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OS MAPAS DO HUMANO EM ANTONIO LOBO ANTUNES. Nuno Jidice* ‘Uma das minhas memérias de infincia tem a ver com os mapas. Lembro- -me da preciséo com que ¢ feita a separagio entre terra e mat, ceanos ¢ con- tinentes,rios, montanhas, cidades: eudo através de linhas, cores, pontos, ‘numa multiplicidade de direcgées que € dada pela nitidez com que cada ‘minisculo fragmento do mundo nos é indicado. Essa meméria perpassa pelo ‘meu contacto com a literatura. O que me interessa, num romance, ou numa obra, é encontrar caminhos, encruzihadas, fronteiras que podem ser atra- vvessidas, ou nos convidam 2 sua travessia candestina, pontos altos — como ‘cumes ~ ¢ também os vales sombrios onde o espirito € assombrado pela que- dda, arquéipo imemorial da fraqueza humana, Para isso o veo tem de sair da cafere superficial da conversa de saléo, mesmo que esta também possa ser ‘um ponto de partida (lembremo-nos de Proust); € também da reacgéo epi- dérmica a0 que 2 moda impée, fazendo brilhar numa saison o que, amanha, ‘nfo irk passar de tapos arrumados em armazéns de saldos. A literatura ‘expressio onde pode haver 0 melhor € pior, tem de ser objecto de uma sepa- ragio de dguas, tl como nesses velhos mapas, por quem nela pretenda encon- trar caminhos roves, que sio também um convite & descoberta do que somos, cada um de nds, ea eitura nos ajuda a compreender. ‘Todos os grandes romances sfo, assim, como esse mapa que nos abre regides desconhecidas, mas que também nos obriga a decffar os sinais de ‘orientaszo, e nos compromete na escolha de uma ou outra direcgio; € so, Eni, 313 A ESCRITA 0 MUNDO EM ANTONIO LOBO ANTUNES. sobrerudo, a porta de entrada para nos apresentar os habitantes deses espa- 05, que a escrita nos vai trazendo, com os seus problemas, a sua linguagem, (0s seus sonhos ¢ frustragdes, numa multplicidade de companhia ¢ de mun- dos que nos permite usar a nossa liberdade de escolha ~ escolhendo uns € rejeitando outros, compreendendo ou interrogando as suas opg6es ¢ a8 suas vidas. £ por isso, eambém, que podemos entrar num romance ~ no Dom Qui- ote como na Guerra e Paz, na Cartuxa de Parma como na Madame Bovary, nna Recherche como na Montanha Mégica — escolhendo o lugar ¢ companhia {que nos inceressa, dos personagens que amamos aos espagos em que fos sen- timos bem, E essa a riqueza de uma obra, que nos permite Fazer a nossa pré- pia seleosio de gosto ou de inceressee, através dela, chegar, por vezes, a um pponto em que acabamos por sair das grandes avenidas ¢ entrar em pequenas ruas, ou aré em becos, ou a perder-nos, por vezes, no labirinto das situag6es ue se nos oferecem, ¢ nos abrem novos espagos de inquietagio e de angistia ‘com que temos de nos confrontar até encontrarmos a nossa propria salda. Por isso, toda a grande literatura € dificil: € nio me refiro ao aspecto formal, que é sempre o menos. A dificuldade est, primero, nesse mundo interior que nos _ surge como um desafio,¢ s6 depois na linguagem que o exprime, “Tudo isto tem a ver com Anténio Lobo Antunes. A sua obra abre-nos este imenso mapa daquilo que é a vida dos homens ¢ das mulheres do nosso tem- ‘po. Uma coincidéncia de geragio permite reconhecer-me na época que ele retrata, dos anos 60 da ditadura, da guerra colonial, da preparasao do 25 de Abril (contestagio politica, movimentos universtirios) ¢ depois das sequén- cias da revolugio de 74 e dos seus reflexos na sociedade portuguesa; mas per- rmite-me, tambem,,reconhecer a dimensto incomparivel, wv quadio minu- cioso que Lobo Antunes traa desse periodo, de um imenso fresco da nossa Historia recente, onde cabem nio s6 os grandes protagonistas mas sobreta- do 0s que vivem, softem, e sio esmagados pelo peso das transformasGes de quc, muitas vezes, 86 apercebemos os grandes momentos. Isto nio é contia- ditério, na obra de Lobo Antunes, com um fundo «pico» ~ € uso esta pala- ‘ra no set sentido etimoldgico, de origem do proprio projecto romanesco, aplicando-o A sua obra como 0 poderiamos aplicar a Odiseia de Homero, a0s Lusiadas de Luts de Camées, ou 20 Ulises de Joyce. Nesta epopeia, o lugar de protagonista & desempenhado pelos que sustentam a fabrica dos aconteci- ‘menos; os quc habitam os porses da Histéria, como esses forcados das galés caja fungio é marcar 0 ritmo do navio do tempo humano, sendo substicui- dos no ciclo imparivel das gerag6es por outros, tio invisiveis como 0s pri- 314 (08 MARS DO HUMANO EM ANTONIO LOBO ANTUNES mciros, mas que cortespondem a essas vagas de gente que, na sua indiferen- ciagio, designamos por epovor, «massas», homens © mulheres que vivern a ilusio que lhes €dada, no instante do nascimento, de poderem ter todos os sonhos do homem, até descobritem que, afinal, nesse grande teatro do mun- do de que falava edro Calderén de la Barca 0 tnico sonho a que tém dire to € a sua prépria vida que, como todos os sonhos, se ir perder no dlkimo sono que & a morte. Ora, 0 que descobrimos nest imenso panel, que os grandes persona- gens desta historia nao sio os Aquiles ou os Gamas, os reis ou os deuses; Lobo ‘Antunes dé-nos «ver os que nfo Ficaram na grande Histéria, sio esses que aacabam por ser 0s mais fascinantes, mesmo na sua humilhagZo ou na sua abjecgi0, rocando-nos mais do que muitos dos grandes herbis. E essa pre senga que é a grande forga deste universo; etal como Veloso, ou 0 velho do Restelo, nos Lusisdas, nada seriam para n6s se Cambes nao Ihes tives dado uma presenga, ¢ uma vor, nos tocam mais do que muitos dos seus herdis, ou Seephen Dedalus nao teria entrado no imaginério da literatura, abrindo-nos a entrada do continente incerior da nossa consciéncia, se Joyce nao o tivesse arrancado a0 quotidiano de uma remota ¢ esquecida Dublin, que assim se tornou uma das grandes capitais da literatura mundial, também com Lobo ‘Antunes vemos multiplicarem-se essas figuras de segundo ow timo plano, ‘com nomes que nascem do anonimato das nossas memérias, das ruas € das cidades de um pafs apagado pelo movimento das épocas,e que cada um dos seus romances faz ressurgir da rasura do tempo, restituindo-nas a pulsacao daquilo que, sob o nome de sociedade, esconde um universo de wragéias © alegrias, dramas e comédias, herofsmo ¢ covardia, derramando-se por estas piginas com o rigor de um projecto que, talvez de forma irénica, ainda que inconsciente, 0 primeico titulo jf anuncia: Meméria de Elefante. Tirada de uma expressio popular, esta ememéria de elefante» implica uma teimosia e uma cbstinagéo que obriga, por outro lado, a uma pesada carapa- ‘2 contra todos os obsticulos que, como bem sabemos, um escritor tem de cnfrentar no seu percurso. Isto implica uma disciplina e uma dedicasio que ppressupdem aquilo que se designa por soficina» ~ e este € um dos pontos em {que Lobo Antunss deve susctar a nossa admiragéo, Ano apés ano, 0s roman- ‘ces que reeebemos abrem-nos um novo mapa desse mundo de que Lisboa se pode considerar um epicentro ~ mas, explorando esta imagem sismica, as ondas de choque vao-se alargando até aos confins daquilo que se designow como eo munde portugués, ou 0 ximpétios, construgio menos fabular do 315 |AESCRFEA 0 MUNDO EM ANTONIO LOBO ANTUNES ‘que imaginamos porque, dentro desse espago, sio as nossas qualidades ¢, sobretudo, os nosso defeitos, que ressaltam & medida que as ruinas vao fican- do limpas da pocira do imediato. Muitos dos personagens, entio, sio como (0s sobreviventes da catéstrofe, que tentam reconstituir & vida e, sobretudo, recompor a meméria desse vesplendor de Portugal, sobre o qual caem todas as sombras destas décadas em que, 2 mancira portuguess, substituimos 0 som ca fia» por wsiléncio e resignaciow. (Ora, ao avangarmos por estas paginas, vemos que Lobo Antunes cumpre ‘um trabalho sistematico de roubar 20 siléncio as vozes miltiplas que cle enco- bre; e de dar um rosto visivel a essa resignago, que, tantas vezes, ndo é sendo 6 rosto dissimulado da revolta€ da rejeicio dos conformismos que pesam sobre nds. Hé, por isso, um peso crescente da vor/vo2es do individuo, sobre- pondo-se d voz narrativa, que nels se projecta, arrancando esse discurso tan- tas vezs fragmentado, mutilado, tal como 0 podemos ouvir no dia-a-dis, 20 ccontexto da sua efemeridade. Sio as «voues humanase, dnicas e singulares, ‘expondo-se com a crucza ¢ a verdade nascidas, muitas vezes, de situages- slimite, mas também, nos iimos romances, ganhando a exposicio de per- sonagens que ganham a sua vida prépria — talver por, muitas delas, se dis- tanciarem do préprio autor (as quatro mulheres de Exortagdo aos Crocodiles, Maria Clara de Mao Eniestéo Depresa Nesa Noite Escura, 0 travesti de Que Farei Quando Tudo Arde’) ~ num processo que lembra a deriva dos Seis Per sonagens em Busca de Autor, de Pirandello, mas aqui inscritos numa cena em {que personagens e autor se confrontam ¢ interrogam na prépria construso da narratva, com a realidade em fundo ~ cjulgo ser importance lembrar essa dlistdneia entie realidade e romance, dado ser muito mais amplo do que ni simples registo realist 0 projecto romanesco subjacente a esta obra: (© que pretendo & transformar a arte do romance, a histria 6 menos impor- tanre [J inriga nfo me interes, o que queria nfo €ranto que me lesem mas ‘que vivessem o liv, As emogSs sia anteriores as palaveas eo repro é taduzit ‘sss emogies, tentar que as palavraswigifiquems essasemog®es (...] Como fazem os poets! ‘Assim, 0 que encontramos nestes romances, acima de tudo, é essa pre- senga humana em que o mapa do ser ~ ¢ poderia ir aqui, a0 encontro de "Maria Luisa Blanco, Coneerat cam Annis Lobo Antunes, Publicasdes Dom Quisote pis. 316 (05 MaPAS DO HUMAN EA ANTONIO LOaO ANTUNES Eduardo Loureng>, acrescentando: 0 ser poreugués, dentro dessa identida- de que, apesar de nés, ¢ quantas vezes contra nds, a meméria e a tradicio ‘em que nos inserevemos foi construindo ~ se vai desenrolando, arrancando ao nada que é a vida humana na sua escala infinitesimal cada um desses seres, ‘com quem acabanos a conviver, durante o tempo de uma leiura. Ser, tal- ‘vez, nesta linha que se inscreve um dos aspectos que mais me toca na sua cescrita: aquilo que Maria Alzira Seixo designa como a edimensio poética»!, presente desde Meméria de Elefante, € que se tem acentuado desde Exorta- $40 aos Crocodiles, € nos dois tltimos e belissimos Nao Entres tio Depresa ‘Nesa Noite Exeurie Que Farei Quando Tudo Arde?. Essa dimensio nasce no tanto das situag6es ou do processo narrativo — que se inscreve, como & ev dente, no registo fccional que tira as suas razes da contemporancidade ps -realista, ou pés-maturalista (ulgo ser Lobo Antunes o primeito romancista a liberrar-se do arquétipo eciano na nossa literatura) ~ mas do papel que & dado & palavra, © sua liberdade, no encaixe sequencial do percurso diegé- ‘ico, jogando cor: ele, mas introduzindo um elemento de surpresa que, no sendo nunea gratuito, tem essa mesma funcio de abercura semintica que, nna poesia, € dada >ela imagem metaférica. Nao se trata, no entanto, de uma cscrita ou aprosa poética», mas antes de uma necessidade do proprio enca- deado fiecional, em que 0 discurso directo nao nunca uma construgao retérica, fabricando 0 ser do personagem, mas sim uma forma de marcar 0 smo da narrativa (xconcatenagao prosédica», como diz ainda Maria Alzi ra Seixo), deixando na sua vazante os restos desse nauttigio dos sonhos ¢ ideais com que nascemos, e em que é possivel reconhecer os t6picos mais ‘essenciais para a reconstrusio do que foi uma existéncia. Julgo ser aqui. neste trago estilistico, que € possivel encontrar a marca «genials (uso esta palayra também no sentido etimolégico, camoniano, de «engenho») da fabricagao textual — ¢ € nesse ritmo (onde se nota, mais do que em aspec- tos semanticos, uma presenga de Céline ou de Faulkner como os casos mais préximos de Lobo Antunes, no aspecto de imediato econhecimento do seu Luniverso através muitas vezes de uma s6 frase, de uma s6 expressio) que ‘temos 0 aspecto luminoso deste mundo que, lido apenas 20 nivel do enun- ciado, poderia surgir com o tom niilista ou nocturno de quem nio apre- senta uma saida, ou um contraponto ao dominio por vezes asfixiante da "Or Romances de Anuinio Lobo Aner, Publics Dom Quixore, 2002. 317 A ESCRITA £ 0 MUNDO EM ANTONIO L080 ANTUNES ‘Una das coisas que gotto de fazer, com uma curiosidade rlvez mérbida mas que viri do meu desejo inconsciente de contrariar um verso que uma vez cescrevi sobre esses lugares — wvidas a que nunca tereiacessov — ¢ olhar para as fachadas dos prédios suburbanos, quando entro ou saio das grandes cidades, de comboio ou através desses perféricos deprimentes que nos cercam cada ‘yea mais. HA janelasiluminadas, dando para interiores onde se apercebem rmobilias de armazéns baratos, a imitar méveis de estilo, cozinhas com elec- todomeésticos comprados a prestagées, gravuras kitsch penduradas nas pare- des ~¢, por vores, vultos que atravessam a divisio, em frente janela, numa imagem de solidio que logo desaparece. Esses prédios, para usar uma meté- fora linguistca, sio como significantes que esperam o scu significado, para que os possamos entender na plenitude de um sentido que nos escapa para cessas vidas. Trata-s, por outro lado, de um econhecimento do inferno» — no no sentido érfico, porque nada hé para resgatar desse universo em que, como ro hospital de doidos, quem entra perde para sempre a sua identidade; ss ances no sentido de uma catarse, em que temos de efectuar a nossa de a0 centro do sofiimento, ou de fazer a nossa viagem ao fim da noite, para recuperar ess luz nascente que culmina 0 percurso iniciético da Meméria de Elefante, de onde nasee 0 assumir do homem aduito, liberco de todas as ilu- ses eingenuidades da adolescéncia e se vai repeti, noutras viagens e nou- E, porém, uma iniciagéo despida de qualquer cariterreligioso ou trans- cendente — embora me evoque, a titulo de negativo (Totogréfico) essa revela- «fo tinica que S. Jodo da Cruz descreveu, vendo funditem-se noite ¢ alvo- rada. F. portanro, uma experiéneia com 0 mesmo caricter de uma transfiguracio interior, a que esta escrita sugere ~ mas numa forma mistica despida de sacralidade, em que a visio possivel de um milagre do ser éa que nasce da escrta, ¢ dos personagens que o discurso directo corporiza, arran- ‘eando-as a0 fluxo de experiéncias que ganham forma a partir do que, & par- ‘ida, nfo parecia mais do que um registo fragmencirio de vores narrativas — de que a génese & esse instante fundador de Meméria de Elefinte, nessa smadrugada de que o homem renasce, na plenitude da sua solidio: «Séo cinco horas da manhi e juro que nao sinto a tua falta.» E este juramento que, no seu modo assertive, equaciona a verdade do sujeito e a verdade da linguagem, através do modo como a ruptura com 0 ‘mundo pée em causa a relagio com os outros. Eé esse mundo dos outros que se infiltra, a partir daqui, no universo da sua obta, através dessa festa, a que 318 (0§ MARAS DO HUMANO EM ANTONIO LOBO ANTUNES se pode chamar uma interrogagio do mundo, surgida no instante afirmativo dde um eu absolut (© que Anténio Lobo Antunes tem feito, no seu jé longo percurso roma- resco, pode entéo definir-se como o trabalho de nos colocar essa interroga- so sobre o mundo e, a partir dal, dar um significado a esses outros, a essas cxistencias que insistem em dizer 0 seu nome, mesmo que se oculeem no inte- rior da nossa perferia, cercadas pelo vazio que envolve esses espagos. Com os scus livros, nfo nos poderemos desculpar de dstracgo, ou dizer que nao sabia- mos. Est ali cud, estamos ali todos ~e nenhum de nés poderd jurar que nfo senee a sua falta, 319

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