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Volume 4-Cronicas - Carlos Drummond de Andrade Fernando Sabino Paulo Mendes Campos ech iow Romana 0 / usracho da capa Adetbat Sours Dastragbes nares "Anko do Amaral Roche + Mara Parca Fteas, Pao Cesar Pei, > a) MRE Eee avdaniy, Wl Dara, Boy REMSARE doeSanor ease, AS Colaborasi wa sleginbvxtos ‘bison Lima Goncalves, Francico Mato de Moura, {de Mle Gongaes, ike Brune Lato, ‘Gem, Jos Tnalde God Rodrigues, Laz Barboss Carano 1 Sects Orie Capt Carientaras 2 iacelo Pacheco CIP-Brasil, Cataloga: ‘mara Brasileira do Para gostar de ler: crBnicas / Carles Drummond 7237 ‘de Andrade .., [et al. —- Ed. didatica. ved ‘Sao Paulo: Atlea,- 1979- Vol, 1-4 por Carlos Drummond de Andrade, ‘Fernando Subino, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, em ordem diversa nas paginas de rosto. ‘Vol. 1; 4. eds ¥. 2: 3. eds v.31 2. ed 1, CrOnicas brasileiras — Coletineas 1. Andrade, Carlos Drummond de, 1902- TT, Sabino, Fernando, 1923- TH. Campos, Paulo Mendes, 1922” IV, Braga, Rubem, 1913- 79.0081 ‘epp—869..9308 Tndice para catélogo sistemético: 1, Coletineas: Cronieas: Literatura brasileira 869 9308 1979 todos of diveitos reservados editora étiea s.a.!rua bario de iguape, 110 telefone: 278-9322. (pbx)/caia postal BO36/end. telegréfico: “bomitvra"/sd0 paulo 1“. O telefone Honrado Senhor Diretor da Companhia Telefénica: ‘Quem vos escreve é um “esses desagradaveis sujeitos chamados assinantes; ¢ do tipo mais baixo: dos que atin- giram essa qualidade depois de_uma longa espera na fila. N&o venho, senhor, reelamar nenhum direito. Li o ‘yosso Regulamento ¢ sei que nfo tenho dircito a coisa alguma, a nfo ser a pagar a conta, Esse Regulamento, impresso na pagina 1 de vossa interessante Lista (que é Utilidades - 15 ‘meu livro de cabeceira), € mesmo uma Ieitura que reco- mendo a todas as almas cristis que tenham, entretanto, alguma propensio para o orgulho ou soberba, Ele nos ensina a ser humildes; ele nos mostra 0 quanto nés, assi- nantes, somos despreziveis e fracos. Aconteceu por exemplo, senhor, que outro dia um velho amigo deu-me a honra e o extraordinério prazer de me fazer uma visita. Tomamos uma modesta cerveja e fa- Jamos de coisas antigas — mulheres que brilharam outrora, madrugadas dantanho, flores doutras primaveras. Ta a con- versa quente e cordial ainda que algo melancélica, tal soem ser as parolas vadias de cupinchas velhos — quando o tele- fone tocou. Atendi, Era alguém que queria falar ao meu amigo. Um assinante mais leviano teria chamado o amigo para falar. Sou, entretanto, um severo respeitador do Regu- lamento; em vista do que,,comuniquei a0 meu amigo que alguém Ihe queria falar, o que infelizmente eu no podia pormitir; cstava, entrctanto, disposto a tomar ¢ transmitir qualquer recado. Irritou-se 0 amigo, mas fiquei inflexivel, mostrandothe o artigo 2 do Regulamento, segundo o qual © aparelho instalado em minha casa s6 pode ser usado “pelo assinante, pessoas de sua familia, seus representantes ou empregados”. Devo dizer que perdi o amigo, mas salvei o Respeito ao Regulamento; “dura lex sed lex”; eu sou assim. Sei também (artigo 4) que se minha casa pegar fogo terei de vos pagar o valor do aparelho — mesmo que esse incéndio (artigo 9) for motivado por algum circuito organizado pelo empregado da Companhia com o material da Companhia. Sei finalmente (artigo 11) que se, exausto de telefonar do botequim da esquina a essa distinta Companhia para dizer que ‘meu aparelho no funciona, eu vos chamar ¢ vos disser, com léaldade ¢ com as tinicas expresses adequadas, 0 meu pensamento, ficarei -eternamente sem telefone, pois “o uso 16 de Jinguagem obscena constituiré motivo suficiente para a Companhia desligar e retirar o aparelho”, Enfim, senhor, eu sei tudo; que ndo tenho dircito a nada, que nao valho nada, nao sou nada. Ha dois dias meu telefone no fala, nem ouve, nem toca, nem tuge, nem muge. Isso me trouxe, & certo, um certo sossego ao lar. Porém amo, senhor, a Yoz humana; sou uma dessas criaturas tristes ¢ sonhadoras que passa a vida esperando que de repente a Rita Hayworth me telefone para dizer que o Ali Khan mor- reu e ela esta ansiosa para gastar com o velho Braga 0 dinheiro de sua heranga, pois me acha muito simpatico ¢ insinuante, e confessa que em Paris muitas vezes se escondeu em uma loja defronte do meu hotel sé para me ver sair. Confesso que no acho tal coisa provavel: o Ali Khan ainda é mogo, ¢ Rita nfo tem o meu nfimero. Mas é sempre doloroso pensar que se tal coisa acontecesse eu jamais sa- beria — porque meu aparelho nao funciona. Pensai nisso, senhor: pensai em todo o potencial tremendo de perspectivas azuis que morre diante de um telefone que dé sempre sinal de ocupado — cuém cuém cuém — quando na verdade esté quedo e mudo na minha modesta sala de jantar. Falar nisso, you comer; sio horas. You comer contemplando triste- mente o aparelho silencioso, essa esfinge de matéria plastica; € na yerdade algo que supera o ridio e a televisio, pois transinite nao sons nem imagens, mas sonhos errantes no ar. Mas batem a porta. Levanto 0 escuro garfo do magro bife, e abro. Céus, é um empregado da Companhia! Estre- mego de emocio. Mas ele me estende um papel: é apenas © cobrador. Volto ao bife, curvo a cabeca, mastigo deva- gar, como se estivesse mastigando meus pensamentos, a longa tristeza de minha humilde vida,~as decepgdes e re- morsos. © telefone continuaré mudo; nao importa: ao me- nos € certo, senhor, que nao vos esquecestes de mim. Rio, marco de 1951 (RB) My Da utilidade dos animais Terceiro dia de aula. A professora é um amor. Na sala, estampas coloridas mostram animais de todos os fei- tios. B preciso querer bem a eles, diz a professora, com um sorriso que envolve toda a fauna, protegendo-a. Eles téni direito A vida, como nés, ¢ além disso sio muito steis. ‘Quem nio sabe que-o cachorro é o maior amigo da gente? Cachorfo faz muita falta. Mas nado é s6 ele nfo. A ga- linha,-o peixe, a vaca... Todos ajudam. 18 — Aguele cabeludo ali, professora, também ajuda? — Aguele? E o iaque, um boi da Asia Central. ‘Aquele serve de montaria e de burro de carga. Do pélo se fazem perucas bacaninhas. E a carne, dizem que € gostosa. — Mas se serve de montaria, como é que a gente vai comer ele? — Bem, primeiro serve para uma coisa, depois para outra, Vamos adiante. Este ¢ 0 texugo. Se vocés quise- rem pintar a parede do quarto, escolham pincel de texugo. Parece que é étimo, — Ele faz pincel, professora? — Quem, o texugo? Nao, sé fornece o pélo. Para pincel de barba também, que o Arturzinho vai usar quando crescer, Arturzinho objetou que pretende usar barbeador elé- trico. Além do mais, ndo gostaria de pelar 0 texugo, uma vex que devemos gostar dele, mas a professora jé explicava a utilidade do canguru: — Bolsas, malas, maletas, tudo isso 0 couro do can- guru dé pra gente. Nao falando na came, Canguru é uti- Iissimo. — Vivo, fessora? — A vicunha, que vocés estio vendo af, produz... produz 6 maneira de dizer, ela fornece, ou por outra, com © pélo dela nés preparamos ponchos, mantas, cobertores, etc. — Depois a gente come a vicunha, né, fessora? — Daniel, néo é preciso comer todos os animais, Basta retirar a 14 da vicunha, que torna a crescer... Utilidades -19 —_—_—_—_—_—_—_— — Ea gente torna a cortar? Ela ndo tem sossego, tadinha. — Vejam agora como a zebra camarada. Trabalha no circo, ¢ seu couro listrado serve para forro de cadeira, de almofada e para tapete. Também se aproveita a came, saber? — A came também é listrada? — pergunta que de- sencadeia riso geral. — Nio riam da Betty, ela é uma garota que quer saber direito as coisas. Querida, eu nunca vi came de zebra no acougue, mas posso garantir que nio é listrada. Se fosse, néo deixaria de ser comestivel por causa disto. ‘Ah, © pingiiim? Este vocés j& conhecem da praia do Leblon, onde costuma aparecer, trazido pela correnteza. Pensam que s6 serve para brincar? Est&o enganadns. Vacés devem respeitar o bichinho. O excremento — ndo sabem © que €? O cocé do pirgitim é um adubo maravilhoso: guano, rico em nitrato. O leo feito com a gordura do pingiiim... — A senhora disse que a gente deve respeitar. — Claro. Mas 0 éleo é bom. — Do javali, professora, duvido que a gente lucre alguma coisa. — Pois Iucra. O pélo dé escovas de Stima qualidade. —,E 0 ‘castor? —*Pois quando voltar a moda do chapéu para ho- mens, 0 castor vai prestar muito servico. Alids, j4 presta, a com a pele usada para agasalhos, E 0 que se pode chamar um bom exemplo. — Eu, hem? — Dos chifres do rinoceronte, Belé, vocé pode enco- mendar um vaso raro para o living de sua casa. Do couro da girafa, Luis Gabriel pode tirar um escudo de verdade, deixando os pélos da cauda para Teresa fazer um bracelete genial. A tartaruga-marinha, meu Deus, é de uma utilidade que vocés nao calculam. Comem-se os ovos e toma-se a sopa: uma deli-cia. O casco serve para fabricar pentes, cigarreiras, tanta coisa... O bigué é engracado. — Engracado, como? — Apanha peixe pra gente. — Apanha e entrega, professora? — Nao é bem assim. Vocé bota um anel no pescogo dele, ¢ 0 bigué pega o peixe mas nfo pode engolir. Entéo vocé tira o peixe da goela do bigua. — Bobo que ele é. — Néo. B titil, Ai de nés se nao fossem os animais que nos ajudam de todas as maneiras. Por isso que eu digo: devemos amar os animais, ¢ nao inaltratélos de jeito nenhum. Entendeu, Ricardo? — Entendi. A gente deve amar, respeitar, pelar e comer os animais, ¢ aproveitar bem 0 pélo, 0 couro e os 08508. (C.D.A.) , Utilidades Condéminos A porta estava aberta. Foi s6 eu surgir e arriscar uma espiada para a sala, o dono da casa saltou da mesa para receber-me: — Vamos entrar, vamos entrar. Estévamos A espera do senhor para comegarmos a reunifo: 0 senhor nao é 0 301? Nao, eu nfo era 0 301, Meu amigo, que morava no 301, tivera de fazer repentinamente uma viagem, pedira-me que o representasse. O homem estendeu-me a mio, num gesto decidido: — Pois’entio muito prazer. Disse que se chamava Milanés e recebeu com um sor- riso & milanesa a minha escusa pelo atraso, Desconfici desde logo que fosse meio surdo — s6 mais tarde vim a 22 es descobrir que seu ar de quem jé entendeu tudo antes que a gente fale nfo era surdez, era burrice mesmo. Conduziu-me ao interior do apartamento onde varias pessoas, umas onze ou doze, ja estavam reunidas ao redor da mesa, A minha entrada, todos levantaram a cabeca, como galinhas junto ao bebedouro. O apartamento era luxuosamente mobiliado, atapetado, aveludado, florido & enfeitado, nesta exuberdncia de mau gosto a que se con- vencionou chamar de decoracto. O Milanés fez as apre- sentagdes: — Aqui 0 Dr. Matoso, do 302, Quando precisar de um médico.., Ali o Capitio Barata, do 304 — repre- sentante das gloriosas Forgas Armadas. Dona Georgina ¢ Dona Mirtes, irmas, nao se sabe qual mais gentil, moram no 102. Aquele é 0 Dr. Lupiscino, do 201, nosso futuro sindico.. . Suas palavras eram recebidas com risadinhas chocas, a indicar que vinha repetindo as mesinas gragas a cada un que chegava. Cumprimentei 0 médico, um sujeito com cara mesmo de Matoso, o capitéo com seu bigodinho ainda de tenente, as duas velhas de preto, nfo se sabia qual mais feia, 0 futuro sindico, os demais. O dono da casa recolheu a barriga e as idéias, sentando-se empertigado A cab=2cira. Busquei o tinico lugar vago do outro lado e acomodei-me. A mulher do Milanés passou-me um copo de refresco de maracuja — sé ento percebi que todos bebericavam refresco em pequenos goles, aquilo parecia fazer parte do ritual, convinha imité-los. Um dos presentes, solene, papel na mao, aguardava que se restabelecesse a ordem para prosseguir. — Desculpem a interrupgdo — gaguejei. — Podem continuar. Nao haviamos comecado ainda — escusou-se 0 Mi- lanés, todo simpaticdo, — Estévamos apenas trocando idéias, Utilidades -23 — Se o senhor quiser, recomegamos tudo — emendou a Milanesa, mais pratica. — Ali o nosso Jorge, do 203, dizia que precisavamos — Perdio, quem dizia era o Dr. Lupiscino — ¢ 0 nosso Jorge do 203, um rapaz roligo como uma salsicha de dculos, passou para o extrema, A esta altura interveio © capitio, chutando em gol: — Pode prosseguir a leitura, Alguém a meu lado explicou: — O Dr. Lupiscino fez um esbogo de regulamento. senhor sabe, um regulamento sempre & necessario. . © Dr. Lupiscino pigarreou e leu em voz. alta: — Quinto: € vedado aos moradores... Espere — voltou-se para mim: — O senhor quer que leia os quatro primeiros? — Nio é preciso — interveio o Milanés: — Os qua- tro primeiros servem apenas para introduzir 0 quinto. Vamos 14. — Quinto: & vedado aos moradores guardar nos apar- tamentos explosivos de qualquer espécic. .. O capitao se inclinou, interessado: — E isso que eu dizia. Este artigo nao esta certo: suponhamos que eu, como oficial do exército, traga um dia para casa uma dinamite. .. — O senhor vai ter dinamites em casa, capitio? — espantou-se uma das velhas, a Dona Mirtes. ‘= Nao, no vou ter. Mas posso um dia cismar de trazef... — Um perigo, capitao! 24. — Meu Deus, as criangas — e uma senhora gorda na ponta da mesa levou a mao & peitaria. * __ pois 6 © que eu digo: um perigo — tornou o ca- pitéo, — Deviamos proibir. — Pois entio? Ninguém entendia o que o capitio queria dizer. Ele yoltou a carga: — E imagine se um dia a dinamite explode, mata todo mundo! Nio, é preciso deixar bem claro no regula- mento: “NAO € vedado ter em casa explosivos de qual- quer espécie. ..” — NAO 6 vedado? Quer dizer que pode ter? — de- safiou o autor do regulamento, j4 meio irritado. — Quer dizer que nao pode ter explosivos — respon- deu o capitio, quase a explodir. © capitio nao sabia o que queria dizer a palavra vedado — e dali nfo passariam nunca se o Jorge, do 203, no tivesse levantado a lebre: — Vedado € proibido, capitio, Vedado explosivo: proibido explosivo. — Vedado proibido? Confundia-se, mas no dava o brago a torcer: — Eu sei, mas acho que deviamos deixar mais claro que é proibido, Isto de explosive é perigoso, vedado s6 & pouco, se vamos proibir, é preciso a palavra NAO. Para dar mais énfase, compreendem? NAO é vedado. — Continue — ordenou o Milanés. O capitdo vedado pela propria ignorancia, calou o bico. O Dr. Lupiscino continuou a leitura e em pouco ja ninguém estava prestando atengdo: todos concordavam com a cabeca ao fim de cada artigo, quando o homem cortia os olhos pela Utilidades - 25 ——— sala, para recolher aprovagio. © Milanés, a certa altura, sugeriu que interrompessem o regulamento em favor da elei- gio do sindico — ja se fazia tarde ¢ dali haveria de sair um sindico naguela noite. A Milanesa se aproveitou para ir ld dentro buscar mais refresco. — Sugiro que aclamemos o nome do Dr. Lupiscino para sindico — disse uma das velhas, desta vez a Dona Georgina. Todos aprovaram, menos 0 Milanés que, pelo jeito, queria ser sindico também. — Estamos numa democracia — falou, tentando o engragadinho: — E sem desfazer os méritos ali do nosso preclaro Dr. Lupiscino, acho que devemos langar mao da mais importante das instituigdes democriticas: 0 voto se- creto. — Nao precisa ser secreto — sorriu 0 Lupiscino, certo da vitéria: — Somos poucos, todos conhecidos, quase uma familia — Que acha o 301? — perguntou-me o Milanés, ten- tando conquistar 0 meu voto. Eu, porém, incorrupttvel, votaria no Lupiscino — a menos que a dona da casa, até © momento da eleic¢ao, se lembrasse de servirme alguma coisa além de refresco de maracujé. Disse-the que preferia nao intervir, j4 que apenas repre- sentava um dos proprietarios. — 0 senhor nfo é condémino? — estranhou a bem nutrida senhora da ponta da mesa. — Entéo quem € que esta em cima de mim? Eu sou 202. Expliqueithe que indo era condémino — esta palavra era uma’ das razdes pelas quais até ent&o nfo tivera cora- gem de comprar um apartamento. Utilidades -27 — Estou representando o 301. Em cima da senhora deve estar ali o Dr. Matoso, que, se ouvi, bem, € 302. Dr, Matoso sorriu amavel, concordando: — Faco muito barulho, minha senhora? — Absolutamente — protestou ela, levando de novo a mo ao peito. — Mal ougo o senhor & noite descal- ando 0s sapatos ¢ botando os chinelos. — A senhora é 2027 — perguntou uma das velhas, novamente a Donia Mirtes, — Pois entio seu ralo deve estar entupido: esta pingando agua no banheiro da gente. A outra velha confirmou silenciosamente com a cabega a acusagio terrivel. Enquanto isso o Milanés providenciava a yotagio: cortou lenta e caprichosamente uma folha de papel em doze pedacos, distribuiu-os a cada um de nés: — Ea urna? Onde esta a urna? A urna ceria um horrendo vaso de alabastro. Nos solenizamos ao redor da mesa, exercendo o sagrado direito de voto. Procedeu-se 4 apuragéo e o vencedor foi mesmo ‘0 Dr. Lupiscino, do 201, por esmagadora maioria: o Mila- nés ganhou apenas um voto, o seu préprio, naturalmente, Ea Milanesa? Eu também, 301, ganhei um voto — mas néio foi dela, desconfio que foi da senhora do 202, a do ralo entupido, que me proporcionava olhares socapa. Fe- licitei 0 novo sindico, escusei-me e caf fora: ameagavam re- tomar ao regulamento, e 0 capitao dizia: — Por “reas comuns” entenda-se: escada, corredores, yestibulo, entrada de servigo, garagem. E clevador, que proprio, mas também néo deixa de ser comum. . . A safda notei, de passagem, que 0 edificio nfo tinha elevador. (FS) Automovel: Sociedade Andnima Se vocé quiser, compre um carro; é um conforto adi rayel, Mas nfo o faca sem conhecimento de causa, a fim de evitar desilusées futuras. Saiba que esti praticando um gesto essencialmente econémico; néo para a sua economia, mas para 4 economia coletiva. Isso quer dizer que, do ponto de Vista comunitério, 0 automével que vocé adquire nao é um ponto de chegada, uma conquista final em sua vida, mas, pelo contrario, um ponto de partida para os outros. 28. ooo Desde que o compre, 0 carro passa a interessar aos outros, muito mais que a yoo’ mesmo. Com o carro, yocé esté ampliando seriamente a eco- nomia de milhares de pessoas. E uma espécie de indiistria ‘3s avessas, na qual vocé monta um engenho néo para obter Iucros, mas para distribuir seu dinheiro para toda a classe de pessoas: industriais europeus, biliardarios do Texas, em- presérios brasileiros, comerciantes, operérios especializados, proletirios, vagabundos, etc. 34 na compra do carro, vocé contribui para uma infi- nidade de setores produtivos, que podemos encolher a0 méximo nos seguintes itens: a indiistria automobilistica pro- priamente dita, localizada no Brasil, mas sem qualquer it bigdo no que toca a remessa de lucros para o exterior; os vendedores de automéveis; a siderurgia; a petroquimica; as fébricas de pneus ¢ as de artefatos de borracha; as fabricas de plasticos, couros, tintas, ete.; as fabricas de rolamentos e outras autopecas; as fabricas de relégios, rédios, etc.; as indistrias de petréleo e muitos de seus derivados; as refi- narias; 0s distribuidores de gasolina, as oficinas mecdnicas; ag lojas distribuidoras de autopegas; o Estado (através do tributo). Vooé ja pode ir vendo a gravidade do seu gesto: a0 comprar um carro, vocé entrou na érbita de toda essa gente; até ontem, vocé estava fora do alcance deles; hoje, seu transporte passou a ser, do ponto de vista econémico, simplesmente transcendental. *Vocé é um homem economi- camente importante — para os outros. Seu automével é de fato uma sociedade andnima, ‘da qual todos lucram, menos voce. Mas nfo fica nisso; vocé estar4 ainda girando numa constelacio menor, mitida mas nada desprezivel: a dos re- Utilidades - 29 cauchutadores, eletricistas, garagistas, lavadores, olheiros, guardas de transito, mecdnicos de esquina. Vocé pode ainda querer um motorista ou participar de alguma das varias mo- dalidades de seguros para automéveis. Em outros termos, vooé continua entrando pelo cano, No fim deste, ha ainda uma outra classe: a dos ladrées, seja organizada em sindi catos, seja a espécie de franco-puxadores. As perspectivas de suas relagdes com os diversos seto- res supracitados so as seguintes: voo8 pode ter sorte com © carro adquirido, mas pode também ter azar; as oficinas mecnicas, boas ou més, sempre Ihe arrancario um maximo de tutu com um minimo de esforco; as f4bricas de autopecas exploram os vendedores, os vendedores ap:lam para voct; nos postos de gasolina, a lubrificagiio de seu carro pode ser malfeita, 0 dleo pode nao ser trocado, na prépria gasolina vocé pode ser lesado; uma oficina pode também causar a sen motor um dano irremedifvel on trocar uma pega boa por uma pega ruim; o recauchutador pode dizer-Ihe que seus Pneus nao prestam mais, a fim de vender-lhe pneus novos, ¢ recauchutar os velhos para vendé-los a terceiros; 0 gara- gista e 0 mecdnico poderao de vez em quando dar uma voltinha no seu carro, estando vocé de sorte se a batida que ele der for de pouca monta; o mecanico de esquina, muitas vezes indispensavel, é prejuizo certo; o lavador jamais cumpre o trato de fazer o trabalho todos os dias; 0 guar- dador, se nao for muito bem gorjeteado, reserva para voc8 as piores vagas © manobra com 0 seu carro como se fosse um tanque de guerra; se vocé tem motorista, considere-se nao 0 proprietario, mas 0 sdcio dum automével: sio os motoristas 6s melhores filhos, sobrinhos, netos, pais, tios e prinioS do Brasil, estando a todo momento precisando de visitar esses parentes enfermos; o guarda de transit, se é ho- nesto, capricha na multa; caso contrario, eapricha na facada; 30 nn as companhias de seguros so ficgBes: no momento em que voce bateu, ou foi batido por um motorista que tenha seguro contra terceiros, hé de aprender dolorosamente que 0 valor dos contratos dessa natureza é muito relativo. Uma choldra, para dizer tudo. Restam ainda os ladrées ou os outros ladrdes: arrom- bamlhe © carro, carregam pneus sobressalentes, espelhos, ferramentas, calotas, aros, radio, antena, objetos deixados no portacluvas e, pior que tudo, os documentos. As vezes Tevam 0 carro todo; a policia the diré que nfo dispde de meios para prender o ladrao. Como proprietério de automével, voc® ainda tera rela- ges com outras pessoas; com 0 Servigo de Transito, que oderd, entre outras picardias, esvaziar seus pneus; com 08 Colegas motoristas, que preferem bater no seu para-lama a dar uma marcha 8 ré de meio metro; com pedestres e ciclis- tas impridentes; com as criangas diabélicas que riscam a sua pintura, sobretudo quando o carro est novinho em folha; fom os sujeitos que s6 dirigem de farol alto; com os bar- beiros de qualidades diversas, alguns mortais; com a juven- tade transviada; com parentes ¢ amigos, que 0 consideram tum sujeito excelente ou ordindrio, conforme sua subservién- cia & necessidade deles. Poderia escrever paginas e paginas sobre o automével que voc’ comprou ou vai comprar, mas fico por aqui: tenho Ge tomar um taxi ir & oficina para ouvir do mec&nico que © meu carro ainda nao esta pronto. De qualquer forma, ndo desanime com minha crOnica! paga a pena ter carro, pois ser pedestre, embora mais tranqiilo e mais barato, é ainda mais chato, A néo ser que voc tenha chegado, com Pascal, a suprema descoberta: a de que todos os males do homem ge devem a0 fato de ele nfo ficar quietinho no quarto. (P.M.c.)

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