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‘Segundo Tratado Sobre o Governo Ci CAPITULO IX DOS FINS DA SOCIEDADE POLITICA E DO GOVERNO 123, Se o homem ¢ to livre no estado de natureza como se tem dito, se ele é o senhor absoluto de sua prépria pessoa e de seus bens, igual aos maiores e siidito de ninguém, por que renunciaria a sua liberdade, a este império, para sujeitar-se a dominagao e ao controle de qualquer outro poder? A resposta é evidente: ainda que no estado de natureza ele tenha tantos direitos, 0 gozo deles & muito precério e constantemente exposto As invasdes de outros. Todos sao tio reis quanto ele, todos so iguais, mas a maior parte nao respeita estritamente, nem a igualdade nem a justiga, 0 que torna 0 gozo da propriedade que ele possui neste estado muito perigoso e muito inseguro. Isso faz. com que ele deseje abandonar esta condigo, que, embora livre, est repleta de medos e perigos continuos; e nao é sem razo que ele solicita e deseja se unir em sociedade com outros, que jé esto reunidos ou que planeja m se unir, visando a salvaguarda miitua de suas vidas, liberdades e bens, o que designo pelo nome geral de propriedade. 124. Por isso, 0 objetivo capital e principal da unigo dos homens em comunidades sociais e de sua submissio a governos é a preservagao de sua propriedade. O estado de natureza é carente de muitas condigbes. Em primeiro lugar, ele carece de uma lei estabelecida, fixada, conhecida, aceita e reconhecida pelo consentimento geral, para ser 0 padrao do certo ¢ do crrado ¢ também a medida comum para decidir todas as controvérsias, entre os homens. Embora a lei da natureza seja clara e inteligivel para todas as criaturas racionais, como os homens sio tendenciosos em seus interesses, além de ignorantes pela falta de conhecimento deles, nao estio aptos a reconhecer o valor de uma lei que eles seriam obrigados a aplicar em seus casos particulares. 125, Em segundo lugar, falta no estado de natureza um juiz. conhecido e imparcial, com autoridade para dirimir todas as diferencas segundo a lei estabelecida. Como todos naquele estado s4o ao mesmo tempo juizes & cexecutores da lei da natureza, e os homens sao parciais no julgamento de causa prépria, a paixao e a vinganga se arriscam a conduzi-los a muitos excessos e violéncia, assim como a negligéncia e a indiferenca podem também. iminuir seu zelo nos casos de outros homens. 126. Em terceiro lugar, no estado de natureza freqiientemente falta poder para apoiar ¢ manter a sentenga quando ela é justa, assim como para impor sua devida execugio. Aqueles que so ofendidos por uma injustica dificilmente se absterao de remedié-la pela forca, se puderem; esta resisténcia muitas vezes torna 0 castigo perigoso e fatal para aqueles que o experimentam, 127. Assim, apesar de todos os priviléglos do estado de natureza, a humanidade desfruta de uma condigdo ruim enquanto nele permanece, procurando rapidamente entrar em sociedade. E muito raro encontrarmos homens, em qualquer niimero, permanecendo um tempo apreciavel nesse estado. As inconveniéncias a que esto expostos pelo exercicio irregular e incerto do poder que cada homem possui de punir as transgressdes dos outros faz com que eles busquem abrigo sob as leis estabelecidas do governo e tentem assim salvaguardar sua propriedade. £ isso que dispée cada um a renunciar tdo facilmente a seu poder de punir, porque ele fica intelramente a cargo de ttulares nomeados entre eles, que deverdo exercé-lo conforme as regras que a comunidade ou aquelas pessoas por ela autorizadas adotaram de comuum acordo. Af encontramos a base juridica inicil ea genese dos poderes legislative e executivo, assim como dos governos e das préprias sociedades 128. No estado de natureza, sem falar da liberdade que tem de desfrutar prazeres inocentes, o homem. detém dois poderes. 0 primeiro 6 fazer o que cle acha conveniente para sua prépria preservacao e para aqucla dos outros dentro dos limites autorizados pela lei da natureza; em virtude desta lei, comum a todos, cada homem forma, com o resto da humanidade, uma tinica comunidade, uma iinica sociedade distinta de todas as outras 69 | CLUBE DO LIVRO LIBERAL criaturas. E, nio fosse a corrupgio e os vicios de individuos degenerados, ndo haveria nenhuma necessidade dos homens se separarem desta grande comunidade natural, nem fazerem acordos particulares para se associarem em associages menores e divididas. 0 outro poder que o homem tem no estado de natureza é 0 poder de punir os crimes cometidos contra aquela lei. A ambos ele renuncia quando se associa a uma sociedade politica privada, se posso chamé-la assim, ou particular, para se incorporar a uma comunidade civil separada do resto da humanidade. 129.0 primeiro poder, ou seja, aquele de fazer o que julga conveniente para a sua prépria preservacio ea do resto da humanidade, ele deixa a cargo da sociedade, para que ela 0 regulamente através de leis, na medida em que isto se faca necessdrio para a sua preservacao e a do restante daquela sociedade; estas leis da sociedade em muitos pontos restringem a liberdade que ele possufa pela lei da natureza 130, Ao segundo, o poder de punir, ele renuncia inteiramente e empenha sua forga natural (que antes podia empregar como bem entendesse, por sua propria autoridade, para fazer respeitar a lei da natureza) para ajudar o poder executivo da sociedade, conforme a lei deste exigir. Ele se encontra agora em um novo estado, onde vai desfrutar de muitas vantagens, gracas ao trabalho, a assisténcia e & companhia de outros na mesma comunidade, assim como a protecio da forga coletiva; ele também tem de renunciar a grande parte de sua liberdade natural de prover sas necessidades, em toda a medida em que o bem, a prosperidade e a seguranca da sociedade o exigir, o que no somente ¢ necessério, mas justo, visto que os outros membros da sociedade fazem 0 131. Mas, embora os homens ao entrarem na sociedade renunciem a igualdade, a liberdade e ao poder executive que possufam no estado de natureza, que é entdo depositado nas mos da sociedade, para que 0 legislativo deles disponha na medida em que o bem da sociedade assim o requeira, cada um age dessa forma apenas com 0 objetivo de melhior proteger sua liberdade e sua propriedade (pois nao se pode supor que nenhuma criatura racional mude suas condiges de vida para ficar pior), e no se pode jamais presumir que o poder da sociedade, ou 0 poder legislativo por ela institufdo, se estenda além do bem comum; ele tem a obrigacéo de garantir a cada um sua propriedade, remediando aqueles trés defeitos acima mencionados que tornam o estado de natureza tio inseguro e inquietante. Seja quem for que detenha o poder legislativo, ou 0 poder supremo, de ‘uma comunidade civil, deve governar através de leis estabelecidas e permanentes, promulgadas e conhecidas do povo, endo por meio de decretos improvisados; por juizes imparciais e integros, que irdo decidir as controvérsias conforme estas leis; e s6 deve empregar a forca da comunidade, em seu interior, para assegurar a aplicacio destas leis, e, no exterior, para prevenir ou reparar as agressGes do estrangeiro, pondo a comunidade ao abrigo das usurpagées e da invasio. E tudo isso nao deve visar outro objetivo senio a paz, a seguranca e o bem piiblico do povo. CAPITULO X DAS FORMAS DA COMUNIDADE CIV! 132, JA foi mostrado que quando os homens se unem pela primeira vez em sociedade, a maioria detém naturalmente todo 0 poder comunitario, que ela pode utilizar para de tempos em tempos fazer leis para a comunidade, ¢ para providenciar o cumprimento destas leis por funcionérios por ela nomeados: neste caso, a forma de governo é uma democracia perfeita; mas ela pode também colocar o poder de fazer as leis nas maos de um grupo selecionado de homens, e de seus herdeiros ou sucessores, ¢ entao trata-se de uma oligarquia; pode também colocé-1o nas maos de um sé homem, o que vem a ser uma monarquia; se ela o entrega a este homem e a seus herdeiros, é uma monarquia hereditéria; se o entrega a ele apenas em vida, e apés sua morte retorna a ela 0 ‘Segundo Tratado Sobre o Governo Ci poder exclusivo de nomear um sucessor, é uma monarquia eletiva. A partir desses elementos, a comunidade pode combinar e misturar formas de governo como melhor lhe parecer. Se a maioria comesa por confiar 0 poder legistativo a uma s6 pessoa, ou a varias, mas apenas durante sua vida, ou por um perfodo determinado apés 0 qual © poder supremo a ela retorna, uma ver que a comunidade o recuperou, pode dispor dele de novo e colocé-lo nas maos que Ihe aprouverem e assim constituir uma nova forma de governo, Como a forma de governo depende da atribuigio do poder supremo, ou seja, do legislative, ¢ impossivel conceber que um poder inferior possa prescrever a um superior, ou que um outro além do poder supremo faca as leis, a maneira de dispor o poder de fazer as leis determina a forma da comunidade civil 133, Deve estar sempre claro que o que eu entendo por comunidade social no é uma democracia ou qualquer forma de governo, mas uma comunidade independente que os latinos qualificam pela palavra civitas, & qual a expressao que melhor corresponde em nossa lingua é comunidade social (commonwealth), que designa, da forma mais adequada, este tipo de sociedade humana, 0 que nao acontece em inglés com as palavras comunidade ou cidade, pois pode haver comunidades subordinadas em um governo; e cidade, entre nés, tem um significado completamente diferente de comunidade civil. Por isso, para evitar ambigiiidade, solicito a permissio de ‘empregar a expressao comunidade civil nesse sentido, a qual constato ter sido utilizada pelo Rei James I, e que eu penso ser a acepeao exata; se alguém discordar, consinto que a substitua por um termo melhor. CAPITULO XI DA EXTENSAO DO PODER LEGISLATIVO 134. grande objetivo dos homens quando entram em sociedade é desfrutar de sua propriedade pacificamente e sem riscos, ¢ 0 principal instrumento e os meios de que se servem sao as leis estabelecidas nesta sociedade; a primeira lei positiva fundamental de todas as comunidades politicas é o estabelecimento do poder legislativo; como a primeira lei natural fundamental, que deve reger até mesmo o proprio legislativo, 6 a preservagao da sociedade e (na medida em que assim 0 autorize o poder ptiblico) de todas as pessoas que nela se encontram. 0 legislative no é 0 Gnico poder supremo da comunidade social, mas ele permanece sagrado e inalterdvel nas maos em que a comunidade um dia 0 colocou; nenhum edito, seja de quem for sua autoria, a forma como tenha sido concebido ou o poder que o subsidie, tem a forga e a obrigasdo de uma lei, a menos que tenha sido sancionado pelo poder legislativo que o piiblico escolheu e nomeou. Pois sem isso faltaria a esta lei aquilo que é absolutamente indispensdvel para que ela seja uma lei, ou seja, 0 consentimento da sociedade, acima do qual ninguém tem o poder de fazer leis*!; exceto por meio do seu préprio consentimento e pela autoridade que dele emana. Por isso, toda a obediéncia que pode ser exigida de alguém, mesmo em virtude dos vinculos mais solenes, termina afinal neste poder supremo e é dirigida por aquelas leis que ele adota; jamais um membro da sociedade, pelo efeito de um juramento que o ligaria a qualquer poder estrangeiro ou a qualquer poder subordinado na ordem interna, pode ser dispensado de sua obediéncia ao legislativo e agir por sua prépria conta; da mesma forma, também ndo é obrigado a qualquer obediéncia contraria as leis adotadas, ou que ultrapasse seus termos; seria ridiculo imaginar que um poder que nao é o poder supremo na sociedade, possa se impor a quem quer que seja. Como o poder legtimo de lepsar para comandarsociedades humarasinteaspertenc, come texaldase, casa ver qu um pice Ou um potenado a let, seja de que espe fr, exe or Sus pptiaincatva eno po delegagio expresses © pessoimenterecebia de Devs, ov por guaguer mandato qe emana desde omic do consent mento aque sobre os qi ele ep, #0 no melhor que uma era ania Porat, 2 is do tam valor Se No recaber a aprovato plea” (Hooker, El Pol h- see 10). "sabe est pote, deveras OaseNa! due tats hormera no tm por neturete 9 poder complete pufets pare comander rules Inenes ites, « por too a poteromce dapendar Ses orders be ‘gut see alguma manara nd convents neo Nis aceltamos ser conandados quando wsocadade da ue fatemos pare consent ela ppl, qualquer tras doconsentmente (hooker, | riedae parla, 2 estas mesmas Sociedade em sus | CLUBE DO LIVRO LIBERAL 135. 0 poder legislativo é o poder supremo em toda comunidade ‘mais pessoas, quer seja permanente ou intermitente. Entretanto, l, quer seja ele confiado a uma ou Primeiro: ele nao € exercido e é impossivel que seja exercido de maneira absolutamente arbitraria sobre as vidas e sobre as fortunas das pessoas, Sendo ele apenas a fusdo dos poderes que cada membro da sociedade delega & pessoa ou a assembléia que tem a fungo do legislador, permanece forgosamente circunscrito dentro dos mesmos limites que o poder que estas pessoas detinham no estado de natureza antes de se associarem em. sociedade e a ele renunciaram em pro! da comunidade social. Ninguém pode transferir para outra pessoa mais poder do que ele mesmo possui; e ninguém tem um poder arbitrério absoluto sobre si mesmo ou sobre qualquer outro para destruir sua propria vida ou privar um terceiro de sua vida ou de sua propriedade, Foi provado que um homem nao pode se submeter ao poder arbitrario de outra pessoa; por outro lado, no estado de natureza, 0 poder que um homem pode exercer sobre a vida, aliberdade ou a posse de outro jamais é arbitrario, reduzindo-se Aquele a ele investido pela lei da natureza, para a preservacdo de si préprio e do resto da humanidade; esta é a medida do poder que ele confia ¢ que pode confiar & comunidade civil, e através dela ao poder legislativo, que portanto nao pode ter um poder maior que esse. Mesmo considerado em suas maiores dimensdes, 0 poder que ela detém se limita ao bem piiblico da sociedade®2, 136. Segundo: O legislativo, ou autoridade suprema, nao pode arrogar para si um poder de governar por decretos arbitrérios improvisados, mas se limitar a dispensar a justica ¢ decidir os direitos do stidito através de leis permanentes ja promulgadas” e julzes autorizados e conhecidos. Como a lei da natureza nao é uma lei escrita, e nao pode ser encontrada em lugar algum exceto nas mentes dos homens, aqueles que a paixdo ou o interesse incitam a mal cité-la ou a mal empregé-la ndo podem ser tao facilmente convencidos de set erro na auséncia de um juiz. estabelecido. Por isso ela ndo serve, como deveria, para determinar os direitos e delimitar as propriedades daqueles que vivem sob sua submissao, especialmente onde cada um é também seu juiz, intérprete e executor, e além disso em causa prépria; aquele que tem o direito do seu lado ndo dispée, em geral, sendo de sua energia pessoal, que nao tem forga suficiente para defendé-lo das injusticas ou para punir os delingiientes. Para evitar esses inconvenientes que desorganizam suas posses no estado de natureza, os homens reuniram-se em sociedades em que eles dispéem da forga conjunta de toda a sociedade para proteger e defender suas propriedades, e que eles podem delimitar segundo regras permanentes que permitem a cada um saber o que Ihe pertence, Foi com esta finalidade que os homens renunciaram a todo o seu poder natural e o depuseram nas mos da sociedade em que se inseriram, e a comunidade social colocou poder legislative nas maos que lhe pareceram as mais adequadas; ela o encarregou também de governé-los segundo leis promulgadas, sem as quais sua paz, sua trangiilidade e seus bens permaneceriam na mesma precariedade que no estado de natureza, 137. 0 poder absoluto arbitrdrio, ou governo sem leis estabelecidas e permanentes, é absolutamente incompativel com as finalidades da sociedad ¢ do governo, aos quais os homens nao se submeteriam a custa da liberdade do estado de natureza, sendo para preservar suas vidas, liberdades e bens; e gragas a regras que definissem expressamente o direito e a propriedade. Nao se pode supor que eles pretendessem, caso tivessem um poder para isso, conceder a uma ou mais, pessoas um poder arbitrario absoluto sobre suas pessoas ¢ bens, ou colocar as forgas nas maos do magistrado as scedases plas repousam sobre dus undoes; 2 primera & uma nnar3o natural pela qual todo homer desl 2a Soll ea companhia: a segunda draco de ura comunidade social, a verdadera alma de um corpo poltico, do qual est rit anima e mantém wnidos os elementos @ os coloca em funcionamento ‘como deveriam, a menos que se presumisse que a vontade do home fosse intmamente obtinada,rebeide @ adverse a qualauerobediéncia sles sagradas de a atures; em resume, mene ue se presunsse que orem, consdeado po eu esplto deprvade, no Valse as Que um anal eNage pea Ss, a8 sho insttuldas. Oo contri, eas ndoseriam perfetas (Hooke, el. ol lI Se. 10). regulametos mais tos que regem sus apreci3, eta Ie 3 Deus eael da naturers portant, sles humanas devem estar 6 corde com ses ers da ratrara en cotter neshuma lei postva aa fr las esto ml feas” (ooker el ol, la see) “Corsttange’ os hoes a aos FReonverentes pareceirecional” (i.e), ‘Segundo Tratado Sobre o Governo Ci para que ele arbitrariamente fizesse valer sua vontade sobre eles. Isto significaria colocarem-se em uma situacio pior que no estado de natureza, onde tinham a liberdade de defender seus direitos contra as injustigas dos outros ese encontravam em igualdade de forcas para manté-Ios contra as tentativas de individuos isolados ou de grupos rnumerosos. Pois, supondo-se que eles houvessem se entregado ao poder e a vontade arbitrarios e absolutos de um legislador, estariam eles préprios desarmados e o teriam armado para que ele fizesse deles sta presa quando assim o quisesse. O individuo exposto ao poder arbitrario de um nico homem que tem cem mil sob suas ordens encontra-se em uma situacdo muito pior que aquele exposto ao poder arbitrério de cem mil homens isolados: ninguém pode garantir que a vontade daquele que detém tal comando é melhor que aquela de outros homens, embora sua forga seja cem mil vezes mais forte. Por isso, seja qual for a forma de comunidade civil a que se submetam, 0 poder que comanda deve governar por leis declaradas e aceitas, e nao por ordens extemporaneas e resolugdes imprecisas. A humanidade estar em uma condigio muito pior do que no estado de natureza se armar uum ou varios homens com o poder conjunto de uma multidao para forgé-los a obedecer os decretos exorbitantes © ilimitados de suas idéias repentinas, ou a sua vontade desenfreada ¢ manifestada no dltimo momento, sem que algum critério tena sido estabelecido para guid-los em suas ages e justificé-las. Pois todo 0 poder que 0 governo detém, visando apenas o bem da sociedade, nao deve seguir 0 arbitrério ou a sua vontade, mas leis estabelecidas e promulgadas; deste modo, tanto o povo pode conhecer seu dever e fica seguro e protegido dentro dos limites da Iei, quanto os governantes, mantidos dentro dos seus devidos limites, nao ficarao tentados pelo poder que detém ‘em stias mios e nao o utilizarao para tals propésitos nem por medidas desconhecidas do povo e contrérias a sua vontade, 138, Terceiro: 0 poder supremo nao pode tirar de nenhum homem qualquer parte de sua propriedade sem seu préprio consentimento, Como a preservasao da propriedade 6 o objetivo do governo, e a razdo por que 0 homem entrou em sociedade, ela necessariamente supde e requer que as pessoas devem ter propriedade, senio {sto faria supor que a perderam ao entrar em sociedade, aquilo que era seu objetivo que as fez se unirem em sociedade, ou seja, um absurdo grosseiro demais que ninguém ousaria sustentar. Visto que os homens que vivem. em sociedade sao proprietarios, tm o direito de possuir todos os bens que Ihe pertencem em virtude da lei da comunidade social, dos quais ninguém tem o direito de privé-los ou de qualquer parte deles, sem seu proprio consentimento; sem isso, eles nao sio proprietirios de nada. Eu realmente nio tenho nenhum direito de propriedade sobre aquilo que outra pessoa pode por direito tomar de mim quando Ihe aprouver, sem 0 meu consentimento, Por isso é um erro acreditar que o poder supremo ou legislativo de qualquer comunidade social possa fazer o que ele desejar, e dispor arbitrariamente dos bens dos stiditos ou tomar qualquer parte delas como bem entender. Isso ndo deve ser muito temido em governos em que o legislativo consiste inteiramente, ou em. parte, de assembléias de composicao varidvel, e cujos membros, quando elas sao dissolvidas, retornam a condigao de siiditos e estdo sujeitos, da mesma forma que o restante das pessoas, as leis comuns de seu pais. Mas em governos em que o poder legisiativo reside em uma assembléia permanente ou em um tinico homem, como nas ‘monarquias, pode-se sempre recear que eles creiam ter um interesse distinto do resto da comunidade e entio sejam capazes de aumentar suas préprias riquezas ¢ seu poder, tomando do povo o que mais Ihes convier. Pois a propriedade do homem sé esta absolutamente segura se houver leis boas e justas que estabelecam os limites entre ela e aquelas de seus vizinhos, e se aquele que comanda estes siiditos nao tiver poder para tomar de qualquer individuo a parte que lhe aprouver de sua propriedade, usando-a e dela dispondo a seu bel-prazer. 139, Como jé fol mostrado, seja quem for a pessoa em cujas maos esté depositado o governo, como este s6 Ihe foi confiado sob condicao e para um fim preciso, ou seja, que todos os homens podem continuar donos de seus bens com toda seguranga, 0 principe, o senado, ou seja quem for que tenha o poder de fazer as leis para a regulamentacao da propriedade entre os stiditos, jamais tem 0 poder de tomar para si o conjunto ou qualquer parte da propriedade dos stiditos sem seu proprio consentimento. Isto equivaleria a priva-los de toda propriedade. E para nos garantirmos que mesmo o poder absoluto, quando é necessério, nao é arbitrario apesar de absoluto, mas ha sempre razées que o limitam e finalidades que os circunscrevem, as mesmas que requereram. que em alguns casos ele fosse absoluto, nao temos de considerar senao a pratica usual da disciplina militar. A preservagio do exército, que deve garantir aquela de toda a comunidade social, requer uma absoluta obediéncia as ordens de todo oficial superior, e quem desobedecer ou contestar os mais perigosos ou os mais imoderados dentre eles merece a morte; entretanto, o sargento, que poderia ordenar um soldado a marchar até a boca de um. canhao, ou a ficar em uma brecha onde sua morte é quase certa, nao pode ordenar que aquele soldado Ihe d@ um. 73 | CLUBE DO LIVRO LIBERAL centavo de seu dinheiro; nem o general, que o condena morte por desertar de seu posto ou por desobedecer as ordens mais desesperadas, pode, com todo o seu poder absoluto de vida e de morte, dispor de um niquel dos bens daquele soldado ou se apoderar do mais insignificante dos objetos que lhe pertence; entretanto, poderia Ihe dar qualquer ordem e mandar prendé-lo a menor desobediéncia. Porque tal obediéncia cega é necesséria aos objetivos para os quals o chefe militar tem set poder, ou seja, a preservacdo do restante das pessoas; mas 0 direito de dispor de seus bens se situa em outro plano completamente diferente. 140. £ verdade que os governos nao poderiam subsistir sem grandes encargos, eé justo que todo aquele que desfruta de uma parcela de sua protesao contribua para a sua manutengao com uma parte correspondente de seus bens. Entretanto, mais uma vez é preciso que ela mesma dé seu consentimento, ou seja, que a maioria consinta, seja por manifestacio direta ou pela intermediagao de representantes de sua escolha; se qualquer um reivindicar 0 poder de estabelecer impostos ¢ impé-los ao povo por stta prépria autoridade e sem tal consentimento do povo, est assim invadindo a lei fundamental da propriedade e subvertendo a finalidade do governo, Como posso me dizer proprietario de algo que outra pessoa possa por direito tomar quando bem entender? 141. Quarto: 0 poder legislativo nao pode transferir para quaisquer outras maos o poder de legislar; ele detém apenas um poder que o povo the delegou e nao pode transmiti-lo para outros, S6 0 povo pode estabelecer a forma de comunidade social, o que faz instituindo o poder legislativo e designando aqueles que devem exercé-lo. E quando o povo disse que queremos nos submeter a regras e ser governados por leis feitas por tais pessoas, seguindo tais formas, ninguém pode dizer que outras pessoas diferentes legislarao por elas; nem o povo pode ser obrigado a obedecer quaisquer leis, exceto aquelas promulgadas por aqueles a quem ele escolheu e autorizou para fazer as leis em seu nome. 142, Bis 0s limites que impée ao poder legislativo de toda sociedade civil, sob todas as formas de governo, amissio de confianca da qual ele foi encarregado pela sociedade e pela lei de Deus e da natureza, Primeiro: Ele deve governar por meio de leis estabelecidas e promulgadas, e se abster de modificé-las em casos particulares, a fim de que haja uma tinica regra para ricos e pobres, para o favorito da corte e o camponés que conduz 0 arado, Segundo: Estas leis s6 devem ter uma finalidade: 0 bem do povo. Terceiro: O poder legislative nao deve impor impostos sobre a propriedade do povo sem que este cexpresse seu consentimento, individualmente ou através de seus representantes. E isso diz respeito, estritamente falando, s6 aqueles governos em que o legislative ¢ permanente, ou pelo menos em que 0 povo nao tenha reservado uma parte do legislativo a representantes que eles mesmos elegem periodicamente. Quarto: O legislative no deve nem pode transferir para outros o poder de legislar, e nem também deposité-lo em outras maos que nao aquelas a que 0 povo o confiou. CAPITULO XII DOS PODERES LEGISLATIVO, EXECUTIVO E FEDERATIVO DA COMUNIDADE CIVIL 143. O poder legislative 6 aquele que tem competéncia para prescrever segundo que procedimentos a forsa da comunidade civil deve ser empregada para preservar a comunidade e seus membros. Entretanto, como ‘Segundo Tratado Sobre o Governo Ci basta pouco tempo para fazer aquelas leis que sero executadas de maneira continua e que permanecerio indefinidamente em vigor, nao é necessério que o legislativo esteja sempre em funcionamento se nao hd trabalho a fazer; e como pode ser muito grande para a fragilidade humana a tentagao de ascender ao poder, ndo convém. {que as mesmas pessoas que detém o poder de legislar tenham também em suas maos o poder de executar as leis, pois elas poderiam se isentar da obediéncia as leis que fizeram, e adequar a let a sta vontade, tanto no momento de fazé-la quanto no ato de sua execugio, e ela teria interesses distintos daqueles do resto da comunidade, contrarios & finalidade da sociedade e do governo. Por isso, nas comunidades civis bem organizadas, onde se atribui ao bem comum a importancia que ele merece, confia-se o poder legislativo a varias pessoas, que se retinem como se deve e esto habilitadas para legislar, seja exclusivamente, seja em conjunto com outras, mas em. seguida se separam, uma vez realizada a sua tarefa, ficando elas mesmas sujeitas as leis que fizeram; isto estabelece um vinculo novo e préximo entre elas, o que garante que elas facam as leis visando o bem piiblico. 144, Mas como as leis que sao feitas num instante e um tempo muito breve permanecem em vigor de ‘maneira permanente e durdvel e € indispensavel que se assegure sua execusao sem descontinuidade, ou pelo menos que ela esteja pronta para ser executada, é necessdrio que haja um poder que tenha uma existéncia continua e que garanta a execusao das leis A medida em que sao feitas e durante o tempo em que permanecerem. em vigor, Por isso, freqientemente o poder legislativo e o executive ficam separados. 145, Em toda comunidade civil existe um outro poder, que se pode chamar de natural porque corresponde ao que cada homem possufa naturalmente antes de entrar em sociedade. Mesmo que os membros de ‘uma comunidade civil permanecam pessoas distintas em suas referéncias miituas e como tais sejam governados pelas leis da sociedade, em referéncia ao resto da humanidade eles formam um corpo iinico, ¢ este corpo permanece no estado de natureza em referéncia ao resto da humanidade, como cada tum de seus membros estava anteriormente Isso explica que as controvérsias que surgirem entre qualquer homem da sociedade e aqueles que a ela nao pertencem sejam administradas pelo piiblico e que um dano causado a um membro daquela comunidade implica em que todo o conjunto seja obrigado a reparar. Assim, sob este ponto de vista, a comunidade toda é um corpo tinico no estado da natureza com respeito a todos os outros estados ou a todas as, outras pessoas que nao pertengam a sua comunidade. 146, Este poder tem entao a competéncia para fazer a guerra e a paz, ligas e aliangas, e todas as transagdes com todas as pessoas e todas as comunidades que estio fora da comunidade civil; se quisermos, podemos chama- lo de federativo, Uma vez que se compreenda do que se trata, pouco me importa o nome que receba 147, Estes dois poderes, executivo ¢ federativo, embora sejam realmente distintos em si, 0 primeiro compreendendo a execugdo das leis internas da sociedade sobre todos aqueles que dela fazem parte, e 0 segundo implicando na administragao da seguranca e do interesse do ptiblico externo, com todos aqueles que podem Ihe trazer beneficios ou prejuizos, estao quase sempre unidos, E ainda que este poder federativo, faca ele uma boa ou ‘ma administragio, apresente uma importancia muito grande para a comunidade civil, ele se curva com muito menos facilidade a diregao de leis preexistentes, permanentes ¢ positivas; por isso 6 necessadrio que cle scja deixado a cargo da prudéncia e da sabedoria daqueles que o detém e que devem exercé-lo visando o bem piiblico. As leis que dizem respeito aos stiditos entre eles, uma ver. destinadas a reger seus atos, é melhor que os precedam. Mas a atitude adotada diante dos estrangeiros depende em grande parte de seus atos e da flutuacao de seus projetos e interesses; portanto, devem ser deixados em grande parte & prudéncia daqueles a quem foi confiado este poder, a fim de que eles 0 exergam com o melhor de sua habilidade para o beneficio da comunidade civil 148. Embora, como eu disse, os poderes executivo e federativo de cada comunidade sejam realmente distintos em si, dificilmente devem ser separados e colocados ao mesmo tempo nas mos de pessoas distintas; € como ambos requerem a forsa da sociedade para o seu exercicio, é quase impraticavel situar a forga da comunidade civil em méos distintas e sem elo hierarquico; ou que os poderes executivo e federativo sejam | CLUBE DO LIVRO LIBERAL confiados a pessoas que possam agir separadamente; isto equivaleria a submeter a forga piiblica a comandos diferentes e resultaria, um dia ou outro, em desordem e ruina. CAPITULO XIII DA HIERARQUIA DOS PODERES DA COMUNIDADE CIVIL 149, Em uma sociedade politica organizada, que se apresenta como um conjunto independente e que age segundo sua prépria natureza, ou seja, que age para a preservacao da comunidade, s6 pode existir um poder supremo, que é o legislativo, ao qual todos os outros esto e devem estar subordinados; nao obstante, como 0 legislativo € apenas um poder fiduciério e se limita a certos fins determinados, permanece ainda no povo um. poder supremo para destituir ou alterar o legislative quando considerar o ato legislativo contrério 4 confianca que nele depositou; pois todo poder confiado como um instrumento para se atingir um fim é limitado a esse fim, e sempre que esse fim for manifestamente negligenciado ou contrariado, isto implica necessariamente na retirada a confianga, voltando assim 0 poder para as maos daqueles que 0 confiaram, que podem deposité-lo de novo onde considerarem melhor para sua protecao e seguranga. Deste modo, a comunidade permanece perpetuamente investida do poder supremo de se salvaguardar contra as tentativas ¢ as intengdes de quem quer que seja, mesmo aquelas de seus préprios legisladores, sempre que eles forem to tolos ou tao perversos para preparar e desenvolver projetos contra as liberdades e as propriedades dos stiditos. Nenhum homem, nenhuma sociedade humana, tem o poder de abandonar sua preservacao, conseqiientemente os meios de garanti-la, a vontade absoluta de um terceiro e a sua dominagao arbitraria; e sempre que algum individuo pretender reduzi-los a uma condi¢ao de escravidao, devem ter o direito de preservar este bem inaliendvel e de se livrarem daquele que invade esta lei fundamental, sagrada e inalterdvel de autopreservacdo, que foi a causa de sua associagao, Partindo- se deste principio, pode-se dizer que a comunidade tem sempre o poder supremo, mas contanto que nao seja considerada submissa a qualquer forma de governo, porque © povo jamais pode exercer este poder antes do governo ser dissolvido. 150. Em todo caso, enquanto o governo subsistir, o legislativo é o poder supremo, pois aquele que pode legislar para um outro Ihe é forcosamente superior; e como esta qualidade de legislatura da sociedade s6 existe em virtude de seu direito de impor a todas as partes da sociedade e a cada um de seus membros leis que lhes prescrevem regras de conduta e que autorizam sua execucio em caso de transgressao, o legislative forgosamente supremo, e todos os outros poderes, pertencam eles a uma subdivisdo da sociedade ou a qualquer um de seus membros, derivam dele e Ihe so subordinados. 151. Em algumas comunidades civis em que o legislativo nem sempre existe, ¢ 0 executivo esta investido ‘em uma tinica pessoa, que tem também uma participacao no legislativo, aquele personagem «nico em um sentido bem tolerdvel pode ser também chamado de supremo. Isto nao significa que ele detenha em si todo o poder supremo, que é aquele de legislar, mas porque detém em si a execugao suprema de onde todos os magistrados inferiores derivam todos os seus varios poderes subordinados, ou pelo menos grande parte deles; além disso, nao existindo poder legislativo que Ihe seja superior, porque no se pode fazer nenhuma lei sem seu consentimento e ele jamais concordaria em se submeter a outra parte do legislativo, neste sentido ele 6 realmente supremo. Nao obstante, deve-se observar que, embora lhes sejam prestados juramentos de obediéncia e fidelidade, estes nao Ihe sio dirigidos como legislador supremo, mas na sua qualidade de executor supremo de uma lei que é obra de um. poder que ele detém em conjunto com outros; como a submissao consiste na obediéncia conforme as leis, quando ele as infringe nio tem direito & obediéncia nem pode reivindicé-la, a nao ser em razao de sua qualidade de personagem piiblico investido da autoridade da lei e que se apresenta como a imagem da comunidade civil, como seu fantasma ou como seu representante, impulsionado pela vontade da sociedade, declarada em suas leis; ele nao tem qualquer vontade ou qualquer poder, exceto aquele da lei. Mas quando cle deixa de lado esta ‘Segundo Tratado Sobre o Governo Ci representaso, esta vontade publica, e age por vontade prépria, ele se degrada e no passa de um individuo isolado, sem poder e sem vontade, e a partir dai os membros s6 devem obediéncia & vontade pitblica da sociedade. 152, Quando o poder executivo é depositado nas maos de uma (inica pessoa que também tem uma participagio no legislativo, esta visivelmente subordinado a este e dele depende, podendo ser a vontade substitufdo ou alterado; nao é entao 0 poder executivo supremo que esta isento de subordinacao, mas o poder executivo supremo investido em uma s6 pessoa, que, tendo uma participagao no legislativo, nao est subordinado a nenhum legislativo distinto e superior nem tem de Ihe prestar contas, salvo na medida em que ele mesmo 0 aceite e consinta; neste caso, pode-se entdo concluir que ele 6 esté subordinado ao que julga bom, o que seré ‘muito pouco. Quanto aos outros poderes ministeriais e subordinados de uma comunidade civil, nem precisamos falar a respeito, pois eles se multiplicam com uma variedade tao infinita nos diferentes costumes e constituigdes de comunidades civis distintas, que & impossivel a referéncta individual a todos eles. No que lhes diz respeito, basta destacar uma tinica caracteristica, essencial para o nosso propésito, ou seja, que nenhuma dentre elas se estenda além da competéncia que Ihe foi delegada em virtude de uma concessao e um mandato expressos e todas deve prestar contas a algum outro poder na comunidade civil. 153. Nao necessario nem mesmo conveniente, que o poder legislativo seja permanente. Mas a existéncia do poder executivo é absolutamente necessaria, pofs nem sempre hé a necessidade de serem feitas novas leis, mas é sempre necesséria a aplicagao das leis existentes, Mesmo que o poder legislativo deposite em outras mos a execusio das leis por ele feitas, ainda mantém o poder de retomé-lo em caso de necessidade e de punir uma administracdo ilegal. 0 mesmo ocorre com 0 poder federativo, que, juntamente com 0 executivo, é auxiliar e subordinado ao legislativo; este, como ja mostramos, é 0 poder supremo em uma comunidade civil organizada. Supie-se, também neste caso, que o legislativo ¢ composto de varias pessoas (pois se fosse uma tinica pessoa, nao podia ser permanente, e por isso, sendo supremo, teria naturalmente 0 poder executivo supremo e também 0 legislative) que podem se reunir ¢ legislar nas ocasides determinadas por sua constituicao fundamental, na data que clas isoladamente fixarem ou ainda quando melhor lhes parecer, no caso de nado haver uma data predeterminada para isso ou outra forma prescrita de convoci-lo. Como 0 povo confiou 0 poder supremo a estas pessoas, elas sempre permanecem investidas dele e podem exercé-lo quando assim o desejarem, a menos que por sua constituigo fundamental estejam limitadas a determinadas ocasides, ou elas ndo tenhiam fixado uma data por um ato de seu poder supremo; em qualquer dos casos, quando chega a data marcada elas tém 0 direito de se reunir e retomar sua atividade. . Se 0 poder legislative ou qualquer de seus elementos se compuser de representantes que 0 povo escolheu por um periodo determinado, e que depois deste retornam para o estado original de siiditos e sé tm participacdo no legislativo se forem escolhidos outra vez, é preciso também que 0 povo proceda a essa escolha, seja em ocasides predeterminadas ou quando for para isso convocado; neste tiltimo caso, o poder de convocar 0 legislativo esta ordinariamente depositado nas maos do executivo, e tem uma destas duas limitagdes com respeito ocasido: que a constituicao fundamental requeira sua reunido e atuagao a intervalos determinados, ¢ o poder executivo entio se contenta apenas com um papel auxiliar, que consiste em dar as diretrizes para sua eleigio e Teunio nas devidas formas; ou que se deixe a cargo de seu bom-senso requisité-lo por novas cleigdes quando as ‘ocasides ou as exigéncias do piblico requererem a emenda de antigas leis ou a criagdo de novas, ou ainda quando forem exigidas solugdes ou formas de prevenir de quaisquer inconvenientes de sua responsabilidade ou que ameacem 0 povo. 155. Pode-se questionar aqui o que aconteceré se o poder executivo, que detém a forga da comunidade civil, se utilizar dessa forca para impedir que o poder legislativo se reina e atue, quando a constitui¢io fundamental ou as necessidades da vida puiblica o requererem? Eu respondo que o fato de se servir da forca contra 0 povo sem autoridade e indo de encontro a confianga depositada no autor de ato equivale, por si s6, a entrar em guerra contra 0 povo, que tem o direito de restaurar seu poder legislativo no exercicio de seu poder. Se © povo instituiu um legislativo, é porque ele exerce o poder de fazer leis, seja a uma data precisa ¢ fixada de antemio, seja em caso de necessidade; cada vez que uma forca qualquer impede o poder legislativo de prestar | CLUBE DO LIVRO LIBERAL sociedade um servico assim necessério, o povo, cuja seguranca e preservacio estiio em jogo, tem o direito de destitut-lo pela forga. Em todos os estados e em todas as condigdes, o verdadeiro recurso contra a forga exercida sem autoridade é opor-se a ela pela forga. 0 uso da forga sem autoridade sempre coloca quem a usa em um estado de guerra, como o agressor, o que Ihe permite receber como resposta o mesmo tratamentto. 156. 0 poder de reunir e destituir 0 legislativo, confiado ao executivo, nao concede a este nenhuma superioridade, mas define uma missdo de confianga da qual ele é encarregado para garantir a seguranga das pessoas em um caso em que a incerteza e a mutabilidade dos problemas humanos nao podem se acomodar dentro de uma regra fixada, Era impossivel aos primeiros arquitetos dos governos, mesmo que tentassem prever 0 futuro, exercer sobre os acontecimentos futuros um controle suficiente para serem capazes de fixar de antemao e definitivamente 0 momento da eleigao periédica e a duragao das reunides do legislativo, de uma maneira judiciosa e correspondendo exatamente a todas as necessidades da comunidade civil; a melhor solugao que se conseguiu encontrar para este mal foi confiar no bom-senso de um personagem que estaria sempre presente © cuja tarefa seria velar pelo bem piblico, Se o poder legislativo se reunisse a breves intervalos e prolongasse suas sessdes sem necessidade, isso ndo podia ser sendo oneroso para o povo, e necessariamente provocaria inconvenientes mais perigosos; por outro lado, os acontecimentos por vezes sofriam bruscamente uma tal alteragao que era preciso apelar para a sua ajuda, Qualquer atraso em sta convocacao podia comprometer a seguranca piblica; e as vezes, também, havia tanto a fazer que o tempo limitado de suas sessdes corria o risco de ser muito curto para a execucao da tarefa ¢ privar 0 povo do beneficio que somente uma deliberapao madura poderia proporcionar, Nesse caso, o que poderia ser feito para impedir que a regularidade dos intervalos que separam as sessbes do legislativo e a fixacao da duracio de seus trabalhos nao expusessem a comunidade cedo ou tarde a algum perigo iminente aqui ow ali, sendo confiando na prudéncia de um personagem cuja presenca constante e seu conhecimento dos negécios ptiblicos tornasse capaz do uso desta prerrogativa para o bem piiblico? E que melhor escolha que a de confid-la a quem jé estava encarregado da execugao das leis para o mesmo fim? Assim, supondo-se que a regulamentacdo das ocasides para as reunides e sessdes do legislativo nao seria estabelecida pela constituicao fundamental, ela recairia naturalmente nas maos do executivo, nao como um poder arbitrario e dependente do seu bel-prazer, mas com 0 encargo de sempre exercer esta funcdo visando o interesse do piiblico, segundo as exigéncias do momento e a evolucéo dos acontecimentos. Quanto a determinar que métodos apresentam menos inconveniéncias, se a periodicidade das sessdes do legislativo, a liberdade deixada a0 principe de convocé-lo ou talvez. uma mistura de ambos, ndo cabe a mim aqui inquirir, mas apenas mostrar que, embora o poder executivo possa ter a prerrogativa de convocar e dissolver tais convencées do legislativo, ainda assim nao lhe é superior. 157, As coisas do mundo seguem um fluxo to constante que nada permanece muito tempo no mesmo estado. Assim, 0 povo, as riquezas, o comércio, o poder, mudam suas estacées, cidades poderosas e présperas se transformam em rufnas e se transformam em locais abandonados ¢ desolados, enquanto outros locais ermos se transformam em paises populosos, repletos de riquezas e habitantes, Entretanto, nem sempre a evolucio segue tum ritmo igual e o interesse privado freqiientemente mantém costumes e privilégios depois de desaparecida a sua razio de ser, e em seguida, em governos em que o poder legislativo se compe em parte de representantes escolhidos pelo povo, esta representacio se torna muito desigual e desproporcional as razées que a haviam de inicio insttuido. Para ver a que absurdos grossciros nos arriscamos a chegar ao permanecermos fiéis ao costume, basta constatar que o simples nome de uma cidade da qual ndo restam nem mesmo as ruinas, e onde no méximo encontramos um redil como habitagdo e no méximo um pastor como habitante, pode enviar tantos representantes 4 grande assembléia dos legisladores quanto um condado inteiro que possui uma numerosa populaso e inimeras riquezas. Diante disso os estrangeiros ficam estupefatos e todo mundo admite que é preciso encontrar uma solugao; mas a maioria acha dificil encontrar uma, pois como a constituigao do legislativo é ato fundamental e supremo da sociedade, antecedente em sia todas as leis positivas e inteiramente dependente do povo, nenhum poder inferior pode modificé-lo. Em um governo como este de que falamos, em que 0 povo, apés ter estabelecido o legislative, nfo tem mais o poder de gir enquanto 0 governo subsistir, o mal parece sem solugao. ‘Segundo Tratado Sobre o Governo Ci 158. A regra salus populi suprema lex é certamente tao justa e fundamental que aquele que a segue com sinceridade nao corre um risco grande de errar. Por isso, se 0 executivo, que tem 0 poder de convocar 0 legislativo, considerar a representagdo em suas proporcées verdadeiras e nao suas modalidades acidentais, e se regulamentar pela razo objetiva e nao pelos antigos costumes para determinar 0 niimero dos eleitos de cada uma das localidades que enviam representantes, privilégio ao qual uma parte do povo, mesmo associado, nao poderia pretender senao na medida de sua contribuigao ao bem pablico, esta ecisio nao tem de modo algum por efeito a instauragdo de um poder legislative novo; ao contrario, ela restaura o poder legislativo antigo, 0 verdadeiro, e corrige os defeitos que, com o passar do tempo, vao sendo introduzidos de maneira insensivel, mas inevitAdvel. Como é interesse e intenco do povo ter uma representacao honesta e justa, aquele que realiza melhor este ideal se conduz, certamente, como o fundador do governo e como seu amigo, e nao poderia deixar de obter 0 consentimento ¢ a aprovagio da comunidade. Uma vez que a prerrogativa nao é sendo um poder nas mios do principe para promover 6 bem piiblico naqueles casos que, dependendo de acontecimentos imprevistos © incertos, teria sido muito perigoso submeter a leis imperativas e imutdvets, Todo ato que tem manifestamente por objetivo o bem do povo e 0 estabelecimento do governo sobre suas verdadeiras bases, é e sempre seré uma prerrogativa justa. 0 poder de criar novas coletividades e por conseguinte novos representantes, supde que 0 niimero de representantes pode variar com 0 tempo, que localidades que nio tinham o direito de se fazer representar podem adquiri-lo, e outros, que o possuiam, podem perdé-lo se vém a se tornar muito insignificantes para merecer esse privilégio, Nao é a transformagao da situagao atual, provocada talvez pela corrupeao ou pelo declinio, que causa um dano sério ao governo, mas sua tendéncia para prejudicar ou oprimir o povo, e de isolar uma parte ou uma facra0 dele, para discriminé-la ¢ sujeité-la injustamente ao resto. Tudo 0 que nao pode ser reconhecido como vantajoso para a sociedade e para 0 povo em geral segundo critérios justos e duradouros encontrar sempre em si préprio sua justificativa; e sempre que o povo escolher seus representantes por meio de ‘medidas justas ¢ inegavelmente eqiitativas, convenientes a estrutura original do governo, nao se pode duvidar de que foram a vontade e o ato da sociedade que o permitiram ou propuseram fazé-l. CAPITULO XIV DA PREROGATIVA. 159, Quando os poderes legislativo e executivo se encontram em mos distintas (assim como em todas as ‘monarquias moderadas e governos bem estruturados), 0 bem da sociedade exige que varias coisas fiquem a cargo do discernimento daquele que detém o poder executivo, Como os legisladores sao incapazes de prever e prover leis para tudo o que pode ser dtil & comunidade, o executor das leis, possuindo o poder em suas maos, tem pela lei ‘comum da natureza o direito de utilizé-lo para o bem da sociedade em casos em que a lei civil nada prescreve, até que 0 legislativo possa convenientemente se reunir para preencher esta lacuna, Ha muitas coisas em que a lei nao tem meios de desempenhar um papel ttil; é preciso entio necessariamente deixd-las a cargo do bom-senso daquele que detém nas maos o poder executivo, para que ele as regulamente segundo o exigirem o bem piiblico e suas vantagens, Mais que isso, convém as vezes que as préprias leis se retraiam diante do poder executivo, ou antes, diante da lei fundamental da natureza e do governo, ou seja, que tanto quanto possivel todos os membros a sociedade devem ser preservados, Muitos acidentes podem ocorrer quando a aplicacao estrita e rigida da lei pode prejudicar (como, por exemplo, abster-se de demolir a casa de um homem que nada fez de mal, para deter uum incéndio, quando a casa do vizinho esta queimando); as vezes, por uma aco que pode merecer absolvigao ¢ recompensa, um homem pode tombar sob o golpe da lei, que no faz. distingdo das pessoas; convém, ento, que os governantes tenham poder de atenuar a severidade da lei e perdoar alguns contraventores, pois 0 governo tem. por finalidade garantir a preservacao de todos, na medida do possivel, ainda que se poupem os culpados quando se pode provar que os inocentes nao foram prejudicados. 160. Este poder de agir discricionariamente em vista do bem piiblico na auséncia de um dispositive legal, As vezes mesmo contra ele, é o que se chama de prerrogativa. Em alguns governos, 0 poder encarregado de 79

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