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(GUN ices) AS FONTES DO SELF A construgao da identidade moderna OT Titulo original: Sources of the Self — The Making of the Modern Identity, publicado sob licenga da Harvard University Press © 1989 by Charles Taylor Seventh printing, 1994 Prrparacao: Cecilia Camargo Bartalotti Revisio: Renato da Rocha Carlos Diacramacac: Maurélio Barbosa Edigdes Loyola Rua 1822 n° 347 — Ipiranga 04216-000 Sao Paulo, SP Caixa Postal 42.335 — 04218-970 - Sao Paulo, SP @ ch 6914-1922 @ ah 6163-4275 Home page ¢ vendas: www:loyola.com.br Editorial: loyola@loyola.com.br Vendas: vendas@loyola.com.br Talos os direitos reservados. Nenliuma parte desia obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma efow quaisquer meias (eletrinico ou mecanico, incluinde fororépia @ gravacdo} ou arguivada em qualquer sistema ou banco de daados sem pernissio eserita da Edivora. ISBN: 85-15-01545-5 22 edigdo: agosto de 2005 © EDIGOES LOYOLA, Sao Paulo, Brasil, 1997 INDICE 1. Configuragées inconto: 2. O selfno espago moral 3. Btica da inarticulagao 15 5. Topografia moral .. 7 “In interiore hamid ie i 8. A razao desprendida de Descarte ‘ 9. O self pontual de Locke... 10. Explorando “l’humaine condition”... 12. Uma digressao sobre a explicagao histérica PARTE A afirmacao da vida cotidiana 13. “Deus ama advérbios” 2213 Material com direitos autorais 15. Sentimentos morai. 18. Horizontes fraturados. 19. O iluminismo radical 20. A natureza como fonte 21. A virada expressivista PARTEY Linguagen: tis: sos contemporaneos vitorianos . Visdes da era pés-romantica_ 24. Epifanias do modernismo .. 25. Conclusao: os conflitos da modernidade Material com direitos autorais Prefacio varios anos, e mudei algumas vezes de idéia quanto ao que deveria ser nele incluido. Isso se deveu, em parte, ao motivo tao comum de que, por um longo tempo, eu nao tinha certeza do que queria dizer. E isto foi em parte decorréncia da natureza deveras ambiciosa do empreendimento, que se configura como um esforgo de articulagdo e elaboragao de uma his- téria da identidade moderna. Com este termo, desejo designar 0 conjunto de compreensées (sobremodo desarticuladas) do que é ser um agente hu- mano; os sentidos de interioridade, liberdade, individualidade e de estar mergulhado na natureza, tao familiares ao Ocidente modemo. Também era meu desejo mostrar como os ideais e interditos dessa identidade — 0 que ela pde em relevo e 0 que pde em segundo plano — moldam nosso pensamento filosfico, nossa epistemologia e nossa filosofia da linguagem, em larga medida sem que nos demos conta disso. Doutrinas supostamente derivadas do exame sébrio de algum dominio no qual o self nao interfere nem deveria interferir refletem, muito mais do que percebemos, os ideais que ajudaram a constituir essa nossa identidade. Isso se aplica principalmente, creio eu, 4 epistemologia representacional, de Descartes a Quine. Além disso, este retrato de nossa identidade pretende servir de ponto de partida a uma compreensdo renovada da modernidade. Essa tarefa, isto é, a de chegar ao entendimento das momentosas transformagées por que passaram nossa cultura e nossa sociedade nos ultimos trés ou quatro séculos e, de algum maneira, p6-las em perspectiva, continua a nos preo- oi muito dificil para mim a redagao deste livro. Ela se prolongou por 9 10 PREFACIO cupar. As obras dos principais pensadores contempordaneos, como Foucault, Habermas e MacIntyre, focalizam esse aspecto. Outros, se bem que nao tratem dessa questdéo expressamente, pressupdem alguma idéia daquilo que aconteceu na posicdo que assumem em relagéo ao pensamento e a cultura do passado, mesmo que em forma de rejeicdo. Nao se veja nisso wna obsessao gratuita. Nao nos é possivel atingir a autocompreensdo sem chegar a um acordo com essa historia. Mas vejo-me insatisfeito com as concepgdes hoje correntes sobre 0 aludido tépico. Algumas mostram-se otimistas, e nos véem como tendo galgado um patamar superior; outras apresentam um quadro de declinio, de perda, de esquecimento. Nenhuma das alternativas parece-me correta; ambas ignoram amplamente aspectos importantes de nossa situacdo. Ainda nos resta apreender, penso eu, a combinacao impar de grandeza e perigo, de grandeur et misére, que caracteriza a idade moderna. Ver a plena com- plexidade e riqueza da identidade moderna é ver, em primeiro lugar, quanto todos estamos enredados nela, apesar de todas as nossas tentativas de repudia- -la; e, em segundo lugar, como sao superficiais e parciais os juizos umilaterais que disseminamos a seu respeito. Porém, nao acredito que possamos captar essa riqueza e complexidade sem perceber que a compreensdo moderna do self desenvolveu-se a partir de concepgdes anteriores da identidade humana. Este livro busea definir a identidade moderna ao descrever sua génese. Concentro-me em trés importantes facetas dessa identidade: em primeiro lugar, a interioridade moderna, o sentido de nds mesmos como seres dotados de profundezas interiores, ¢ a nogdo vinculada de que somos um sei; em segundo, a afirmagéo da vida cotidiana que se desenvolve a partir do inicio do periodo moderno; e, por fim, a nogao expressivista da natureza como fonte moral interior. Tento examinar a primeira dessas facetas de Agostinho a Descartes e Montaigne, e destes aos nossos dias; estudo a segunda, desde a Reforma até o luminismo e suas formas contemporaneas; e descrevo a terceira a partir de suas origens, no final do século XVIII, passando pelas transformagées no século XIX, até suas manifestacdes na literatura do século XX. O corpo principal do livro, Partes II-V, esta voltado para esse quadro da identidade moderna em desenvolvimento. 0 tratamento é uma combinagao do analitico e do cronoldgico. Contudo, dado que todo o meu modo de pro- ceder envolve o rastreamento de conexGes entre os sentidos do self e as concepgoes morais, entre a identidade e o bem, julguei que nao poderia me lancar a esse estudo sem alguma discussdo preliminar desses vinculos. Isso pareceu tanto mais necessdrio diante da constatacao de que as filosofias morais hoje dominantes tendem a obscurecé-los. Para perceber esses PREFACIO 11 vinculos, temos de submeter 4 apreciagdo o lugar do bem — em mais de um sentido — na nossa perspectiva e vida moral. Mas isso é precisamente o que as filosofias morais contemporaneas tém mais dificuldade para admitir. Por conseguinte, o livro comega com uma segao que se empenha em defender brevemente a necessidade de retratar a relagao entre self moral, sendo esta a base a que recorro no restante da obra. Os que se sentirem extremamente entediados com a filosofia moderna poderao querer pular a Parte I. Aqueles que se entediam com a historia, se por algum engano este livro vier a lhes cair nas maos, devem parar a leitura por aqui. O estudo como um todo é, conforme indiquei, um preliidio para que possamos entender os fendmenos da modemidade de maneira mais produtiva e menos unilateral do que é costumeiro. Nao tive espago, neste livro j4 dema- siado extenso, para pintar um quadro alternativo completo desses fendmenos. Terei de deixar isso, bem como a andlise que relaciona a identidade moderna com nossa epistemologia e filosofia da linguagem, para trabalhos ulteriores. Todavia, tento apresentar no capitulo de conclusdo o que flui desta histéria da identidade moderna emergente. Em poucas palavras, é 0 fato de ser essa identidade muito mais rica em fontes morais do que concedem seus detratores, apesar de essa riqueza ser tornada invisivel pela linguagem filosdfica empo- brecida de seus mais zelosos defensores. A modernidade precisa com urgéncia ser salva de seus aliados mais incondicionais — situagdo que nado é sem precedentes na historia da cultura. Compreender corretamente a modernidade é um exereicio de restauragdo, Tento explicar em minha conclusio por que julgo ser esse exercicio importante e mesmo urgente. Este livro levou um longo tempo em preparagdo e, no decorrer desse periodo, beneficiei-me muito de discussdes com colegas em All Souls College, em Oxford de modo geral e em McGill, Berkeley, Frankfurt e Jerusalém, incluindo-se ai James Tully, Hubert Dreyfus, Alexander Nehamas, Jane Rubin, Jiirgen Habermas, Axel Honneth, Micha Brumlik, Martin Low-Beer, Hauke Brunkhorst, Simone Chambers, Paul Rosenberg, David Hartman e Guy Stroumsa. 0 convite de Lawrence Freeman e do Priorato Beneditino de Montreal para que eu proferisse as Palestras John Main Memorial proporcionou-me uma ocasiao valiosa para desenvolver o quadro da modernidade que estou tentando tracar, tendo sido muito itteis as discussdes que se seguiram. Jamais teria conseguido, entretanto, completar o projeto sem o ano que passei no Instituto de Estudos Avancados em Princeton. Sou muito grato a Clifford Geertz, Albert Hirschman e Michael Walzer tanto por esse ano de pesquisas como pelas valiosas discussdes que tivemos entao na atmosfera inigualavel do Instituto. Desejo ainda agradecer ao National 12 PREFACIO Endowment for the Humanities, que forneceu os recursos financeiros que tornaram esse ano possivel. Tenho também uma divida de gratidio com o Conselho do Canada por ter me concedido uma Bolsa Isaak Killam, 0 que me possibilitou tirar mais um ano de licenga. Isso foi crucial. Meus agradecimentos vao também para a Universidade McGill por um ano sabatico, bem como para o Conselho de Pesquisa em Ciéncias Sociais e Humanidades do Canada por uma Bolsa de Férias Sabdticas, que me permitiu completar o original. Desejo ainda exprimir meus agradecimentos a Universidade McGill por uma verba de pesquisa oferecida para a reformatacio do original e preparacdo do indice remissivo. Sou muito grato a Mette Hjort por seus comentérios ao original. Gos- taria de agradecer a Alba e Miriam por suas valiosas sugestdes, a Karen e Bisia por me porem em contato com dimensGes desconhecidas da exis- téncia e a Beata por seu revigorante pragmatismo. Meus agradecimentos ainda a Gretta Taylor e Melissa Steele, por sua ajuda na preparagdo da versao final do original para publicagéo, e a Wanda Taylor pela leitura de provas e organizagdo do indice remissivo. Agradego a Macmillan Publishing Company e 4 A. P. Watt Ltd., repre- sentantes de Michael B. Yeats e da Macmillan London Ltd., pela permissao de citar versos de “Among Schoolchildren”, de W. B. Yeats, reproduzido de The Poems of W. B. Yeats: A New Edition, editado por Richard J. Finneran, © 1928 da Macmillan Publishing Company, renovado em 1956 por Georgie Yeats; 4 New Directions Publishing Corporation pela permissdo de citar “In a Station of the Metro”, de Ezra Pound, extraido de Personae: Collected Poems of Ezra Pound, © 1926 de Ezra Pound, e republicado pela New Directions (1949); 4 Faber and Faber Ltd. e 4 Random House, Inc., pela permissdo de citar uma estrofe da versdo mais antiga de “September 1, 1939”, © 1940 de W. H. Auden e reproduzido de The English Auden: Poems, Essays, and Dramatic Writings, 1927-1939, de W. H. Auden, editado por Edward Mendelson. Os versos de Paul Celan, “Weggebeizt”, “Kein Halbholz” e “Fadensonnen”, foram reproduzidos a partir da Gesammelte Werke, II (1983), com permissao da Suhrkamp Verlag. PARTE 1 A identidade eo bem Configuragdes incontornaveis 11 esejo examinar varias facetas daquilo que vou chamar de a “iden- tidade moderna”. Uma boa primeira abordagem do que isso signi- fica seria dizer que a tarefa envolve o rastreamento de varias ver- tentes de nossa concepgéo moderna do que é ser um agente humano, uma pessoa ou um self. Contudo, o processo dessa investigagdo logo mostra que nao é possivel formar uma idéia muito clara disso sem alguma compreensao adicional de como nossas representagdes do bem evoluiram. A indivi- dualidade e o bem, ou, em outras palavras, a identidade e a moralidade, apresentam-se como temas inextricavelmente entrelacados. Nesta primeira parte, quero dizer algo sobre essa ligago, antes de, nas Partes II-V, mergulhar na hist6ria e andlise da identidade modema. Mas outro obstdculo aparece no caminho até mesmo dessa tarefa preliminar. Boa parte da filosofia moral contempordnea, particularmente mas nao apenas no mundo de lingua inglesa, tem abordado a moralidade de maneira tao estreita que algumas das conexées cruciais que desejo esbogar aqui sao incompreensiveis em seus termos. Essa filosofia moral tendeu a se concentrar mais no que € certo fazer do que no que é bom ser, antes na definicéo do contetido da obrigagdo do que na natureza do bem viver; e nado hd nela espaco conceitual 15 16 A IDENTIDADE E 0 BEM para a nogdo do bem como o objeto de nosso amor ou lealdade ou, como Iris Murdoch o retratou em sua obra, como 0 foco privilegiado da atengéo ou da vontade. Essa filosofia sancionou uma concepcdo defeituosa e truncada da moralidade num sentido estreito, bem como de toda a gama de questdes envolvidas na tentativa de levar a melhor vida possivel, e isso nao sé para fildsofos profissionais como para um piiblico mais amplo. Assim, grande parte de meu esforco na Parte I sera dirigido 4 ampliagdo de nosso espectro de descrigdes morais legitimas e, em alguns casos, ao resgate de modos de pensamento e descrigao erroneamente levados a parecer problematicos. Em particular, o que desejo apresentar e examinar sido as linguagens subjacentes mais ricas em que assentamos os alicerces e 0 sentido das obrigagdes morais que reconhecemos. Em termos mais gerais, quero examinar o pano de fundo de nossa natureza e situagao espirituais, que esta por tras de algumas das intuigdes morais e espirituais de nossos contempo- raneos. No curso desse empreendimento, também me esforgarei para esclarecer melhor o que 6 um pano de fundo e que papel ele desempenha em nossa vida. E aqui entra um importante elemento de resgate, visto que boa parte da filosofia contemporanea tem ignorado por inteiro essa dimensdo de nossa consciéncia e crengas morais, chegando mesmo a dar a impressdo de descarta- -la como algo confuso e irrelevante. Espero demonstrar, em oposigaéo a essa atitude, como essa dimensdo é crucial. Falei no pardgrafo anterior de nossas intuigdes “morais e espirituais”. Com efeito, quero considerar algumas concepcdes um pouco mais amplas do que aquilo que normalmente é descrito como a “moral”. Além de nossas nogées e reagoes relativas a tépicos como justica e respeito 4 vida, ao bem- -estar e a dignidade das outras pessoas, desejo analisar nosso sentido do que esta na base de nossa prépria dignidade, ou questées acerca do que torna nossa vida significativa ou satisfatéria. Estas poderiam ser classifi- cadas como questées morais em alguma definigao ampla, porém algumas estao demasiado ligadas ao respeito préprio ou muito identificadas com nossos ideais para ser classificadas como tal no léxico da maioria das pessoas. Referem-se antes ao que toma a vida digna de ser vivida. O que elas tém em comum com questées morais, e o que merece o termo vago “espiritual”, é o fato de todas envolverem o que denominei alhures “avaliagio forte’, isto 6, envolvem discriminagées acerca do certo 1. Iris Murdoch, The Sovereignty of Good, Londres, Routledge, 1970. 2, Ver meu texto “What Is Human Agency?”, em Charles Taylor, Human Agency and Language, Cambridge, Cambridge University Press, 1985. Um bom teste do carter “forte” de uma avaliacao no sentido que dou ao termo é verificar se ela pode ser a base de atitudes de admiragdo e desprezo. CONFIGURACOES INCONTORNAVEIS 17 ou errado, melhor ou pior, mais elevado ou menos elevado, que sao validadas por nossos desejos, inclinagdes ou escolhas, mas existem independente- mente destes e oferecem padroes pelos quais podem ser julgados. Assim, embora possa nao ser julgado um lapso moral o fato de eu levar uma vida que na verdade ndo vale a pena nem traz realizagao, descrever-me nesses termos é, de certo modo, condenar-me em nome de um padrao, independente de meus prdprios gostos e desejos, que eu deveria reconhecer. Talvez o mais urgente e poderoso conjunto de exigéncias que reconhe- cemos como morais refira-se ao respeito 4 vida, 4 integridade, ao bem- -estar e mesmo 4 prosperidade dos outros. Essas sao as exigéncias que in- fringimos quando matamos ou aleijamos alguém, roubamos suas proprie- dades, infundimos medo e tiramos a paz ou mesmo deixamos de prestar ajuda em momentos de necessidade. Quase todos sentem essas exigéncias, que foram e sao reconhecidas em todas as sociedades humanas. F claro que o escopo da exigéncia varia notoriamente: sociedades mais antigas, e algumas atuais, restringem a classe de beneficidrios a membros da tribo ou raga excluindo pessoas de fora, que so presa justa, on mesmo condenam os maus a uma perda definitiva dessa condigdo. Mas todos sentem essas exigéncias impostas a si por alguma classe de pessoas e, para a maioria de nossos contemporaneos, essa classe refere-se a raga humana (para quem acredita nos direitos animais, ela pode ter um alcance ainda mais amplo). Estamos falando aqui de intuices morais incomumente profundas, potentes e universais. E tal sua profundidade, que somos tentados a pensar nelas como estando arraigadas no instinto, em contraste com outras reagGes morais que parecem mais uma conseqiiéncia da criagdo e da educagdo. Parece haver uma compuncao natural, inata, diante do infligir a morte ou ferimentos a alguém, uma inclinagao de ir em socorro das pessoas feridas ou em perigo. A cultura ea criagao podem ajudar a definir as fronteiras dos “outros” relevantes, mas nao parecem criar a reacao bdsica em si. Eis por que pensadores do século XVIII, notadamente Rousseau, puderam acreditar numa suscetibilidade natural a sentir simpatia pelos outros. As raizes do respeito a vida e integridade parecem de fato ter toda essa profundidade e estar talvez vinculadas 4 tendéncia quase universal entre outros animais de ndo matar membros da mesma espécie. Todavia, como tanta coisa na vida humana, esse “instinto” recebe na cultura, como vimos, formas variadas. E a forma que assume 6é inseparavel de uma descricéo do que merece nosso respeito. A descricao parece articular a intuigdo. Ela nos diz, por exemplo, que os seres humanos sao criaturas de Deus e feitos 4 sua imagem; ou que sao almas imortais; ou que s4o todos 18 A IDENTIDADE E 0 BEM emanagGes do fogo divino; ou que sdo todos agentes racionais e, assim, tém uma dignidade que transcende qualquer outro ser; ou alguma outra caracterizagao desse tipo — e que, por conseguinte, devemos-lhes respeito. As varias culturas que restringem esse respeito fazem-no negando a des- crigao crucial aos que foram deixados de fora: julgam que estes nao tém alma, nao sao plenamente racionais ou talvez sejam destinados por Deus a alguma posigao inferior ou algo desse género. Portanto, nossas reagdes morais nesse dominio tém, por assim dizer, duas facetas. De um lado, sao quase como instintos, comparaveis a nosso amor por doces, nossa aversdo a substancias nauseantes ou nosso medo de cair; do outro, parecem envolver afirmacées, implicitas ou explicitas, sobre a natureza e condicdo dos seres humanos. Nesta segunda perspectiva, uma reacéo moral configura-se como uma aceitacao, uma afirmacao, de dada ontologia do humano. Uma importante corrente da consciéncia naturalista moderna tentou afastar essa segunda perspectiva e declara-la dispensavel ou irrelevante para a moralidade. Sao miiltiplos os motivos: em parte, isso resulta da desconfianca diante de todas as explicacdes ontoldgicas devido ao uso que foi dado a algumas delas, por exemplo justificar restriges ou exclusdes de hereges ou de seres supostamente inferiores. E essa desconfianca é for- talecida quando reina um sentido primitivista de que a natureza humana imaculada respeita a vida por instinto. Mas também deve-se em parte & grande nuvem epistemolégica sob a qual todas essas explicagdes se en- contram para aqueles que seguiram teorias empiristas ou racionalistas do conhecimento, inspiradas pelo sucesso da ciéncia natural moderna. E grande a tentagao de nos contentarmos com o fato de que temos reagdes desse tipo e considerarmos a ontologia que lhes confere articulacao racional um mero palavreado, coisas sem sentido de uma época que passon. Essa posigao pode acompanhar-se de uma explicagdo sociobioldgica para o fato de termos essas reagGes, 0 que pode ser julgado de dbvia utili- dade evolutiva e ter de fatos andlogos entre outras espécies, como ja foi mencionado. Porém, essa divisdo tao nitida ndo pode ser mantida. Explicagdes ontoldgicas oferecem-se como articulagdes corretas de nossas reagoes “vis- cerais” de respeito. No tocante a isso, tratam essas reacOes como distintas de outras respostas “viscerais’, como nosso gosto por doces ou nossa nausea diante de certos odores ou objetos. Nao reconhecemos que haja aqui algo a articular, ao contrério do que acontece no caso da moral. E essa distingdo ilegitima? Uma invencao metafisica? Parece que tudo gira em tomo disto: em ambos os casos, nossa resposta é a um objeto dotado CONFIGURACOES INCONTORNAVEIS 19 de certa propriedade. Porém, num caso a propriedade marca 0 objeto como merecedor dessa reacao; no outro, a conexdo entre os dois é apenas um fato bruto. Assim, discutimos e refletimos sobre o que e quem é um objeto adequado para o respeito moral, ao passo que isso sequer parece possivel para uma reagado como a nausea. Naturalmente, podemos raciocinar que seria titil ou conveniente alterar as fronteiras daquilo pelo que sentimos nausea; e poderiamos ter sucesso, com treinamento, em fazé-lo. Mas 0 que parece nao fazer sentido aqui é a suposicdo de que poderiamos articular uma descrigéo do nauseante em termos de suas qualidades intrinsecas, argumentando depois, a partir disso, que certas coisas diante das quais de fato reagimos dessa maneira nao s4o na realidade objetos adequados de nausea. Parece nao haver outro critério para um conceito do nauseante além de nossa reagdo efetiva de nausea as coisas a que se aplica o conceito. Em contraposigéo ao primeiro tipo de resposta, vinculado a um objeto apropriado, esta poderia ser considerada uma reagéo bruta. A assimilagdo de nossas reacdes morais a essas reagoes viscerais signi- ficaria considerar completamente ilusdrio tudo que falamos sobre objetos adequados de resposta moral. A crenga de que discriminamos propriedades reais, com critérios independentes de nossas reagdes de facto, seria declarada sem fundamento. Este é o dnus da chamada “teoria do erro” dos valores morais que John Mackie defendeu*. Pode-se combiné-la facilmente com um ponto de vista sociobiolégico, em que se reconhece que certas reagdes morais tiveram (e tém) um dbvio valor de sobrevivéncia, e até propor que ajustemos e alteremos nossas reagdes de modo a aumentar esse valor, tal como nos imaginamos acima mudando as coisas que nos causam nausea. Mas isso nada teria a ver com a concepcdo de que certas coisas, e nao outras, apenas em virtude de sua natureza, fossem objetos adequados de respeito. Ora, essa perspectiva sociobiolégica ou externa é completamente distinta da maneira como de fato discutimos, refletimos e deliberamos em nossa vida moral. Agora, somos todos universalistas em termos do respeito a vida e a integridade. Mas isso nao significa simplesmente que temos essas reagdes por acaso ou que decidimos, a luz da atual situagao da raga humana, que é itil ter essas reagdes (embora alguns argumentem desta maneira, alertando-nos, por exemplo, que é de nosso préprio interesse, num mundo cada vez menor, levar em consideragdo a pobreza do Terceiro Mundo). Significa, em vez disso, que acreditamos que seria profundamente errado e sem fundamento definir fronteiras que ndo incluissem toda a raga humana. 3. J. L. Mackie, Ethics: Inventing Right and Wrong. Harmondsworth, Penguin Books, 1977. 20 A IDENTIDADE E 0 BEM Se alguém se propusesse a fazer isso, perguntar-lhe-iamos imedia- tamente 0 que distingue quem foi incluido dos que ficaram de fora. E nos agatrariamos a essa caracteristica distintiva a fim de mostrar que ela nada teve que ver com 0 merecimento de respeito. E isso que fazemos com os racistas. A cor da pele ou os tragos fisicos ndo tem nenhuma relagdo com as coisas em virtude das quais os seres humanos merecem nosso respeito. Com efeito, nenhuma explicagdo ontologica faz tal atribuigao. Os racistas tém de afirmar que determinadas propriedades morais cruciais dos seres humanos sao geneticamente determinadas: que algumas racas sao menos inteligentes, menos capazes de ter uma consciéncia moral elevada etc. A légica do argumento obriga-os a fundamentar sua afirmagdo num terreno em que eles se colocam, empiricamente, em seu ponto mais fraco. As di- ferengas de cor da pele sao inegaveis. Mas todas as alegagdes acerca de diferencas culturais inatas sao insustentaveis a luz da historia humana. A légica de todo esse debate leva a sério a descricao intrinseca, isto é, des- crigdes dos objetos de nossas respostas morais cujos critérios sdo inde- pendentes de nossas reacdes de facto. E poderia ser de outra maneira? Sentimos que a exigéncia é consistente em nossas reacoes morais. E mesmo os fildsofos que se propdem ignorar as explicagdes ontoldgicas ainda assim submetem a escrutinio e criticam nossas intuigdes morais por sua consisténcia ou falta de consisténcia. Mas a questao da consisténcia pressupée a descricao intrinseca. Como poderia alguém ser acusado de ficar inconsistentemente nauseado? Sempre se pode encontrar alguma descri¢gao que inclua todos os objetos diante dos quais ele reage dessa maneira, mesmo que seja apenas a descricao relativa de que todos eles provocam sua repugnancia. A questao da consisténcia sé pode ser levantada quando a reagdo se vincula a alguma propriedade inde- pendente como seu objeto adequado. Todo o modo pelo qual pensamos, refletimos, argumentamos ¢ nos questionamos sobre a moralidade supde que nossas reagdes morais tém esses dois lados: nédo sdo apenas sentimentos “viscerais”, mas também reconhecimentos implicitos de enunciados concernentes a seus objetos. As varias explicagées ontolégicas tentam articular esses enunciados. As ten- tagdes de negar isto, que advém da epistemologia modema, sao fortalecidas pela ampla aceitagdo de um modelo profundamente erréneo de raciocinio pratico’, baseado em uma extrapolacdo ilegitima a partir do raciocinio das ciéncias naturais. 4. Ver a discussao a seguir na secdo 3.2, bem como em meu texto “Explanation and Practical Reason”. CONFIGURAGOES INCONTORNAVEIS 21 As varias explicagdes ontoldgicas atribuem predicados a seres humanos — como criaturas de Deus, emanagoes do fogo divino ou agentes de escolha tacional — que parecem deveras andlogos aos predicados tedricos das ciéncias naturais, visto que (a) sdo bastante distantes de nossas descrigdes cotidianas, por meio das quais lidamos com as pessoas que nos cercam e com nés mesmos, e (b) fazem referéncia 4 nossa concepcao do universo e do lugar que nele ocupamos. De fato, remontando a épocas anteriores ao periodo moderno e tomando, por exemplo, o pensamento de Platao, fica claro que a explicagao ontologica que esta na base da moralidade do tratamento justo era idéntica 4 sua teoria “cientifica” do universo. A teoria das Idéias subjazia tanto a uma como 4 outra. Parece natural supor que terfamos de estabelecer esses predicados ontolégicos de maneira andloga a nossas explicagées fisicas basicas: partindo dos fatos identificados independentemente de nossas reagdes a eles, tentariamos mostrar que uma explicagdo subjacente é melhor que as outras. Contudo, uma vez tendo-o feito, perdemos de vista o objeto de nossa discuss4o. As explicagées ontologicas tém o estatuto de articulagoes de nossos instintos morais. Elas articulam as afirmagées implicitas em nossas reagdes. Ndo mais podemos argumentar sobre elas quando assu- mimos uma instancia neutra e tentamos descrever os fatos tais como sao, independentemente dessas reagdes, como fizemos nas ciéncias naturais desde o século XVII. E claro que existe uma objetividade moral. A evolugao da introvisdo moral requer com freqiiéncia que neutralizemos algumas de nossas reagdes. Mas isso ocorre para que as outras possam ser identifica- das, percebidas e descobertas por meio de citimes mesquinhos, egoismo ou outros sentimentos indignos. Nunca se trata de prescindir por inteiro de nlossas reacoes. Argumentagoes e exploragdes morais so podem existir num mundo moldado por nossas mais profundas respostas morais, tais como as de que venho falando aqui; assim como as ciéncias naturais supdem que nos concentremos num mundo em que todas as nossas respostas foram neutralizadas. Para discriminar com maior discernimento o que ha nos seres humanos que os tora dignos de respeito, é preciso lembrar o que é sentir o peso do sofrimento humano, o que ha de repugnante na injustiga ou o assombro que se sente diante do fato da vida humana. Nenhum argumento pode levar alguém de uma posicdo de neutralidade com relacao ao mundo, quer adotada pelas exigéncias da “ciéncia”, quer originada como conseqiiéncia de uma patologia, 4 introvisdo da ontologia moral. Nao se segue disso, no entanto, que a ontologia moral seja pura ficcéo, como costumam supor os naturalistas. Deveriamos antes tratar nossos mais 22 A IDENTIDADE E 0 BEM profundos instintos morais, nosso senso inerradicavel de que a vida humana deve ser respeitada, como nossa forma de acesso ao mundo em que as afirmages ontoldgicas so discerniveis e podem ser discutidas e analisadas racionalmente. 1.2 Referi-me no comego ao exame do “pano de fundo” que subjaz a nossas intuigdes espirituais e morais. Poderia agora reformular isso e dizer que meu alvo é a ontologia moral que articula essas intuigdes. Que quadro de nossa natureza e condicdo espiritual dé sentido a nossas respostas? “Dar sentido” aqui significa articular aquilo que torna essas respostas apro- priadas: identificar 0 que faz de algo um objeto adequado para elas e, cor- relativamente, formular de maneira mais completa a natureza da resposta, assim como explicitar o que tudo isso pressupde sobre nds mesmos e sobre nossa situacdo no mundo. O que é articulado aqui é 0 fundamento que pressupomos e ao qual recorremos em todas as reivindicagées de correcao, e parte do qual precisamos tornar explicita para defender nossas respostas como sendo as corretas. Essa articulagao pode ser bem dificil e controversa. Nao o digo apenas no sentido dbvio de que nossos contempordneos nem sempre concordam entre si em matéria de ontologia moral. Isso é claro o suficiente: muitas pessoas, caso lhes pedissemos que explicitassem o fundamento de suas reagoes de respeito pela vida acima discutidas, apelariam para a explicagdo teista a que me referi c invocariam nossa condigao comum de criaturas de Deus; outras a rejeitariam em favor de uma explicagao puramente secular e talvez invocassem a dignidade da vida racional. Contudo, além disso, a articulagao dos fundamentos de qualquer pessoa particular pode ser objeto de controvérsia. O proprio agente nao é necessariamente a melhor auto- ridade, ao menos nao no comego. Isto € assim, antes de tudo, porque a ontologia moral que estd na base das concepgdes de qualquer pessoa pode permanecer em grande medida implicita. Com efeito, € 0 que geralmente ocorre, exceto na presenga de algum desafio que force essa ontologia a passar ao primeiro plano. A pessoa comum precisa pensar muito pouco sobre as bases do respeito universal, por exemplo, porque quase todos aceitam isto como axioma em nossos dias. Os maiores violadores ocultam-se por tras de uma cortina de fumaca de mentiras e de alegacdes especiais. Mesmo regimes racistas, como o da Africa do Sul, apresentam seus programas na linguagem do CONFIGURACOES INCONTORNAVEIS 23 desenvolvimento separado mas igual, enquanto dissidentes soviéticos sao encarcerados sob varias acusagoes forjadas ou hospitalizados como “doentes mentais”, mantendo-se a ficgdo de que as massas elegem o regime. A natureza teista ou secular dos fundamentos de uma pessoa é algo que raramente transpira, exceto em determinadas controvérsias muito especiais, como a que se trava sobre o aborto. Portanto, em amplas reas, os fundamentos tendem a manter-se inex- plorados. Mas, além disso, pode até mesmo haver resisténcia 4 sua exploragdo. Isto porque pode existir — e, desejo afirmar, muitas vezes ha — uma falta de adequagao entre o que as pessoas acreditam, por assim dizer, oficial ¢ conscientemente, e de que até se orgulham de acreditar, e aquilo de que precisam para dotar de sentido algumas de suas reagdes morais. Um hiato como esse surgiu na discussao acima, em que alguns naturalistas propdem que se tratem todas as ontologias morais como historias irrelevantes, sem validade, enquanto eles mesmos continuam a discutir como todos nés sobre que objetos sao adequados e que reagées sdo apropriadas. O que, de modo geral, acontece neste caso 6 que a propria explicacdo redutiva, com freqiiéncia de cunho sociobioldgico, que supostamente justifica essa exclusdo assume ela mesma o papel de ontologia moral. Quer dizer, comega a oferecer a base para discriminagdes acerca de objetos apropriados ou respostas validas. 0 que principia no capitulo 1 como uma teoria cientifica fria para justificar uma teoria de erro da moralidade torna-se, na conclusao, a base para uma nova ética “cientifica” ou “evolutiva’’. Aqui, é forcoso concluir, reina uma ilusio ideologicamente induzida sobre a natureza da ontologia moral em que os pensadores envolvidos de fato se baseiam. Ha um trabalho de articulagio deveras controverso, porém muito importante, a ser feito aqui, a despeito das pessoas envolvidas, que possa mostrar até que ponto a base espiritual real de seus proprios juizos morais se desvia daquilo que é oficialmente admitido. Ha, a meu ver, muita supressdo motivada de ontologia moral entre nossos contemporaneos, em parte porque a natureza pluralista da sociedade moderna torna mais facil viver dessa maneira, mas também por causa do grande peso da epistemologia moderna (como ocorre com os naturalistas acima mencionados) e, por trds disso, da perspectiva espiritual associada a essa epistemologia. Assim, 0 trabalho a que me lancei aqui poderia ser chamado em larga medida de ensaio de resgate. Terei de lutar por boa parte do terreno, e por certo nado convencerei a todos. 5. Para um bom exemplo disso, ver E. 0. Wilson, On Human Nature, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1978 (em portugués, Da natureca humane, Sio Paulo, T. A. Queiroz, 1981). 24 A IDENTIDADE E O BEM Entretanto, ao lado de nossas discordancias e de nossas tentagdes de supressdo, essa articulacao da ontologia moral sera muito dificil por uma terceira raz4o; a natureza indefinida, tateante, incerta de muitas de nossas crengas morais. Muitos de nossos contempordneos, embora nao se sintam atraidos pela tentativa naturalista de negar por inteiro a ontologia e embora, pelo contrario, reconhecam que suas reagdes morais mostram estar eles comprometidos com alguma base adequada, ficam perplexos e indecisos quando chega 0 momento de dizer que base é essa. Em nosso exemplo acima, muitas pessoas, diante das ontologias teista e secular como base para suas reagdes de respeito, ndo se sentiriam prontas para tomar uma decisdo definitiva. Elas concordam que, mediante suas crengas morais, reconhecem alguma base na natureza ou na condigaéo humana que torna os seres humanos objetos adequados de respeito, porém confessam que nao podem aderir com total convicgdo a nenhuma definigéo particular, ao menos nao a alguma das oferecidas. Algo similar se manifesta para muitas delas no tocante a questéo do que torna a vida humana digna de ser vivida ou do que confere significado 4 sua vida individual. A maioria de nés ainda esté no processo de procurar respostas para isso. Temos af, como tentarei argumentar a seguir, uma condigdo essencialmente modema. Quando isso acontece, a questao da articulagao pode assumir outra forma. Nao é a mera formulagao do que as pessoas jd reconhecem de forma implicita mas nao problematica, nem a demonstragdo das coisas nas quais as pessoas realmente se apdiam, a despeito de suas negagées ideolégicas. Essa articulagao 86 poderia ser levada a eleito, em vez disso, pela demonstrago de que uma ou outra ontologia é na verdade a tinica base adequada para nossas respostas morais, quer 0 reconhegamos ou nado. Uma tese como essa foi invocada por Dostoiévski e discutida por Leszek Kolakowski numa obra recente®: “Se Deus nao existe, tudo é permitido”. Mas esse nivel de argumentagdo, que concerne Aquilo a que se resumem de fato nossos compromissos, é ainda mais dificil do que o anterior, que tenta mostrar, diante da supressao naturalista, o que eles ja sao. £ provavel que eu nao consiga me aventurar muito nesse terreno nas paginas a seguir. Seria suficiente, e muito valioso, poder mostrar algo acerca dos compromissos indefinidos, hesitantes e difusos em que nés, mo- demos, nos baseamos de fato. 0 mapa de nosso mundo moral, por mais cheio de lacunas, rasuras e borrées, é por demais interessante. 1.3 O mundo moral dos modernos é significativamente distinto do de civilizagdes precedentes. Isto se torna claro, por exemplo, quando exami- 6. Ver Leszek Kolakowski, Religion, Londres, Fontana, 1982. CONFIGURACOES INCONTORNAVEIS 25, mamos a percepgdo de que os seres humanos merecemi nosso respeito. De uma forma ou de outra, isto parece ser um universal humano; isto é, em todas as sociedades parece haver tal percepgdo. A fronteira ao redor dos seres merecedores de respeito pode ser tragada de forma mais restrita em culturas anteriores, mas ha sempre uma classe caracterizada dessa maneira. E, entre o que reconhecemos como civilizagdes superiores, sempre esta incluida toda a espécie humana. O que ha de peculiar ao Ocidente moderno entre essas civilizacdes superiores é 0 fato de sua formulacdo predileta desse principio do respeito ter sido feita em termos de direitos. Isso se tornou central em nossos sistemas legais — e, nesta forma, disseminou-se pelo mundo. Mas, além disso, algo andlogo tornou-se central em nosso pensamento moral. A nogio de um direito, também chamado de “direito subjetivo’, tal como desenvolvida na tradig&o legal do Ocidente, é de um privilégio legal visto como uma quase-posse do agente a quem 6 atribuido. Em principio, esses direitos eram posses diferenciais: algumas pessoas tinham o direito de participar de certas assembléias, de dar conselhos ou de cobrar taxas em dado rio e assim por diante. A revolugao na teoria do direito natural no século XVII consistiu em parte em usar essa linguagem dos direitos para exprimir as normas morais universais. Comegamos a falar de direitos “naturais”, aplicados agora a coisas como a vida e¢ a liberdade, que supostamente todos tém. De certo modo, falar de um direito universal e natural 4 vida n4o parece muita inovagdo. A mudanga parece ser uma questao de forma. A maneira anterior de expressar o tema era que existe uma lei natural contra tirar vidas inocentes. Ambas as formulacées parecem proibir as mesmas coisas. A dife- renca, porém, nao esta no que é proibido, mas no lugar do sujeito. A lei é aquilo a que devo obedecer. Ela pode me assegurar alguns beneficios, no caso a imunidade de que também minha vida deve ser respeitada; mas, fundamen- talmente, estou sob a lei. Em contraste, um direito subjetivo é alguma coisa em relagdo 4 qual o possuidor pode e deve agir para colocd-la em vigor. Atribuir a alguém uma imunidade, antes dada pela lei natural, na forma de um direito natural é dar-lhe um papel no estabelecimento e aplicagao dessa imu- nidade. Agora, sua participagao é necessaria e seus graus de liberdade sao correspondentemente maiores. No limite extremo destes, pode-se até renunciar a um direito, derrotando assim a imunidade. Eis por que Locke, a fim de excluir essa possibilidade no caso de seus trés direitos basicos, teve de in- troduzir a nocdo de “inalienabilidade”. Nada semelhante a isso era necessario na formulacdo da lei natural anterior, porque essa lnguagem, por sua propria natureza, exclui o poder de rentincia. 26 A IDENTIDADE E 0 BEM Falar de direitos humanos universais, naturais, é vincular o respeito pela vida e integridade humanas 4 nog&o de autonomia. E conceber as pessoas como colaboradores ativos no estabelecimento e garantia do respeito que Ihes é devido. E isso exprime uma caracteristica central de nossa perspectiva moral ocidental moderna. Essa mudanca de forma se faz acom- panhar, naturalmente, de uma alteragao de contetido, da concepgdo do que é respeitar alguém. A autonomia é agora central a isso. Assim, a trindade lockiana dos direitos naturais inclui o direito a liberdade. E, para nds, respeitar a personalidade envolve como elemento crucial respeitar a auto- nomia moral da pessoa. Com o desenvolvimento da nogao pds-romantica de diferenca individual, isso se amplia até a exigéncia de darmos as pessoas a liberdade de desenvolver sua personalidade 4 sua propria maneira, por mais repugnante que seja para nds e mesmo para nosso sentido moral — tese desenvolvida tao persuasivamente por J. S. Mill. E claro que nem todos concordam com o principio de Mill, e seu pleno impacto na legislagao ocidental foi bem recente. Porém, todos em nossa civilizagéo sentem a forga desse apelo de que se conceda as pessoas a liberdade de se desenvolver a sua propria maneira. A divergéncia é quanto arelacdo de coisas como a pornografia, ou varias espécies de comportamento sexual permissivo, ou representagées de violéncia, com o desenvolvimento legitimo. A proibic&éo daquelas ameaca este tiltimo? Ninguém duvida que, se assim for, isto constitui uma razao, embora talvez nao totalmente decisiva, para afrouxar os controles sociais. Logo, a autonomia tem lugar central em nossa compreensio do respeito. Muita coisa € aceita universalmente. Além disso ha varios quadros mais ricos da natureza humana e de nossa condigdo, os quais oferecem razSes para essa exigéncia. Inclui-se af, por exemplo, a nogio de que somos sujeitos des- prendidos, que se libertam de uma sensagdo confortavel mas iluséria de imersdo na natureza e objetificam o mundo a volta; ou o quadro kantiano que nos mos- tra como puros agentes racionais; ou a visdo romantica que acabamos de men- cionar, na qual nos autocompreendemos segundo metdforas organicas e un conceito de auto-expressao. Como é bem sabido, os partiddrios dessas diferentes concepg¢ées estao em intenso conflito entre si. Aqui, mais uma vez, um consenso moral generalizado gera controvérsia no nivel da explicagdo filosdfica. Nao sou de modo algo neutro nessa controvérsia, mas nao me sinto, neste estagio, capaz de contribuir com ela de maneira util. Tentarei agora, em vez disso, arrematar este quadro de nossa compreensao moderna do respeito com a mencao a duas outras caracteristicas relacionadas. A primeira é a importancia que atribuimos a evitar o sofrimento. Isso parece novamente ser peculiar as civilizacdes superiores. Somos por certo CONFIGURACOES INCONTORNAVEIS. 27 bem mais sensiveis a este respeito do que nossos ancestrais de alguns séculos atraés — como poderemos perceber prontamente se considerarmos as barbaras (para nés) punigdes que eles infligiam. Mais uma vez, 0 codigo legal e suas praticas proporcionam uma janela para movimentos mais amplos da cultura. Pensemos na terrificante descricdo da tortura e execucdo de um homem que tentou o regicidio na Franga de meados do século XVIII, que abre Vigiar e punir, de Miche] Foucault’. Nao que horrores compardveis nao acontecam no Ocidente do século XX. Mas sao agora considerados aberragdes chocantes que tém de ser ocultadas. Mesmo as execucées le- gais “limpas”, nos lugares em que a pena de morte ainda esta em vigor, j4 nao sao feitas em ptiblico, mas por tras dos tantos muros das prisdes. E com arrepio que ficamos sabendo que pais costumavam levar os filhos pequenos para testemunhar tais eventos quando estes eram oferecidos como espetdculos ptiblicos antigamente. Somos bem mais sensiveis ao sofrimento, o que, claro, podemos traduzir em simplesmente nao querer ouvir falar dele, em vez de o expressarmos na tomada de alguma agéo corretiva concreta. Mas a nog&o de que temos de reduzir o sofrimento a um minimo é parte integrante daquilo que o respeito significa para nés hoje — por mais desagraddvel que isso tenha sido para uma eloqiiente minoria, em particular para Nietzsche. Parte da razdo dessa mudanca é negativa. Em compara¢do, por exemplo, com os executores de Damiens no século XVIII, nao vemos sentido em reverter ritualmente o crime terrivel com uma puni¢ao igualmente terrivel. Toda a nocdo de ordem moral césmica, que conferia sentido a essa restau- racao, desapareceu para nds. A énfase em aliviar o sofrimento destacou- se com 0 declinio desse tipo de crenga. Eo que resta, o que assume im- portancia moral, depois que deixamos de ver os seres humanos como tendo papel na ordem césmica ou na histéria divina mais amplas. Isso foi parte do impulso negativo do Tuminismo utilitarista, que protestava contra o sofrimento desnecessario e sem sentido infligido aos seres humanos em nome dessas ordens ou dramas mais amplos. Mas é claro que essa énfase no bem-estar humano do tipo mais imediato também tem fontes religiosas. Vem do Novo Testamento e constitui um dos temas centrais da espiritualidade crista. O utilitarismo moderno é uma de suas variantes secularizadas. E, nessa qualidade, vincula-se a uma carac- teristica mais fundamental da espiritualidade cristé, que vem a receber uma importancia nova e sem precedentes no comeco da era moderna e também se tornou central a cultura moderna. Quero descrever isso como 7. Michel Foucault, Vigiar e punir, Petropolis, Vozes, 1995. 28 A IDENTIDADE E 0 BEM aafirmacdo da vida cotidiana. Este iiltimo termo pertence 4 arte e pretende, em linhas gerais, designar a vida da produgdo e da familia. De acordo com a ética aristotélica tradicional, trata-se de algo de impor- tancia meramente infra-estrutural. A “vida” era importante como o pano de fundo e apoio necessdrios ao “bem viver” de contemplagéo e 4 agao das pessoas como cidadaos. Com a Reforma, encontramos um sentido moderno, de inspiracdo cristd, de que a vida cotidiana era, pelo contrario, o préprio centro do bem viver. A questo crucial era como essa vida era levada, se em atitude contrita e no temor a Deus ou nao. Mas a vida dos tementes a Deus era vivida no matrimGnio e em seu chamado. As formas “superiores” de vida precedentes foram, por assim dizer, destronadas. E, com isso, vinha com freqiiéncia um ataque, velado ou aberto, as elites que haviam feito dessas formas a sua provincia. Creio que essa afirmacao da vida cotidiana, embora nao incontestada e com freqiiéncia aparecendo em forma secularizada, tomou-se uma das idéias mais poderosas da civilizagao modema. Ela esta na base de nossa politica “burguesa” atual, tao preocupada com questdes de bem-estar, e ao mesmo tempo serve de combustivel 4 mais influente ideologia revoluciondria de nosso século, 0 marxismo, com sua apoteose do homem enquanto produtor. Esse sentido da importancia do cotidiano na vida humana, ao lado de seu corolario referente 4 importancia do sofrimento, colore toda a nossa compreensio do que é de fato respeitar a vida e a integridade humanas. Junto com o lugar central atribuido 4 autonomia, ele define uma versdo dessa exigéncia que € peculiar & nossa civilizago, o Ocidente moderno. 1.4 Até agora estive examinando apenas uma corrente de nossas intuigdes morais, se bem que extremamente importante, Trata-se das crengas morais que se agregam em torno do sentido de que a vida humana deve ser respeitada e de que as proibigdes e obrigagdes que isso nos impe contam-se entre as mais ponderaveis e sérias de nossa vida. Estive argumentando que ha um sentido peculiarmente moderno daquilo que o respeito envolve, que confere lugar de destaque a liberdade e ao autocontrole, da elevada prioridade a evitagao do sofrimento e vé a atividade produtiva e a vida familiar como essenciais para nosso bem-estar. Porém, esse agregado de intuigdes morais acompanha apenas wm dos eixos de nossa vida moral. Ha outros para os quais as nogdes morais que venho discutindo também so relevantes. A “moralidade’, com efeito, pode ser e com freqiiéncia é definida tao- -somente em termos do respeito aos outros. Considera-se que a categoria da CONFIGURAGOES INCONTORNAVEIS 29 moral abrange precisamente nossas obrigagées para com as outras pessoas. Se, contudo, adotarmos essa definicao, teremos de admitir que existem outras questées além da moral que sao de essencial importancia para nds e poem em jogo uma avaliacao forte. HA questdes sobre como vou levar minha vida que remetem ao aspecto de que tipo de vida vale a pena ter ou que tipo de vida vai cumprir a promessa implicita em meus talentos particulares, nas exigén- cias incidentes sobre alguém com minha capacidade, ou do que constitui uma vida rica e significativa em contraposigao uma vida voltada para questées secundarias ou trivialidades. Trata-se de interrogacées de avaliacio forte, visto que quem as faz ndo tem duvida de que se possa, ao seguir os proprios anseios e desejos imediatos, dar um mau passo e, em conseqiiéncia, fracassar na tarefa de levar uma vida plena. Para compreender nosso mundo moral, temos de ver nado sd que idéias e quadros descritivos subjazem a nosso sentido de respeito pelos outros, mas também aqueles que alicercam nossas nogdes de uma vida plena. E, como veremos, essas nao sao duas ordens muito distintas de idéias. Existe uma sobreposicao substancial, ou melhor, uma relacéo complexa na qual algumas das mesmas nocées bdsicas ressurgem de maneira nova. Isso acontece de modo particular naquilo que chamei acima de afirmacao da vida cotidiana. Em termos gerais, poder-se-ia tentar discernir trés eixos daquilo que se pode denominar, no sentido mais amplo, pensamento moral. Assim como os dois que acabamos de mencionar — nosso sentido de respeito pelos outros e de obrigacao perante eles e nossos modos de compreender o que constitui uma vida plena —, hd também a gama de nogées relacionadas com a dignidade. Com isso, reporto-me as caracteristicas mediante as quais pensamos em nés mesmos como merecedores (ou nao-merecedores) do respeito das pessoas que nos cercam. Aqui, o termo “respeito” tem um significado ligeiramente distinto do que tinha acima. Nao me refiro agora ao respeito a direitos, no sentido da nio-violagao, que podemos denominar respeito “ativo”, mas ao pensar bem de alguém, até mesmo admiré-lo, que € o que esta implicito quando dizemos na linguagem comum que alguém tem nosso respeito. (Chamemos esse tipo de respeito de “atitudinal”.) Nossa “dignidade”, na acep¢do particular que emprego aqui, 6 nosso sentido de merecer respeito (atitudinal). A questao de saber em que consiste nossa dignidade nado é mais evitavel que a de saber por que deveriamos respeitar os direitos alheios ou 0 que constitui uma vida plena, por mais que uma filosofia naturalista possa nos levar a pensar erroneamente nisso como mais um dominio de meras reagdes “viscerais”, similares as dos babuinos ao estabelecer sua hierarquia. E, nesse caso, seu carter inevitavel deveria ser ainda mais dbvio, visto estar nossa dignidade tao integrada a 30 A IDENTIDADE E 0 BEM nosso préprio comportamento. A maneira mesma como andamos, nos movemos, gesticulamos e falamos é moldada desde os primeiros momentos por nossa consciéncia de estar na presenga de outros, de nos encontrarmos num espago ptiblico e de que esse espaco pode trazer potencialmente o res- peito ou o desprezo, o orgulho ou a vergonha. Nosso estilo de movimentagdo fisica exprime a maneira como nos vemos gozando de respeito ou carentes dele, como merecendo-o ou deixando de merecé-lo. Algumas pessoas passa rapidamente pelo espaco piiblico como se o evitassem; outras passam pre- cipitadamente como se esperassem fugir a questo da impressdo que causam nele pela propria determinagao séria com a qual transitam por ele; outros ainda passeiam com seguranca, saboreando seus momentos nesse ambito; e hd também os que assumem um ar superior, confiantes na maneira como sla presen¢a marca 0 espaco ptiblico: pensemos no modo cuidadosamente vagaroso com que o policial sai de sua viatura apés ter-nos feito parar por excesso de velocidade, e no caminhar lento e cadenciado com que se aproxima para pedir nossa carteira de motorista’. O que, precisamente, julgamos constituir nossa dignidade? Pode ser nosso poder, nosso sentido de dominar o espago piiblico; ou nossa vulnera- bilidade diante do poder; ou nossa auto-suficiéncia, o fato de nossa vida ter seu prdprio centro; ou o fato de sermos queridos e admirados pelos outros, um centro das atengdes. E, no entanto, muito comum que o sentido de dignidade possa fundamentar-se em algumas das mesmas concepgdes morais que mencionei acima. Por exemplo, minha visao de mim mesmo como chefe da casa, pai de familia, detentor de um emprego, provedor de meus dependentes; tudo isso pode ser a base do meu sentido de dignidade. Do mesmo modo como sua auséncia pode ser catastréfica, capaz de abald--lo ao solapar por inteiro meu sentimento de valor pessoal. Aqui, o sentido de dignidade esta envolvido nessa nogdo moderna da importancia da vida cotidiana, que reaparece outra vez neste eixo. E provavel que algo semelhante a esses trés eixos exista em toda cultura. Ha, contudo, grandes diferengas na maneira como sao concebidos e se re- lacionam entre si, bem como em sua importancia relativa. Para a ética guer- reira e de honra que parece ter sido dominante entre os estratos dirigentes da Grécia arcaica, cujas faganhas foram celebradas por Homero, este terceiro eixo parece ter sido proeminente, e parece até mesmo ter incorporado o segundo eixo sem dele deixar vestigios. O “agathds” é o homem de dignidade _ 8. Ver Marcel Proust, A J'ombre des jeunes filles en fleur, Paris, Gallimard, 1954, p. 438 (A sombra das raparigas em flor Rio de Janeiro, Globo, 1982), a respeito dessa percepgao e preocupagio inevitaveis com nossa aparéncia no espago piiblico. CONFIGURAGOES INCONTORNAVEIS, 31 e de poder’. E muitos elementos disso sobrevivem no periodo classico para que Plato tenha apresentado uma ética do poder e do auto-engrandecimento como uma de suas principais metas, em figuras como Calicles e Trasimaco. Para nés, isto se aproxima do inconcebivel. Parece dbvio que o primeiro eixo tem a primazia, seguido pelo segundo. Ligado a isso, provavelmente teria sido incompreensivel para as pessoas desse periodo arcaico que o primeiro eixo pudesse ser concebido em termos de uma ética de principios gerais, quanto mais fundada na razio, em oposicéo a uma ética baseada em proibicdes religiosas que nao toleravam discussao. Uma das maneiras mais importantes pelas quais nossa época se destaca das anteriores refere-se ao segundo eixo. Sao pertinentes para nés uma série de interrogagies que giram em torno do sentido da vida, as quais nao seriam totalmente inteligiveis em épocas antecedentes. Os modernos podem duvidar ansiosamente que a vida tenha sentido, ou ficar divagando sobre qual seria esse sentido. Ainda que os fildsofos possam inclinar-se a atacar essas formulagdes como vagas ou confusas, permanece o fato de que todos temos um sentido imediato do tipo de preocupacao que esta sendo articulado nessas palavras. Podemos talvez chegar ao 4mago dessas questoes da seguinte maneira. Questdes ao longo do segundo eixo podem surgir para pessoas de qualquer cultura. Um membro de uma sociedade guerreira pode perguntar-se se seu histérico de facanhas corajosas esta a altura da fama de sua linhagem ou das exigéncias de sua posicdo. Pessoas de uma cultura religiosa perguntam- -se muitas vezes se a exigéncia de piedade convencional é suficiente para elas ou se nao sentem um chamado a wma vocagao mais pura e dedicada. Criaturas deste tipo fundaram a maioria das grandes ordens religiosas do cristianismo, por exemplo. Contudo, em cada um desses casos permanece inquestiondvel alguma configuragdo que ajuda a definir as exigéncias a partir das quais as pessoas julgam sua vida e medem, por assim dizer, sua plenitude ou nulidade: 0 espaco da fama na meméria e no cantico da tribo, o chamado de Deus tal como explicitado na revelagao ou, para tomar outro exemplo, a ordem hierdrquica do ser no universo. E hoje um lugar comum a idéia de que 0 mundo moderno tornou essas configuragdes problematicas. No nivel da doutrina filosofica ou teoldgica explicita, isso é nitidamente evidente. Algumas configuracoes tradicionais cairam em descrédito ou foram relegadas a condicao de predilecdes pessoais, como é 0 caso do espago da fama. Outras deixaram por completo de ter 0. Ver A. W. H. Adkins, From the Many to the One, Ithaca, Cornell University Press, 1970, pp. 9-10. 32 A IDENTIDADE & 0 BEM credibilidade em qualquer apresentagado que lembre sua forma original, como no caso da nocao platénica da ordem do ser. As formas da religido revelada continuam muito vivas, mas também altamente contestadas. Nenhuma delas plasma o horizonte de toda a sociedade no Ocidente modemo. O termo “horizonte” é empregado freqiientemente para tratar deste tema. 0 que Weber denominou “desencanto”, a dissipagdo de nosso sentido do cosmo como ordem significativa, supostamente destruiu os horizontes nos quais as pessoas antes levavam sua vida espiritual. Nietzsche usou o termo em sua celebrada passagem de “Deus esta morto”: “Como poderiamos beber todo o mar? Quem nos deu a esponja com que absorver todo o horizonte?”"° Talvez essa formulagdo atraia sobretudo os intelectuais, que impéem intimeras restricdes as doutrinas explicitas que as pessoas seguem e, de todo modo, tendem a nao ter crencas. Mas a perda de horizonte descrita pelo tolo de Nietzsche sem dtivida corresponde a algo amplamente sentido em nossa cultura. Foi isso que tentei descrever com a frase acima, que as configuragdes sao hoje problematicas. Esse termo vago aponta para uma disjungdo rela- tivamente aberta de atitudes. O que ha de comum a todas elas é 0 sentido de que nenhuma configuracdo é partilhada por todos, nem pode ser tida por certa como a configuracdo tout court on passar a posigao fenomenolégica de fato inquestiondvel. Essa compreensao bdsica refrata-se variadamente nas posigdes que as pessoas tomam. Para algumas, pode significar a sustentagéo de uma concepcdo fechada tradicionalmente definida com a percepcdo autoconsciente de colocar-se contra uma grande parte de seus compatriotas. Outras podem sustentar a concepcao, porém com um sentido pluralista de ser ela uma entre outras, certa para nés porém nao neces- sariamente valida para os outros. Outras ainda identificam-se com uma concepgao, mas da maneira um tanto indefinida e semiproviséria que des- crevi acima, na segdo 1.2. Esta lhes parece préxima de formular aquilo em que acreditam ou de dizer o que, para elas, parece ser a fonte espiritual com a qual podem conectar sua vida; todavia, esto cientes de suas préprias incertezas, de quanto estado longe de ser capazes de reconhecer uma for- mulagao definitiva com confianca absoluta. Ha sempre algo de hesitante em sua adesdo, e essas pessoas podem ver a si mesmas como estando, num certo sentido, a procura. Elas est4o numa “busca”, na expressao apropriada de Alasdair MacIntyre’. 10. Ver A gaia ciéncia, par. 125. 11. Ver Alasdair MacIntyre, After Virtue, Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1984, pp. 203-204. CONFIGURACOES INCONTORNAVEIS 33 Com essas pessoas que buscam, somos levados além do escopo de confi- guragGes tradicionalmente disponiveis. Elas nao apenas aceitam essas tradigdes condicionalmente, como também costumam desenvolver suas proprias versdes delas, ou combinagGes idiossincraticas, ou empréstimos, ou semi-invengdes dentro delas. E isso proporciona o contexto dentro do qual a quest&o do sen- tido tem seu lugar. Na medida em que vemos a descoberta de uma configurag&o crivel como 0 objeto de uma busca, nessa mesma medida torna-se inteligivel que a busca poderia fracassar. Isso poderia ocorrer por inadequagao pessoal, mas também poderia advir do fato de nado haver uma configuragao crivel definitiva. Por que falar disso em termos de uma perda de sentido? Em parte porque uma configuragao é aquilo segundo o qual entendemos espiri- tualmente a nossa vida. Nao ter uma configuragao é¢ cair numa vida espi- ritualmente sem sentido. Logo, a busca € sempre uma busca de sentido. Mas a invocagdo do sentido também decorre de nossa consciéncia de quanto a busca envolve articulagéo. Descobrimos o sentido da vida articu- lando-o. E os modernos adquiriram a consciéncia aguda de que o grau de sentido que existe para nds depende de nossos préprios poderes de expres- sao. Aqui, descobrir depende de inventar, e ambos se entrelagam. Encontrar um sentido para a vida depende de construir expressées significativas adequadas. Ha, portanto, algo particularmente apropriado a nossa condicado na polissemia da palavra “sentido”: vidas podem té-lo ou carecer dele quando tém ou carecem de um objetivo; ao mesmo tempo em que a palavra também se aplica 4 lingua e a outras formas de express4o. Nés, modernos, alcangamos cada vez mais o sentido na primeira acepgdo, quando o conseguimos, mediante sua criagdo na segunda. Por conseguinte, o problema do sentido da vida esta em nossa agenda, por mais que possamos zombar dessa expressao, quer na forma de uma perda ameagada de sentido, quer porque o encontro de sentido para nossa vida é 0 objeto de uma busca. E aqueles cuja agenda espiritual define-se principalmente dessa maneira estéo numa condigdo existencial fundamentalmente distinta daquela que dominou a maioria das culturas precedentes e ainda define hoje a vida de outras pessoas. Essa alternativa é uma condicio em que uma configuracdo inquestionavel apresenta exigéncias imperiosas que tememos nao ser capazes de atender. Temos diante de nds a perspectiva de condenagao irrevogavel ou exilio, de receber o estigma da desonra, de ser inapelavelmente condenados 4 danaco, ou de ser relegados a uma ordem inferior ao longo de incontaveis vidas futuras. A pressao é potencialmente imensa e inevitavel, e podemos vergar sob o seu peso. A forma assumida pelo perigo aqui distingue- -se por completo daquela que ameaca a busca dos modernos, que é praticamente 34 A IDENTIDADE E 0 BEM 0 oposto: o mundo perde de vez seu contomo espiritual, nada vale a pena ser feito, o medo é de um vazio aterrorizante, uma espécie de vertigem, ou mesmo uma fratura do nosso mundo e do nosso corpo-espago. Para ver 0 contraste, pense-se em Lutero, em sua angustia e sofrimento intensos diante de seu momento libertador de percepcdo sobre a salvagao por meio da fé, sua sensago de condenagao incontorndvel, lancando-se irrevogavelmente na danagao por meio dos proprios instrumentos de salvagdo, os sacramentos. Como quer que se queira descrever isso, nao se trata de uma crise de sentido. Este termo nada significaria para Lutero em seu uso modemo que estou descrevendo aqui. O “sentido” da vida era demasiado inquestionavel para esse monge agostiniano, tal como o era para toda a sua época”’, A condigo existencial na qual se teme a condenagao é sobremodo diferente daquela na qual se teme, sobretudo, a falta de sentido. O dominio desta iiltima talvez defina nossa época!’. Mas, mesmo assim, aquela ainda existe para muitos, e o contraste pode ajudar-nos a compreender diferentes posigdes morais em nossa sociedade: 0 contraste entre a maioria moral de evangélicos neonatos no oeste e sul dos Estados Unidos contemporaneos, de um lado, e seus compatriotas urbanos de classe média na Costa Leste, do outro. De uma maneira que ainda nao podemos compreender adequadamente, a transigdo entre essas duas condigdes existenciais parece ter por contrapartida uma recente mudanga nos padrdes dominantes da psicopatologia. Os psicana- listas assinalam muitas vezes que o periodo em que histéricos e pacientes com fobias ¢ fixagdes formavam o grosso de sua clientela, a partir do periodo cldssico com Freud, cedeu lugar ha pouco tempo a um periodo em que as principais queixas centram-se na “perda do ego”, ou numa sensagao de vazio, de insipidez, futilidade, falta de propésito ou perda de auto-estima™, A relagdo exata que hd entre esses estilos de patologia e as condigdes ndo-patolégicas que lhes fazem paralelo é bastante obscura. Para encetar ao menos uma tentativa séria de compreendé-la, teriamos de entender melhor as estruturas do self, algo que desejo empreender adiante. Porém, a priori parece avassa- ladoramente plausivel que haja uma relagao e que a mudanga relativamente recente de estilo de patologia reflita a generalizacdo e popularizagdo em nossa 12, Ver a discussao perspicaz sobre essa crise de Lutero como 0 que ns modernos chamariamos de uma crise de “identidade” em Erik Erikson, Young Man Luther, Nova York, Norton, 1958. 13. Paul Tillich, em A coragem de ser, Rio de Janeiro, Paz ¢ Terra, 1991, descreven a diferenga entre a época da Reforma e 0 nosso tempo em termos semelhantes. 14. Ver Christopher Lasch, The Culture of Nascissism, Nova York, Norton, 1979, pp. 80- 81 (A cultura do nareisismo, Rio de Janeiro, Imago, 1983}; e também Janet Malcolm, Psicandlise: a profisséo impossivel, Rio de Janeiro, Zahar, 1983. CONFIGURACOES INCONTORNAVEIS 35, cultura dessa “perda de horizonte”, que uns poucos espiritos alertas previam ha um século ou mais. 1.5 E claro que a mesma atitude naturalista que mencionei acima, a qual gostaria de dispensar quaisquer explicacdes ontologicas e tratar apenas de reagdes morais, vé com muitas suspeitas essa conversa de sentido e confi- guragdes. As pessoas com essa inclinacdo gostariam de qualificar essa questo do sentido como uma pseudoquestao e rotular de inveng6es gratuitas as varias configuragGes nas quais ela encontra uma resposta. Alguns acham isso tentador por razdes epistemoldgicas: a ontologia despojada que exclui essas configuragdes parece-lhes mais compativel com uma perspectiva cien- tifica. Mas também hé razdes profundamente arraigadas numa certa pers- pectiva moral comum ao nosso tempo que impele as pessoas nessa direcao. Pretendo explicar isso mais claramente a seguir. Mas tal como no caso das explicagées ontolégicas acima, que estao na base de nosso respeito 4 vida, essa reducdo radical é insustentavel. Ver 0 motivo disso é compreender algo importante sobre o lugar dessas confi- guragdes em nossa vida. O que venho chamando de configuragao incorpora um conjunto crucial de distingées qualitativas. Pensar, sentir, julgar no ambito de tal configu- ragao é funcionar com a sensagao de que alguma agao ou modo de vida ou modo de sentir é incomparavelmente superior aos outros que estéo mais imediatamente a nosso alcance. Estou usando “superior” aqui em sentido genérico. O sentido daquilo em que consiste a diferenga pode assumir dife- rentes formas. Uma forma de vida pode ser vista como mais plena, outra maneira de sentir e de agir pode ser julgada mais pura, um modo de sentir ou viver como mais profundo, um estilo de vida como mais digno de admi- ragdo, uma dada exigéncia como sendo uma afirmagao absoluta em oposigdo a outras meramente relativas etc. Tentei exprimir 0 que todas essas distingoes tem em comum mediante o termo “incomparavel”. Em cada um dos casos, 0 sentido disso é que ha fins ou bens que sao dignos ou desejaveis de uma maneira que nao pode ser medida de acordo com os mesmos padres que nossos fins, bens, desirabilia. Eles séo nao s6 mais desejaveis — no mesmo sentido, porém num grau mais elevado — do que alguns desses bens comuns. Devido a seu carater especial, merecem nossa reveréncia, respeito ou admiragdo. E € esse o ponto em que a incomparabilidade vincula-se ao que deno- minei “avaliagdo forte": o fato de que esses fins ou bens tém existéncia 36 A IDENTIDADE E 0 BEM independente de nossos desejos, inclinagdes ou escolhas, de que repre- sentam padrées com base nos quais sdo julgados esses desejos e escolhas. Ha obviamente duas facetas interligadas do mesmo sentido de valor superior. Os bens que merecem nossa reveréncia também tém de funcionar em algum sentido como padr6es para nds. O exame de alguns exemplos comuns dessas configuracées vai nos ajudar apor a discussao na devida perspectiva. Um dos primeiros em nossa civilizagdo, e ainda hoje vivo para algumas pessoas, é aquele associado a ética da honra. A vida do guerreiro, do cidadao ou do cidadao-soldado é considerada superior a existéncia meramente privada, dedicada as artes da paz e ao bem-estar econémico. A vida superior é marcada pela aura de fama e de gloria que se vincula a ela, ou ao menos aos casos notaveis daqueles que encontram nela um sucesso brilhante. Estar na vida publica ou ser um guerreiro é, no minimo, ser candidato a fama. Estar pronto a arriscar a propria trangitilidade, a riqueza e até a vida em nome da gloria é a marca do verdadeiro homem; e aqueles que nao conseguem dispor-se a isso so julgados, com desprezo, “efeminados” (essa perspectiva parece inerentemente sexista). Contra isso, temos a celebrada e influente contraposicado apresentada por Platao. A virtude ja nao esta na vida piblica nem na exceléncia no dgon guerreiro. A vida superior é aquela regida pela razao, sendo a prépria razao definida em termos de uma concepcao de ordem, no cosmo e na alma. A vida superior é aquela na qual a razao — pureza, ordem, limite, o imutavel — governa os desejos e sua inclinagdo para 0 excesso, a insa- ciabilidade, a efemeridade, o conflito. Ja nessa transvaloragao de valores, foi alterado algo mais além do contetido do bem viver, por mais ampla que ja seja essa mudanga. A ética de Platao requer aquilo que hoje chamariamos de uma teoria, uma explicagio ponderada do que é a vida humana e por que um modo de vida é superior aos outros. Isto deriva inevitavelmente do novo estatuto moral da razao. Todavia, a configuragao no dmbito da qual agimos e julgamos nao precisa ser articulada teoricamente. E nao o é, em geral, pelos que vivem segundo a ética do guerreiro. Eles compartilham alguns juizos: o que é honroso e desonroso, o que é admirdvel, o que se faz e o que nao se faz. Tem-se observado com freqiiéncia que ser um cavalheiro é saber como se conduzir sem que ninguém lhe ensine as regras. (E os “cavalheiros” aqui séo os herdeiros da antiga nobreza do guerreiro.) Eis por que falei acima de agir no ambito de uma configuragéo como sendo funcionar com um “sentido” de distingéo qualitativa. Pode ser apenas isso, mas também pode ser expresso de maneira bastante explicita, numa ontologia ou antropologia filosoficamente formulada. No caso de algumas CONFIGURACOES INCONTORNAVEIS. 37 configuragdes, pode ser opcional formuld-las ou nao. Em outros casos, no entanto, a natureza da configuracao requer uma formulagdo, como ocorre com Plato, ou parece proibi-la, como no caso da ética do guerreiro-cidadao que ele atacava: esta, de fato, parece ser refratdria a formulagao tedrica. Aqueles que atribuem muita importancia a este ultimo tipo de configuracao tendem a diminuir ou a denegrir o papel e a forca da teoria na vida humana. Mas desejo mencionar esta distingao aqui em parte para evitar um erro em que facilmente caimos. Poderiamos concluir do fato de algumas pessoas operarem sem uma configuracao filosoficamente definida que elas, na verdade, nao contam com configura¢do nenhuma. E isto seria totalmente falso (na realidade, afirmo que é sempre falso). Porque, tal como nossos guerreiros inarticulados, a vida dessas pessoas pode estar totalmente estruturada por distingSes qualitativas extremamente importantes em torno das quais elas literalmente vivem e morrem. Isso fica sobremodo evidente nas admoestacoes que elas lancam a suas préprias acoes e as acées alheias. Pode, contudo, caber inteiramente a nés, observadores, historiadores, fild- sofos, antropélogos, tentar formular de modo explicito quais bens, qualidades ou fins séo aqui discriminados. E esse nivel de inarticulagio, no qual costumamos funcionar, que tento descrever ao falar do “sentido” de uma distingdo qualitativa. A distingao de Plato coloca-se 4 frente de uma grande familia de concepgdes que véem o bem viver como um dominio do self que consiste na predomindncia da razdo sobre o desejo. Uma das variantes mais celebradas no mundo antigo foi o estoicismo. E, com o desenvolvimento da moderna visio de mundo cientifica, surgiu uma variante especificamente moderna. Trata-se do ideal do self desprendido, capaz de objetificar nao sé o mundo circundante como também suas préprias emogoes e inclinagdes, medos e compulsées, e de atingir, por meio disso, uma espécie de distanciamento e autocontrole que lhe permitem agir “racionalmente”. Este ultimo termo foi posto entre aspas porque, como € evidente, seu sentido mudou com relacao ao sentido platénico. A razaéo jd nao é definida em termos de uma visdo de ordem no cosmo, mas sim de forma processual, em termos de eficdcia instrumental, de maximizagéo dg valor buscado, ou de autocoeréncia. A configuracao do autodominio por meio da razao também desenvolveu variantes teistas no pensamento judeu e cristao. Com efeito, foi uma delas que gerou o ideal do desprendimento. Mas 0 casamento com 0 platonismo, ou com a filosofia grega em geral, sempre foi problematico; e outro tema, especifica- mente crist&o, também foi muito influente em nossa civilizagao. Trata-se do entendimento da vida superior como advinda de uma transformagao da vontade. Na concepgao teolégica original, essa mudanga é obra da graga, mas ela 38 A IDENTIDADE E 0 BEM também passou por algumas transposigdes secularizantes. E variantes de ambas as formas, teol6gica e secular, estruturam hoje a vida das pessoas. Talvez a forma mais importante dessa ética hoje seja o ideal do altruismo. Com o declinio da definigéo especificamente teolégica da natureza de uma vontade transformada, uma formulagdo da distingao crucial do superior e do inferior em termos de altruismo e egoismo vem para o primeiro plano. Ocupa agora um lugar dominante no pensamento e na sensibilidade modernos acerca do que é incomparavelmente superior na vida. A dedicagao real aos outros ou ao bem universal obtém nossa admiragdo e até, em casos marcantes, nossa reveréncia. A qualidade crucial que merece nosso respeito aqui é um certo direcionamento da vontade. Trata-se de algo bem diferente do espirito de autodominio platénico, em que a questao gira em torno da hegemonia da razao, por mais que esse espirito possa coincidir na pratica com o altruismo (e essa coincidéncia esta longe de completa). E apesar de todas as suas raizes evidentes na espiritualidade crista, e de sua perfeita compatibilidade com esta, a ética secular do altrufsmo descartou algo essencial 4 perspectiva crista, uma vez que o amor de Deus nao mais desempenha nela um papel. Ao lado de éticas da fama, do dominio e do controle racionais, da trans- formagao da vontade, desenvolveu-se nos iiltimos dois séculos uma distingdo baseada em visao e poder expressivo. H4 um conjunto de idéias e de intuigdes, ainda inadequadamente entendido, que nos leva a admirar mais 0 artista e 0 criador do que qualquer outra civilizacdo ja 0 fez; isso nos convence de que uma vida dedicada 4 criag&o ou 4 interpretacdo artistica é eminentemente meritoria. Esse complexo de idéias tem ele proprio raizes platénicas. Estamos tomando um lado semi-suprimido do pensamento de Plato que emerge, por exemplo, no Fedro, onde ele parece pensar no poeta, inspirado pela mania, como alguém capaz de ver o que pessoas sdbrias nao podem. A crenga hoje disseminada de que o artista vé mais longe que as outras pessoas, atestada por nossa disposigéo a encarar com seriedade as opinides sobre politica ex- pressadas por pintores ou cantores, ainda que eles possam nao ter mais conhecimento especifico das questées piiblicas que qualquer outra pessoa, parece vir da mesma fonte, Entretanto, também ha algo quintessencialmente modemo nessa perspectiva. Ela tem por base aquela idéia moderna, invocada na se¢ao precedente, de que o sentido existente para nés depende em parte dos nossos poderes de expresso, de que a descoberta de uma configuragdo esta interligada a invengao. Mas este breve esbogo de algumas das mais importantes distingdes que estruturam a vida das pessoas hoje ficara ainda mais radicalmente incompleto se eu ndo levar em conta o fato com o qual iniciei esta secao: de que existe uma disposigdo disseminada, por mim chamada de “naturalista”, que se vé CONFIGURACOES INCONTORNAVEIS 39 tentada a negar liminarmente essas configuragées. Observamos isto ndo sé nos apaixonados pelas explicagdes redutivas como também, de outra manei- Ta, No utilitarismo classico. A meta dessa filosofia era precisamente rejeitar todas as distingdes qualitativas e conceber todos os objetivos humanos como estando em pé de igualdade, suscetiveis, por conseguinte, de quantificagdéo e cdlculo comum de acordo com alguma “moeda” comum. Minha tese aqui € de que essa idéia é profundamente erronea. Porém, como afirmei acima, ela mesma é motivada por razdes morais, e essas razdes formam uma parte essencial do quadro das configuragdes com base nas quais vivem as pessoas em nossos dias. Isso tem a ver com o que chamei na seco 1.3 de a “afirmacdo da vida cotidiana” . A nogao de que a vida de produgdo e reproducao, de trabalho e da familia, é 0 principal locus do bem viver desafia de frente o que eram ori- ginalmente as distingdes dominantes de nossa civilizagdo. Tanto para a ética guerreira como para a ética platénica, a vida cotidiana nesse sentido é parte do nivel inferior, parte daquilo que contrasta com o incomparavelmente superior. A afirmago da vida cotidiana envolve, portanto, uma posic¢ao polémica diante dessas concepgées tradicionais e de seu elitismo implicito. Isso se aplicou as teologias da Reforma, que sdo a principal fonte do impulso a essa afirmacio nos tempos modernos. § essa posicdo polémica, transportada e revestida com uma roupagem secular, que alimenta as concepgées redutivas como o utilitarismo, desejosas de denunciar todas as distingGes qualitativas. Todas elas so acusadas, tal como o foram antes a ética da honra ou a ética mondstica da supererrogagao, de degradar errénea e perversamente a vida cotidiana, de nado perceber que nosso destino estd aqui na produgdo e na reprodugao e nao em alguma esfera pretensamente superior, de ser cega 4 dignidade e ao valor da realizagéo e do desejo humanos comuns. Nesse aspecto, 0 naturalismo e 0 utilitarismo tocam um ponto nevrdlgico da sensibilidade moderna, o que explica parte de sua forca persuasiva. Minha posigao aqui € que eles sao, nao obstante, profundamente confusos. Porque a afirmacao da vida cotidiana, embora denuncie necessariamente certas distingdes, equivale ela mesma a uma distingdo; se assim nao for, nao tera sentido algum. A nogdo de que ha certa dignidade e valor nesta vida requer um contraste; nado mais, evidentemente, entre esta vida e al- guma atividade “superior” como a contemplagdo, a guerra, a cidadania ativa ou 0 ascetismo heréico, mas entre diferentes maneiras de viver a vida de produgdo e reprodugao. A nogaéo nunca é de que qualquer coisa que fazemos € aceitdvel. Isto seria ininteligivel como base de uma nog4o de dignidade. O ponto essencial é, em vez disso, que o superior deve ser

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