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A FILOSOFIA DA NATUREZA DE ARISTOTELES Lucas Angiont A filosofta da natureza de Aristételes muitas vezes é apre- sentada como wm capitulo inteiramente ultrapassado na his- t6ria do pensamento: um “finalismo antiquado”, antropocén- trico, avesso a mensuracdo exata das condigées materiais subjacentes aos fenémenos. Essa perspectiva, no entanto, é inadequada: ndo atenta para o papel relevante que Aristételes atribui & matéria na explicagéo dos fendmenos naturais, as- sim como ndo atina com o real significado da teleologia aris- totélica. Na contra-mdo dessa perspectiva apressada, procura- mos mostrar que, no cerne da filosofia aristotélica da nature- za, entendida como uma teleologia, encontra-se a idéia de que os serves naturais definem-se por uma tendéncia intrinseca @ auto-preservagdo. E por essa tendéncia que a forma de cada ser natural governa teleologicamente sua matéria. "Ver Fisica II, 192b 20-3. A filosofia da natureza de Aristételes Natureza, para Aristételes, nao designa um dominio de entidades, ou o conjunto das coisas naturais. Natureza é, antes de tudo, um princfpio e uma causa. Visto que todo principio é principio de algum efeito que ocorre em alguma coisa, também a natureza é, mais especificamente, principio de certos movimentos que ocorrem em certas coisas. Con- seqiientemente, quando Aristételes fala em “natureza”, de- yemos sempre pensar em natureza de alguma coisa, ou s¢) natureza como principio pertinente a uma certa coisa e pelo qual tal coisa se move de uma determinada maneira. ‘A tradi¢io consagrou 0 termo “movimento” para tra- duzir kinesis e assim referit-se ao efeito proprio de que a natureza seria o principio. No entanto, é necessdrio ter em mente que 0 termo kinesis, embora tenha as vezes 0 sentido mais estrito de “locomogio”, é muitas vezes usado por Aristételes como um equivalente de termos mais gerais, como “vir a ser” (genesis) e “mudanga” (metabole), os quais reinem numa mesma descrigio geral quatro géneros de fendmenos: 1) 0 surgimento de um novo ser, bem como sua desaparigio; 2) mudangas de tamanho; 3) alteracées de qualidade; 4) locomogées. Seria ingénuo, porém, julgar que a natureza fosse principio e causa, em geral, de todos esses quatro géneros de fendmenos. A natureza é principio dos mesmos, mas apenas quando eles sio auto-determinados e voltados & pre- servagio ¢/ou reprodugio daquilo em que se dio. A natu- reza nao € causa em virtude da qual - por exemplo — uma planta é deslocada num vefculo de Esparta até Atenas. A natureza & causa apenas dos tipos de mudanga pelos quais aquilo que se submete a mudanga atinge sua completude, ou se mantém em sua completude, ou se reproduz. Dito de outro modo, a natureza é causa “interna” de movimento ou mudanca: causa dos movimentos pelos quais o ente natural, em virtude de sua determinagao intrinseca, se constitui enquanto tal, preserva-se em sua especificidade e — trago importante, como veremos — garante a continuidade de sua forma especifica mediante sua reproducio. Na definigao “oficial” de natureza que Aristételes oferece no inicio do livro II da Fisica’, predomina a nogio de que natureza é 0 princfpio interno pelo qual ocorrem aos entes naturais os movimentos especificos que os carac- terizam enquanto naturais. Esta nogio basica é introduzida mediante a nogio de auto-determinagio a0 movimento, a qual € elucidada por meio de uma comparagio (permanente nos textos aristotélicos) entre as coisas naturais ¢ os produ. tos da técnica: estes dltimos nio sio capazes de se mover Citncia & Ambiente 28 Lucas Angioni por si mesmos, ou, mais precisamente, nao s4o capazes de se determinar aos movimentos especfficos que os caracteri- zam enquanto produtos da técnica. Uma cama pode apodre- cer, em virtude da matéria de que é feita. Nao obstante, sua produgio — 0 movimento pelo qual ela emergiu, enquanto produto da técnica, definido por funges precisas — nao foi obra exclusiva de sua prOpria auto-determinacao. Igualmen- te, tal como sua producao exige a intervengao externa do artifice, a plenitude de seu funcionamento também exige, inevitavelmente, a cooperagio do usudrio — ou seja, a cola- boracio de um principio externo. Por outro lado, os entes naturais caracterizam-se por uma auto-determinagio ao movimento que os mantém em efetividade. Poderfamos dizer que Aristételes resume essa caracteristica num lema repetido exaustivamente ao longo de suas obras: “ser humano gera ser humano”. Sdo duas as idéias que Aristételes pretende ressaltar com esse lema: por um lado, a idéia de que sao os seres humanos — ¢ nao outros seres quaisquer — os responsaveis pelo aparecimento de novos seres humanos; por outro lado, a idéia de que seres humanos sio naturalmente propensos a garantir sua conser- vacio, por meio da reprodugio de novos individuos de mesma espécie. Obviamente, o ser humano é apenas um exemplo e 0 lema é valido para todos os entes naturais (de certo modo, até mesmo para os inanimados): continuar a ser 6 justamente aquilo a que todos tendem. Esse impulso inato para a auto-preservacdo e para a reprodugio esta ausente nos produtos da técnica. Jé a fabri- cacéo do produto técnico requer a intervengao de princi- pios externos aos materiais de que é feito e, uma vez fabri- cado, 0 produto técnico atinge sua efetividade ~ isto é, a plenitude de sua fungio ~ apenas por intermédio de um usuario, ¢, com o passar do tempo, tende a perder as carac- teristicas que o habilitam a exercer sua fungio propria. Pois bem: natureza, a rigor, é o principio responsavel pela auto-preservagio ¢ reprodugio dos entes naturais. E sio naturais apenas os entes que apresentam um tal princi- pio. Por conseqiiéncia, a “filosofia da natureza” em Arist6- teles é 0 estudo de tal principio. Mas nio basta caracterizar a filosofia da natureza des- te modo. Também a ciéncia da natureza pode ser definida como sendo o estudo de tal principio, justamente porque todo e qualquer conhecimento cientifico, para Aristételes, é um conhecimento de princfpios e causas. Temos ciéncia de determinado assunto quando sabemos explicar a partir de suas causas apropriadas os fendmenos que dizem respeito Janeiro/Junho de 2004 2 Ver Segundos Analiticos 1 2, 7ib 9-12 > Ver Segundos Analiticos 1 6, 75a 42. 4 Excelente anélise da nogio aristorélica de ciéncia encon- tra-se em Oswaldo Porchat Pereira, Ciéncia ¢ Dialética em Aristételes, Sao Paulo: Edunesp, 2001. 5 Ver Segundos Analiticos I 10, 76a 38. A filosofia da natureza de Aritételes 20 dominio em questéo’. Assim, conhecer cientificamente um ente natural consiste em explicar, a partir das causas apropriadas, por que ele se comporta de tal e tal modo, por que ele apresenta tais e tais propriedades, que o caracteri- zam precisamente como natural. _ ‘No entanto, a filosofia da natureza nao é uma ciéncia. Para Aristételes, 0 conhecimento cientifico se articula por recortes setoriais: delimita-se um assunto, um “género subjacente”’, a respeito do qual se dispde de uma série de informagées preliminares que suscitam problemas de diver- sas ordens, Sobre esse assunto particular, deve-se formular questées pertinentes que permitam encontrar 0 caminho para a descoberta das causas, as quais 20 mesmo tempo resolvem os problemas anteriormente suscitados e certifi- cam informacées preliminares. O conhecimento propria- mente cientifico, embora envolva etapas de investigacao, testes € descobertas, constitui-se propriamente apenas no momento em que os problemas concernentes a determina- do assunto sao resolvidos pela apreensio das causas, que permitem demonstrar por que € necessario que se compor- tem de tal e tal modo as coisas que constituem o assunto em questao*. ‘A filosofia, no entanto, nao se situa nesse patamar. A filosofia consiste num outro tipo de saber, que complemen- ta a ciéncia, mas com ela nao se confunde. Ao invés de se preocupar com um assunto particular, ao invés de observar 0s objetos que estio no dominio desse assunto particular etc, a filosofia se preocupa com princfpios mais gerais, de ordem formal. Esses principios — que, na nomenclatura de ‘Aristoteles, sto chamados de “comuns”, porque sio co- muns as diversas ciéncias particulares — sao regras pelas quais a ciéncia deve se pautar na investigagao de seu objeto proprio e na exposigéo de seus resultados. O mais geral de todos esses princfpios é 0 da nao-contradigéo, mas podemos ai acrescentar diversos outros, que dizem respeito & legiti- midade da forma légica pela qual se propde um argumento — isto é pela qual se propdem duas premissas que preten- dem engendrar uma conclusao necesséria. ‘Aristoteles concebe essa relagio entre ciéncia e filo- sofia em diversos niveis. Em seu nivel mais alto, a filosofia se preocupa em estudar os principios mais gerais, utilizados por toda e qualquer ciéncia e, na verdade, utilizados até mesmo na linguagem ordinaria. No entanto, em niveis mais especificos, a reflexao filoséfica pode tomar um dominio de objetos mais particulares e propor a respeito deles um con- junto de principios formais que deverd pautar a investigagao Ciencia & Ambiente 28 © Desenvolvi o assunto nos co- mentirios incluidos na tra- dugio de As Partes dos Ani- mais de Aristételes ~ Livro 1, publicado em Campinas, Cademos de Histéria e Filoso- fia da Ciéncia, vol. 9, n°. es- pecial, 1999 Lucas Angioni cientifica sobre os mesmos. Podemos ter, assim, uma filo- sofia politica, uma filosofia da ciéncia, assim como uma fi- losofia da ciéncia da natureza — a qual poderiamos chamar, simplesmente, de filosofia da natureza. A filosofia da natureza é€ uma disciplina distinta da ciéncia. Esta iltima se responsabiliza por colher informa- gOes empiricas a respeito de seu objeto, procurar as causas que permitam explicé-las, formular hipéteses particulares ¢ confronté-las com os fatos etc. Jé a filosofia da natureza se responsabiliza por formular os principios gerais que deve- rao orientar o trabalho especffico do cientista natural, for- necendo-lhe parametros para formular suas hipéteses e conduzir suas investigacoes.* Quais seriam esses principios de ordem geral? Poderiamos resumi-los em duas expressées: hilemor- fismo e teleologia. Esses dois conceitos articulam-se intrin- secamente entre si, em Aristételes, através de dois outros prinefpios que regulam suas escolhas filosdficas e sua refle- x40 sobre as ciéncias. O primeiro deles é 0 principio da autarquia ou auto-suficiéncia. O segundo é o principio de que, no assim chamado “mundo sublunar”, hi uma espécie de cisio entre duas ordens de causas, até certo ponto conflitantes entre si: as causas formais ¢ as causas materiais. Comecemos pelo principio da autarquia, pois é ele que permite elucidar convenientemente a nogio de teleolo- gia, de modo a evitar algumas incompreensdes que foram tradicionalmente cometidas na interpretagio da filosofia da natureza de Aristételes, Um dos postulados mais decisivos da filosofia aristo- télica € a afirmagio de que o bem supremo corresponde a auto-determinagio ou auto-suficiéncia, entendida como per- feigio intrinseca pela qual algo se preserva, independente- mente de condigées externas. Esse postulado perpassa sua metafisica e se faz presente também em suas reflexdes éti- co-politicas. Aquilo que se escolhe por si mesmo, mas nio em vista de outra coisa, é sempre melhor do que aquilo que se escolhe tendo em vista outra coisa. Do mesmo modo, aqui- lo em vista de que algo se escolhe é melhor do que as coisas que se escolhem em vista daquilo. Se algo é escolhido por si mesmo, é devido a sua perfei¢ao intrinseca, e nao devido a sua relacio com algum resultado proveniente do fato de se té-lo escolhido. Na ética aristotélica, essas premissas redun- dam, primeiramente, na conclusio de que os fins sio me- Ihores do que os meios. No entanto, elas refletem a idéia mais geral de que o bem consiste em uma auto-suficiéncia Jancirol}unho de 2004 7 Ver Etica a Nicomaco I 5, 1097 30-b 21. ® Ver Politica I 2, 1252b 27-30. ° Ver Metafisica XII 7. A filosofia da natureza de Aristétles pela qual as condigées externas sao dispensadas, de tal modo que a coisa, por si mesma, mantém-se em sua perfei- cio intrinseca. Nessa perspectiva, aquelas mesmas premis- sas resultam na conclusao de que o ideal supremo de feli- cidade € uma vida plenamente auto-suficiente.” HA contro- vérsias com relagio a saber se Aristételes teria localizado essa plena auto-suficiéncia na vida politica de uma cidade otimamente organizada, ou na vida intelectiva de cada um. Nao obstante essa dificuldade, pode-se dizer que a felicida- de, como bem supremo, consiste em uma auto-suficiéncia na qual nossas atividades préprias seriam exercidas conti: nuamente, com prazer, sem impedimentos, sem 0 atropelo das condigées externas. Do mesmo modo, na vida politica, a auto-suficiéncia a propria razio que explica a origem das aglomeragées civis’, de modo que a melhor constituicgéo possivel seria aquela que garantisse a independéncia ¢ auto-suficiéncia das cidades na manutengio de todas suas atividades pré- prias. De modo similar, 0 ponto culminante da metafisica aristotélica consiste na nogio de um deus que, sendo puro pensamento intelectivo, seria plenamente auto-suficiente em sua atividade propria e, por isso, viveria eternamente da melhor maneira possivel.? (© que nos interessa é ressaltar a relagio direta que essa nocdo de auto-suficiéncia tem com a nogio de teleolo- gia. Tradicionalmente, a teleologia aristotélica tem sido in- terpretada como se envolvesse uma “psicologizagio” da natureza, no sentido de que os entes naturais agiriam — sol o modelo da agio racional com vistas a fins ~ em busca de fins extrinsecos ou bens externos. Nada mais inconvenien- te. Na concepgio aristotélica de teleologia, tal como ela se apresenta em sua metafisica ¢ em sua filosofia de natureza, 2 auto-suficiéncia € a nogao central. Aquilo que é auto- suficiente (autarkes) € chamado de “perfeito” (teleion), no sentido de que ele mantém sua perfeigao intrinseca (telos), isto 6, garante todas as atividades ¢ fungdes (erga) necessa- rias para manter-se sendo 0 que ele é. O termo grego telos, do qual deriva “teleologia”, pode designar e de fato design, em varios contextos, o escopo de uma agao, a meta, o ob- jetivo que se tem em vista. Nao obstante, 0 mesmo termo pode designar, em outros contextos, 0 acabamento de uma coisa, entendido como sua plenitude ou, como ja dissemos, sua perfeigio intrinseca, delimitada por todas suas caracte- risticas e operagGes prdprias. Ciencia & Ambiente 28 \Ver Fisica TI 7, 198a 24-7, Fisica TL 9, 200a 35, Metafisi- ca VEIT 2. "Ver Sobre a Alma II 4, 415a 26- b 7. Lucas Angioni E essa nogio de acabamento que ocupa o lugar central na filosofia da natureza de Arist6teles. Ha uma tradicio mais remota que insistiu em interpretar sua teleologia a partir do conceito de meta da agio. Embora este conceito seja elucidativo em alguns contextos, ele nao é central na teleologia da natureza. O que nos autoriza a dizer que a filosofia da natureza de Aristételes € teleoldgica, € a nocao de acabamento, entendida, porém, sob a nogéo mais ampla de auto-suficiéncia. © acabamento de um ente natural ndo é nada miste- rioso: ele consiste naquilo que cada ente precisamente é em si mesmo, ou seja, consiste num conjunto de caracteristicas proprias que o definem. E por isso que Aristételes freqiien- temente afirma que o acabamento de um ente natural ¢ sua forma sio idénticos. A forma, por sua vez, € aquilo que define 0 que cada ente é em si mesmo. Em diversas passa- gens, Aristételes acrescenta novos termos 4 equacio: afirma que a forma € 0 mesmo que a “efetividade” (entelecheia), a saber, justamente a situagio em que algo esta na posse de seu telos, est4 no pleno desenvolvimento de suas atividades e caracteristicas préprias. As vezes, Aristételes exprime essa mesma nogio com o termo energeia, 0 qual se liga a ergon (fungao ou operacio propria) ¢ designa a situagao em que algo esté plenamente apto a desempenhar suas fungdes ou atividades proprias."° Deve-se ressaltar que 0 acabamento € concebido co- mo um conjunto de caracteristicas necessarias ¢ suficientes para definir algo, mas nao se reduz a isso, pois é entendido como essencialmente dinamico. O acabamento, por sua propria esséncia, tende a se preservar ea se manter idéntico ao longo do tempo; se isso nao for possivel, ele tende a se reproduzir, de modo que uma nova realizacio individual possa garantir sua persisténcia. Essa tendéncia a preservacdo e A persisténcia no ser € fato que, para Aristételes, encontra-se no cerne da propria nogao de ousia (esséncia ou substancia), tio central em sua metafisica. Ela € tomada como critério para determinar uma certa hierarquia entre os dominios da realidade: assim, o dominio superior é 0 divino, que se mantém eternamente idéntico ¢ nao precisa se reproduzir; em seguida, todos os dominios inferiores procuram “imitar o divino” e dele par- ticipar “na medida do possivel”, preservando o mesmo aca- bamento através da realizagio de sucessivos individuos." A teleologia, neste sentido, é justamente 0 modo pelo qual os seres em geral manifestam essa tendéncia a preser- vagao. E verdade que a teleologia, como vimos, ampara-se Jancirolfunho de 2004 n "2 Ver Fisica II 8, 199a 8-20. » 2 ‘As outras palavras gregas pa- ra “forma” sio eidos e idea. A filosofia da natureza de Aristételes em fortes pressupostos metafisicos. No entanto, ela tam- bém é respaldada pela observagio empitica. Como Aristé- teles freqiientemente afirma, “um ser humano gera um ser humano”. Essa frase quer dizer duas coisas: por um lado, quer dizer que é um ser humano (e nao, por exemplo, um cavalo) que gera um outro ser humano; por outro lado, quer dizer que um ser humano, se for gerar algo, gera um novo ser humano (e nao um cavalo, por exemplo) e, mais do que isso, quer dizer que essencialmente um ser humano tende a se reproduzir, como modo de preservar sua efetividade, Aristételes freqiientemente compara a teleologia na- tural com a teleologia da aco humana. Nesta iltima, con- cebemos certas coisas como boas e as postulamos como fins a serem alcangados. Assim, em vista destes fins, deter- minamos os meios, ou seja, as acdes, habitos, comporta- mentos etc., que podem resultar nas coisas boas que dese- jamos alcangar ou preservar, No entanto, a semelhanga en- tre ambas as teleologias é bastante limitada: restringe-se as relaces meramente légicas vigentes, num caso € no outro, entre fins ¢ meios.2 No dominio da agéo humana, porém, é preciso estabelecer um fim a ser alcangado, ao passo que, no dominio da natureza, os fins em questo jd estdo dados, pois se trata de manter e preservar a forma especifica de cada espécie natural. O fim que esta em jogo na teleologia natural é extrfnseco apenas sob certo aspecto, se conside- rarmos um processo individual. Um novo individuo de mesma espécie é, certamente, a meta a ser atingida, a qual nao se encontra dada de antemio, No entanto, o surgimen- to de um novo individuo € apenas o modo de garantir a manutencio ¢ a plenitude de algo que j4 esta dado, que € a forma ou o acabamento especifico de um ente natural. Mas poderiamos perguntar: por que é preciso que © ente natural se reproduza? Por que sua efetividade nao est garantida eternamente, como a efetividade dos entes divi- nos? E dbvio que a resposta de Aristételes seria trivial: a constante sucessio de individuos naturais perecfveis € um fato constatado e garantido pela observacao mais ordindria. No entanto, a maneira pela qual Aristételes explica este fato é oportuna para introduzir outro princfpio basico de sua filosofia da natureza, a saber, o hilemorfismo. Este termo deriva de byle (matéria) e morphe (que é uma das palavras gregas para a nogio filoséfica de forma’? e, embora nio tenha sido cunhado pelo proprio Aristételes, é adequado para entender sua teoria segundo a qual os entes naturais devem suas caracteristicas a dois principios, correlatos en- tre si: a matéria e a forma). Ciéncia & Ambiente 28 \4Ver Fisica II 2, 193b 1-3, € 113, 194b 26-7, 'SConcordamos com W. Charkon, Aristotle ~ Physics, Books I & Il. 20 ed. Oxtord: Clarendon Press, 1992. Charlton analisa de maneira clara, em seus comentérios num’ apéndice (p. 129-145), (0s equivocos que deram or gem a crenga de que Aris- tételes teria proposto a no- gio de matéria-prima, Lucas Angioni Em linhas gerais, podemos dizer que a forma é 0 conjunto das caracteristicas essenciais que definem o que algo é.* Também os entes divinos possuem suas formas proprias e, nesse sentido, podemos dizer que a forma coin- cide com a propria nogio de acabamento e efetividade. No entanto, os entes naturais possuem, além da forma, um outro principio determinante, que € também um principio constitutivo, a saber: a matéria. Para Aristételes, a matéria nio € apenas um estofo inerte, um conjunto de elementos constituintes que apenas receberia passivamente a forma. A matéria é entendida como natureza e, por isso, apresenta-se como principio pelo qual o ente natural determina-se a um movimento preciso, que Ihe cabe enquanto ente natural. A teoria da matéria em Aristételes é um assunto bas- tante controverso e dificil, nao apenas pela multiplicidade de sentidos em que o termo hyle 6 empregado, mas também por confusées entre o uso e a mencio do termo. Para com- plicar ainda mais, pesa sobre o texto de Arist6teles a crenca tradicional de que ele teria proposto, como nicleo central de sua filosofia da natureza, uma nogdo de “matéria-prima”, que se definiria justamente por ser um estofo inerte, sem nenhuma determinacio propria, como se fosse uma pura potencialidade de receber formas externas. Embora nao caiba entrar nos meandros deste assunto, devemos ressaltar gue nao julgamos haver lugar em Aristoteles para tal con- cepgio. A nogio de matéria-prima afigura-se-nos como re- sultado da sedimentagio de uma tradicio interpretativa fun- dada em alguns equivocos na leitura dos textos de Aristéte- les.'® Na verdade, o que este ultimo identifica como matéria 6 sempre ¢ invariavelmente, algum caso particular dos qua- tro elementos bisicos (fogo, ar, terra ¢ Agua) e/ou suas misturas. Estes elementos — assim como suas misturas — no sio meros estofos passivos. Pelo contririo, eles sio definidos funcionalmente por dois fatores interligados: de um lado, uma tendéncia a repousar num “lugar natural” que € respectivamente proprio a cada um; de outro lado, uma tendéncia a se mover em diregdo ao lugar natural. Aristéte- les reconhece estas duas tendéncias como principios pelos quais boa parte dos fendmenos naturais poderiam ser expli- cados. Para os limites deste artigo, 0 que importa é caracte- rizar a matéria como natureza ~ isto 6, principio de movi- mento — que interage com a forma, na determinacao dos entes naturais. Para tanto, basta-nos apontar dois tragos relevantes pelos quais tal matéria se caracteriza. Por um lado, suas caracteristicas e movimentos sio compativeis com JaneivolJunbo de 2004 1B "© Ver Sobre a Alma II 4, 416a 13-15. " Ver Metafisica VIL 15, 10396 27-31. 18 Ver Metafisica VII 7, 1032 20-22. 1 Ver Segundos Analiticos TI 2, 90a 31-32. 2° Ver Fisica II 2, 1944 12-27. 21 Ver Metafisica VIII 4, 1044a 29, 2 Ver Fisica I 9, 200b 4-8. “4 A filosofia da natureza de Aristéeles os movimentos préprios 4 forma, ou seja, com os movimen- tos pelos quais a forma mantém a plenitude das atividades que definem um ente natural e reproduz em um novo indi. viduo © mesmo acabamento. Na verdade, as caracteristicas e movimentos da matéria sio princfpios auxiliares"® que co- laboram com a forma na manutengio e reprodugio dos entes naturais. Por outro lado, a matéria determina-se por caracteristicas ¢ movimentos préprios que, embora sejam compativeis com os movimentos exigidos pela forma, 0 sio apenas temporariamente. Isto quer dizer que, apesar de cooperar com a forma na determinagao dos seres naturais, a matéria também lhe oferece resisténcia: de certo modo, ela € um principio oposto a forma. De fato, esta iltima é aquilo que garante a estabilidade das mesmas caracteristicas que definem uma mesma espécie de entes naturais. Todos 08 sucessivos individuos de mesma espécie possuem a mes- ma forma especffica, J a matéria, por sua vez, € justamente aquilo que, por oferecer resisténcia 4 forma, responde pelo cardter perecivel de cada individuo.” Os individuos sio pe- reciveis justamente por serem constituidos de uma matéria que, embora tenha sido dominada pela forma, ainda preser- va sua capacidade de “ser de outro modo”. Como trago bisico da filosofia aristotélica da nature- za, 0 hilemorfismo comporta dois aspectos, que decorrem destes dois tragos da matéria. Por um lado, o hilemorfismo é a teoria de que, para explicar cientificamente um ente natural — 0 que, para Aristoteles, consiste em dizer 0 que ele é essencialmente ¢ por que ele é tal como é” -, deve- mos mencionar nao apenas a forma, mas também a maté- ria®, Nisto, Aristételes se opée tanto aos platénicos como aos materialistas: os primeiros julgavam que a forma seria princfpio suficiente para a explicacio dos entes naturais, a0 asso que os segundos atribuiram tal papel 3 matéria, com exclusio da forma. Enquanto causa que deve ser incluida no enunciado definitério que diz o que € um ente natural qualquer, a matéria é tomada em suas propriedades constan- tes e, mais particularmente, segundo as propriedades rele- vantes que contribuem para os movimentos préprios da forma e que, na maioria dos casos, sio condigdes necessa- rias para estes iiltimos. Um serrote, por exemplo, é defini- do por uma certa fungio, a qual se pode efetivar apenas através de materiais de uma certa qualidade (ferro ou bron- ze, por exemplo), pois um serrote de li nio seria realmente um serrote." Assim, como condigio necesséria 4 efetividade da forma, a matéria, segundo as caracteristicas relevantes, tor- na-se parte do enunciado que define o que é um ente natural.” Ciéncia & Ambiente 28 Lucas Angioni € graduado em Filosofia, doutor em Historia da Filosofia Antiga ¢ professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas, Sao Paulo. angioni@unicamp.br Lucas Angioni Por outro lado, 0 hilemorfismo é a teoria de que os entes naturais que povoam o assim chamado “mundo sublu- nar”, contrariamente aos entes divinos, determinam-se pela interagio entre dois principios conflitantes: de um lado, a forma, que define o acabamento proprio de cada ente natu- ral, mas, de outro lado, a matéria, que impée limites a esse acabamento ¢ impede a sua preservacio continua ¢ ininter- rupta num mesmo individuo. A matéria, tomada segundo suas caracteristicas préprias (por exemplo, a agua e 0 fogo, tomados em suas caracteristicas préprias) € aquilo que de- termina 0 carter perecivel de cada individuo. Por isso, os entes naturais, constituidos de matéria, devem preservar sua efetividade através de sua reproducio, pois a geracio sucessiva de novos individuos configura-se como um movi- mento circular que, imitando a eternidade que cabe ao divi- no, repde e preserva sempre o mesmo acabamento: “um ser humano gera um ser humano”. Isto nos permite concluir que a filosofia aristotélica da natureza pode ser caracterizada como um hilemorfismo teleolégico ou como uma teleologia hilemérfica, no seguin- te sentido: as formas que definem as espécies de entes na- turais tendem a se preservar; no entanto, a existéncia de uma matéria elementar dotada de caracteristicas essenciais proprias impede que a preservacio das formas se dé de maneira continua e plenamente auto-suficiente, pois cada individu que realiza a forma é perecivel, devido a matéria que 0 constituis por isso, a preservagio - que imita a auto- suficiéncia do divino - se da pela reproducao de individuos de mesma espécie; neste proceso, a matéria (byle) é dis- posta e deverminada de modo a adquirir as caracteristicas que definem a efetividade (telos) de cada forma natural (morphe). Assim, pela cooperagio entre matéria e forma, os seres naturais mantém-se em suas respectivas perfeig6es ¢ atingem o nivel de auto-suficiéncia que lhes cabe. Janeiro/funko de 2004 15 Sumario|C&.A|28 3 EDITORIAL 4 PROXIMA EDICAO 5 A FILOSOFIA DA NATUREZA DE ARISTOTELES Lucas Angioni 17 NATURA NATURANS, NATURA NATURATA SISTEMA DO MUNDO MEDIEVAL. Noeli Dustra Rossatto 29 A CONCEPCAO CARTESIANA DA NATUREZA Albertinho Luiz Gallina 41 NATUREZA EM KANT Christian Hamm 53 HISTORIA NATURAL E TELEOLOGIA Ricardo José Corréa Barbosa 69 PODE A NATUREZA HUMANA SER BELA? A FILOSOFIA DA NATUREZA NA ALEMANHA DO SECULO XIX Mircia Cristina Ferreira Goncalves FILOSOFIA DA NATUREZA E EVOLUCIONISMO REPENSANDO © NATURALISMO FILOSOFICO. Karla Chediak 93 O CONCEITO DE NATUREZA NA FENOMENOLOGIA HERMENEUTICA. Robson Ramos dos Reis 107 VALOR, NATUREZA E PATRIMONIO NATURAL Antonio Carlos Robert Moraes 121 NATUREZA E CIENCIA MODERNA Antonio Augusto Passos Videira 135 O MUNDO QUE NOS PERTENCE Antonio Luciano Leite Videira 155 A COMPLEXIDADE ESTA NUA E E MUITO MAGRA Renato Zamora Flores 167 INSTRUGOES PARA PUBLICAGAO 168 INSTRUCCIONES PARA PUBLICACION 7 oS Ciéncia&Ambier Filosofias da Natureza

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