu de uma _penséo dada por “Cosimo de Medici, que o cultuava, Parece n’o ter aceito 0. fato de que os artistas, 4 época, podiam freqiientar a melhor sociedade, tornando-se homens famosos ¢ altamente prest giados, Nao estava interessado, Nesse aspecto, um dos fatos centrais do Renascimento, a emergéncia. do. artista-celeb: dade, .nao_o_impressionou, Por outro lado, Donatello tinha integridade artistica num _grau pouco comum, Nao era décil. Seu senso de hon- ra, como artista-artes4o, era esmagador. Fazia o que achava direito, em seu_préprio ritmo, a seu_préprio modo. Princi- pes e cardeais ndo o impressionavam. Era plebeu, mas falava com eles sobre quest6es artisticas como um igual, na verda- vando As vezes anos para chegar a algo absolutamente certo. Nao devia ser apressado e, se o intimidassem, largava as fer- ramentas. Seu_nome figura em centenas de documentos, e muitas histérias circulavam sobre suas frases rudes, humor Aspero, obstinacdo e m4 vontade em receber ordens. Seus patronos, para crédito deles, o respeitavam. Um motivo pelo qual_o Renascimento produziu tantas obras de arte maravi- lhosas foi que uma grande por¢ao de homens ricos e impor- tantes respeitou os artistas que sabiam o que queriam € co- oheciam_o préprio valor, Donatello abriu_caminho para educar a elite num yerdadeiro espirito de cooperagio com os artistas; assim, paradoxalmente, 0 obstinado_plebeu de- 82 A evag cB ls ribo 6 Adlinas jy/ pilin, sempenhou um papel histérico em levantar_o status social do_produtor de beleza_de artesao para artista, Depois de \ Donatello, nao houve volta: primeiro em Florenga, depois em toda a Itélia, o artista passou a suscitar nao apenas res- pw peito mas também atencio, reveréncia, admiracgao e honra. As realizag6es técnicas de Donatello foram espetacula-~ \es Podia trabalhar em tudo: estuque, cera, bronze polido ! (embora nao fizesse seu proprio molde), argila, marmore, ' vi qualquer tipo de pedra (da mais macia A mais dura), vidro e ts madeira. Usava tinta e dourado & vontade. Nao seguia as \4 regras de qualquer técnica determinada, improvisando quan- do queria e utilizando qualquer coisa que lhe viesse 4s maos para conseguir seus efeitos. Para criar a Madonna dei Cordai (Florenga, Museu Bardini), esculpiu a Madona e Filho na madeira como uma composicao de pecas de encaixar, co- briu-a com material de fixagado, colocou-a num fundo acha- tado sobre o qual dispés um mosaico de couro dourado, depois pintou o conjunto com uma camada final de verniz para unir tudo. Essa técnica art{stica, de apropriar-se dos materiais para ajusta-los a objetivos especificos segundo a escolha arbitrdria da mente criativa ¢ 0 que os franceses cha- mariam — quase meio milénio depois — de_bricolage. Tal espontaneidade era espantosa na primeira metade do século XV. Mas Donatello era também capaz de uma ampliagao deliberada e cuidadosamente planejada das fronteiras das técnicas existentes: por exemplo, inventou uma forma deli- cada de escultura em baixo-relevo, rilievo schiacciato, que nao est longe do desenho. Embora lento e consciencioso quan- do era preciso, poucos artistas se moveram com mais facili- dade e autoconfianga entre seus materiais. Dai sua constante originalidade. Estava sempre fazen- do coisas jamais feitas antes. Mesmo antes dele, os artistas vinham se afastando da apresentagao coletiva dos seres hu- SE 83 manos, téo caracteristica da arte medieval, retratando-os como individuos mesmo no alto-relevo de bronze ou pedra, e entéo indo mais além, recolhendo-os do fundo de cena.e trazendo-os para uma proeminéncia singular. Mas foi Dona- tello quem, como se diz, colocou de uma vez por todas indi- ae em seus préprios pés, como nos tempos antigos, como Yas separadas. Isso envolvia uma boa quantidade de ino- vaio técnica, por exemplo, para impedir que as estdtuas cafssem e — hum tipico toque renascentista — a aplicagio de principios cientificos 4 apresentagao visual. A seguir, uma duizia de modos através dos quais Donatello inovou. Primeiro, sua obra-prima mais antiga, Sao Joo, o Evan- gelista, iniciado em 1410 para o grande portal oeste da Cate-_ dral de Florenga (agora no Museu do Duomo), foi trabalha- da deliberadamente com proporgdes distorcidas de modo que, vista diretamente em fotos, parece instavel e superalon- . gada, mas quando nos colocamos a seus pés, na posigio em que Donatello a destinara a ser vista, parece esmagadora- ; mente sdlida e poderosa. Ninguém fizera isso antes de modo téo convincente, Segundo, Donatello usou antigos padroes gpara_ dar peso e autoridade a suas estdtuas, sendo um dos. primeiros exemplos, 1411-13, seu mdrmore_S@o Marcos no nicho de Drapers em Orsanmichele, Florenga, uma verda- g deira figura renascentista comparada a obra de Ghiberti, que ainda parece medieval. Terceiro, ele fez uma estdtua viver: assim a humanida- de de Sao forge, Sao Jorge, esculpida em pedra para o nicho da Guilda dos Armeiros em Orsanmichele (agora em Bargello), parece sair através da armadura — seu rosto e mAos esto vivos, € ele oscila na ponta dos pés. Como Vasari posteriormente observou: “Ha uma maravilhosa sugestao de vida explodin- do da pedra.” Quarto, com a assisténcia de Michelozzo, um especialista em fundigdes, Donatello deu uma aula objetiva 84 _ das potencialidades do bronze com Sao Luts de Toulouse (1418-22, agora no Museo dell’Opera di Santa Croce, Flo- renca), com a mitra, luvas e baculo moldados separadamen- te e o magnifico manto moldado em diferentes segdes, per- mitindo ao escultor exibir cotalmente sua virtuosidade, O mesmo tipo de inovagao surge em seu Jeremias e Habakkuk feito para o Campandrio de Giotto (1.423ff., Museo dell’ Opera del Duomo), que usa técnicas experimentais para combinar com o material de base e produzir profetas sur- preendentemente vivos, talvez observados por Donatello nas ruas abaixo. A vivacidade é também o segredo de uma sexta inovagio, um_r J do busto_romano, que ele combinou com a pratica medieval de colocar cabegas em recipientes para partes de rosto. Mas as cabegas de Donatello parecem ser de homens vivos, mesmo quando feitas de mascaras mor- tudrias, Um busto excepcionalmente requintado é 0 de Nic- cold da Uzzano (Bargello), feito em terracota e um dos pri- meivos retratos verdadeiros da histéria da arte européia, ain- da outra inovacao. 7 Uma oitava novidade foi o primeiro timulo “huma- nista”, o do antipapa Joao XXIII, executado para o Batisté- rio de Florenga algum tempo depois de 1419. A efigie, mol- dada e depois dourada, é a parte integral de um conjunto arquiteténico, com um atatide, sarcéfago, Virgem sofrendo e outros acessérios (Michelozzo sendo o co-artista), conjun- to esse que se tornou 0 padrao para muitos outros até o final do século XVII, no auge de Canova. Donatello usou com- plexos contextos decorativos pela primeira vez, para relevos narrativos em seu novo rilievo schiacciato, como no belo Cristo dando as chaves a Sto Pedro (agora no Victoria and Albert Museum). Uma décima inovacao, aqui e em qualquer outra obra, é 0 uso de um novo tipo de perspectiva aérea, As vezes o.artista empregava mdrmore estratificado para nuvens, As 85 vezes aplicava.arégua eo esquadro em estuque timido, ea seguir cortava novamente o material com uma espdtula para sugerir planos recuando. O banquete de Herodes, feito para a pia batismal do batistério da Catedral de Siena, ¢ outro ex- celente exem| mplo de como Donatello usava a arquitetura para contrabalangar o baixo-relevo, e vice-versa, como na Galeria do Canto da Catedral de Florenga, uma a almas dos inocentes no Paratso. ~~ O artista descobria sempre novas formas de arte, ilu- minando-as com novos truques da profisséo (como dizia). Assim, os quatro evangelistas em rondel na velha sacristia de San Lorenzo, Florenga, sao velhos auténticos, da vida real, nao santos prototipicos. Também inovativos sao os quatro rondéis que tratam da vida de Sado Joao Evangelista, muitas figuras mostradas apenas em parte, amputadas pela moldura do rondel para dar proximidade e impacto, como se 0 ron- del fosse uma janela através da qual olh4ssemos uma cena viva. Ninguém pensara nesse dispositivo antes, Donatello era, acima de tudo, um realista: seu painel de bronze sobre o martfrio de Sao Lauréncio, feito para Cosimo de Medici, é tao horrorizante na descricéo da agonia final do santo que isso e as cenas do Novo Testamento que o acompanham podem ter sido fortes demais para o gosto do tempo, sendo instaladas em San Lorenzo apenas no século XVI. Igualmente horrorizante, a seu préprio modo, é a estétua de madeira de / Santa Maria Madalena em sua medonha velhice, que pode ter sido o tiltimo trabalho do escultor (Museo dell’Opera del Duomo) e 0 grande bronze de Sao Joao Batista, ainda em seu lugar na Catedral de Siena. Nada como essas obras dramaticas e tragicas j4 haviam sido produzidas anteriormen- te. Contudo, o bronze de David, que muitos consideravam a obra mais requintada de Donatello — certamente é a mais amada — e que foi depositada originalmente no centro ‘do 86 nr recite of patio do novo paldcio Medici b agora no Bargello), é mais uma obra de imaginagao fantdstica do que_tealista. David estd est4 nu, ¢ com seu cabelo comprido ¢ chapéu de de aba. larga é é tao bonito quanto uma moga, mas é também um jovem sur- reendentemente real: a auddcia do conceito, atordoante, Ayn. Arid torn (LAME - ; A . —— excitante e sugestiva, faz-nos cogitar o que tera pensado até mesmo a instrufda elite florentina quando a obra foi desve- lada pela primeira vez. Mas Donatello, entéo como sempre, nao deu importancia: estava servindo a sua arte e a seu Deus da maneira que 0 préprio génio — nao a sociedade ou, ye quer outra autoridade — lhe ditara. jhuce. Na época de Donatello, artistas alta cnene talentosos bbe mas menores tendiam a ser ofuscados. Mas nao eram esma- gados, pois, pelo in{cio de século XV, o mercado de arte na Itdlia era vasto, ¢ os mais argutos observavam cuidadosa- mente a obra de Donatello para vero que podiam roubar, ou_melhor, aproveitar em inovagdes de sua_prdpria lavra. Luca Della Robbia (c. 1399-1482), um contemporaneo flo- rentino mais jovem, que entdo recebera a encomenda para a gtande Galeria do Canto em marmore da area do 6 drgao da Catedral de Florenga, era um artist tao_atentamente quan: natello, mas que gostava_tam- bém de reviver a imagética ¢ os_efeitos_medievais _quando isso lhe convinha. Sua escultura em marmore é requintada sua maneira, mas ele foi rapido em dominar o revival da terracota por parte de Donatello como material com gigan- tescas possibilidades artfstico-comerciais. Nos anos 1430, inventou um vet i anho ara_a_terracot uma das grandes descobertas art{sticas do pel de todos os tempos. Esses poderosos vernizes ao mesmo tem- ‘po protegiam e intensificavam as cores, dando as figuras pro- fundidade e luminosidade, ressaltando a beleza das formas, tornando-as significativas ¢ tocantes. A primeira obra desse Lo eae on Xe ws. €C cass Liming haw tipo de que temos n{tida documentagio data de 1441, mas.a terracota envernizada rapidamente entrou na moda, em parte por ser imediatamente atraente, em parte por ser comparati- vamente_barata. Luca Della Robbia estabeleceu uma oficina altamente produtiva com seu sobrinho Andrea, e em breve exportava objetos para a maior parte da Europa. Esses podiam ser leva- dos em pedagos e montados, sendo assim transportados com facilidade. Serviam nao apenas como obtas de arte em si, para decorar um stwdiolo, quarto ou sal3o de jantar, mas como objetos elegantes, embora utilitarios nas igrejas — tabernd- culos, pias de 4gua benta, relicdrios e estagdes da cruz. Podiam também ser usadas para objetivos mais grandiosos, como retébulos importantes, assim como rondéis e almofadas de -a Della Robbia era um artista mais encantador e charmoso do que propriamente grande, mas seu poder de penetrar no mercado de arte europeu da época era imenso, sendo, portanto, sua influéncia significativa. Ele trouxe_o Renascimento para muitos lares abaixo_do nivel principesco_ por todo o norte, assim como para o sul Sie a ‘nuitos imitadores, Entretanto, na reatid/ ante chu modo;"a oP tieanga dirigiu-se crescentemente para escultores que tinham um objetivo muito maior, e especialmente para os que podiam produzir a figura em pé independente ou, melhor.ainda,-o homem a cavalo. A meio caminho entre os dois gigantes da escultura Donatello ¢ Michelangelo, situa-se Andrea del Verrocchio (1435-88), também outro florentino, Seu pai era um fabricante de tijolos, talvez ligado 4 decoracao, ¢ es- tava associado desde jovem a ourives que, especialmente em Florenga, forneciam o meio ambiente capacitado e experi- mental dos quais sairam tantos grandes artistas. E. impot- tante lembrar que a maioria dos lideres visualmente criati- 88 : oes fi eet vos do Renascimento era artista no sentido mais a eles. podiam. voltar-se para a arquitetura — e 0 faziam.com fre- qiiéncia —, assim como para.a pintura ea escultura, para projetos de quase todo tipo de artefato que exigisse habilida- de excepcional — para qualquer coisa, na yerdade, paraa qual houvesse ou pudesse haver um mercado. Se Verrocchio “comegou como ourives, rapidamente voltou-se também para a escultura, competindo por encomendas importantes, en- volvendo-se em intimeros projetos em metal diferentes, como a ctiacio da bola de cobre gigante para a clar: dral de Florenga. Quando teve idade suficiente para dirigir sua prépria oficina, que era também uma loja de varejo onde clientes podiam comprar, encomendar cépias ou obras de sua escolha, ele ¢ seus assistentes trabalharam virtualmente com todos os meios e materiais, de joalheria a bronzes maci- gos ¢ marmores, assim como pinturas monumentais. A ex- tensao ea versatilidade de seus interesses — e capacidade de empreendimento — foram os motivos de tantos rapazes ta- lentosos, como Leonardo da Vinci, Perugino e Lorenzo di Credi, para citar apenas os mais.celebrados, terem aprendi- do sob sua orientacao. Na verdade, tao bem-sucedida era sua loja que ele abriu outra em Veneza. ~ Qs artistas florentinos, especialmente os escultores ¢ intores, eram-altamente competitivos, sendo também en- corajados nisso por seus patronos, tanto muni cipais quanto particulares. Verrocchio estava entre os mais competitivos, tanto_com_as_outras oficinas — como a dirigida pelos ir- méaos Pollaiuolo — como com artistas individuais, vivos ou * mottos. Seu Menino com um golfinho (Palazzo Vecchio, Flo- renga) era uma tentativa de apoderar-se'e superar um tema favorito da antiguidade, altamente bem-sucedido. Seu Da- vid (Bargello) foi um desafio deliberado ao encanto juvenil da maravilhosa est4tua de Donatello, e pode bem ter sido 89 Ze 2 mais popular em sua época, pois era muito mais viril, e o detalhe é soberbo. Sua obra-prima, na qual gastou boa parte da ultima década de vida, foi também um esforgo para supe- rar Donatello. Figuras montadas, moldadas em bronze, de tamanho real ou maiores, foram encaradas como uma das maiores realizacdes da antiguidade. Os quatro cavalos anti-_ gos da Catedral de Sao Marcos, em Veneza, roubados de Constantinopla, eram lembretes da dificuldade de esculpir e moldar até mesmo estatuas eqiii Ht las. Uma das_ maiores realizag6es de Donatello, na década de 1445-55, foi. criar com éxito uma figura montada, o Gastamelata, em. frente & grande igreja de Santo Anténio de Padua, Yerrocchio en- tao sobrepujou isso, com sua magnifica execugio do condot- tiere montado Bartolomeo Colleoni, erigido num dos mais destacados locais de Veneza, do lado de fora da igreja de Santi Giovanni ¢ Paolo. Tecnicamente, é uma obra-prima. Esteticamente, é formidavel, ressaltando a aterrorizante bru- talidade dos homens que conduziam operag6es militares no Renascimento. Na verdade, de certo modo pode reivin- dicat 0 posto da mais bem-sucedida e conhecida de todas as estatuas eqiiestres, ajudando a compreender como Verroc- chio conseguia extrair pregos tao vultosos (acima de 350 flo rins) de seus patronos. _-— Provavelmente pode-se aprender mais sobre a arte re- Inascentista de um estudo detalhado das lojas desse homem industrioso do que de qualquer outra instituicdo isolada. Por tras do resultado real estavam os desenhos preparatérios, os modelos ou bozzetti em cera e argila, mostrados aos clientes para indicar o que podiam esperar de seu dinheiro, e os mo- delli mais acabados em terracota, A loja e os esttidios dos fundos e seus anexos eram cheios de equipamentos de todos os tipos, inclusive modelos de.gesso das verdadeiras cabegas, bragos, maos, pés ¢ joelhos, que Verrocchio fizera por um 90 processo secreto de sua autoria. Aqueles cram usados por ele proprio e seus assistentes para escultura e pintura. O artista mantinha estantes de desenhos de cabegas masculinas e fe- mininas e fazia modelos de figuras de argila, cortinados com trapos mergulhados em gesso, para uso na escultura ou pin- tura de drapejamentos, uma pratica adotada por Leonardo ¢ outros que trabalhavam sob sua orientacéo. O conhecimen- to do esttidio de Verrocchio nos leva aos bastidores da arte renascentista, mostrando como seus altos padrdes eram ba- seados em intensa disciplina, preparativo cuidadoso e um uso implacdvel de cada auxilio mecanico que a engenhosi- dade humana podia conceber. Atrds disso, por sua vez, ha- via um desejo apaixonado de ganhar dinheiro, assim como de produzir a arte mais elevada. : E importante notar que os escultores do Renascimento nao tinham que se apoiar em moldes de gesso do esttidio para emular os antigos. Num certo sentido, os antigos esta- vam sempre a volta deles, em formato de bracos, pernas e cabegas das estétuas romanas quebradas, ainda encontradas na Italia em grande niimero no final da Idade Média. A par- tir do século XIV eles comecaram a ser valorizados por cole- cionadores e artistas. Amantes da arte pagariam um bom prego por cabecas ¢ torsos, montando-os_nos patios de seus palacios.da cidade ou.em_terragos de jardins de suas vilas no campo. Os artistas os estudavam e os copiavam. Alguns eram também empregados por patronos para remendar estatuas antigas quebradas ¢ esculpir novos pedagos para completar a figura, sendo os escultores conhecidos orgulh ais para fazer esse tipo de trabalho, Mas, da mesma forma que eruditos iam em busca de antigos manuscritos de obras clas- sicas em bibliotecas de mosteiros, os artistas vasculhavam as rujnas romanas 4 procura de tesouros artisticos. Estatuas inteiras de pedra ou marmore eram raras, e bronzes eram 7 — 91 é \ muito escassos. De qualquer modo, o melhor, geralmente, eram cépias romanas de originais gregos. Um bronze que sobreviveu em perfeito estado foi o Spinario, como era cha- mado — do primeiro século d.C, — um menino nu retiran- do um espinho do pé, Este descansava numa coluna do lado de fora de Sao Joao de Latrao em Roma, perto da estdtua eqiiestre de bronze de Marco Aurélio, e era muito admira- do, especialmente por artistas. Ela bem pode ter inspirado Donatello a criar seu David, exatamente como o Marco Aurélio sem dtivida 0 encorajou e a Verrocchio a empreen- derem bronzes eqiiestres. No final do século XV, coleciona- dores ambiciosos dispunham-se a gastar tremendamente em escavagoes de locais antigos onde era provavel encontrar-se estatudria. Foi assim que o Apolo Belvedere, uma genufna estdtua grega, veio & luz em Roma nos anos 1490, seguida em 1506 pelo Laocodn, uma das maiores obras-primas da antiguidade. Ambos foram adquiridas pelo papa Julio II, que reinou em 1503-13, e foram os objetos mais apreciados de sua colecAo de esculturas, o que mais tarde formou o niicleo do atual Museu do Vaticano. 7 Segundo Vasari, estudar as formas antigas, também no paldcio de Julio H, foi de importancia fundamental para a obra dos mestres do que chamamos Alta Renascenga, espe- cialmente Leonardo, Rafael e Michelangelo. O tiltimo, prin- cipalmente, aprendeu dos antigos de todas as maneiras: de- senho ou disegno, escolha de tema e materiais, 0 préprio es- culpir, o acabamento, 9 equilibrio entre as partes € 0 todo, e, acima de tudo, o desenvolvimento de um senso de monu- mentalidade, de grandeza, que os italianos chamam de terri- bilita, a capacidade da arte de inspirar puro temor reverente. Michelangelo nasceu em Florenga em 1475 e¢ morreu em \S Roma 89 anos depois, Teve mais de 70 anos de vida artistica \ ativa, sem pausa ou descanso, trabalhando como escultor, 92 pintor e arquiteto, e ‘Screvendd poesia também. Mais bo- bagens tém sido escritas sobre ele do que de qualquer ou- tro grande artista: que era neurético; homossexual, um mis- tico neoplaténico etc. Na verdade, era apenas um artista muito capaz e enérgico, embora freqiientemente muito ator- mentado, que se metia em confusées contratuais nem sem- pre de sua autoria, Jamais pensou em coisa alguma exceto em prosseguir com a sua arte da melhor forma posstvel ¢ cultuar Deus. Michelangelo era essencialmente um escultor, embora fosse provavel estar mais interessado na forma humana como tal do que em qualquer modo ou meio para representé-la. Sendo sua ama-de-leite a esposa de um escultor de pedra de Settignano, Michelangelo disse a Vasari que “mamara no formfo € martelo” junto com o leite. Seu pai era um burgués ambicioso e artivista social de Florenga, que manteve Mi- chelangelo na escola até os 13 anos e mostrou-se muito relu- tante em permitir que o filho ganhasse a yida como escultor, acreditando ser isso um submisso trabalho manual. Tal fato pode explicar por que o rapa, tornou-se, primeiro, aprendiz de um pintor, Domenico Ghirlandaio, em 1488, Apenas no ano seguinte Michelangelo conseguiu entrar para a oficina de escultura do jardim da casa Medici em San Marco. Apren- deu sozinho copiando a cabega de um fauno da antiguidade, Qescultor.tornou-se famoso quando,.aos.17 anos, pro- duziu sua primeira obra-prima, o relevo de marmore A ba- talha dos centauros, F, um trabalho excitante, feita com gran- de facilidade e surpreendente economia, as figuras masculinas nuas exibindo uma extraordindria energia que, com impac- to, esclarecem a obra para o espectador, Por motivos que desconhecemos, porém, continua inacabada, tendo isso quase se tornado a marca da obra de Michelangelo. Entretanto, ele 93 minou sua primeira encomenda importante, a Pieta (Ma- tia com o Cristo morto), destinada ao ttimulo de um cardeal francés em Roma. O artista deu infcio 4 obra aos 22 anos, acabando o projeto com um alto estado de polimento trés anos depois. Por quaisquer padrées, é uma obra madura e majestosa, combinando forga (a Virgem) e pathos (o Cristo), nobreza e ternura, uma consciéncia da fragilidade humana ¢, ao mesmo tempo, uma capacidade humana de suportar que lincutem nos que a estudam uma poderosa mistura de emo- des. E a obra religiosa ideal, induzindo reveréncia, gratidao, oftimento ¢ ora¢ao. O padrao da cinzeladura, tanto da carne uanto do panejamento, nao tem precedentes na histéria umana, e nao é dificil imaginar a perplexidade ¢ 0 respeito ue produzia néo sé nos conhecedores como entre os ho- ens e mulheres comuns. A juventude do escultor tornou-o ma maravilha, ¢ a aclamagao dada 4 obra foi o inicio de sua eputagio de super-homem art{stico, mitificado — como Iguns de seus trabalhos —, dotando-o de qualidades divinas. Se o artista é beneficiado por tal reputagio, é assunto discutivel. No principio do século XVI, de um bloco gigan- tesco de marmore que j4 fora arranhado por artistas anterio- res, Michelangelo criou uma herdica figura do David desti- nada a ficar ao ar livre (est4 agora na Accademia, Florenga) € causar um grande e reverente assombro nos florentinos. O escultor omitiu a cabeca de Golias ¢ a espada do rapaz, sen- do a enorme obra uma assustadora declaragao do poder mas- culino nu, esculpido com uma habilidade e energia quase lancinantes. A pega fez as representagdes de Donatello e Ver- rocchio parecerem insignificantes em-comparacao, e aumen- tou a lenda crescente sobre os poderes supranormais de Mi- chelangelo, patrono e ptiblico confundindo o gigantismo da obra com o homem que a fizera. Um ano depois da escultu- ra terminada, Julio II convocou o artista a Roma a fim de 94 Ne TT TEES ee criar, para sua prdpria vaidade e a admiragao da posteridade, um espléndido tamulo de marmore com miltiplas figuras ¢ um magnifico conjunto arquiteténico. Michelangelo acei- tou com alegria a chance de criar uma obra tao ambiciosa para tao generoso patrono, e de fato finalizou, para sua satis- facio e a de todos, a tempo ea partir dali, como parte do todo, um soberbo Moisé, a_ imagem divina do legislador e juiz que é a figura central do Velho Testamento. Muitos ditiam ser esse 0 melhor trabalho do escultor, O projeto inteiro, contudo, levoy. 40 angs e nunca foi terminado como pretendido. Envolveu o artista em brigas com os grandes, fugas de Roma, agoes legais, intermindvel ansiedade e até mesmo uma sensagio de fracasso. Desestabilizou Michelan- gelo como homem e como artista, e afetou sua atitude para com trabalhos que nada tinham a ver com o tuimulo. Na Accademia, Florenga, encontra-se a figura parcial do Ailas eseravo feita para o timulo, na realidade sé 0 torso e as pernas, estando o resto do marmore cortado no tamanho necessdrio mas nao trabalhado. Por que foi abandonado? Nao sabemos. O Escravo morrendo (Louvre), também destinado ao timulo, tem a figura completa, e é magnifica, mas a parte i de tras e a base est4o incompletamente trabalhadas. Por qué? Nao sabemos. Dois tondos de marmore da Virgem ¢ Crian- ¢a, um no Bargello, Florenga, ¢ 0 outro — posse preciosa da Royal Academy, Londres —, estao também incompletos, com os rostos e membros soberbos emergindo hesitantemen- te do trabalho ainda tosco. De vez.em quando Michelangelo | concebia um desenho grandioso ou belo, esbogava-o, traba- thava nele, completava-o parcialmente e entao punha-o de / lado, raramente tornando-se claro ter sido por falta de tem- i Po, pressao de outras encomendas, insatisfagio com o traba- tho ou pura exaustao. Naturalmente, grandes artistas as ve- zes preferem que sua obra nao esteja terminada, o que lhe da 95 WM ich hanegl uma impressao de espontaneidade e inspiragao que um po- limento meticuloso obscurece. Mas, em alguns casos, como no grande timulo dos Medici, com a figura de Lorenzo sen- tado e pensativo, inspiradora de assombro reverente, j4 termi- nada, assim como os dois nus coadjuvantes abaixo, os nichos sio deixados vazios e um ar inacabado paira sobre o todo. Michelangelo softia de alguma doenga da alma? Ele era brigdo, mostrando-se freqiientemente enraivecido consigo mesmo e com os outros. Parece-nos uma figura isolada em sua grandeza, em sua falta de vida particular ou de privaci- dade, 0 coracao vazio de amor consumado, sendo seu tinico competidor e a marca pelo qual se media a prépria Divinda- de. Deve se acrescentat também que Michelangelo impu- 4, nha a si mesmo severas limitagées. Obviamente nao gostava de trabalhar em bronze e raramente o fazia. Era um metal de pouca sorte para ele. Seu tinico grande. esforgo.de bronze, _um gigantesca estatua de Juilio II, foi posteriormente derre- tida numa emergéncia.¢ transformada em canhao, Fez um ctucifixo de madeira e o pintou. Mas em geral gostava ape- nas de mdérmore e de esculpir com_um_primoroso acaha- ay) mento, preferindo um elaborado cendrio arquiteténico, de A) modo que suas obras fossem vistas de frente, nao circunda- Ap das das, Todos esses limites auto-impostos aumentavam-lhe as ah ,. dificuldades, e Michelangelo nao era um artista que, em épo- i _ cas de estresse, pudesse consolar-se criando pequenos obje- tos belos. O homem e sua obra situavam-se na mais grandiosa das escalas, de modo que seus triunfos fossem épicos, assim como suas tragédias. Os grandes indiyiduos super-humanos tendem a ex-_ plodir e esterilizar o territério em torno deles. Michelangelo transformou em andes os seus.contemporaneos na escultu- fa, € Na geracdo seguinte ninguém retomou sua folha de ser- yicos. Houve um lapso de tempo de algumas décadas antes. 96 que outro: italiano herdico, Bernini, vestisse o manto de Elias, mas jd entéo o Renascimento estava finalmente terminado.e comegara uma época inteiramente nova na arte européia — oBarroco. O italianado Fleming Giambologna, que afirma- va ser herdeiro de Michelangelo e que certamente tentou o herdico em maérmore e bronze, também se mostrava além do escopo do verdadeiro espirito renascentista. Contudo, é apropriado terminar esta segdo com uma referéncia a um contemporAneo dos anos maduros e finais de Michelangelo, Benyenuto Cellini (1500-1571). Este era, em varios aspec- “tos,.a antitese de Michelangelo, como artista, mas uma figu- ta soberbamente caracter{stica do Renascimento quanto ao amor e conhecimento das antiguidades, em sua técnica e audacia artistica, em sua surpreendente versatilidade ¢ sua devogao 4 beleza humana, o que era simultaneamente com- plexo e simples. Como muitos praticantes renascentistas da alta arte, Cellini veio daquele rico depésito de habilidades, o artesa- nato florentino. Seu avé era um mestre pedreiro ¢ seu_pai um car izado que, entre outras coisas, fazia e montava os andaimes para os projetos em grande escala de Leonardo da Vinci, esculpindo também elaborados instru- mentos musicais. Cellini entrou naquela caverna de Aladim e covil de feiticeiro do Renascimento, uma oficina de ouri- ves, As habilidades que 14 adquiriu tornaram-se a base de um conhecimento enciclopédico de como trabalhar com materiais de todos os tipos, do ouro, prata ¢ pedras mais preciosas a pedras duras de todos os tipos, assim como com metais basicos. Cellini foi um dos poucos artistas renascen- tistas treinados como ourives a ser celebrado por uma pega sobrevivente de ourivesaria. Virtualmente todo seu trabalho inicial desapareceu Agi m_1527, para nunca surgir de novo. Como o bronze, 9 ouro era um mate-_ 97 Jial arriscado no qual buscar fama eterna, jd que seus proprie- tarios o derretiam em_tempos dificeis, Contudo, Cellini tra- balhou para o generoso Francisco I de Franga, 1540-45 —e 0 soberbo saleiro de ouro e esmalte que fez para o rei surgiu de algum modo para a posteridade, sendo agora_um_dos maiores tesouros do Vienna Kunsthistorisches Muse Cellini levou dois anos para terminar esse encantador objeto — 0 que foi encarado na época como uma velocidade im- pressionante, e nao é de espantar: nenhum individuo ou equipe poderia produzi-lo hoje em um século. Se uma tinica obra de arte, com seus temas cldssicos, sua fecundidade e brilhantismo, sua tecnologia aventureira e puro amor pela arte e humanidade resume todo o Renascimento, é essa glo- riosa. extravaganza, ~) Cellini fez tantas coisas diferentes que é dificil lista-las: medalhas cerimoniais com cabecas requintadamente escul- pidas e reversos engenhosos, cunho para moedas, enseignes emblematicas, matrizes para sinetes — todos de grande qua- lidade artfstica —, acessérios para altar e objetos de mesa, pequenos bronzes e pecas decorativas de todo tipo, Tam- bém teve em mira o herdico, ¢ uma ou duas vezes foi bem- sucedido em atingi-lo, especialmente em seu magnifico Per- seu ea cabeca da Medusa, bronze em grande escala num pe- destal claborado com um painel em relevo e quatro estatue- tas de bronze em seus nichos. Encomendado por Cosimo I de Medici e destinado & Piazza della Signoria em Florenca ao lado do David de Michelangelo e Judite e Holofernes de Donatello, e competindo com eles, foi terminado em 1560, sendo considerado pelo escultor como o climax de sua car- reira. O novo duque da Toscana encarou-o como a corpori- ficagao de seu “revival etrusco”, simbolizado pelo prdprio ducado, pois a pose lembra um bronze etrusco do quarto século a.C, admirado por Cosimo. Essa obra, com a delibe- 98 Ferre EEE EEE eee EE See eee eee Seer rada reminiscéncia de um passado antigo glorioso e a bri- lhante exibigdo do que os artistas do século XVI na Europa, e especialmente em Florenga, podiam entao realizar, era tam- bém uma recapitulagao e epitome de tudo que o Renasci- mento defendia. O grande bronze é, talvez, a mais bem documentada das obras de arte renascentistas, pois Cellini descreve sua concepgio e fabrico em detalhes consideraveis. Era um ho- mem genioso, aspero, dificil e audacioso, com todos os vicios da_extravagancia artistica que associamos aos artistas mais sensacionais do Renascimento, mais alguns peculiares ao pré- prio Cellini. Os registros de corte sobreviventes mostram- no entrando e saindo de problemas por toda a vida, sendo com freqiiéncia forgado a fugir para nao ser julgado. Foi culpado de pelo menos dois assassinatos, tendo sido perdoado em virtude de seus servigos artisticos — um tfpico toque renascentista. Por duas vezes foi acusado de sodomia, a se- gunda depois da génese de Perseu, o que o levou a fugir para Veneza, onde encontrou o arquiteto Sansovino e Ticiano. Apesar disso, foi condenado, sentenciado a quatro ano: prisdo_c realmente teve que suportar um longo perfodo de priséo domiciliar, que usou para escrever sua autobiografia. Essa obra deliciosa e alramente informativa, uma verdadeira janela para o mundo artistico de seus dias, nos conta tudo sobre Perse e muitas outras obras suas. E também um tra- balho de arte liter4ria que, a seu proprio modo, confirma o longo processo de como o humilde artesto medieval, de modo geral anénimo, ergueu-se ao status de um herdi da Renascenga, embora no caso do violento e jactancioso Cellini este fosse mais um anti-herdi. Por sua autobiografia, apren- demos que foi um colecionador de arte. Vasari diz, ter ele reunido varios desenhos de Michelangelo, de modelos para 0 teto da Capela Sistina, aparentemente tendo também co- 99 piado um tratado de Leonardo sobre as trés artes — escultu- ra, pintura e arquitetura — juntamente com um estudo de perspectiva, A verdade é que, durante o Renascimento e es- pecialmente em Florenga, essas artes estavam todas estreita- mente vinculadas. Da escultura, agora nos voltaremos para aarte da construgao. 100 PARTE As CONSTRUGOES DO RENASCIMENTO ARA OS CIDADAOS comuns da Idade Média tardia em Flo- renga ou qualquer outra cidade da Itdlia, a arquitetura era visualmente muito mais importante do que todas as ou- tras artes, sem se mencionar escrever. Eles poderiam nao pe- netrar até os tesouros abrigados nos paldcios, mas viam as construgoes pelo lado de fora. Estavam familiarizados com as igrejas e as catedrais, sendo-lhes até permitido entrar oca- sionalmente nas sacristias, onde eram guardados os mais pre- ciosos objetos de arte. A construcao, até mesmo mais do que a escultura ptiblica, era uma questao de orgulho civico. Os cidadaos italianos tinham também consciéncia da arquite- tura da antiguidade, pois em muitos casos suas ruinas ainda estavam |, de pedras ainda nao inteiramente saqueadas, ar- rumadas ou removidas. Num certo sentido, grandes por- g6es da Itdlia medieval ainda eram uma vasta ruina arquite- tonica, um lembrete constante do gigantismo e da gléria de Roma. Assim, quando a riqueza crescente encorajava as ci- dades lideres a, por sua vez, se glorificarem, era para o exem- plo do passado romano que os artistas naturalmente se vol- tavam, podendo o ptiblico comparar os resultados. Na ar- quitetura, portanto, o Renascimento foi um acontecimento natural; integrando-se 4 maré do pats. 103 Temos aqui um marcante contraste entre o sul da Eu- ropa, especialmente a Itdlia, e o norte. O gético evoluiu na Franga do século XII vindo do romanico, em si primitivo, uma forma bastarda de arquitetura do Império Romano tar- dio. Mas 0 romanico evolufra para um estilo préprio, uma criagao verdadeiramente original, eventualmente de grande majestade e sutileza, incorporando consideraveis feitos de engenharia, efeitos decorativos esmagadores e impressionante poder. As maiores catedrais géticas da Franca, Inglaterra, Alemanha e Espanha estao entre as maiores ¢ mais requinta- das construgées j4 construfdas, e se tornaram depositarias de tesouros artisticos dos quais apenas uma fragdo chegou até nés. Eram uma maravilha do mundo, mas nao impressiona- vam os italianos — mesmo os que estavam mais conscientes de sua existéncia ou, grupo muito menor, aqueles que as tinham visto. O gético era um habito, um impulso, nao um sistema. Nao tinha teoria nem literatura. Era uma sofistica- da evolugao de um instinto primitivo. Muito poucas cate- drais eram concebidas ¢ construidas como um todo, segun- do um plano mestre (Salisbury na Inglaterra foi uma rara excegdo, e mesmo em seu caso a flecha sé foi acrescentada 200 anos depois). Algumas, como Colénia, permaneceram inacabadas até os tempos modetnos. Os italianos, especial- mente em suas planicies do norte, construfram catedrais goticas, como a de Milao, mas sem entusiasmo ou satisfagio. O espirito gético, oposto a figuras humanas, jamais se fir- mou entre eles, Havia algo orgAnico a respeito do gético que os italianos achavam irracional, de modo que sentimos que o adotavam apenas como uma forma aberrante, ansiando, talvez inconscientemente, por substitu{-lo por algo melhor, derivado desde as raizes da prépria cultura italiana. Em Florenga, onde a arquitetura do Renascimento pro- priamente comegou, essas raizes eram profundas e remonta- 104 vam aos tempos romanos, A catedral foi originalmente uma edificagao do século V ou mesmo do IV, reconstrufda duas vezes no inicio dos tempos medievais, Era entéo uma obra romano-romanica. O Batistério, que é parte do complexo, foi modelado segundo o circular Pantheon de Roma, no sé- culo VI ou VII, embora tivesse sido alterado e novamente consagrado em 1059. Portanto, também podia ser chamado de obra romana. O terceiro edificio do complexo, o campa- nario ou a torre do sino, foi projetada por Giotto di Bondo- ne (c. 1266-1337), mais celebrado como pintor, que foi fei- to mestre das Obras da Catedral em 1334, Seus projetos sobrevivem, mas ele morreu trés anos depois, e 0 edificio atual, construfdo sucessivamente por Andrea Pisano, 0 es- cultor, e Francesco Talenti, é diferente. Nao parece gético. Mas também no parece romano ou romanico. E sui generis. Na geracao anterior, em 1294, os florentinos decidi- ram derrubar sua antiga catedral e construir outra, mais nova e maior, ctiando-se dois anos depois um projeto. A fachada da nova catedral foi construida de tijolos com frente de mar- more branco, verde e rosa, sendo 0 trabalho suspenso para a construgio do campanario em estilo semelhante, A antiga catedral s6 foi finalmente demolida em 1375. Jé entao o projeto final estava decidido: uma igreja vasta ¢ oblonga, com quatro imensas ogivas entre a fachada e o santudrio, um espago octogonal encimado por um grande timpano com uma ctipula no alto. Como planejada, a catedral era imagi- nada num espléndido afresco, A Igreja triunfante, pintada por Andrea da Firenze, um membro do comité de planeja- mento. Mas por que e como esse monstro foi construfdo, ja que nao tinha precedentes quanto a tamanho e levantava problemas inéditos de engenharia? Os pilares para o octégono foram construidos entre 1384 e 1410, o timpano iniciado, realizando-se em 1418 105 SP uma competicao pela cuipula. Filippo Brunelleschi saiu-se yencedor em associagao com Ghiberti, j4 entao trabalhan- do, é claro, nas portas do Batistério, Brunelleschi garantiu que a ciipula nao exigiria a construgao por cimbre, o elabo- rado processo de andaimes usado nas catedrais géticas para levantar as abdbadas de pedra com as quais os pedreiros co- briam grandes espacos internos. De fato, um grande espago interno semelhante na Catedral de Ely, na Inglaterra, criado anteriormente no século XIV pelo colapso da torre central, fora preenchido com uma pega gigante de carpintaria for- mando uma lanterna octogonal. Mas os italianos nao eram capazes de carpintaria de alto nfvel nessa escala, e de qual- quer modo podem nfo ter sabido sobre Ely. Queriam uma ctipula. Brunelleschi inspirou-se entéo no Pantheon, a maior ctipula sobrevivente dos tempos romanos. Devemos compreender que, falando-se estritamente, Brunelleschi nao era 0 arquiteto, j4 que o tamanho, a forma ¢, na verdade, a real curvatura da ctipula haviam sido decidi- dos em 1367, dez anos antes de ele ter nascido. Era mais 0 engenheiro ou, como diz o contrato, “o inventor e o dire- tor” do projeto. Homem instruido e filho de um advogado, Brunelleschi fora destinado a uma profissao culta até que seus brilhantes desenhos o levassem a ourivesaria, como a maioria dos artistas florentinos, Competira com Ghiberti pelas portas do Batistério e, sendo recusado, foi com Dona- tello para Roma, a fim de estudar os antigos em primeira mao. Tornou-se um mestre dos detalhes, assim como das formas, e a experiéncia o levou a fazer da arquitetura sua principal paixdo. Era, entao, um intelectual. E também um cientista, j4 que trouxe para o problema da ciipula um con- sideravel conhecimento da pratica da tensio fisica em arqui- tetura. A ctipula desenhada por ele e completada em 1436 repousa em oito arcos de sustentacio importantes que con- 106 tinuam o trabalho das pilastras abaixo, ajudados por 16 me- nores, todos unidos por arcos tensores horizontais e reforca- dos pelas cadeias de tensao de metal. O Angulo da cuipula era tio {ngreme quanto sua forma perm apoiava-se em si mesma, sendo dispensado o trabalho do centro. Para diminuir o peso dela, Brunelleschi utilizou-se do dispositivo de camadas finas externas e internas, uma in- vengao de sua autoria. Daf, embora a ctipula do Pantheon fosse a sua inspiracdo, nao era o seu modelo de engenharia, uma vez que fora consttuido pelo habitual método de forga bruta do ataque frontal dos romanos. A ctipula de Brunel- leschi era mais sofisticada, mais moderna. O verdadeiro tes- te de seu método, porém, nao era apenas a estabilidade da ctipula mas sua aparéncia externa, e por ele 0 método passou triunfalmente. Os florentinos declararam a obra uma mara- vilha, e de fato ela ainda domina a cidade como poucas cate- drais hoje em dia. Brunelleschi saiu da experiéncia da ctipula como um novo tipo de artista — 0 arquiteto mestre, tao diferente do artesdo ou pedreiro que dominara a construgio medieval. O arquiteto era contratado e pago pelo patrono, e entio dirigia e geralmente empregava os artesios. Cada vez mais, tam- bém, o arquiteto passou a se encarregar do projeto, nao ape- nas executando um esquema entregue por um comité, Bru- nelleschi era uma tipica figura da Renascenga, pois estudava cuidadosamente modelos romanos ¢ sobretudo etruscos, usando também, certamente, elementos da antiguidade. Mas quando olhamos com cuidado para o que produziu, nao vemos ali muito de romano ou grego. A partir de 1419 ele criou um belo asilo para érfaos, o Ospedale degli Innocenti, cuja fachada certamente emprega 0 vocabuldrio decorativo da arquitetura cldssica. Mas essa espacosa loggia de frdgeis colunas corintias, sustentando arcos semicirculares, com 5 assim, a construgao 107

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