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2 “Massa” e as criadas Poder e desejo na metrépole imperial Diga-me, Sécrates, vocé teve uma baba? Platio © EXPLORADOR URBANO A 4 DE JULHO de 1910, articulado com o resto da Fleet Street, 0 Daily Mirror trombeteava a descoberta de um escandaloso casamento entre classes: ROMANCE DO CASAMENTO DO ADVOGADO — Nova luz na notivel revelagio do testamento — esposa e criada — versos que defendem sua eseo= Jha contra a critica do mundo’. . A ocasifo para 0 excitado alvorogo foi “a revelacdo do notivel testa~ mento” do falecido Arthur J. Munby, conhecido advogado e homem de letras vitoriano (1828-r910). Em seu testamento, Munby anunciava ao mundo que por 45 anos amara Hannah Cullwick, “criada nascida em Shifnal’, e que por 36 desses anos Cullwick fora “sua querida e amada esposa e criada””. Por ordem de Munby, e temendo revelacdes escanda» 3. Derek Hudson, Mundy, Man of Two Worlds: The Life and Diaries of Arthur J. Munby, 813» 1910 (Cambridge: Gambit, 1974), p. 437. Ver também Michael Hiley, Vistorian Working Women: Portraits from Life (Boston: David R. Godine, 1979). . Munby, Diary”, in Hudson, Munty..., p. 436. Couro imperial losas, sua farnilia trancou a chave seus documentos privados por 40 anos. Em 1950, uma abertura cerimonial das caixas de documentos no Trinity College finalmente revelou, como o Mestre para a Imprensa formulou secamente: “didrios e poemas de Mr. Munby e cartas para ele de sua mulher. Também fotografias e estudos de mulheres trabalhadoras de fins do século XIX, em cujas condi¢ées de vida Mr. Munby tinha interesse sociolégico”?. Mas 0 contetido dos volumosos documentos de Munby — um diario Secreto, centenas de paginas de cartas, numerosos esbocos e fotografias de mulheres — revela uma obsessio compulsiva pelo espetaculo das mulheres trabalhadoras que era consideravelmente mais e consideravel- mente menos que socioldgica. De fato, os documentos secretos sao elo- quentes de uma tentativa incansavel de negociar uma das mais profun- das contradisdes na formacio social da vida da classe média vitoriana: a associacdo peculiarmente vitoriana ¢ peculiarmente neurética entre t _balho e sexualidade. A curiosa vida de Arthur Munby me permite construir 0 seguinte argumento: na metrépole urbana, algumas das ambiguidades formativas de género ¢ classe eram administradas e policiadas pelos discursos sobre 4 raga, de tal forma que a iconografia do imperialismo entrava na iden- tidade da classe média e da alta classe média brancas com forca funda- mental, ainda que contraditéria. As estranhas peregrinacées de Munby me permitem, ademais, explorar as fronteiras incertas de género e classe, Privado e piblico, casamento e mercado e, ao fazé-lo, investigar algumas das relacdes formativas entre imperialismo, industria e 0 culto da do- mesticidade. Fico particularmente intrigada pelas relagdes ocultas entre psicandlise ¢ histéria social, ocultagao vividamente encarnada na figura liminar da baba vitoriana. A-vida de Munby oferece uma parabola exem- plar para os contornos de poder e desejo na metrépole imperial. O espeticulo voyeuristico das mulheres trabalhando era a obsessao da vida de Munby. Durante quase 60 anos, uma necessidade obscura 0 levava a longas perambulagdes noturnas pelas ruas de Londres, condu- 3. Idem, op. cit, p. 438. 124 omit | _ “Massa” ¢ as criadas ~ Poder e desejo na metrépole imperial zindo-o a pordes fedorentos, as profundezas esquélidas dos music halls a hospitais delegacias de policia, através de mercados e docas miseré- veis — inspecionar as estranhas mulheres da sujeira e da lida, as criadas nos sdtios € as serventes, leiteiras, prostitutas e vendedoras ambulantes de uma Inglaterra que se industrializava. Munby perseguia pontes, par- ticularmente a Ponte de Londres, que o atraia libidinosamente por ser “a grande via publica das jovens trabalhadoras”, onde diariamente as ven~ dedoras de frutas e ensacadoras, frageis e delicadas sob pilhas de sacos, faziam seu trabalhot. Ele frequentava os circos, cativado pelas acrobatas seminuas, que pareciam meninos (Figura 2.1). Ao longo de sua vida, atra- vessou milhares de quilometros para visitar aldeias remotas, minas de car- vao ¢ areas costeiras, em busca de novas formas de “trabalho bruto ferni- nino” (Figuras. 2.2, 2.3). Lia com avida absorgo censos governamentais € relatérios sobre as condig des das trabalhadoras ¢ encheu centenas de paginas com seus encontros e descobertas. Aonde quer que fosse, Munby Figura 2.1~O encanto da ambiguidade de ginero. 4 Idem, op. cit., p. 99. 125 Couro imperial Figura 23 - O arquivo vivente do trabalho feminino. 126 moe te i | | | t | } | | | | | t “Massa” eas criadas - Poder e desejo na metrépole imperial abordava as trabalhadoras e as importunava, tocando-as, perguntando sobre seu trabalho, anotando sua aparéncia em detalhes minuciosos, es- bogando-as e fotografando-as como tipos, seguindo-as pelas ruas até suas casas para conceder-thes suas ateng6es filantrpicas nem sempre bem-vindas — todo o tempo parecendo inconsciente dos desequilibrios de poder que Ihe davam liberdade para intrometer-se em suas vidas. Mas eram precisamente esses desequilibrios de poder social que lhe per- mitiam seus prazeres compulsivos ¢ perpetuamente adiados. Ele era in- teiramente indiferente aos trabalhadores homens. Aos 31 anos, Munby pés em palavras a fome peculiarmente sem limi- tes e, podemos acrescentar, peculiarmente imperial que governava sua vida: “Se tivesse os meios, investigaria, sendo hoje suficientemente velho para nao ser mal interpretado, as estatisticas fisicas e morais das mulhe- res trabalhadoras de todo o mundo”s. Quase 30 depois, a0s 58, registrava: “Por razes minhas, durante mais de 30 anos estudei o tema do trabalho feminino, nao meramente em livros e de segunda mio, mas com meus préprios olhos € no local”’. Uma armagio de pesquisa empirica ¢ graves estatisticas o protegiam, acreditava ele, de “mas interpretagdes”. No entanto, podemos ler ai uma outra narrativa: a historia esponta- nea do poder de classe, género e raca que deu forma ao projeto ineren- temente imperial do empiricismo vitoriano. As fotografias, esbocos e diarios reunidos por Munby constituem um dos maiores arquivos da vida de mulheres trabalhadoras, repleto do desejo agressivo de colecio- nat, do rearranjo racional e de exibigao voyeuristica. As obsessoes cura~ torias de Munby sao de consideravel interesse, pois nelas podemos dis- cernir alguns dos lineamentos de poder de classe ¢ de género que animavam o enigma vitoriano do “tema do trabalho feminino”. De fato, pode-se dizer que o enigma da divisio do trabalho por género e a elabo- rada divisdio de género inflamaram a vida de Munby pelas mesmas ra~ z6es que animaram sua época. 5. Idem, op. cit., p.37. 6. De uma carta assinada “A. J.M.”, sibado, 30 de janeiro de 1886, in The Wigan and Dis Advertiser, p.2. Apud Hiley, Victorian Working Women... p.14. 127 Couro imperial © DUPLO Vf{NCULO Mies e criadas Minha segunda mic, primeira mulher, Anjo de minha vida infantil. Robert Louis Stevenson Munby nasceu em 1928, da filha de um pastor bem estabelecido e de um advogado de Yorkshire. Sua familia, assim, habitava aquela posi¢ao de classe liminar que imitava o estilo de vida da nobreza dona de terras sem ter direito a seus privilégios. O pai de Munby nio tinha terras nem titu- los, mas seu trabalho na burocracia industrial em expansiio lhe permitia conforto e seguranga substanciais, e Ihe deu meios de ostentar durante 28 anos o emblema vitoriano de prosperidade e status social de classe média: uma baba chamada Hannah Carter. A mie de Munby, na visio de seu filho amoroso, tinha satide delicada © era propensa a “fraqueza e histeria” — seguindo o esteredtipo da vito- riana de classe alta que o proprio Munby descrevera como a “mulher de porcelana de Dresden”?. Munby a lembra como “muito antiquada”: “Sua bela face delicada ¢ cabelos dourado-avermelhados ¢ graciosa figura”, suas pinturas de flores e sua habilidade na harpa traziam A mente de Munby “as damas dos tempos de Jane Austen”’. Mas a mimica anacr6- nica de Caroline Munby, imitando 0 estilo de vida de uma classe acima sua, s6 foi possivel pela presenga contraditéria, em sua familia, de da uma muther de classe abaixo da sua. Por razes Gbvias e lamentiveis, conhecemos quase nada sobre Han- nah Carter. Munby manteve contato com ela durante toda a sua vida, visitando-a regularmente até a morte dela. Além disso, nao hé registro. Mas ha poucas dtividas de que foi a babé da classe trabalhadora que cuidou, acariciou e disciplinou Munby como bebé e como crianca. A primeira identidade de classe e de género de Munby tomou forma em 7. Munby, “Diary”, in Hudson, Munby... ,p.126. 8. Carta a Sra. R. B. Litchfield, x6 de julho de 1879. Apud Hudson, Munby.. 128 “Massa” ¢ as criadas - Poder e desejo na metropole imperial torno de duas mulheres: a amada mulher da classe trabalhadora, forte e dominadora, mas pelo édito social, relegada as “ordens mais baixas”, ¢ a mulher de alta classe média, vivendo no écio, fisicamente delicada ¢ adorada de longe. Cada uma delas representava diferentes aspectos de classe da dupla imagem vitoriana contraditéria do sexo ferninino. Fundamentalmente, a diferenga entre elas era marcada pelo dinheiro: uma era (mal) paga pelo servigo doméstico, a outra, nao. As contradigoes de classe e de género da sociedade vitoriana tardia entraram na vida de Munby com a forca de um enigma insoktvel. Resolver o enigma do du- plo género se tornou a obsessio que consumiu sua vida, Sua principal estratégia para administrar as contradigées foi, acredito, o discurso im- perial sobre a raca. A esse respeito, Munby nao era excéntri _um perfeito representante de sua classe. “Pouco restou da infancia de Munby’, escreve seu bidgrafo Derek Hudson, “exceto uma encantadora silhueta com um chicote na mao”, De pé, ereto, de perfil, o menino posa como um nobre em miniatura, com o chicote levantado. O chicote marca a metamorfose do menino em homem e é eloquente da violéncia social da formacio do homem. Projetando-se logo abaixo da cintura do menino, simboliza 0 dominio masculino em duas dimensées: o reino da sexualidade ¢ 0 do trabalho. A um s6 € mesmo tempo, é um emblema peculiarmente masculino de po- téncia falica e de dominio violento do trabalho tanto de criados como de bestas. Na precaria ascensio a masculinidade, o chicote marca o limite entre mulheres e homens e entre homens e animais, limites tanto mais imprecisos por terem de ser frequentemente reinscritos. Na logica da iconografia privada (mas longe de idiossincratica) de Munby, a afinidade metaforica de mulheres e cavalos é exibida em cendrios que incansavel- mente igualam sexualidade feminina e servidio”. 9. Munby, “Diary”, in Hudson, Mundy... p.8. 10. Ver o brilhante ensaio de Leonore Davidoff, “Class and Gender in Victorian England”, in Judith L. Newton, Mary P. Ryan e Judith R. Walkowitz (orgs.), See and Class in Women History (Londres: Routledge & Kegan Paul, 983) p. 43. Davidof nota como, em sua poesia, Munby compara as mulheres com animais domesticados que foram “doma- dos” pelos homens. 129 a ee le Coure imperial Nio € claro quando Munby comesou a tomar consciéncia de seus desejos erdticos pelo espetdculo das mulheres no trabalho, mas em Cambridge ele comegou a escrever poemas de elogio a pescadoras ¢ camponesas", Em Trinity, demonstrou-se um satélite menor, orbitando num amplo cfrculo de conhecidos mais luminosos. Quando ele fez 22 ‘nos, seu pai tinha reunido capital suficiente Para construir a imitacao de uma mansio, completa com as caracteristicas requeridas de exibicao Conspicua: “trés belas salas de recepco no térreo; uma sala de refeigdes G uma sala de estar, uma sala para os criados, uma para 0 mordomo e ‘wna para carruagens, um estabulo e quarto de selas, tudo abrindo para tum amplo patio’*. De qualquer maneira, Munby ainda era o filho de tum servidor civil ¢, portanto, obrigado a trabalhar para viver, Qualifi- Course como advogado em 185t e, a despeito de uma decidida falta de interesse pelo direito, estabeleceu-se em um dos Inner Temples [um dos quatro conjuntos em volta da Corte Real], onde permaneceu pelo resto de sua vida. Munby gastou a melhor parte de sua vida caminhando. Nenhum verbo aparece mais em seus didrios do que “fui”. Como Friedrich En- 8els, Henry Mayhew e as hostes de exploradores inspirados pelo Lon- don Labour and the London Poor, Munby saia diariamente para a zerra incignita das vielas de Londres, mapeando incansavelmente os novos “espécimes” de trabalho feminino que encontrava, documentando suas caracteristicas como fipos e trazendo para 0 conforto privado de seu quarto memGrias exdticas e eréticas de vises femininas inesperadas. Depois de caros jantares, descia aos pores para observar as mulheres sujas de gordura e dgua. Voltando de seus cubes, no frio, aproximava-se das leiteiras que safam para o trabalho. Em todo lugar nas ruas, seguia mulheres, importunando-as com suas Perguntas. Suas intengdes, afir- mava, eram puramente sociolégicas: encontrar os arquétipos pelos quais teptesentar 0 trabalho feminino por inteiro. 1. Munby ‘Diary’, in Hudson, Munby 12. Ibidem. 30 | | | "Massa" e as criadas ~ Poder ¢ desejo na metrépole imperial O FLANEUR Género ¢ 0 espago urbano Munby nao era de nenhuma maneira excéntrico em suas andangas. Ca-, minhar significava écio ¢ 0 poder masculino de classe, Em Cambridge, cle adquirira o habito de longas caminhadas e das horas noturnas, apro- Prindas a classe ociosa, da qual ele nao era um verdadeiro membro. A qualidade ociosa de suas descrigdes é adequada ao estilo do flineur que, como diz Benjamin, “faz a botinica do asfalto”®, Mas Munby também nao era verdadeiramente um homem da cidade, Ele estava inteiramente —-fora de lugar. Como o flaneur de Benjamin, Munby estava de fato “tio fora de lugar numa atmosfera de completo lazer como no tumulto febril da cidade”. Munby habitava o limiar entre trabalho lazer, nao perten- cendo a nenhum dos dois. Segundo Benjamin, “o fléneur ainda estd no limiar, tanto da cidade quanto da classe burguesa. Nenhuma das duas o envolveu; em nenhura delas ele esti em casa, Procura refiigio na multi- dio". Munby também se refugiou na multidio, em que mergulhava diariamente. Ele era travado por limites precisos, aos quais retornare- mercadores e balconistas, prostitutas ¢ ambulantes, banqueiros e mendi: 805 se misturam, se tocam e passam uns pelos outros. A multidio poli- morfa era profundamente atraente para Munby, cujo projeto de vida era produzir a ambiguidade social como espeticulo controlado. Munby era intoxicado pela multidio porque esta era, por defini, o lugar onde as barreiras sociais estavam Petmanentemente a beira da ruptura. O projeto urbano e as tipologias de Munby eram andlogos aos dos Dlysiologues de Paris que, como observa Benjamin, se propunham a in- Vestigar os “tipos” sociais que podiam ser encontrados “por uma pessoa dando uma olhada no mercado piblico.” © projeto dos physiologues era 13. Walter Benjamin, Charles Baudelaire: A Lyric Poot in the Erg of High Capitalism (Londees: Verso, 1973), p. 36. 14. Idem, op. cit, p. 175. 45. Idem, op. cit, p. 174. gt Couro imperial “basicamente um género pequeno burgués”’, Mas era também um ge- hero imperial, pois a notagio de tipos e espécimes era caracteristica das ctnografias de viagens escritas 4 época por homens que davam uma boa olhada no mercado do império. Os projetos urbanos ¢ imperiais estavam Unidos por um compromisso comum com uma ética da verdade. Como 08 physiolagues, Munby compartilhava com os exploradores imperiais 0 Projeto do empiricismo que procurava mapear 0 mundo segundo uma cléncia das aparéncias da superficie”. Esses homens herdaram do Tlumi- hismo a crenga em que um catilogo preciso das superficies visiveis — eriado por bassola, paquimetro e camera — podia garantir 0 dominio Manto metafisico quanto militar do globo. Como 0 mapa colonial, as no- tages de Munby ofereciam um discurso da superficie e pertenciam — emo © museu € o recinto de exposi¢des — ao arquivo industrial do espeticulo. 4 Benjamin nao ocorre notar que o flaneur, 0 physiologue e 0 explo~ rador urbano sf homens, Mas ele lembra que quem o apresentow 4 ci- ‘hide foram as mulheres: “Deixem-me agora lembrar quem me apresen- tou a cidade [...] as babas”, escreve". Freud também evoca a meméria de tua babi. No caso de Munby, primeiro a baba, entio as criadas, leiteiras, Prostitutas e vendedoras de rua o apresentaram ao labirinto da cidade, Pode~se encontrar uma convergéncia entre os projetos da psicanilise e lo modernismo. O primeiro espaso explorado por esses homens desas- fossegados da nova burguesia foi o corpo de uma baba. Pela narrativa ileles, foram suas babés que os apresentaram, quando criangas, aos cho- {tes ¢ visdes do espago urbano, Se, para Benjamin, o parque era a cena tht harmonia doméstica burguesa, era uma cena governada pelas babs da Classe trabalhadora. No parque, as criangas brincavam até que eram cha~ tadas “pela voz da baba, de seu banco de comando: ali ela senta austera 16, Idem, op. cit, p.36. 1p Benjamin observa: “Relagdes interpessoais em grandes cidades se distinguem por uma ‘marcada preponderancia da atividade do olho sobre a atividade da orelha.” Idem, op. cit., p.38. 18, Idem, Reflections (Nova York: Harcourt Brace Jovanovich, 1978), p. 3. 132 athacisonamenceianiaid | “Massa” ¢ as criadas ~ Poder e desejo na metrépole imperial e cuidadosa”®, Nao é surpreendente, ento, que, quando adultos, os ho- mens na ctispide do modernismo — Zola, Freud, Baudelaire — buscas- sem a imagem de suas babs nas prostitutas, criadas e atrizes que foram suas amantes, musas e modelos. Nem € surpreendente que projetassem © corpo feminino na cidade moderna como sua primeira forma. Se 0 corpo da mulher foi o primeiro espago para o conhecimento eo autodescobrimento da crianga, mais tarde a cidade, como primeiro espa- 50 do autoconhecimento moderno, foi mapeada como um espaco femi- nino. Tornada feminina, a cidade era representada e feita décil com mais facilidade para o conhecimento ¢ poder masculinos, pois tais represen- tages podiam depender do fato prévio da subordinagao social das mu- Iheres. No processo, porém, ocorrem uma conversio e uma negacao. A meméria perturbadora da atuacao e poder femininos, encarnada na me- miéria da babé, é projetada sobre a cidade como superficie feminina. A mulher enquanto agente se torna a mulher enquanto espetdculo. Através do discurso imperial da superficie e do arquivo do espeticulo, a cidade- labirinto € capturada e reivindicada como um territério masculino de classe média. A psicandlise, portanto, precisa dar outra longa olhada para o corpo da mulher de classe trabalhadora. Benjamin fala da multidao como apresentando 0 choque traumitico de um trago de meméria. Para Munby, o choque especifico, a meméria catastrofica e prazenteira, era o espetaculo do trabalho feminino. Munby via a multidao irracional, subversiva e tornada feminina da imaginagio vitoriana como um refiigio, mas s6 na medida em que pudesse controlar seus contrastes pelo poder voyeuristico. Movendo-se na multidio como voyeur, identidade de Munby era fluida e segura. Na multidao, ele po- dia observar despercebido os perigosos contrastes da identidade social, ento catalogar e rearranjar esses contrastes no museu privado de seu diario, mediando sem decisio ou angustia as diferentes dimensées de sua identidade. Como Baudelaire, Munby amava a solidao, mas ele a 19. Idem, op. cit, p. 6. Para uma excelente andlise de gnero e da cidade, ver Elizabeth Wil- son, The Sphinx in the City: Urban Life, the Control of Disorder and Women (Londres: Virago Press, 1991). 133 Coure imperial java na multiddo, onde os tragos individuais sio obliterados. Bau~ podia estar-se referindo a Munby quando observou: “Um _observador é um principe que esté em qualquer lugar de posse de seu inedgnito”?. O FLANEUR E O ENIGMA DAS ORIGENS DE CLASSE Se a multidao oferecia uma arena de contrastes voyeuristas, Munby s6 ‘tava interessado nas mulheres. Entretanto, ele nao estava igualmente ‘enamorado de todas as mulheres. Fazia pouco esforgo para esconder seu desprezo pela “espuma cintilante da alta sociedade”™. As afetadas her- deiray ornamentais que desfilavam nos bailes tinham escassa atra¢0 sobre ele. “Ter casado com Laura Matilda e todas as suas relagdes e en- contrado uma vasta platitude de tecidos, palavreados e idiotices!””. Ele finha o mesmo desprezo por operarias, costureiras e altas servidoras hem vestidas, que via como nada mais que palidas mimicas das mulheres cle classe alta com seu “hibrido comportamento de mogas finas” e “rou- pas que aspiravam ser de damas”*. Como observa Leonore Davidoff, “em comum com muitos vitorianos de classe média alta, nio inteira- mente seguros de sua posicao, ele nao gostava daqueles que tentavam ‘subir na vida’*5, Mas seu desprezo por essas “hibridas” era também fun- dado no fato de que elas nfo podiam oferecer o “delicioso contraste” entre a classe trabalhadora e a classe alta que ele buscava sem descanso. ‘Munby era incansavel na procura das mulheres que faziam o traba- lho mais sujo, mais s6rdido e menos interessante: lavadeiras, leiteiras, erladas para todo servigo, lavradoras, pescadoras, as mineiras de Wigan, 20, Apud Benjamin, Charles Baudelaire... p. 40. an, Munby, “Diary”, in Hudson, Mundy... p.97. aa, Idem, op. oy P06, 23, Idem, op.cit, p. 35. a4, Idem, op.cit, p. 79. 25, Leonore Davidoff, “Class and Gender... ”, P33: no “Massa” e as eriadas - Poder e desejo na metrépole imperial prostitutas ¢ faxineiras. O fetiche de Munby nfo era simplesmente o trabalho; era o trabalho servil. E nfo era sé 0 trabalho servil, mas 0 tra~ balho servil em contraste com o luxo ocioso”*. “Uma forte mulher ca~ seira ¢ simples, em seu duro trabalho da vida comum em meio ao écio € ao luxo, € para mim objeto do maior interesse””. Munby procurava 0° contraste de classe encarnado nas duas mies que tinham governado sua infincia. Todas as trabalhadoras que ele procurava compartilhavam as caracteristicas de classe de sua babd, Hannah Carter; eram mulheres cujo trabalho era servil, visivelmente sujo, ndo industrial, mulheres po bres, economicamente independentes do casamento ¢ fisicamente for- tes. Essas mulheres apresentavam um “contraste sugestivo” com mu- theres da classe de sua mie: ociosas, endinheiradas, economicamente dependentes do casamento € fisicamente delicadas. Era o choque visual involuntario desse contraste (palavra que retorna com énfase fetichista ao longo de seus didrios) que empurrava Munby com forga irresistivel e insacidvel. Para Munby, a visto de uma leiteira musculosa e de maos 4speras, “tetrato de forca canhestra’, ficava ainda mais picante pelo espeticulo simultaneo de uma dama “passando afetadamente no momento, com mios pequenas em luvas cor de lavanda: 0 contraste”, ele exulta, “era delicioso”®, Uma e outra vez, seus didrios retrospectivamente sabo- reiam — como espeticulo — o visivel contraste de classes femininas. Um registro lembra como, jantando fora, seus olhos assistiram ao espe- taculo de como “todas essas jovens damas, de colos brancos, como fadas de musselina e flores, tinham sua elegancia realgada por uma bela, mas ristica e éspera gargonete”®, Passeando por Mayfair, ele ficava fascinado por Kate O’Cagney, “rainha das leiteiras”, por causa do “contraste nis~ tico” que ela apresentava a elegancia urbana circundante. 26. Tbidem, 27. Munby, “Diary, 862”, Apud Hiley, Victorian Working Women... p.2%- 28. Idem, op. cit., terga-feira, 1 de junho de 1861, in Hudson, Munty....p-99- 29. Idem, op. cit, sexta-feira, 23 de novembro de 1860, in idem, op, cit., p- 83. 35 Couro imperial O enigma que o excitava era o das origens, a origem das diferengas de classe e da fluidez potencial da identidade de classe expressa na possibilidade da troca de nomes: “Gentil ¢ bela na face como elas — e seu nome Laura também — por que deveria ter uma vida tio diferen- te?”. E, no entanto, Munby nao era um revoluciondrio. Nao tinha von- tade de resgatara criada da lavanderia de sua faina. Antes, eram precisa- mente os éditos do contraste de classe que lhe permitiam interminaveis pequenos prazeres, interminsveis “tristes deleites”: “Mas sempre, estar entre a espuma borbulhante do topo da sociedade tem um triste de- leite, pois traz vividamente diante de mim aquela gentil criatura des- locada que rasteja entre a escéria; aquela criada de todo servigo que poderia ter sido uma bela na sala intima, mas é um burro de carga na cozinha”. A BABA E O ENIGMA DAS ORIGENS Podemos contar a essas pessoas (as criadas) sua estdria sem ter de esperar por sua contribuigao. Elas querer confirmar o que lhes contamos, mas nfio podemos aprender nada delas. Sigmund Freud Parece ter sido meu destino descobrir apenas o ébvio: que as criangas tém sentimentos sexuais, 0 que toda baba sabe. Sigmund Freud Se a situacdo familiar de Munby o predispds a uma obsessio de toda a vida pelas mulheres da classe trabalhadora, cle nio estava sozinho nisso. desejo pela criada tem uma histéria cheia de contradigées. Na figura da criada, a psicanilise e a histéria social podem convergir, quando me- nos porque foi nesse momento histérico que se afastaram. Com 0 avango do século XIX, as mulheres eram cada vez mais cha- madas pata o servico doméstico, até que, em meados do século, dois tercos de todos os servidores domésticos eram mulheres. Em 1851, 40% 136 “* “Massa” e as criadas ~ Poder e desejo na metrépole imperial das mulheres assalariadas trabalhavam como domésticas. Entre 1851 € 1871, 0 mimero de criadas aumentou mais de 56%, duas vezes mais répido que a populacao, o maior crescimento se dando nos anos 1860. Nas tilti- mas décadas do século, o trabalho doméstico feminino era a maior cate- gotia de trabalho, depois da agricultura. Passou a ser visto como lugar” comum o fato de que nenhum lar de classe média ou alta classe média de respeito podia deixar de ter pelo menos uma criada. Como observa Eric Hobsbawm: “A mais ampla definigao da classe média [...] era a de ter criadas domésticas”°, Nao é surpreendente, portanto, que os escritos, pornografia e memé- rias dos homens vitorianos, estejam repletos de referencias a babis ¢ go- vernantas, testemunhando de maneira vivida a influéncia dessas mulhe- res da classe trabalhadora sobre os jovens que as tinham a seu cargo. Com grande frequéncia, babs e criadas dormiam no mesmo quarto das criangas: lavavam-nas e vestiam-nas; davam palmadas em suas bundas; lavavam suas vaginas ou pénis; limpavam o vomito; cuidavam delas quando doentes; acariciavam-nas; disciplinavam-nas e puniam-nas; en- sinavam-nas a falar, a ler e a escrever; contavam-lhes estérias e inicia- vam-nas nas “maneiras” de sua classe. Por muitos relatos, encontros sexuais entre as criadas e 0s meninos de que cuidavam nao eram incomuns. Relagdes sexuais entre as criadas eas meninas da casa provavelmente também aconteciam, mas cram, por 30. Eric Hobsbawm, Zhe Age of Capital (Londres: Abacus, 1977), p. 286. Ver também idem, The Age of Empire, 1875-1914 (Londres: Weidenfeld and Nicolson, 1987), pp. 180-1. Como observa John Fletcher Clews Harrison: “A esséncia da classe média era a experiéncia da relagdo com outras classes ou ordens da sociedade. Com um grupo, criados domésticos, a classe média tinha uma relasio especial e intima: uma desempenhava um papel essencial nna definicdo da identidade da outra”, The Early Victorians, 1832-1857 (Nova York: Praeger, 1971), p.10, Parte importante na definigdo da relaclo da classe média com a classe traba- Ihadora era a elaboragio de rituais de deferéncia (curvar-se, afastar-se andando de costas, baixar os othos). A ocupasio de mordomo, por exemplo, era, antes tudo, uma “ocupacio de deferéncia", envolvendo a troca de dinheiro em pagamento pelo reconhecimnento ceri~ monial do poder da classe alta. Ver o texto de Bruce Robbins sobre o papel dos criados na literatura em The Servant’ Hand: English Fiction from Below (Nova York: Columbia University Press, 1586). 37, Couro imperial raz6es Obvias, menos visiveis*. Eugene Talbot, por exemplo, observa: “A. histéria sexual dos meninos mostra muitas vezes que sua iniciagao a vida sexual se dava com mulheres mais velhas. Com frequéncia criadas”2. Freud concorda: “E sabido que babs inescrupulosas péem criangas que choram a dormir acariciando seus 6rgdos genitais”. Freud fala da “fan- tasia comum que faz da mae ou babé uma sedutora’, e observa que a “sedugao real [...] € bastante comum; é iniciada por outras criangas ou por alguém que se encarrega da crianga e quer acalmé-la ou pé-la para dormir ou fazé-la dependente”*. Isso sugere que as relagGes de poder entre as mulheres da classe tra- balhadora e os jovens sob seus cuidados nao eram idénticas as relagdes de poder entre as criadas da casa e seus empregadores adultos. Se as criangas tinham poder social potencial sobre as criadas no lar, parece, por muitos relatos, que as criadas exerciam considerdvel poder e influén- cia sobre as criancas. Muitas das mulheres, parece, iniciavam os encon- tros sexuais. Nao € de todo improvivel que jovens mulheres cheias de desejos sexuais, barradas do intercurso fora do lar, tenham cedido a for- mas prazenteiras de vinganga fisica e de poder sobre as meninas e me- ninos sob sua guarda, de maneira que ofereciam compensagio a sua su- jeigaio diante dos adultos na familia e diante da sociedade como um todo, Isso nao contradiz as relagdes muito reais de submissio que man- tinham as domésticas sob o jugo de seus senhores e senhoras. Mas, a0 afirmar o dominio sexual e psicolégico sobre as crianeas, ou criar genu- ina dependéncia emocional, essas mulheres poderiam ter negociado oportunidades de reconhecimento, controle ou vinganga. Em privado, babas e governantas tinham poder consideravel para julgar e punir aqueles de quem cuidavam. Lorde Curzon, vice-rei da yi. Ida Baues, a “Dora” de Freud, lembra suas intimidades sexuais com a governanta da casa. Freud, Dora: An Analysis of a Case of Hysteria (Nova York: Collier Books, 1963), p-78. 32. Eugene S. Talbot, Degeneration: Its Causes, Signs and Results (Londres: Scott, 1898), p.36r. 43. Freud, Tbe Standard Edition of the Complece Psychological Works of Sigmund Freud, trad James Strachey (Londres: The Hogarth Press, 1905, vol. VII), p. 180. 34. Idem, “Female Sexuality”, in The Standard Edition... (193t, vol. XX1), pp. 232-3. 138 ieee nr tN ee reentrant “Massa” ¢ as criadas ~ Poder e desejo na metrépole imperial India de 1898 a 1905 ¢ secretirio de relagées exteriores nos governos de Lloyd George, Bonar Law e Stanley Baldwin, registrou amargamente em sua biografia como sua baba, Miss Paraman, “em seus momentos selvagens”, era uma “tirana brutal ¢ vingativa’, que estabelecia sobre as criangas um sistema de terrorismo to completo que nenhuma delas jamais reuniu coragem para subir a escada e contar ao pai ou a mie. Ela nos espancava com a sola de seus chinelos nas costas nuas, nos batia com suas escovas de cabelo, nos amarrava longas horas numa cadeira [...] nos prendia no escuro [...] nos forgava 2 confessar mentiras que nunca disséramos, pecados que nunca co- metéramos e entio nos punia selvagemente pela confissio%. Babés podiam também inspirar devogio e dependéncia por toda a vida. Winston Churchill, por exemplo, registrou como sua amada babi, Mrs. Everest, foi sua “mais querida e intima amiga durante os 20 anos que ele tinha vivido”. Até a morte dela, como disse o filho dele, ela con- tinuou como “a principal confidente de suas alegrias, seus problemas e esperangas [...}%”. Em tributo talvez inconsciente a influéncia que ela tivera sobre suas concepgoes da diferenga de género, Churchill orgulho- samente lhe deu 0 apelido de “Woomany” (fustio de woman [mulher] nanny [bab4]). Num sentido muito real, essas criangas cresceram com duas (ou mais) mies, as quais eles aprenderam a distinguir aprendendo os papéis sociais da diferenca de classe, 0 significado dos uniformes, das cortesias e cur- vaturas, os rituais de reconhecimento e deferéncia que separavam as 35- Apud Jonathan Gathorne-Hardy, The Rise and Fall of the British Nanny (Londres: Wei- denfeld and Nicolson, 1972), p. 17. A babé malvada de Sinister Street, de Compton MacKenzie, era provavelmente baseada nas lembrangas de sua prépria baba. 36. Apud idem, op. cit, p. 26. Como muitas criangas, Churchill dormia no quarto de sua baba: era lavado, trocado, vestido, alimentado e educado por ela e, durante os primeiros ito anos de sua vida, praticamente nunca deixou a companhia dela. A babi Everest es- colhia as roupas de Churchill, seus amigos, seus livros, sua comida e até as escolas que frequentava. 139 Couro imperial duas figuras mais poderosas na vida da crianga’”. As contradigdes eram agudas. De um lado, “em sua esfera”, como diz Gathorne-Hardy, “o po- der da baba era absoluto”®. De outro, ela podia ser contestada, diminu- ida ou demitida por uma palavra da patroa. Certamente nenhuma outra cultura dividiu a sexualidade feminina tio claramente em linhas de classe. Mulheres da classe trabalhadora eram vistas como destinadas biologicamente A lascivia ¢ ao excesso; as mulheres de classe alta eram naturalmente indiferentes aos delfrios da carne. Maes eram frequenternente objeto de adoracao remota e assom- bro abstrato. George Bernard Shaw, que foi criado quase inteiramente por babis e criadas, disse de sua mie: “Sua negligéncia quase completa em relacdo a mim tinha a vantagem de que eu podia idealiz4-la ao ex- tremo de minha imaginagio ¢ nao tinha contatos sérdidos ou desilusdes com ela”. Churchill escreveu sobre sua mie bioldgica: “Eu a amava profundamente — mas & distancia”. Mary Lutyens lembra que “fungées intimas ficavam a cargo da babé ou de Annie, nossa criada [...] Eu nao gostava que minha mie me visse no banho”*. A divisio vitoriana das mulheres em putas e madonas, freiras e prostitutas tem suas origens, entio, nfio em arquétipos universais, mas na estrutura de classes do lar. FREUD E A BABA Abjecio e classe A psicandlise freudiana classica em sua maior parte, tem recusado fir memente dar qualquer status tedrico A criada, a nao ser como uma intro- missio temporaria no romance familiar, ou como uma substituta dos 4, Como observa Nancy Chodorow: “Ser mie, entio, nfo é apenas dar um filho & luz — é ser uma pessoa que socializa e nutre. E ser uma encarregada principal”. Zhe Reproduction of Mothering: Psychoanalysis and the Sociology of Gender (Berkeley: University of California Press, 1978), p. 1. 8, Gathorne-Hardy, The Rise and Fall of the British Nanny, p.78. 39 Apud ibidem, 40. Mary Lutyens, 72 be Young: Some Chapters of Autobiography (Londres: Rupert Hart-Da- vis, 1959), p-15- 140 “Massa” e as criadas ~ Poder e desejo na metrépole imperial pais. Em importante artigo, Jim Swann afirma que a teoria edipiana de Freud era fundada na elisio tedrica da baba (Kinderfrat) de seu proprio desenvolvimento infantil’. Durante o periodo crucial da autoandlise de Freud (maio a outubro de 1897), ele revelou numa carta a Wilhelm Fliess, do dia 3 de outubro, que, ao contrario de sua teoria dos pais como cau- sadores da neurose, seu préprio pai nio tinha tido “papel ativo” em seu caso*. O “primeiro originador” no fora seu pai nem sua mie, mas sua babi tcheco-eslovaca e catélica, Monika Zajic. “Minha primeira originadora”, escreve Freud, “era uma mulher feia, idosa, mas esperta, que me contou bastante sobre Deus todo-poderoso e © inferno € que instilou em mim uma alta opinigo sobre minha prépria capacidade”®, Swann aponta para a carga sexual do termo “originadora (Urheberin)”: a baba de Freud foi “a primeira a levanta-lo”, isto é, a exci- té-lo até uma erecdo*. O alumbramento do menino, parece, foi ocasio- nado nao s6 pela limpeza doméstica didria de seus érgaos genitais, mas por atengGes sexuais explicitas. No dia 4 de outubro, Freud continua escrevendo a Fliess: “O sonho de hoje produziu o seguinte: ela foi mi- nha professora em matéria sexual”, Zajic nio foi sd a fonte do primei- ro alumbramento erético de Freud; também foi a fonte de sua primeira humilhagao sexual: “(ela) se queixou de que eu era desajeitado e incapaz de fazer qualquer coisa. A impoténcia neurética sempre chega dessa maneira”’, A Kinderfrau de Freud fica, como a maioria das criadas do- mésticas, como uma figura nas sombras, na melhor das hipéteses. De 41. Jim Swann, “Mater and Nanny: Freud's Two Mothers and the Discovery of the Oedipal Complex”, American Imago: A Psichoanalytic Journal (Primavera, 1974), pp. 1-64. Ver tam- bém Kenneth A. Grigg, “All Roads Lead to Rome’: The Role of the Nursemaid in Freud's Dreams”, Journal of the American Prychoanalytic Association 21 (1973), p. 109. 42. Carta a Fliess, 3 de outubro de 1897, in Jeffrey Moussaieff Masson (trad.¢ org;), The Com plete Letters of Sigrund Preud to Wilbelm Pliess, 887-2904 (Cambridge: Harvard Univer- sity Press, 1985), p. 268. 43. Ibidem. 44. Swann, “Mater and Nanny...”, p.17. 4s. Freud, Carta a Fliess, 4 de outubro de 1897, in The Complete Letters... p.269- 46. Ibidem. 14t Couro imperial mo professora e juiza, ela influenciou profunda- ito no conhecimento quanto no poder, e, de acordo mais que seu pai e sua mae, que exerceu a forga diri- ira hist6ria geradora de sua identidade sexual, psico- s foi ela que the transmitiu “os meios de viver e con- a de Freud e sua feoria, porém, acontece uma conver- suas memorias de infancia, Freud atribui 4 baba um como agente sexual, mas quando elabora sua teoria do ding depois, ele nao sé bane de cena a “primeira origina- stitui sia memoria da impoténcia sexual (falta de capaci- com a babd) pela teoria da agresso sexual (excesso de capa- com a mde). Um deslocamento através da classe (“mais iu a libido pela matrem”) faz uma inversio de género (da il), Na carta de 1897 para Flies, Freud escreveu da baba nha professora em matéria sexual”. Mas, quando ele final- escteve “Feminilidade”, a mae expulsou a babé: “A sedutora é ete a mie [...] que por sua atividade sobre a higiene corporal da inevitavelmente estimulou e até provocou pela primeira vez sen- prazenteiras em seus érgios genitais”. Na carta anterior, Freud que isso nfo era verdadeiro em seu préprio caso, pois sua mae ima figura distante da perfeigao idealizada: “Para mim, ela era a mae ita, Hu nao teria gostado que ela me medicasse, me banhasse, me -onfortasse ou segurasse minha cabeca quando eu estava doente. Essas ‘fingbes intimas corriam por conta da baba ou de Annie, nossa criada”. Ao apagar a atividade da bab4, Freud salvaguarda o papel histérico do homem como agente sexual. Mas fica um residuo historico, pois a teoria de Edipo de fato nao dé conta das memérias ¢ sonhos que preten- dle explicar. De fato, pode-se dizer da teoria de Edipo de Freud que ela £ © que resta, uma vez que ele elide as divisGes de classe que estrutura~ os lares de classe média e média alta. Depois, a baba volta uma vez , penas para ser banida outra vez, quando Freud afirma que “esque- 4p Ibidem. 142 “Massa” e as criadas — Poder e desejo na metrépole imperial mas herdados filogeneticamente” sio “precipitados da historia da civili- zacio humana. O complexo de Edipo [...] é um deles”**. Para Freud, aqui, o complexo de Edipo € um esquema “herdado” que supera a expe- riéncia historicamente variada da crianga: “Somos muitas vezes capazes de ver o esquema que triunfa sobre a experiéncia do individuo [...] Onde quer que as experiéncias nao se ajustem ao esquema hereditério, elas sto remodeladas na imaginacio”, Freud toma como exemplo de “experién- cia pessoal” superada pelo complexo de Edipo hereditario 0 processo que “esté em operacio quando uma babé passa a desempenhar o papel da mie ou quando as duas se fundem”s°, Aqui, o préprio conhecimento de Freud do poder formador da babé da classe trabalhadora é superado e negado por sua invengio de um “precipitado da historia da civilizagao” invariante, herdado. Nesse sentido, a teoria de Edipo é uma teoria biombo, que esconde e revela ao mesmo tempo uma dimensio fundamental do poder que Freud nao podia nem ignorar nem permitir-se perceber inteiramente: o papel histérico das babas e governantas da classe trabalhadora que retornavam com insisténcia ritual para assombrar seus sonhos, suas andlises e os casos de seus pacientes. A bab’ (que Freud chama de die Alte de das alte Weib) € 0 outro repudiado da classe trabalhadora: 0 abjeto expulso de que ele nao consegue abrir mao, “Histéricos”, escreveu Freud, “sofrem principalmente de reminis- céncias”. Em seu proprio caso, admite, “Se [...] consegui resolver mi- nha prépria histeria, entdo devo agradecer 4 velha mulher que me deu, em tio tenra idade, os meios de viver e continuar a viver”s'. A histeria a que Freud se refere aqui é seu medo de viajar e sua “neurose de Ro- ma”, que parece surgir de sua incapacidade de reconhecer e resolver sua imagem materna dividida, divisiio que surge nao a partir de alguma 48. Idem, “From the History of an Infantile Neurosis”, The Standard Edition... (1918 [29:4], vol. XVII), p.119. 4g. Ibidem. so. Ibidem. st. Idem, Carta a Fliess, in The Complete Letters... p. 269. 143 Couro imperial divisio arquetipica na psique, mas da duplicagao de classe do lar vito- riano. Quando Freud foi separado de sua mae durante o confinamento dela, sua baba catdlica levou-o muitas vezes 4 missa, dando-lhe os meios para resistir A perda da mae naquele perfodo. A saudade sexual que Freud sentia de sua mae e sua incompeténcia com a baba se mis- turam com as histérias catélicas de “céu e inferno”, e, em sonhos recor- rentes, a cidade catdlica de Roma — a mie que nao era sua mie — tornou-se “a terra prometida vista de longe”. Dividido em seus primeiros anos entre duas religides, e também en- tre duas macs e duas classes, Freud em anos posteriores desenvolveu uma profunda “fobia de viagens” e uma “neurose de Roma”. Em sua carta de 3 de outubro a Fliess, Freud registra que, depois de ter sido ex- citado pela babé, “mais tarde [...] a libido em relacio a matrem foi des- pertada, a saber por ocasido de uma viagem de Leipzig a Viena, durante 4 qual devemos ter passado a noite juntos ¢ deve ter havido uma opor- tunidade de vé-la nudam”®, Freud observa em outro lugar que 0 uso de uma lingua estrangeira marca uma repressio; no é acidental que ele aqui recorra ao latim, antiga lingua mie da igreja de sua baba, para des- crever sua excitag%o por sua outra mae, marcando, assim, o lugar da du- plicagitio ¢ da defesa. O desejo pela babé/mie/religiao ¢ o fracasso em penetri-la dio forma a “neurose de Roma” que assolava suas viagens. Indé com frequéncia Italia e ansiando por Roma, Freud nio conseguia entrar na cidade sonhada, voltando a poucas milhas de seu destino. Em algum nivel, sua incapacidade de fundir-se com a bab foi transformada numa incapacidade de entrar em Roma. Incapaz, finalmente, “de agra- decer A memoria da velha mulher” em sua teoria, Freud foi incapaz de resolver sua histeria. A PSICANALISE E A NEGAGAO DA CLASSE Barrada da teoria do romance familiar edipiano, a bab de qualquer ma~ neira retorna insistentemente 4 cena da meméria com a forca irresistivel a, Idem, Collected Letters, p. 268. 144, “Massa” e as criadas - Poder e desejo na metrépole imperial de um fetiche, A 9 de fevereiro de 1898, Freud escreveu a Fliess que havia rumores de que ele receberia 0 titulo de professor no jubileu do impera- dor, A titulagio como autoridade profissional masculina imediatamente Ihe provocou ansiedade e um sonho. O sonho, escreveu, “infelizmente nao pode ser publicado, porque seu fundo, seu segundo significado, vai e volta entre minha babé (minha mae) e minha esposa”®. Kenneth Grigg observou que nessa ¢ em outras passagens Freud condensa de maneira inseparivel sua Amme (babA) ¢ sua jovem mie, Amalie. Algo do inad- missivel sentido mais profundo do sonho se revela na ambiguidade “mi- nha babi (minha mie)”, que pode tanto significar que a baba era sua “verdadeira mae” ou que a babé era simplesmente a substituta simbélica de sua “verdadeira” mie. O ponto é que a ambiguidade ¢ insoltivel, deri- vando, como deriva, da duplicagio histérica dentro da economia domés- tica da mae de alta classe média nfio assalariada ¢ da “mie” assalariada da classe trabalhadora: die alte ou alte Weib. Na teoria de Edipo, porém, a duplicagio “impublicavel” da figura da mie pela classe € ocultada pela divisio e atribuigio, em separado, a0 pai e a mie de ambos 0s papéis (0 poder da punigao social ¢ o poder de evocar o desejo sexual) que Freud observa na baba. O duplo vinculo histérico da classe & assim dividido e deslocado para o pai ¢ para a mae como fungio universal do género.O sonho de Freud ¢ 0 peso da compre- ensio que ele revela so “impublicéveis,” pois publicé-los teria significa- do reconhecer publicamente o poder de engendrar da baba da classe trabalhadora, de cujo trabalho subordinado dependia a casa e, portanto, Jevando & necessidade de reescrever inteiramente o drama de Edipo que ele estava prestes a revelar a0 mundo. Em sua carta de 4 de outubro de 1897 a Fliess, Freud observa que seu sonho da Kinderfrau entrelaca as referencias repreensivas dela a sua incompeténcia sexual com as “alusdes mais mortificantes” a sua corrente “impoténcia’ profissional. Ao contar seu sonho, Freud faz a identificagio 53. Idem, op. cit., 9 de fevereiro de 1898, p.299. 145 ee Couro imperial vitoriana padrio de desempenho sexual com troca econémica*. O so- nho iguala sua incapacidade de desempenho sexual com sua incapacida- de de ganhar dinheiro, mas também revela uma inversio ¢ uma estraté- gia de vinganga. Na troca econémica da terapia, inverte-se a primeira relagio de um Freud despossufdo com sua baba: “Assim como a velha mulher recebia de mim dinheiro por seu mau tratamento, hoje eu recebo dinheiro pelo mau tratamento dos meus pacientes”. O “mau tratamen- to” de Freud com seus pacientes serve como compensagio adiada pelo “mau tratamento” de sua baba (excitacdo sexual ¢ humilhagao) para com ele quando crianga. Tanto os papéis sexuais como os econdmicos sio invertidos, de tal maneira a dar a Freud um dominio aparente sobre as relagdes contraditérias de sexualidade ¢ economia dentro da familia. Quando Freud tinha dois anos e meio de idade, dois eventos cruciais se § .guiram: sua babé foi demitida por roubar e sua mac deu a luz sua irmé, Anna. A perda da mie se condensa com a perda anterior da babé: “Niio conseguia encontrar minha mae em lugar nenhum; chorava em desespero [...] Quando sentia falta de minha mae, tinha medo que ela sumisse de minha vida, como a velha mulher tinha sumido pouco an- oe tes”S*. Mas os relatos do desaparecimento da baba sao contraditérios. Primeiro, Freud escreve: “Ela me induziu a roubar zehners (moedas) e da-las a ela”. O dinheiro roubado foi encontrado entre os objetos dela, junto com alguns brinquedos de Freud, e ela foi sumariamente despa- chada para a prisao por dez meses. Depois de averiguar 0 evento com sua mae, Freud revé sua opinido: “Escrevi a vocé que ela me induziu a roubar as moedas e dé-las para ela. Na verdade, o sonho significa que ela mesma as roubou”’’. Freud entao acrescenta uma frase notivel. “A interpretagio correta é: Eu = Ela”. Na primeira versio, o dinheiro pertence por direito a baba em 54. Ver Steven Marcus, The Other Victorians: A Study of Sexuality and Pornography in Mid- Nineteenth Century England (Nova York: New American Library, 1964), pp. xiii, 221. 55. Freud, Carta a Fliess, in Collected Letters... p.269. 56. Idem, op. cit., 15 de outubro de 1897, in Collected Letters, p. 271. 57. Ibidem. 146 “Massa” ¢ at criadas ~ Poder e desejo na metrépole imperial troca de seu “mau tratamento”, sua instrugfo sexual a Freud. Na segunda versio, a baba é a ladra ¢ 0 menino é absolvido: a prisio da Kinderfrau por dez, meses exclui a “mé” circulagao de dinheiro do filho para a Kin- derfrau ¢ de sexo da Kinderfrau para o filho, fora da ordem reprodutiva do casamento. Na narrativa final, autorizada, os limites entre classe € género sio redesenhados. O dinheiro da trabalhadora € devolvido ao patrimOnio da classe mais alta e a prerrogativa masculina de livre acesso sexual As mulheres da classe trabalhadora é restaurada. Mas a baba as- sombra Freud como sua abjeta identificagao: “Eu = Ela’. : “gu = ELA” A identificagao de Freud com o feminino Proponho que a equacao “Eu = Ela” evoca uma contradi¢ao que Freud lutou para resolver ao longo de sua carreira. A figura da babé levanta um problema crucial na teoria da identificagao de Freud. Para Freud, como argumenta Swann de maneira brilhante, a mie é identificada como um objeto a possuir e controlar mais que como um ideal com que se identi- ficar, A relagio com a mie é uma relagio dependente de objeto. “Na teoria da identificagio de Freud, hé um conjunto de contradigées que ele tenta resolver alocando a dependéncia da relagfio-objeto as mulheres e a identificagao ativa aos homens, separando o que é um complexo proces- so dinamico em duas categorias distintas da relagao de identidade por género”s’, Na teoria de Freud, a perda da mae é vista no como perda de uma das relagdes pessoais mais profundas que se pode ter, de que se pode ser dependente para a propria vida, mas como a perda de um obje- to. As mulheres pertencem ao reino da escolha de objeto mais do que ao reino da identificagio social. De fato, identificacao com a figura da mae como patolégica e perversa, a fonte de fixagao, impedimento e histeria. ‘Mas a disjuncao tedrica entre as mulheres como objeto de escolha e as mulheres com quem é desejavel identificar-se é desfigurada pela equacio 38. Swann, “Mater and Nanny...,” p.39. 47 Couro imperial do sonho “Eu = Ela”, que sugere uma identificagao muito mais compli- cada com a babi como agente social. O desejo da crianga de ser como a ‘poderosa e desejada babsi/mae (e de ter bebés, corpos femininos ¢ poder) é firmemente rechagado na teoria, mas volta 4 tona insistentemente em sonhos na época em que a teoria esta sendo elaborada. Numa carta anterior a Fliess, a 31 de maio de 1897, Freud descreve um sonho em que ele subia uma escada “vestindo muito pouca rou- pa”, quando se sentiu eroticamente excitado e “paralisado” ao desco- brir que uma mulher 0 seguia escada acima®, No entanto, quando mais tarde Freud registra 0 sonho no livro Interpretagao dos sonhos, tem lugar uma mudanga curiosa. Na nova versio, a mulher é identi- ficada como uma criada e, em vez de subir a escada atris de Freud, ela a desce em diregao a ele. Semivestido, Freud esta na posigao con- vencionalmente “feminina” de ser despido ¢ julgado, enquanto a cria- da é a voyeuse observando sua vulnerabilidade exposta; ela assume a posigio masculina da altura superior, descendo em diregio a Freud, inteiramente vestida®. Desta vez, Freud registra sua resposta nao como excitagao erética, mas como ansiedade. Em conjunto, as duas versoes revelam as duplas contradigoes de classe e género que marcam a relagao de Freud com a baba: entre mu- Iheres que so identificadas por seu trabalho (criadas) e as que nfo o sio; entre a hierarquia de classe dos andares de cima e de baixo dentro do lar; entre a excitagao erdtica e a inadequacao erdtica; entre homens com o poder social de olhar para mulheres semidespidas ¢ babas com 0 poder social de olhar para meninos semidespidos. Em ambas as ver~ ses, a incapacidade de Freud de resolver as contradigées € expressa como paralisia e impoténcia. Mas a segunda versio, publica, termina nfo com a criada subindo atras de Freud (na imagem vitoriana, padrao da evolugao social, mas descendo para seu “mundo inferior”, enquanto a excitacdo erética de Freud € negada e apagada. Uma vez mais, a ver~ sg. Freud, Carta a Fliess, 3x de maio de 1897, Collected Letters, p. 249. 60. Idem, The Interpretation of Dreams, The Standard Edition..., vols. 4-5, p. 238 148 “Massa” e as criadas ~ Poder ¢ deseja na metrépole imperial so publica de Freud representa uma inversao e um deslocamento: posisdo de classe o autoriza a subordinar a babd, permitindo-Ihe até sua “delicada e bela mie” no alto. A criada retorna, espontaneamente, nas histérias de caso. No e pequeno Hans,a clisto da identificagio com babas e maes (como regadas privilegiadas de criangas) leva 0 caso cada vez mais p! mente 4 contradigao. Na narrativa do “Homem dos Ratos”, a toy do desejo de género € mapeada no corpo da criada. O “Ho! Ratos” lembra a senhorita Peter, que cuidava dele quando tinha ou cinco anos: “Eu estava deitado ao lado dela e pedi que ela que eu me enfiasse sob sua saia [...] ela estava com pouca dedilhei seu sexo e as partes baixas de seu corpo”. O “Homes Jembrava sua baba, Grusha, ajoelhada no chao com uma vassi feita de um mago de ramos a seu lado. Mais tarde, o “Homem sentiu irresistivel e violentamente apaixonado por uma cam viu ajoelhada, lavando roupas. Como observa Freud, essa era da criada, em que ela é rebaixada fisicamente”, em que ele Mas, como Peter Stallybrass e Allon White apontam, Freud est tio voltado a demonstrat que a obsessao do “Hos Grusha € o significante de uma cena primitiva em que 0 “Hi seu pai fazendo amor com sua mae que acaba sendo forgado figura da criada. Grusha (0 objeto “sujo”) 6 sera considerada acena do romance familiar. Em outras palavras, Freud discerne brilhantemente jeito, mas nio pode admitir em sua teoria as dimens6e\ deram origem a essa divisio. Em lugar disso, a criada 6 substituta simbélica para o romance familiar burgués. 61. Tdem,1909, p- 41. G2, Peter Stallybrass e Allon White, Be Politics and Poetics off ‘Methuen, 1986), p.153 149 Couro imperial A REINVENGAO DA FAM{LIA DO HOMEM A elistio, por parte de Freud, da baba da teoria de Edipo também elide 0 fito de que as casas de familia sao, acima de tudo, estruturas econdmicas historicamente varidveis. Admitir o poder e a atividade da baba é admi tir que o poder da autoridade paterna é inventado €, portanto, esta aber- fo A mudanca®. Ao esquecer a babé, Freud podia esquecer a estruturacio la identidade infantil ¢ social em torno dos desequilibrios econémicos fm famflia. O romance familiar é livrado da contaminagio de classe ¢, 0 que é mais importante, do dinheiro. Através da teoria de Edipo, a mul- tiplicidade das economias familiares é reduzida a uma economia tinica, faturalizada e privatizada como a unidade universal da familia monoga- mica do homem, um “esquema hereditario” que transcende a histéria e a cultura, A familia € ostentada como além da politica e, portanto, além da mudanga social, precisamente no momento em que as mulheres vito- tlanas de classe média comegam a desafiar os limites entre 0 privado eo piiblico, entre o trabalho assalariado e 0 nao assalariado, A anilise de Freud ¢ perseguida pela presenca da governanta que, ©oMo as prostitutas de esquina em Roma, ele gostaria de esquecer, mas de quem constantemente se lembra, “Eu gostaria de lembrar a gover- nanta”, murmura ele no caso Dora; mas Freud nao pode admitir plena- mente a presenga histérica da governanta no romance familiar, Esque- cendo a babé, Freud ofereceu ao mundo uma teoria universal da Familia do Homem, pois a sexualidade masculina era inevitavelmente mais po- tente que a feminina, que era inerentemente deficiente, anacrénica e “primitiva”. A teoria de Edipo reinventou a autoridade familiar paterna como um fait accompli universal e inevitvel, no momento Preciso, argu- 83. Jane Gallop observou que a babs constituia 2 maior ameaga a homogencidade da familia. “A Familia nance foi, em qualquer dos textos de Feud, completamente separada de ques- toes de classe econsmica...[A bab] é tio parte da fumlia que as fantasias da erianya (o inconsciente) nao distinguem ‘mie ou baba”. The Daughter's Seduction: Feminism and Psy- choanalysis (Ithaca: Cornell University Press, 1982), p. 144. 64. Freud, Dora: dn Anabpis of a Case of Hysteria, p78, 150 “Massa” as eriadas ~ Poder e desejo na metrépole imperial mento mais tarde, em que a emergéncia de uma burocracia imperial Privava a imagem do pai de poder simbdlico como simbolo designado de todo poder politico. Jane Gallop observou que a criada esta “na Porta’ tanto quanto é uma figura liminar: existindo entre ‘dentro da familia’e ‘fora da familia’. Tran- sar com ela é um ato liminar, entre 0 incesto ¢ a exogamia”®, No tiltimo sonho de Ida Bauer, antes que ela deixasse Freud, como uma criada po- dia deixar o seu senhor (“isso soa como uma criada ou governanta— um aviso de 15 dias”), Ida oferece a Freud, no tiltimo minuto, a chave,a gazua Para 0 caso. Quando Ida volta & casa, a criada abre a porta. “A criada abriu a porta para mim”. A imagem arquiteténica da porta aberta (no limiar entre privado e ptblico) a esta altura significa sexualidade além da estrutura da economia doméstica. Mas Freud no consegue vé-la, pois uma criada tem a porta nas maos. Ele insistiu: “Nao podemos aprender nada delas”®, Assim como Freud se identifica com a baba (“Eu = Ela’), ele identi- fica Ida com a criada numa equivaléncia simbélica de servidio e femini- lidade que revela até que ponto as identidades sexuais de homens e mu- Iheres de classe alta eram formadas ¢ informadas pelas criadas de classe trabalhadora em meio a eles. Numa palavra,o género nao é uma dimen- sao separada da identidade & qual se adiciona, cumulativamente, a di- 65. Jane Gallop, The Daughter’ Seduction. 66. Em seu excelente enssio “Freud's Dora, Dora's Hysteris”, Maria Ramas restaura o sigai- ficado da criada no mais famoso fracasso de Freud e observa que a feminilidade estava ligada ao serviso, especialmente em relagao a sexualidade, “uma fantasia de heterossexua- lidade como servigo devido aos homens, e servigo explicitamente baseado em submissio © degradacio”. “Freud's Dore, Dora's Hysteria’, in Charles Bemheimer e Claire Kahane (orgs.), In Dorat Case, Freud — Hysteria ~ Feminism (Nova York: Columbia University Press, 1986), p.175.A escolha por Freud do nome “Dora” para Ida revela a deformasao e negagio da identidade da classe trabalhadora requerida para mantera diferenga de classe. Steven Marcus observa que Freud chamou Ida de “Dora” por causa da criada de sua répria familia que teve de mudar de nome por ter o mesmo nome que a irma de Freud, A homologia de nomes, sugestiva de uma inaceitivel homologia de identidade, tinha de ser apagada. Ao chamar Ida de “Dora”, Freud reconhecia implicitamente seu desejo de obrigar Ida a assumir uma identidade substituta, a fim de preservar o decoro do romance familiar heterosexual. 151 Couro imperial mensio de classe. Antes, 0 género é uma categoria articulada, construida através da classe e pela classe. Freud era incapaz de resolver essa triade inadmissivelmente enreda- da de classe do desejo sem admitir uma completa andlise de classe em sua teoria. Incapaz de atribuir a primeira forga originadora de desenvol- vimento psicossexual a uma mulher da classe trabalhadora (como era compelido a fazer pelo insistente material de seus proprios sonhos), em lugar disso ele reprime a criada e desloca seu poder e sua identificagao com o poder dela para uma identificagio com o pai. Dessa maneira, na elaboragio final da teoria de Edipo, a baba desapareceu. No lugar dela, Freud recoloca a mae como objeto do desejo e 0 pai como sujeito do poder social e econémico e, assim, violentamente fecha a porta do ro- mance farniliar para esse intrusivo ¢ inadmissivelmente poderoso mem- bro da classe trabalhadora ferninina. Finalmente, a entrada da esposa na trlade feminina permite que Freud, através do contrato de casamento, domine, como marido, tanto a mie como a criada. Assim, a elaboragdo0 le Freud da teoria que faria seu nome e fama foi assegurada a expensas_ de uma repressao: 0 apagamento da trabalhadora doméstica como pri- meira originadora da identidade sexual ¢ econémica. Como diz Rob- bins: “fe em grande parte gracas ao sucesso dessa teoria que intromis- sho maciga do desejo pelas criadas nas vidas das classes que as mantinham nese periodo nao atraiu mais atencao”*. Agsim, a teoria freudiana ortodoxa tem uma premissa numa visio da familia que exclui a presenga histérica da trabalhadora doméstica, ou a define como acidente irrelevante. Mas, se restaurarmos o que Freud {ntencionalmente reprimiu, surge um quadro inteiramente diferente. Se \ primeira identificagao (sexual e psicolégica) da crianga é com uma mulher da classe trabalhadora e entao duplicada e contraditada pela presenga da mie biolégica, pode-se argumentar que 0 cenério da indi- viduagiio sera alterado significativamente; 0 menino tem de separar-se de duas mulheres, de maneiras diferentes. Essa duplicagao faz surgir uma fragilidade ¢ a incerteza da identidade, que € resolvida ou pelo 6p. Robbins, The Seruant’s Hand...,p-196. 152 “Massa” ¢ as criadas ~ Poder e desejo na metrépole imperial menos adiada e administrada, principalmente por referéncia ao poder de classe. No periodo vitoriano, sugiro, essa duplicagao € também administra~ _da projetando sistematicamente sobre as mulheres da clas ‘abalha~ dora a ideologia da raga. A identificagao original do menino com 0 corpo feminino permanecera sempre como vestigio, mas elemento in- tegral de sua prépria identidade. Como a chegada & masculinidade ¢ precéria, requereré sempre constante vigilncia e reafirmagao ritual. Talvez essa seja uma das razées por que a figura da babé na cultura vi- toriana tardia é tantas vezes investida de atributos e poderes “masculi- nos”. Aqui, as referéncias ub{quas na vida masculina vitoriana 4s mulhe~ res da classe trabalhadora como “assexuadas”, “masculinizadas”, “yulgares” e “rudes” podem encontrar sua dimensio psicanalitica, ainda que essa dimensio nio seja a Gnica. Tendo isso em mente, podemos voltar a Munby. GENERO E CLASSE Uma narrativa social Munby nao estava sozinho em sua obsesso com a imagem duplicada da feminilidade vitoriana. O influente The Madwoman in the Attic, de San- dra Gilbert e Susan Gubar, traca a etiologia literéria dessa duplicacio, pela qual a “tradigao patriarcal” vé o ser da mulher como dividido em dois: a puta e a madona, a freira e a feiticeira, a donzela e a medusa, a esposa € a sereia, a mae e a bruxa danada‘'. De modo semelhante, The Woman and the Demon, de Nina Auerbach, explora como a iconografia masculina vitoriana esta repleta de aliancas entre mulheres e fadas, mu- Iheres e duendes, mulheres e vampiros, mulheres e toda a panéplia de rastejantes e serpenteantes mutantes da criagdo. “Enquanto os vitoria~ nos bem pensantes elevavam a mulher até o anjo, sua arte se refestelava 68, Sandra Gilbert ¢ Susan Gubar, Tee Madwoman in the Attic: The Woman Writer and the Nineteenth Century Literary Imagination (New Haven: Yale University Press, 1979). 153 Couro imperial com imagens de sereias®. Na visio de Auerbach, a imagem dupla de mulher e monstruosidade admitia o poder arquetipico e mitico do femi- nino: “Imagens fortes de opressio se tornam imagens de poder a custo suprimido”?. Essas criticas veem a imagem dupla das mulheres como se surgisse de uma duplicagao arquetipica na consciéncia que poderia ser transcen- dida por um desafiador ato de vontade estética. Nao poderiamos, porém, ¢ de maneira mais apropriada, ver essa dupla imagem das mulheres que assombra a superficie dos textos masculinos vitorianos como se estes surgissem menos de uma duplicacao arquetipica no inconsciente mascu- lino ¢ mais da duplicagio contraditéria (e nfo menos patriarcal) de clas- se que era uma realidade cotidiana nas casas e infincias desses homens de alta classe média? Os duendes e fadas que povoam os textos mascu- linos poderiam ser vistos como se derivassem nao de um inconsciente universal masculino, mas antes da meméria histérica das cozinhas e fundos onde trabalhavam mulheres da classe trabalhadora, dos colos das babas ¢ criadas da classe trabalhadora que ecoavam sussurros de fadas nos quartos das criangas de classe média. As imagens de monstros sereias so remanescentes de uma tradicio oral trazida pelas mulheres trabalhadoras. Essas imagens sio de fato imagens de poder feminino, mas so especificamente tracos de meméria de poder feminino da classe trabalhadora e deitam raizes em divisGes de classe ¢ na mudanga histé- rica. Assim, as imagens de deménios femininos acopladas a imagens de madonas representam uma contradig&o geral de classe que era vivida diariamente dentro da casa vitoriana: a contradigao entre o poder a cus- to reprimido da trabalhadora doméstica assalariada ¢ a relativa falta de poder da esposa nfo assalariada. Esse ponto é crucial se quisermos ver as estratégias genuinas para a mudanga politica. Nem Gilbert e Gubar, nem Auerbach identificam plenamente as bases materiais e econdmicas da duplicagio do eu femi- 69. Nina Auerbach, The Woman and the Demon: The Life of a Victorian Myth (Cambridge: Harvard University Press, 1982), p. 7. 7. Ibidem. 154 “Massa” ¢ as criadas — Poder e desejo na metropole imperial nino. Para Gilbert e Gubar, a fuga dos caixées de vidro do texto patriarcal envolve estilhacar o espelho ¢ libertar as mulheres da superficie de cristal, matando anjos e deménios e libertando 0 “verdadeiro eu” na incandes- céncia de um futuro transfigurado. A tarefa emancipadora continua esté- tica: a escritora “sé pode fazer isso revisando os textos do Criador”” ‘Também Auerbach vé a libertagio das mulheres como se ocorresse atra~ vés de um ato de vontade feminina transcendental e essencialmente esté- tica, Mas a dindmica da transfiguracio continua na bruma. A visio ro- mantica de um eu feminino essencial que explodiria numa chuva de cristal de palavras e flutuando dos confins do texto-espelho continua sendo uma visio estetizada. Além disso, o heroismo de uma consciéncia autogeradora, transcen- dente e iluminada, sem apoio de qualquer coisa que ndo uma vontade emancipadora de autocriagao ¢ de uma estética da metamorfose, é es- sencialmente uma ideia de classe média do século XIX, fabricada por uma classe ansiosa por criar seu proprio discurso de legitimidade sem ser capaz de recorrer a ideia de hist6ria ou de tradigao (que era uma re- serva de classe mais baixa ou mais alta). A classe média tinha de afirmar a liberdade de criar seu ser a partir de sua prdpria energia de autoge- ra¢ao. Para Auerbach, o passo das mulheres para fora da “moldura im- posta” do patriarcado requeria um ato de vontade transcendente, libe- rando a “eterna energia do carater como metamorfose perpétua””. Mas, ‘@ menos que as contradi¢ées historicas ¢ de classe que animam a imagi- nagio patriarcal vitoriana sejam levadas a sério, essa transcendéncia es- tética ostentada continuaré inacessivel para a maioria das mulheres como eram os mitos masculinos vitorianos de autonomia de classe mé- dia para a maioria das mulheres. O “futuro liberado” de Auerbach con- tinuaré resolutamente acorrentado para a vasta maioria das mulheres no mundo — pobres e analfabetas — como o eram as variadas visdes do romantismo masculino. Precisamos, antes, retornar 4s contradigées de classe que deram forma ao espelho patriarcal. 7%. Gilbert e Gubar, The Madwoman in the Attic....p.76. 72. Auerbach, The Woman and the Demon..., p.228. 155 Coure imperial © FANTASMA NO ESPELHO A 4 de julho de 1863, durante as semanas do quente verfio em que Munby vagava sem descanso pelas ruelas de Londres, Punch imprimiu uma elo- quente charge de Sir John Tenniel sobre a moldura de classe que vincu- lava a imagem espelhada da mulher vitoriana duplicada. Intitulada “A dama assombrada”, ou “O fantasma no espelho”, a charge tornava publi- cas as escandalosas condicées de trabalho das costureiras de Londres (Figura 2.4). Em junho de 1863, na “alta estacao” de Londres, uma costu- reira de 20 anos, Mary Ann Walkley, entrou em colapso e morreu de exaustiio depois de trabalhar 26 horas e meia sem descanso. A charge de ‘Tenniel, publicada semanas depois, retrata uma senhora que admira sua imagem num espelho de corpo inteito e que vislumbra refletida no es- pelho a imagem surpreendente de uma mulher exausta e 4 morte, cur- vaca nas sombras as suas costas. Em lugar de um eu feminino unificado, © espelho reflete a imagem duplicada da feminilidade vitoriana: acima THE HAUNTED LADY, inom aaa “WH MOULD SOY HANH DMATFODTHD TOGH LADWAE, AP AY AACR, ax ROBE FRED 2 Eareea” Figura 2.4 A sinistra duplicagto do genera pela clase 156 | | | | | “Massa” e as criadas ~ Poder e deseja na metrépole imperial de uma cascata da saia de babados de renda (metonimia do écio decora- tivo), 0 corpo feminino se divide em dois, um cotovelo branco (sinal de auséncia de trabalho) e um torso desgrenhado de classe trabalhadora, quase morto de exaustiio. O espelho emoldura uma hidra, irmas siame- Sas que expressam plenamente a reciprocidade contraditéria e fatal da identidade das mulheres da classe trabalhadora e da classe alta. O espe- tho esti na loja, lugar de consumo e troca femininos, onde o trabalho da mulher trabalhadora se metamorfoseia no prestigio da mulher de classe alta. O trabalho, assim, se torna um {cone do enquadramento social da identidade, e a imagem duplicada da feminilidade vitoriana pode ser vista menos como uma duplicacao arquetipica no inconsciente > do que como expressio simbélica da divisdo material das mulheres por trabs- Tho e classe. No ramo “suado” da confecgio de roupas em Londres, a intrincada clegancia, os elaborados espartilhos, chapéus, penas ¢ punhos de renda vestidos pelas mulheres das classes ociosas eram feitos pelas mulheres Pobres, que passavam as piores dificuldades. Subcontratagao e salérios minimos; horas extremamente longas com pagamento miseravel; e tra- balho que era basicamente manual, repetitivo e exaustivo, realizado em s6téos lotados e quentissimos, davam o nome de “suadouro” a um dos trabalhos femininos mais terrivelmente explorados. A inciistria do ves- tuario expressava, assim, as contradigdes dominantes do trabalho das mulheres. Do trabalho das mulheres nos negocios suados dependiam os vestidos extravagantemente suntuosos das mulheres ociosas de classe alta de Londres. Isso envolvia uma semi6tica social da visibilidade. Para as classes al- tas, acordar ao meio dia e dangar até de manhi era para ser visto como conspicuamente ocioso; encomendar a tarde um vestido para ser usado a mesma noite era para ser visto como conspicuamente rico. A sala de estar (ostentando méveis artisticamente decorativos e aparadores com Portas de vidro repletos de caras pratarias € porcelanas) era 0 espaco onde as mulheres eram visitadas Para serem vistas como conspicuamen- te ociosas, enquanto o espago piiblico para a exibieao visivel da ociosida- de era o baile. As roupas caras ¢ elaboradas vestidas pelas mulheres tor- 7 Coure imperial naram-se os {cones visiveis da prosperidade e do status de classe masculinos. Ao mesmo tempo, como a charge de Tenniel deixa muito claro, esses emblemas de prestigio da classe alta dependiam do trabalho mortal da classe trabalhadora feminina. CRUZAMENTOS PERIGOSOS Trabalho e dinheiro Nao € ficil dar conta de uma civilizagio da mao. Roland Barthes Muitos criticos observaram o fascinio libidinoso de Munby com as maos das mulheres, Ao encontrar uma mulher da classe trabalhadora, ele atentava compulsivamente para suas mios avermelhadas, machucadas e marcadas pelo trabalho, e entio voltava para casa para entesourar o pra~ zet em descrigées no diario que estio repletas de brilho erético adiado. Descrigées de maos femnininas voltam repetidamente ao longo dos did- tios: “Tirei minha luva (elas nao tinham luvas!) para segurar a palma larga. As duas [...] tinham mios grossas, infinitamente sugestivas ao toque ¢ a vista’, Sem diivida, mos eram “infinitamente sugestivas” para Munby porque visivelmente expressavam as sobredeterminagdes de sexo, dinheiro e trabalho. As mios expressavam a classe das pessoas ¢ sua relacio com o tra- balho. Mios delicadas eram maos nao manchadas pelo trabalho. A lin- guagerm das luvas falava da “boa criagio”, do lazer e do dinheito, en- quanto suaves mios brancas revelavam que as pessoas podiam comprar 0 trabalho de outras. Como observou Hobsbawm: “A maneira mais segura de distinguir-se dos trabalhadores era empregar trabalhadores”™, Assim, mulheres de classe média que em verdade passavam seus dias 73. Hudson, Munby..., p16; Robbins, The Servant’s Hand... p.2; Davidoff, “Class and Gen- der...,"p. 4 74 Munby, “Diary”, in Hudson, Munby.p. 134. 75. Exic Hobsbawm, Industry and Empire (Harmondsworth: Penguin, 1968), p. 8s. “Massa” e as criadas ~ Poder e desejo na metrépole imperial esfregando, limpando e polindo iam a extremos para disfarcar seu tra- balho e apagar sua evidéncia das maos. Ao mesmo tempo, as méos eram icones metonimicos flutuantes, a palavra referindo-se a inteiras classes artesanais: dockbands [trabalhadores das docas], |, farmbands [trabalhado- resna lavoura]. Por essa razio,as mios eram também icones anacronicos, aparecendo com grande forca simbélica no momento mesmo quando 0 trabalho manual estava em vias de ser substitufdo pelo trabalho meca- nico — 0 trabalho vivo da mio seria logo substituido pelo trabalho morto da maquina. As mios representam um traco historico da meméria, a nostalgia de uum momento econdmico em desapari¢io. Ao mesmo tempo, represen- tam um trago de meméria psico/égica, a nostalgia de um “momento sexu- al em desaparigao (que esta diretamente relacionado ao dominio econ. mico também em desaparigio). As maos mantém o trago de meméria de uma fixagio anterior — aquelas maos timidas, asperas e avermelhadas da classe trabalhadora que banhavam, acariciavam, castigavam e alimen- tavam os meninos vitorianos que viriam a ascender ao poder. Por essa raziio, elas carregam a forga de um fetiche. As memoérias masculinas vi- torianas estao cheias de lembrancas do cheiro e da sensagio distintivos das maos das babas. Assim, a meméria sexual veio a se formar em torno de uma linguagem corporal de sujeira e limpeza e levou a uma afinidade iconogréfica em que sexo e trabalho se tornaram inextricdveis. Davidoff observa que as maos tinham conotacées sexuais explicitas: eram as mios que faziam o “trabalho sujo” da masturbaciio”’, As maos também eram instrumentos do castigo, levando a uma economia de prazer e dor nos tituais de flagelacao a que os vitorianos eram tio afeitos. As miios eram os érgiios em que a sexualidade e a economia vitoria~ nas literalmente se tocavam. Como disse Robbins: “O que produz o toque das mfos é 0 trabalho”””, A atividade de tocar as criangas era tra- balho, ainda que mal pago. Mas o que também produz o toque das maos € pagar pelo trabalho. A mao do senhor toca a da criada num momento 75. Davidoff, “Class and Gender. 77 Robbins, The Sereant’s Hand. 59) Couro imperial passageiro de intimidade fisica na troca de dinheiro, troca ritual que confirma e garante a cada vez, o dominio econémico do homem sobre 0 corpo, o trabalho e o tempo da mulher. Ao mesmo tempo, porém, con- firma sua dependéncia do trabalho dela. Como veremos, para Munby o pagamento em dinheiro fazia parte da estrutura de sua vida sexual com grande forga. Steven Marcus mostrou que “as imagens em que a sexualidade era representada na consciéncia eram extraidas da esfera da atividade socio- econémica e estavam relacionadas as preocupagées e ansiedades sobre problemas de acumulagao, produgio e gastos excessivos””*, Essa cone- xio se dé em parte porque, como sugeriu Foucault, faltava 4 classe mé- dia um meio para definir-se como classe e, portanto, ela tinha de inven- té-lo. A sexualidade (a relacdo com o proprio corpo e com os corpos dos outros) tornou-se a linguagem para expressar a relacZo com a classe (a relagao com o préprio trabalho e com o trabalho dos outros). Assim, a classe média se definia como diferente da aristocracia e das classes trabalhadoras, que gastavam, sexual e economicamente, sem moderagao © que preferiam nao trabalhar. Ela se distinguia em virtude de sua con- tengo sexual, sua monogamia (apenas para as mulheres, como obser- vou Engels) e sua contengiio econdmica (ou frugalidade). Donde o po- der excessivo da relagio entre sexo e dinheiro nas mentes vitorianas. Por volta do final do século XIX, tratados contra a sexualidade se refe- riam especificamente & maneira como a masturbacio interferia na capa- cidade de trabalho da pessoa. Em 1891, por exemplo, 0 Dr. Remondino atacava o lamentivel prepicio em sua History of Circumcision e compa- rava a circuncisio a um “bom seguro de vida” e a um “melhor investi- mento de poupanca”, que promoveria maior capacidade de trabalho de poupanga’, 78. Marcus, The Other Victorians. .., p. xii 79. De.P.C. Remondino, History of Circumcision from the Earliest Times to the Present (Lon~ dees: FA. Davis, 1892). 160 "Massa" e as criadas - Poder desejo na metrépole imperial CRUZAMENTOS PERIGOSOS Abjecao de classe e de género O homem casado pode chorar E tropecar nas trincheiras, Pois as mulheres esto resolvidas A vestir camisa e calgas. Cangao popular dos anos 1850 Nas descrigdes de Munby, o avermelhado dspero e pesado das mios das mulheres € uma ifagem que evoca a excitagio e o intumiescimento se- xuais. As mios estio intimamente relacionadas ao espetaculo do tra- balho feminino que tanto prazer de voyeur lhe dava, Mas, 20 mesmo tempo, o que o fascina nessas mos é 0 que ele percebe como falta de feminilidade: sua masculinidade, Ele registra uma e outra vez o primei- to momento ritual de seus encontros: “Eu olhava instintivamente para suas mfios: eram quadradas ¢ masculinas”®°. Mais que isso, as méos for- tes, dsperas, machucadas, vermelhas e masculinas o faziam sentir-se, por contraste, positivamente feminino. Num agosto, viajou de trem para 0 Palacio de Cristal, para o aniversdrio de Forrester (“entre todas as outras, a cena ¢ momento para ver as classes trabalhadoras inglesas”)*, La, como sempre, foi cativado pela visio das “mios sem luvas” de uma jovem trabalhadora. Forjando uma desculpa para tomar sua mio na dele, ele suspira com 0 choque do contraste: “Oh, companheiras de bai- le, que amplidao de carne para pegar!” © que fascina Munby na cena é precisamente a confuséo dos papéis de género: “Sua mio direita, massa grande ¢ vermelha, repousa sobre seu vestido claro; era muito ampla e quadrada e grossa — to grande, forte e aspera quanto a de um pedrei- ro de um metro e oitenta [...] nao tinha nada de feminino”*, Em con- traste, a propria mo dele parecia “muito branca e pequena ao lado da 80, Munby, “Diary”, in Hudson, Mundy... p.70. 81. Idem, op. cit, p. 72. 82. idem. 161 Couro imperial dela’, Em outra ocasiao, ele nota como grupos de faxineiras retacas € com os rostos pretos faziam com que uma tropa de homens cavalgando com luvas perfeitas e ociosa arrogancia parecessem positivamente femi- ninos em contraste™. Hudson foi o primeiro a notar a obsessto de Munby com 0 que con- siderava os tracos “masculinos” das trabalhadoras. Uma camponesa macica, sélida e de costas largas, “alta e forte como um homem’, era uma criatura digna de ser vista”, exultava ele. Ele lamentava a moda que fazia “efeminadas” as leiteiras. Comentaristas notaram seu interesse nas botas masculinas usadas pelas trabalhadoras. Avidamente Munby anotava em seu diario encontro com trabalhadoras em que ele se sentia deliciosa- mente feminino. Numa viagem a Devon para observar mulheres que escalavam rochedos com cordas para coletar mariscos, ele observou com “Bu, o homem do grupo, fui deixado numa posigio ridfcu- certo prazi la; um espectador inttil desse vigoroso atletismo”**. Noutra viagem 4 costa para olhar as coletoras de mexilhdes que revelavam seus “membros dourados e nus”, ele € isolado pela maré ¢, outra vez sem resistir, tem de abandonar seu “orgulho masculino” para subir nas costas de uma forte pescadora, que o carrega pela agua. Em outra entrada no didtio, ele re~ gistra ser resgatado da importunagao de prostitutas por uma forte jovem vendedora ambulante irlandesa. As descrigées de Munby dos tracos “masculinizados” dessas mulhe- res so tao insistentes que fica dificil lembrar que essas distingdes de _ trabalho com base no género eram invengées sociais recentes 4 época. Era ainda um desenvolvimento relativamente recente nos relatos popu- lares e cientificos definir como “assexuadas”as mulheres que faziam tra- balho servil. Mas esses discursos eram cruciais para a vida de fantasia de Munby, pois nessas mulheres ele podia desfrutar dos tragos masculinos 83, Ibidem, 84. Idem, op.cit, p.194. 85. Idem, op.cit. p. 7% 86. Idem, op. cit.,p. 256. 162 “Massa” e as criadas ~ Poder e desejo na metrépole imperial pelos quais ansiava sem por em perigo seu prdprio sentido prescrito de Como sempre, era a transgresséo do género que o fascinava. O que o extasiava era o espetaculo dos limites ultrapassados — aquele momento excitante em que a mulher se confundia com o homem e o homem com a mulher. O espeticulo voyeurtstico do travestismo o prendia irremedia- yelmente. Ele viajou centenas de quilémetros pela Gra-Bretanha e pelo continente a procura de trabalhadoras que se vestiam como homens. Foi a Yorkshire para olhar a maneira como as pescadoras prendiam as saias em volta dos joelhos, improvisando calgas. Em 1861, viajou 300 quiléme- tros para Devon simplesmente para observar mulheres que recolhiam mariscos com calgas de algodao. As mineiras de Wigan, que usavam calgas e mal eram distinguiveis de homens, exerciam uma atragio irre sistivel sobre ele. Travestis ocupavam um lugar especial em sua vida. Ele pos um antin- cio no jornal procurando noticias de uma “marinheira” acerca de quem tinha ouvido e ficou “extremamente excitado e desesperadamente ansio- so” a ponto de faltar ao trabalho, caso ela o chamasse¥”. Visitou uma delegacia de policia para assistir ao exame de uma criada de todo servigo que viajava disfarcada de homem, fumava charutos e namorava sua se- nhoria®. Viajou para Strood com um superintendente de policia para encontrar um “Richard” Bruce, mulher que usava roupas de homem, trabalhara como estivadora, marinheira e balconista, vivia em alojamen- tos masculinos e fora presa a caminho de Dover para trabalhar como professor na Franca. Os didrios registram em detalhe o choque de pra- zer que esses exemplos de confusio de género sempre lhe provocavam. ‘Um jovem alto, em trajes das terras altas, com as pernas nuas dos joclhos aos tornozelos (sempre fonte de excitago para Munby) acaba sendo uma mulher. Um forte acrobata sem qualquer coisa de “fraco ou femini- no” é uma menina (Figuras 2.5, 2.6)". 87. Idem, op. cit. p. 85. 88. Idem, op. cit., p. 110. 89. Idem, op. cit., p.254. 163 Coura imperial Figuras 2:5, 2.6 O circa da ambivaléncia de género, Os acrobatas “semelhantes a macacos” sempre o atraiam para os cir cos, onde, por pouco dinheiro, podia satisfazer seu voyeurismo conforta- velmente ¢ voltar para registrar 0 momento em seu didrio: “A prdpria Lizzie Foster estava vestida como um acrobata, de malha, com calca justa enfeitada e um colete sern mangas; 0 cabelo arrumado como o de uma mulher”#®, Uma entrada de junho: “Fui ao circo [...] para ver ‘Ella’; uma criatura espléndida, alta e bem feita, com grandes olhos brilhantes, tragos bonitos e cabelo escuro e abundante. Diz-se que € um homem fargado"®. Ele obteve intenso prazer do espeticulo dessas meninas dis “nuas e desprotegidas”, com seus corpos enlacados com os de homens sominus, expostas aos olhos e binéculos dos espectadores”. Também ficou impressionado pela visio de homens travestidos e femninizados:“O proprio homem, Leotard, era belo de ver; admiravelmente bem feito € go. Ibidem. gt. Idem, op. cit. 175. 92. Idem, op. cit.,p. 286. 164 “Massa” e as criadas - Poder ¢ desejo na metrépole imperial proporcionado; bragos, ombros e pernas musculosos; e tornozelos e pés tio elegantes como os de uma dama”®. Em certa ocasiao, ele foi Sala Egipcia para ver uma exibigao de gé meos siameses. © espeticulo dos seres geminados evocava a dinimica subjacente a seu voyeurismo. Talvez a visio de um ser humano que “nao completamente separado de todos os outros” tenha oferecido uma ana- logia espontinea de sua propria identidade”. Com a ambiguidade de géncro em circunstancias controladas (a exposigao, 0 circo), ele podia dominar as ambiguidades (Figuras 2.7, 2.8). Para Munby, o atrativo ir- resistivel das trabalhadoras era que, ao observé-las, ele podia desfrutar voyeuristicamente dos tracos masculinos que desejava sem pér em risco seu senso socialmente prescrito de masculinidade®. O circo atrafa Munby Figuras 2.7, 2.8 Encenando a transgressdo de género, 93. Idem, op.cit. p. 97. 94. Idem, op. cit. p. 266. 9s. Ver Davidoff, “Class and Gender...",p.49- 165 Coure imperial uma e outra vez, pois oferecia-Ihe uma arena controlada (ela mesma no limiar da sociedade) em que as perigosas ambiguidades de género po- diam ser representadas e administradas pela troca de dinheiro. A troca de dinheiro era um momento necessério na cena, pois, pela troca ritual de dinheiro,a perigosa troca de géneros podia ser contida, Munby dava ritualmente a mulheres trabalhadoras um punhado de moedas, e a troca confirmava sua fantasia de dominio econdmico sobre um espeticulo que de outra maneira poderia ter sido perigosamente emasculante. O que quero dizer aqui € que era sé por referéncia ao discurso da_ degeneragio ¢ do trabalho das mulheres que Munby podia conferir as mulheres trabalhadoras esses atributos “masculinos”. Com o discurso sobre a degeneragio, quanto mais servil o trabalho pago que uma mu- lher fazia, tanto mais ela seria masculinizada e assexuada; tanto mais ela era uma raga & parte. Ao mesmo tempo, a propria histéria psicodina- mica de Munby oferece um relato sugestivo da dinimica doméstica de _ classe subjacente ao discurso da degeneracio e da identificagao de traba- Thadoras brancas com os negros. A AMBIGUIDADE SOCIAL E O DISCURSO SOBRE A RAGA A esta altura, surge a terceira dimensao, espontanea, na vida psiquica de ‘Munby: a equivaléncia de mulheres da classe trabalhadora com homens de outras ragas que nao a branca. Um desenho sem data do caderno de esbogos de Munby mostra duas mulheres que se encaram de perfil (Figura 2.9). Uma delas é uma dama, a outra, uma carvoeira, e cada uma delas representa um tipo, um espécime de sua classe. Mas a identidade de classe de cada uma delas s6 é revelada por sua aparéncia exterior. Reve- la-se, assim, que a identidade de classe é relacional e, portanto, aparece aqui como uma invengio social escrita na linguagem das roupas ¢ de sinais fisicos. Hé duas razées por que as mulheres se encaram de perfil. Primeiro, na légica dos relatos raciais da época, 0 perfil do rosto é 0 simbolo mais eloquente da esséncia da “raga”, Segundo, é necessario que 166 "Massa" ¢ as criadas~ Poder ¢ desejo na metrépole imperial as mulheres se encarem, pois seus olhares se reconhecem e se confirmam entre si como representantes de suas classes. O esbogo revela com maior clareza a reciprocidade da identidade através da economia do olhar. O eu passa a existir pelo reconhecimento; mas, ao mesmo tempo (e contra a metafisica hegeliana de consciéncias sem corpo), 0 esbogo revela a identidade de classe como produto de poder social desigual, conformado ¢ legitimado através dos rituais socialmente sancionados de deferéncia ¢ condescendéncia. Figura 2.9 ~A racializagao da diferenga de class. Hi, porém, uma segunda dimensio no esbogo. O que parece ser um contraste principalmente de classe € representado como um contraste mais fundamental de género. Dentro do léxico simbélico da sexualidade vitoriana, a dama € um retrato de exagerada feminilidade. Seu perfil é delicado e belo, seu cabelo (simbolo vitoriano da sexualidade e de reali- zagio evolucionaria), contido ¢ penteado segundo a moda, suas saias, eclegantes ¢ limpas, Ela estende uma mio nua, branea e imperiosa. Em 167 Conro imperial contraste, a carvoeira € o retrato da masculinidade. Veste uma jaqueta masculina e calcas rasgadas e sujas. A barra esfiapada da calca revela tornozelos grossos e botas enormes. Seu perfil é pesado e escurecido por baixo de um capuz sujo. Um torso macigo sustenta bragos igualmente macigos, e as maos quadradas, muito maiores que as de sua equivalente feminina, seguram a ferramenta de seu trabalho — uma filica lata de 6leo que se projeta pouco abaixo de sua cintura e aponta para o meio do corpo da dama. sab Beompin’ Melly Ni foeeciton | Figura 2.10 ~ Abjegdo: 0 temtvel objeto Figura 2.21 ~ 0 eshogo de Boompiry Nelly, lo desejo. Esbogo de Munby de si mesmo uma mineira. com a carvoeira. Consideremos agora outro esboco (Figura 2.10). Outra vez, duas fi- gras se encaram. A figura a direita é uma carvoeira, sua aparéncia mui- to semelhante a figura no esbogo anterior. Outra vez, 0 rosto estd escu- recido ¢ com um capuz, os ombros volumosos, sob um casaco masculino. As grandes coxas, entreabertas, vestidas em calgas de homem esfarrapa~ das, voltada para melhor mostrar 0 torso quadrado. Mas 4 sua frente, onde a dama do outro esbogo ficava, agora est o proprio Munby. Em 168 “Massa” e as criadas ~ Poder e desejo na metrépole imperial contraste com a figura “masculina” sua frente, sua figura assume uma aparéncia sutilmente feminina. Seu perfil € aquilino e palido, nervoso “bem nascido”. Sua mio, delicadamente afilada, como a da dama no esbogo anterior, est estendida e apoia-se suavemente no muro da ponte. Seus pés, como os da dama, so menores que os da carvoeira e pontudos, Sua aparéncia tem uma aura de fragilidade, uma vulnerabilidade quase de invélido a0 lado do volume pesado da carvoeira. A notivel analogia entre os dois esbogos revela uma espontanea l6gica do desejo. Em ter mos da forma exterior do corpo, Munby revela uma identificagao secre~ ta com a classe alta feminina em relagao as masculinizadas mulheres da classe trabalhadora. Hi outra dimensio visivel nos esbogos que nao foi notada por ou- tros comentadores. Ainda que a carvoeira seja a encarnagio da ambi- guidade de género, ela também representa um cruzamento racial, pois, 4 parte sua “masculinidade”, sua caracteristica mais notavel é sua “ne- gritude”®*, Ela apresenta uma caricatura grotesca dos estigmas da dege- neragao racial: sua testa é achatada e curta; os brancos de seus olhos encaram tudo grotescamente de seu rosto preto; os labios sio artificial- mente cheios e palidos. Seu pescogo afunda-se nos ombros; suas mios so simiescas, negras e improvavelmente grandes; as canelas sfio curtas. O esbogo de Munby de Boompin’ Nelly revela estigmas semelhantes (Figura 2.11). A figura é inteiramente negra; ela senta curvada e sorum- batica, com os bragos colossais apoiados nas enormes pernas, curtas € afastadas. Qual é 0 significado desta terceira ¢ insistente narrativa da raga? Munby se refere muitas vezes 4 estranheza “racial” das mulheres da clas- se trabalhadora. Ele toma nota especial das faxineiras “de rosto preto”; chama as mulheres de “boas coolies”®”, ¢ se refere com frequéncia ao “tra~ 96. Davidoff comentou sobre a equivaléncia das criadas com sujeira e poluicio; a equivalén- cia de sujeira com negritude; e da negritude com sujeira, pecado, baixeza e feiura dentro de uma longs tradigio no Ocidente. E ela nota o simbolismo ampliado depois do século XVI com o continente negro e a escravidio. Mas ha mais em jogo do que a simples evo- cagdo de uma longa tradigao simbélica. Op. cit., p. 44. 97. Munby, “Diary”, in Hudson, Mundy... p. 174. 169 Couro imperial balho negro” das trabalhadoras (Figuras 2.12, 2.20). Seu interesse insaci- divel em inversdes de género ¢ incendiado quando ele aprende que na Africa as mulheres so guerreiras, politicas ¢ também trabalhadoras carregadoras de pesos, Ele fica intrigado com as mulheres que, a época, viviam disfargando-se como menestréis negras ¢ dava-lhes dinheiro por sua coragem de escurecer 0 rosto (Figura 2.21)". Assim, os perigosos cruzamentos de género e classe sio negociados projetando sobre eles a retérica da raga, Um dia, ele registra uma ida 4 Sociedade Geogréfica para ver um grande gorila empalhado e evoca a irresistivel analogia entre as trabalhadoras € os macacos: as maos do gorila, de quatro a cinco po- legadas de largura, lembram-lhe as maos de Amelia Banfield, uma cria~ da do campo, e de outras trabalhadoras que viu'?, Figura 2.12 ~ Mulber fitica com pi, racializada. 98. Idem, op. cit, p. 185. 99. Idem, op. ci 100, Idem, op. 170 fe “Massa” e as criadas ~ Poder ¢ desejo na metropole imperial Figura 2.13 ~A racializagio da Figura 2.14 ~ Mulher de fundigao: diferenga sexual. 2 capus: como mdscara-fetiche. Figuras 2.15, 2.16 — Raga como fetiche yt Couro imperial Piguras 2.17, 2.18, 2.19 ~ Raga como fetiche 17 Figura 2.21 ~ Passando-se por negra. Exhogo de Munby de uma menestrel de rua. (e “Massa” e as criadas ~ Poder e desejo na metrépole imperial IMPERIALISMO E MINERAGAO ‘Mulheres da classe trabalhadora, isto é, mulheres que eram pagas para trabalhar, eram por isso vistas como se habitassem um espago anacré- nico, encarnando uma regresso a um momento anterior do desenvol- vimento racial. Subjacente a essa retérica de classe ¢ raga, contudo, esta uma grande contradigéo da economia vitoriana: a transi¢ao de um industrialismo baseado na escraviddo imperial para um imperialismo industrial baseado no trabalho assalariado. Peter Fryer nos lembra que havia africanos na Gra-Bretanha antes dos Ingleses"'. Sempre houve uma pequena, mas continua, presenga negra na Gra-Bretanha. Essa presenga aumentou depois da invasio do Novo Mundo e da escravidio do Renascimento, de tal forma que, em 1601, a Rainha Elizabeth se declarou “altamente desconcertada para entender o grande niimero de negros e mouros que [...] se arrastaram para esse dominio”. De qualquer modo, a despeito de tal régia apre- ensio, negros serviam como trombeteiros na corte, e damas de compa~ nhia da rainha se divertiam disfargando-se de negras nos bailes de mas~ caras. Ao final do século XVI, a posse de um escravo negro dava prestigio e glamour as familias nobres. No inicio do século XVII, pajens ¢ lavadeiras negras eram percebidas, ainda que em pequeno nximero, como simbolos de séatus nas grandes mansées da nobreza inglesa, Aj- sim, ha uma analogia histérica entre os escravos negros de uma époes anterior e os trabalhadores domésticos do periodo vitoriano como sim- bolos de status de classe. A alvorada do sistema fabril e a consolidagao do capitalismo briti- nico se fundavam no florescente comércio triangular em téxteis, eseri- vos, acticar e especiarias. Como diz Hobsbawm: “Quando dizemos in- dustrializagio, dizemos algodio. E quando dizemos algodio, dizemos rot. Peter Fryer, Staying Power: The History of Black People in Britain (Londres: Pluto 1984), p- 1. 102. Idem, op. 4 Pe TO. z73) Couro imperial escravidio”3. Entre 1630 ¢ 1807, estima-se que 2,5 milhdes de escravos foram vendidos pelos mercadores de escravos britanicos. O comércio de escravos cra “o primeiro principio e fundamento de todo o resto, o me- canismo principal da maquina, que pde em movimento todas as en- grenagens”*, Ricos de repente, os plantadores voltavam 4 Gra-Bretanha com es- cravos negros para exibir sua riqueza e prestigio, e 0 mesmo faziam al- guns oficiais dos navios negreiros e até marinheiros, eventualmente. Una crianca negra em libré vistosa e enfeitada era um emblema vistvel de posses, poder ¢ fortunas imperiais fabuladas. Por volta do século XVIII, havia cerca de dez mil negros na Gra-Bretanha trabalhando como pajens, valetes, lacaios, cocheiros, cozinheiros e criados"s. As mu- Theres eram cozinheiras, lavadeiras, costureiras e babs, e algumas eram levadas & prostituicao por dificuldades econémicas. Outras lutavam numa existéncia tenaz e precaria como mendigas, cantoras de rua e mii- sicas, as vezes em roupas coloridas. E algumas africanas famosas, como Saadjie Baadman, eram exibidas como aberraces'*. Por essa época, as negras eram cada vez mais associadas a uma sexua- lidade lasciva e sem freios. A associacio entre negros e sexualidade vem da Idade Média: a propria sexualidade era chamada havia muito de “pe- cado africano”, e negros em mapas coloniais eram frequentemente re- presentados com pénis exageradamente longos. Na prépria Gri-Breta- nha, a instituig&o da escravatura tinha desaparecido por volta de 1790, nao por qualquer desgosto moral dos britanicos, mas pelo sucesso da continuada resisténcia negra. Além das fronteiras nacionais, o tréfico de escravos britinico terminou em 1807 e a escravidio, em 1833. Nesse tem- 103. Hobsbawm, Industry and Empire, p. 36. 104. Idem, op. cit., p.38. 105. Fryes, Staying Power... p.72. 106. Ver Sander L. Gilman, Difference and Pathology: Stereotypes of Sexuality, Race and Mad- ness (Ithaca: Cornell University Press, x985), capitulo 3. Ver também Ben Shephard, “Showbiz Imperialism: The Case of Peter Lobengula,” in John M. Mackenzie (org,), Imperialism and Popular Culture (Manchester: Manchester University Press, 1986), Pp. 94-112. 174 “Massa” e as criadas — Poder e desejo na metrépole imperial po, colonos e plantadores brancos manifestavam seus temores de per- der o controle sobre a propriedade e o trabalho, num discurso obses- sivo sobre a ameaca de manchas no sangue pelos casamentos mistos. Esse temor & miscigenagao nas col6nias alimentava um discurso an- sioso e vituperativo sobre a perigosa inclinacio das mulheres brancas pelos negros. Nos anos 1780, James Tobin observou a “estranha par- cialidade que as ordens mais baixas de mulheres mostravam em rela- go a eles”, A associagio que Munby fazia entre mulheres da classe trabalha- dora e africanas estava, assim, longe de ser uma idiossincrasia. Ao contrario, ele se apoia numa associagio encontradica e bem estabele- cida que, por sua vez, se funda nos suportes econdmicos da Revolu- sao Industrial. O significado mais profundo da dimensao racial em sua vida de fantasia pode ser mais bem explorada por referéncia as mineiras de Wigan que o levavam a sair de Londres para vé-las tra~ balhar, de calgas ¢ sujas, extraindo laboriosamente da terra 0 carvio da Gra-Bretanha. GENERO E MINERAGAO Durante mais de 30 anos, Munby viajou para o Norte para ver as minei- ras de Lancaster “em sua sujeira”. Mas seu fervoroso interesse Por essas mulheres era mais que um capricho privado, pois. a medida que o século avangava. as mineiras viravam o centro de um debate feroz sobre o tra- balho ea sexualidade femininos. Mulheres tinham trabalhado nas minas de carvao por séculos, na maioria das vezes como “extratoras” nos noté- tios arreios e correntes com que puxavam as barricas de carvio através de taneis estreitos e encharcados — em certos lugares carregando 0 car- vo em cestos as costas, em escadas ingremes, até a superficie"®®, Em 1800, trabalhadores britanicos extrafam da terra 80% de todo o carvao, € 107, Fryes, Staying Power... p.162. 108. Angela John, By the Sweat of Their Brow: Women Workers at Victorian Coal Mines (Lon- dres: Routledge, 1984), capitulo r. 75 Couro imperial muitos mineiros eram ainda mulheres. Entio, em 1842, convergindo com os esforgos gerais para expulsar as mulheres da competi¢do com os ho- mens pelo trabalho assalariado, foi publicado o escandaloso Primeiro Relatério da Comissio sobre o Emprego de Criancas nas Minas. Este foi rapidamente seguido pela Lei de Regulamento das Minas de Car- vio, que baniu as mulheres ¢ meninas do trabalho subterraneo. Mas, durante o resto do século, as mulheres ainda trabalharam na superficie das minas, quebrando ¢ carregando 0 carvao com picaretas € pds, en- chendo os vagées de trem, empurrando ¢ esvaziando os pesados vagdes das minas. As mulheres de Wigan exemplificam as contradigées nas atitudes vitorianas em relagao ao trabalho das mulheres € poem em relevo 0 con- flito entre a imagem da mulher ornamental ¢ ociosa ¢ a realidade do trabalho manual feminino. No entanto, muito do ultraje em relacio ao espetaculo de mulheres de calcas manejando picaretas e pés era hipé- crita, pois 0 trabalho delas era as vezes mais extenuante e menos preju- dicial do que outras ocupagdes. Uma jovem criada de todo servigo, por exemplo, podia trabalhar horas mais longas e extenuantes carregando baldes de agua ou cestos de carvio por muitos lances de escadas, esva~ ziando baldes malcheirosos de Agua servida, esfregando, limpando e po- lindo — todo o tempo isolada da familia e da comunidade, miseravel- mente paga e quase sempre emocional e fisicamente 4 mercé dos homens da casa. Mas trabalho doméstico, ainda que mais dificil e debilitante, era trabalho doméstico, oculto na cozinha e no porio — afronta menos vi- sivel 4 emergente ideologia da ociosidade feminina. E, como esse nio era um campo de competi¢’o com os homens, nao havia clamor por essas mulheres. : Havia outras razées para a histeria sobre as mineiras. Embora a nova economia industrial fosse construida sobre o algodao, sua energia vinha do carvao. A mineracdo era obviamente central para o surgimento do capitalismo. No inicio, o capitalismo foi financiado pelas minas de ouro e prata da América Latina; agora era o carvéo que alimentava o impe- rialismo industrial. No entanto, a mineracao era uma industria contra- ditéria. Allan Sekula fez diversas observasdes muito importantes a esse 176 “Massa” ¢ as criadas - Poder e desejo na metrépole imperial respeito'’. Ainda que a mineracio fosse a principal forga por trés da acumula¢ao primitiva da riqueza industrial, ela continuava a ser uma industria rural, localizada em Areas remotas ¢ deliberadamente subde- senvolvidas. A tecnologia da mineracio antecipou o sistema fabril, mas continuava, de qualquer maneira, como uma indtistria manual, jé bem avangado o século XIX. Mas, embora manual, em nivel simbélico tam- bém representava “a forma prototipica da indiistria”. E, mais que qual- quer outra pritica, a mineragao exemplificava “a dominagao direta da natureza, a extra¢ao de valor da natureza por meios alheios. A minera- go € a antitese simbdlica da agricultura”™’. Ao mesmo tempo, numa tradi¢ao cultural que vinha do século XVII, & mineracfo se tornou a metafora do dominio cientifico e filosdfico do mundo", Nao é preciso dizer, embora Sekula seja indiferente ao género, que a mineracao também se tornou a met4fora do dominio sexual mas- culino do mundo. Por todas essas razées, a mineragao adquiriu uma carga simbélica poderosa e, com o avango do século, o espeticulo de mulheres fortes, musculosas ¢ encardidas trabalhando nessa indtistria vital ¢ contraditéria se tornou cada vez mais intoleravel. Como observa Sekula, “a cultura das comunidades mineiras é fre- quentemente tanto militantemente proletéria quanto rica no sentido da continuidade rural e de resisténcia 4 disciplina industrial”, Para ade- quar essa cultura rural rica, militante e rural a logica da disciplina indus- trial, o mundo da mineragao tinha de ser racionalizado. E, para ser ra~ cionalizado, tinha de ser sistematicamente representado", 109. Allan Sekula, Photography Against the Grain: Essays and Photo Works — roy3-198 (Halifax: Press of the Nova Scotia College of Art and Design, 1984), pp. 193-268. 10, Idem, op. cit., p.204. ut. Ibidem. m2. Ibidem, 133. Ibidem. 77 Couro imperial RAGA E O POLICIAMENTO DO TRABALHO FEMININO Por essas razées, nao é de surpreender, entdo, que os mineiros, particu- larmente as mineiras, acabassem profundamente implicados no discurso emergente sobre a degeneracio racial. Depois dos anos 50, as narrativas de raga e género elaboradas pelos cientistas raciais, politicos, novelistas e plarrejadores sociais ofereciam importante fonte de representacio sim- bélica a que se podia recorrer nos esforcos para racionalizar e disciplinar a indastria da mineragdo. Nos jornais, relatrios governamentais, relatos pessoais e revistas, as mineiras eram representadas como uma raga “A parte”, vistas como parias raciais, historicamente abandonadas, isoladas ¢ primitivas. Cunning Bruce, parlamentar escocés, observou que 0 povo mineiro era “olhado como uma raca separada”™. O Morning Leader des- crevia a “dura raga” que empurrava e manejava os vagées como““amazo- nas industriais”"S. Frances Hodgson Burnett falava de sua “existéncia meio selvagem”™%, The Quarterly Review, ignorando o fato de que as mulheres eram mineiras hé séculos, ventilou um hiperbdlico espanto diante do espetaculo dos novos espécimes raciais: “A terra parece ter ti- rado de suas entranhas pela primeira vez outra raga para espantar-nos € levar-nos & reflexio e 4 compreensio””, A yisao das mineiras conjurou imagens ansiosas de degeneragio ra- cial e sexual, evocando um conjunto de associacées entre mulheres, lou- cura, abandono sexual ¢ 0 irracional. Uma testemunha as descrevia como “esquisitas criaturas escuras, figuras de mulher, vestidas metade como homens e metade como mulheres, mergulhando aqui e ali, como que envolvidas nalguma saturnal tumultuada”**. O trabalho das mulheres, como antes, tornou-se a medida da posiga&o dos mineiros na hierarquia 114. Apnd Angela John, By the Stweat of Their Brow... p. 26. ts, Idem, op. cit.,p.218 116. Idem, op. cit.,p. 187. 117. Idem, op. cit.,p. 45 18, Idem, op. cit.,p. 27. 178 Massa” ¢ as criadas ~ Poder ¢ desejo na metrépole imperial da “raga” britanica, e os marcava como atrasados nas regiées préximas da degradacao racial. Plummer descrevia o trabalho das mulheres de Wi- gan como “uma espécie de trabalho que é um dos lacos remanescentes pelos quais nossa civilizacao atual se une a um passado bérbaro”™. Ri- chard Ayton, um dos primeiros a condenar as minas, apelou, em tom um tanto santarrdo, suposta elevacio racial ¢ 4 galanteria do homem brita- nico: “A estima pelas mulheres € um teste da civilizagiio de um povo; e é escandaloso, num pais de homens galantes, vé-las sacrificadas 4 Aspera lida nas minas de carvio””°. Porque as mulheres trabalhavarm — forte Gs visivelmente, por dinheiro — os politicos fulminaram: As costas e membros de suas prdprias conterriineas sio quebrados ¢ sua na- tureza moral é corrompida por uma espécie de escravidio nas minas de car- vio, mais degradante ¢ licenciosa que qualquer que se dé entre servos e escra~ vos em qualquer parte do mundo que os fanéticos da empresa missionaria tenham descoberto para reivindicar dinheiro™. A relagao entre o capitalismo industrial e o imperialismo se fez sentir constantemente em analogias 4 escravidao e na linguagem dos explo- - O Morning Chronicle descreve as descobertas da Comis- radores sociai so de Emprego de Criangas como um “livro de viagens a um remoto pais barbaro”™, De longe o maior ultraje era relativo a dessexualizacdo das mulheres. Como as minas representavam a dominacio técnica e sexual da nature- za ¢ os mistérios da metalurgia e do dinheiro, a presenga de mulheres penetrando profundamente na terra, manejando enormes e filicas pas provocava grandes ansiedades sobre o desregramento de género. O fato de que homens ¢ mulheres trabalhassem juntos era um fato “barbaro demais para ser tolerado”. Essa ansiedade estava metonimicamente in- ug. Apud Hiley, Victorian Working Women, 120. Idem, op.cit.,p.3. rar, Idem, op. cit, p. 45. 122. The Morning Chronicle, 7 de maio de 1842. 179 Couro imperial corporada na extraordindria celeuma sobre as calcas das mulheres. Para trabalhar com maior conforto e de maneira mais eficiente, as mulheres usavam calgas riisticas de tecido preto, aventais listrados, camisas de co- Jatinho desabotoado, casacos de homem e bonés de pala (Figura 2.22). Aprovadoramente, Munby se refere a elas como “as belas de calgas”, mas ele estava quase s6 em sua admiragao. A maioria das testemunhas ¢ vi- sitantes abominava o “tipo desagradével de roupa masculina’, os “imen- ciondveis? que ameagavam a fibra moral da nag4o". S40 abundantes os exemplos de tiradas sobre o trabalho “que tirava absolutamente o sexo das mulheres”, tornando-as “profunda e asperamente nao femininas” (Pigura 2.23). Ayton arengava contra “o deboche mais bestial” que preva- locia, da “indecéncia desavergonhada’ de trajes e moral, as mulheres “desprezando todos os tipos de repressao”"*. Figura 2.22 ~ Mineira com a félica pa. 123. Apud Hiley, Victorian Working Women... p.180. 124. Idem, op. cit, p.30. 180 “Massa” ¢ as criadas ~ Poder e desejo na metrépole imperial Figura 2.23 ~ Ambiguidade de género. Na maioria das vezes, os criticos atacavam a indistria em termos morais, e nao por simpatia com as condigdes de trabalho das mulheres. ‘A Comissao temia que essa ocupacio “no feminina’ levasse a “deterio- ragao do carater”. Testemunhando diante da Comissio Real de Agri~ cultura de 1867, um lavrador declarava que 0 trabalho no campo (a des~ peito de séculos de trabalho do tipo mais extenuante realizado por mulheres no campo) “quase tiraria 0 sexo das mulheres, no vestir, na maneira de andar, nos modos, no cardter, fazendo-as dsperas riisticas, desajeitadas, masculinas”, pois elas assim estariam inadequadas para seus deveres no lar. Na verdade, ficou claro que as ansiedades sobre a licen= ciosidade sexual e a degeneragéo da maternidade eram infundadas. A maioria das trabalhadoras era solteira e abandonava o trabalho assalaria» do ao casar, Parece antes que subjacente ao clamor baritono contra a li» 125, Angela John, By the Sweat of Their Brow..., p.190. 181 Couro imperial cenciosidade sexual estava o temor da perda do controle patriarcal no lar sobre os corpos, trabalho e dinheiro das jovens™®. O IMPERIALISMO E A MULTIDAO URBANA Nas tltimas décadas do século XIX, a multiddo urbana virou um fetiche recorrente para os temores das classes dirigentes relativos 4 inquietagio social e & militancia das classes inferiores. A espreita na esplendorosa metropole, a multidao encarnava uma subclasse “selvagem” e perigosa esperando para saltar sobre as classes proprietirias. Como encarnagio da atuagao desviante, a multidao tornou-se o simbolo metonimico dos desempregados ¢ dos pobres desregrados, que eram associados aos cri- minosos e aos loucos, que eram, por sua vez, associados as mulheres, particularmente as prostitutas e alcodlatras, que eram por sua-vez asso- ciadas as criangas, que eram associadas aos “primitivos” ¢ ao dominio do império. A multidao degenerada ocupava uma perigosa zona liminar na fronteira entre fibrica e familia, trabalho ¢ domesticidade, em que o mundo ptblico do poder dos proprietérios ¢ o mundo privado do deco- ro familiar aleangavam seu limite conceitual. Tendo escapado a discipli- na do trabalho racional, a multidao era descrita como o paradigma da atuagio nao natural — violentamente irracional, mas hipnoticamente diictil, selvagem e bestial, inerentemente criminosa e, acima de tudo, feminina™. Imagens de violéncia feminina enchem a imagem da multidao, a despeito do fato de que as multidées urbanas em tumulto fossem predo- 126. A inquietagao expressa pelos homens era também um indice da resisténcia das mulheres. Havia relatos ansiosos de mulheres enfrentando homens, e fortes o suficiente para ven- cer: As mulheres eram descritas como militantes ¢ dadas ao pugilato, resistindo violen- tamente & expulsio das minas. De fato, John observa que parte da razdo por que se cri- ticava que as mulheres usassem roupas de homem era o fato de que essas roupas tornavam inais facil para elas, quando barradas das minas, escapar a detecsio pela policia e pelos inspetores. 17. Ver Susanna Barrows, Distorting Mirrors: Visions of the Crowd in Late Nineteenth Cen~ tury France (New Haven: Yale University Press, 1981). 182 “Massa” ¢ as criadas ~ Poder « desejo na metrépole imperial inantemente masculinas. O comportamento masculino na multidao, dizia-se, copiava comportamento social tipico de mulheres. Tarde, por exemplo, via a “volubilidade” da multidao, sua revoltante “docilidade”, sua “credulidade”, e seu “nervosismo” como definitivamente femininos. “A multidao”, insistia ele, “é feminina, mesmo quando é composta, como é geralmente o caso, de homens”™*, Na multidao, a masculinidade cai na forma degenerada feminina da raga. Tornando feminina a multidio masculina, a linguagem do género tornou-se um discurso regulador para aadministracao da classe. Ao mesmo tempo, porém, como mostrou Barrows, a imagem da multidio feminina ameagadora refletia a genuina paranoia masculina sobre insurgentes demandas fernininas por educacio, sufragio ¢ traba- tho. Barrows vé a multida’o como uma condensacio de temores, um amélgama de paranoias, distorsdes ¢ hipérboles: “Tais padr6es de distor- gio e hipérbole lembram 0 processo que Freud mais tarde descreveu como central tanto para o comportamento neurdtico quanto para o ‘tra~ balho do sonho””®. Como imagem liminar exemplar, a multidao entrou no reino do fetiche. A imagem da multidao era também uma resposta a ameacas muito reais da subclasse. Os anos 1880 ¢ 1890 foram marcados por ondas de greves de estivadores, demonstragées de massa, ataques anarquistas e as revoltas de Trafalgar Square. As filiagdes sindicais aumentaram e a Gra Bretanha assistiu ao surgimento de um Partido Trabalhista indepen dente, A imagem fetiche da multidaio como degenerada era uma medida das ansiedades muito reais da classe dirigente em relagio a resisténcia popular, ¢ também um elemento crucial para legitimar o policiamento de comunidades da classe trabalhadora militante. Definida como para- digma urbano do anacronico espago tornado feminino,a multidao podia ser legitimamente submetida 4 a¢ao do Estado e as tecnologias regula doras do progresso. 128, Idem, op. cit, p. 47. 12g. Idem, op. cit, p. 192. 183 Couro imperial Mas, se o espago anacrénico da multidao urbana deve ser disciplina- do, ele tinha antes de ser representado. Eram necessérias tecnologias de representacdo para policiar as fronteiras instéveis entre o privado ¢ o publico e para levantar, mapear e reunir centros de militancia urbana em territérios de contencio. Essas foram as décadas dos exploradores so- ciais, quando homens de classe média ¢ de alta classe média se aventu- ravam na terra incognita das areas da classe trabalhadora britanica, com a pose de exploradores em viagens a terras desconhecidas. Como disse Godwin, esses homens se dispunham a “enfrentar os riscos da febre e outros prejuizos para a satide e ao contato de homens e mulheres muitas vezes tio fora da lei quanto os arabes ou os Aaffirs”®°. A partir de ima- gens populares de viagens imperiais, esses exploradores urbanos volta~ vam de suas excursdes urbanas com acumulagio primitiva de “fatos” “estatisticas” sobre as “racas” que viviam em seu meio. O discurso colonial era sistematicamente desenvolvido para mapear 0 espago urbano numa geografia de poder e contencao. A analogia entre cortigo e coldnia era incansavelmente invocada, e também a figura prin- cipal do descobrimento imperial’. A Eclectic Review saudou o grande explorador Henry Mayhew como tendo “viajado pelas desconhecidas regides de nossa metrdpole e retornado com relatos completos sobre as estranhas tribos de homens que se pode dizer que ele descobriu’”, Certamente, uma gera¢ao anterior de escritores — John Holling- shead, George Godwin, Charles Munby Smith e John Garwood — jé tinha forjado a analogia entre terras colonizadas ¢ comunidades de clas- se trabalhadora®. Ja em 1829, Robert Southey chamara Londres de “co- racdo de nosso sistema comercial, mas também viveiro da corrupgio [...] lugar do intelecto e do império [...] mas também uma selva onde eles, 130. George Godwin, London Shadows, p.x. Ver Peter J. Keating, The Working Classes in Vieto~ rian Fiction (Nova York: Barnes and Noble, 1971), capitulo 2. tut. Ver Deborah Epstein Nord, "The Social Explorer as Anthropologist: Victorian Travel- ers Among the Urban Poor’, in William Sharpe e Leonard Wallock (orgs.), Visions of the Modern City: Essays in History, Art and Literature (Nova York: Columbia University Press, 1983). 132. Ver Keating, The Working Classes...,capitulos re 2. 184. “Massa” ¢ as criadas ~ Poder « desejo na metrépole imperial que vivem como bestas selvagens sobre seus semelhantes, encon| presas ¢ esconderijos”. EXPLORADORES URBANOS Vigilancia filantrépica Em meio aos anos 1880, tomou forma uma nova era no “descobrime: to” do East End. Keating observa que os tiltimos “exploradores” soci vitorianos diferiam dos escritores anteriores na “quase total énfase cortigos e nos trabalhadores do East End” — e nao em Manches! digamos, ou em Liverpool". Por que precisamente o East End? Ow! areas de Londres eram igualmente pobres e desesperadas, mas o Bi End podia servir melhor em termos simbélicos. Espalhando-se atray do Tamisa, desembocando no mar, o East End era o canal para o imy tio — um espago liminar, exdtico, mas muito préximo, na cispide industria e do império. Com base na narrativa do progresso imperial e nas jornadas part interior, jornalistas, assistentes sociais e romancistas. viam os cortigos East End — na linguagem do império ¢ da degeneragio — como tanos” e “selvas’, “sombras”, “piistulas e feridas malignas com que 0 po da sociedade € salpicado”S, A densidade, tamanho e expansiio cortigos entrelagados eram equiparados a selvas, ¢ a linguagem da presa missiondria imperial era evocada para justificar sua invasiio € sujeigao ao progresso. Jornalistas ¢ escritores que se aventuravam: cortigos eram vistos como missiondrios e colonizadores, trazendo escuridio incivilizada. A Eclectic Review aplaudiu Mayhew, que terrou as estranhas fundagées da sociedade e “as expds 4 luz”. Em William Booth, fundador do Exército da Salvagio, publicou um 133. Sir Robert Southey, Sir Thomas More, or Collaquies on the Progress and Prospects of (Londres: Murray, 1829), p. 108. a 354. Keating, The Working Classes..., p.105. 135. George Godwin, Teeon Swamps and Social Bridges (Nova York: Humanities [:859)), p.t. 185 Couro imperial diretamente inspirado por In Darkest Africa, de Henry Morton Stanley, edeu-lhe o titulo de In Darkest England and the Way Out®. Prefigurando as paisagens coloniais de Conrad e a paisagem de A Passage to India, de Forster, os cortigos urbanos eram apresentados como problemas epistemolégicos — como mundos anacrénicos de privacio e inrealidade, zonas sem linguagem, histéria ou razdio que sé podiam ser descritas por analogias negativas, em termos do que nao eram. A es- tranheza e densidade do espeticulo urbano resistia 4 compreensio do olho empirico do intruso como um enigma resiste ao conhecimento. All Sorts and Conditions of Men, de Walter Besant, descreve os habitan- tes do East End como nio tendo instituigdes préprias, nem nobreza, nem teatros — s6 podiam ser descritos por negativas. Como as pai- sagens coloniais, os cortigos cram vistos como habitando um espago anacrOnico, representando uma regressao temporal dentro da moder- nidade industrial em um tempo além da meméria. Habitado por pes- soas sem capacidade ou razio original, o East End “tem pouca ou ne- nhuma histéria”®’, Contudo, esse colapso da hist6ria era menos um atributo das comu- nidades desclassificadas do que um traco defensivo dos intrusos de clas~ se média, um sinal do fracasso da representagao, negada e projetada nas subclasses como condiggo de seu atavismo racial. A modernidade do explorador de classe média era iluminada por contraste negativo com 0 areaismo atavico da multidao urbana. Ao mesmo tempo, as imagens da exploracao imperial que cobriam is excursdes jornalisticas e os relatérios parlamentares ofereciam uma tecnologia imaginaria de vigilancia que tanto exortava como justificava 4 intervengiio social. A apresentacao dos corticos como terra estrangeira crlava uma impressao de afastamento e distingao que justificava as via- gens de esclarecimento e reforma dos tomadores de decisdes. Se essas ‘ineas ram estranhas, nfo descobertas e nao mapeadas, podiam ser re- 146, William Booth, In Darkese England and the Way Out (Londres: International Headquar- ters of the Salvation Army, 1890). 14. Walter Besant, A Sorts and Conditions of Men (Nova York: Harper, 1882), p.18. 186 "Massa" ¢ as criadas — Poder e desejo na metrépole imperial presentadas e disciplinadas sem contestagio. Como os espagos em bran- co dos mapas coloniais, as comunidades da classe trabalhadora pode- riam — teoricamente — ser pesquisadas e mantidas sem competicao da parte da classe trabalhadora e dos militantes. A linguagem da desco- berta era uma linguagem de negacao e despossessio, roubando as clas- ses descobertas a autoridade originaria e negando a capacidade de re- presentarem a si mesmas, bem como o poder de fazer historia. As subclasses descobertas eram vistas como se tivessem passado a existir apenas pelo olhar do descobridor, cuja visio geradora lhes concedia his- t6ria e linguagem — no preciso momento em que a classe trabalhadora insistia em assumir a posse militante de sua propria histéria. A FOTOGRAFIA E 0 TEMPO PANOPTICO Uma fotografia é um segredo sobre um segredo. Quanto mais ela lhe diz, menos vocé sabe, Diane Arbus Nao foi por acaso que os quadros de Atget foram com- parados com os de cenas de crime. Mas niio é cada trecho de nossas cidades uma cena de um crime? Nao oculta o fotdgrafo — descendente dos augures ¢ sacerdotes — culpa em seus retratos? ‘Walter Benjamin Fabian explorou a tradigao empirica ocidental, em que “visualizar’ uma cultura ou sociedade se torna quase sindnimo de compreendé-la”*, A tradigio do empirismo cientifico formulada por John Locke tem como um de seus princ{pios mais tenazes a nogao de que “a percep¢ao da men- te é explicada de maneira mais adequada por palavras relacionadas & visio"®®, Como diz Fabia: 338. Johannes Fabian, Time and the Other: How Anthropology Makes its Object (Nova York: Columbia University Press, 1983), p.106. 19. Apud idem, op. cit, p.227. 187

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