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COTIDIANO E ESCOLA A OBRA EM CONSTRUCAO SONIA PENN ¢ mestreem Psicologia ca Educaco, dovioraem Educardo eprotessora de Didtca na Faculdade de Educapo da USP. Trabalhau como professoraeovienladora pedagdglca no 12¢ 2 graus, como assistente do | pesquisa na Fundagio Cals Chagas Na assessor | {do Departamento de PianejamenioeOxentaréo | Pedaydgica da Seclara de Educagio do Municipio ‘6 So Paulo, adminisaggo Maio Coves, patioou da reformulado cucu do 2 pau | Erarcaua doctcia em diversas uiversidades ca ‘cidade de So Paula | Recentemente fi ella presidente da Assocardo } Nacional de Eucapao~ ANDE. BIBLIOTECA DA EDUCACAO Série 1 ESCOLA Volume 2 Dados de Catalogs (Camara 0 na Publeagdo (CP) Internacional ieita do Livro, SP, Brasih Penin, Sonia. ‘Goldin ¢ esols: a obra em constrgio / Sonia Penin. - Sto Paulo Corte, 1989, (i. iMfotes da cducaoto. Série 1. Escola ¥.2) Bibliogrtia ISBNS -289-0170-5 1, Bicol 2, Escolan — Aspects sociis 3 scolds ~Brail. Teno Il, Sx eop-s71 “310.193 99.0548 SaTLo0981 indies para catalogo sistomético: 4, Br: sole 371 0981 [sola sociedad Eotso 370.198, 5 Eolas: Elvan 371 Sonia Penin COTIDIANO E ESCOLA A OBRA EM CONSTRUCAO (O poder das préticas cotidianas na transformacéo da Escola) COTIDIANOE ESCOLA: A OBRA EM CONSTRUCKO (poder das prétins cotidianas me transformapio da Escola) ‘Sonia Teresina de Sousa Pain, Conse edtorak: Antonio Joaquim Severino, Casemiro dos Reis Filho, Deemev Senter. Ge Macnee de Nena, McC War Capa: Bio de arte: Roberto Yukio Manso Tlasraco: Mion Jos de Almeida Praparo de orgies: Sualy Bass. Coordonasdo atonal: Ana Ciniga Cost, Ealtorapas Danilo A. Q. Mores Rensao: Lege Marci Speriade euro Anno de Pau Silva "Neahuma part devs obra pode sr rprodusida ou dupiceda som autorizasdo express saitors do editor. © 1989by Sonia Teresi de Sousa Ponin Direitos parsers edi ‘CORTEZ EDITORA/AUTORES ASSOCIADOS Rua Barra, 387 —Tel:(011) 864-0111 (05009 Sio Paulo - SP Impeeso no Breil ~ 1989 A Silvérlo, Alexandre © Lara a meméria de meus pais, Diontlia ¢ Antenor, ‘que viveram um tempo onde {edueacto signfieara mais privilésia que hole mas que, antecipando a Histbria, cmpreenderam todos os esforcos para “formar” seus dez filhos. SUMARIO Indice das Tabelas e dos Gréticos Prefécio de Guiomar Namo de Mello Introducto : coe Primetra Parte — Escola ¢ Cotidiano: Algumas Questées Teéricas ‘Capitulo 1 Tendéncias no estudo da escola 1. Abordagens parciais ¢ totalizdoras 0 estudo dos fendmenos hi ‘manos estroturados ¢ da escola : 2, Estudo da vida cotidiana: via de acesso’& realidade concreta — escola ‘ Capitulo II — Vida cotidiana: conhecimento ¢ critica 1, Conceituacio de vida cotidians, cotidiano e cotidianidade 2! A busca de uma andlise critica da vida cotidiana 3. As representagSes ea manipulagio do cotidiano ‘Segunda Parte — A Hist6ria © 2s Obras Capitulo II — © contexte histérieo do cotidiano escolar 1, O desenvolvimento econémico brasileiro entre 1964 ¢ 1980 2. A urbanizacio da cidade de Si0 Paulo no periodo 1950/1980 3A sdicaco no pls ¢ m cidade de Sio Palo no periodo 1930/ 1980. Capitulo IV — A obra Alfa 1. © texto social: a escola e sua histéria 2) 0 aluno da escola 3. A situagio e 0 momento institucional da obra 4, O ritmo e a organizagio do trabalho escolar: combate entre cot anidads stun superagio nae u 15 a 26 36 37 39 49 0 34 vo Capitulo V — A obra Bete 1.0 exto social: a escola e sus histéria 22 0 aluno da escola 3. A situagio © 0 momento institucional da obra Zi 4° © ritmo e 2 organizacéo do trabalho escolar: combate entre co dianidade e sua superacio Capitulo VI — A obra Gama 1. O texto social: a escola e sun histéria 2. 0 aluno da escola 3. A situasdo © © momento institucional da obra 4) 0 ritmo e x organizagéo do trabalho escolar: combate enite eot isnidade © sun superacio Capitulo VII — A obra Dette 1. © texto social: a escola ¢ sua histéria 2) 0 aluno da escola 3. A Situasio © 0 momento institucional da obra 4. ritmo e a organizagio do trabalho escolar: combate enire cot dianidade e sua superagéo tulo VII — Confronto entre as quatro obras 1. A ligica da diversidade das escolas pablicas: “escola pobre para © aluno pobre” 2. Prétieas do cotidiano: eritério definider da movimento de consirv- fo da escola piblica ‘Terceira Parte — As RepresontacGes da Obra ou “A Obra Aberta” Introdugeo Cnftlo TK — Represents du obra plas profesoras Representagdes das professoros sobre o fracesso escolar dot alunos ay meee va casein aes Tae melhorar o rendimento escolar dos alunos desfavorecidos economi- camente 3. Representagées das professoras sobre 0 aluno desejdvel e indese- jivel 4. Ropresentagées das professoras sobre os pals dos alunos 5. Representagées das professoras sobre o dirctor Capitulo X_— Represontagdes da obra pelo dretor Capitulo XL — Representagdes da obra pelos pais Capitulo X11 — Controoto ene a véris representagdes da obra “escola” CConsideraedes finais Bibliogratia vu 6 70 6 B 2 86 INDICE DAS TABELAS E DOS GRAFICOS ‘Tabela ‘Tabela Tabela Tabele ‘Tabela Tabola ‘Tabela 101 ‘Tabela 11 Populagdo © taxa de crescimento médio anual not anos de 1947, 1960, 1970 ¢ 1980 no municipio de Go Paulo Matrculas inciais ¢ aprovacées de alunos do 1.° grau, segun- do as caidas mantenedoras nos anos de 1961, 1966, 1970, 1975 © 1980 no municipio de SE0 Paulo ‘Média percentual das aprovagSes de alunos das oto séries do 1L® grat, segundo as entidades mantenedoras no ano de 1980, no municipio de Sio Paulo ... Nonero du tunon © clawer do 196 «1900 (Eaola AM) Resumo don percents de promo, repetéci ¢ersfo por ‘ano e série (Escola Alfa) [Niimero de alunos ¢ classes de 1977 2 1980 (Escola Beta) Resumo dos percentuis de promosio,repetinsia ¢ eras por ‘ano ¢ série (Escola Beta) Niimero de classes, de alunos ¢ de periodos, por série © por ‘ano (Escola Gama) + Resume das porcentagens de promosio ¢ evakio por ano ¢ série — 1973-1979 (Fscola Gama) [Naimero de classes e de alunos por série e ano da Escola Delta Resumo das porcentagens de promoyfo, repeténcia © evasio por ano’e série na Escola Delta “Tabela ‘Tabela Tabela ‘Tabela Tabela Tabela ‘Tabela Tabela Tabela ‘Tabela ‘Tobela Tabela 2: Pa 1s: 2: Grito 1 Comparative dos recursos fisicos, materisis © humanos, sua ‘provenigncia e wilizagso nas quatro escolas, com 0 respectiva ‘ndmero de alusos stendidos Comparative da scolas tuagio funcional das professoras nas quatro Dados comparativos do tempo de escolarizago e trubalho pe- dagégico nas quatro escolas Resume comparativo das porcentagens de promocto de alunos, por ano e série nas quatro escolas pesquisadas, + Renumo comparativo das porentgeas de eensio de alunos por apo © série nas quatro escolas pesquisadas + Representagio das professoras sobre at causas do fracasso es ‘colar_dor alunos Representncto das profersaras sobre o que a escola pode fazer para melhorar o rendimento escolar dos alunos Representacdes das professoras quanto so sluno desejivel © indesejivel, em ordem decrescente de nimero de indieagies Representagio das professoras sobre os pals de seus alunos Representagio dap professoras sobre o “bom” diretor Fatores de insatisfacio dos pais em relocio & escola Representaglo dos pais sobro es cerscteristicas de uma boa professora Eyolugio da participagio das verbas do MEC no orcamento dds Unifo, em porcentagem (1960-1980) 103 108 106 126 130 133 136 as ” PREFACIO © que conta aqui é 0 olher sintétco, que dé vida aos objetos da andtse Jean Paul Sartre padrio burocrético que preside a organizacfo e funcionamento dos sistemas de easino torna dificil a compreensao da realidade esco- lar, pois ao observador menos avisado cla se apresenta como uma rotina rigidamente padronizada Por outro Indo, 0 esforeo para aprender as relagies infor- mais, 0s processos nio padronizados de comunicacéo, as condutas ‘que escapam da norma buroerética, podem levar 20 desfinimo ou 20 equivoco. Destnimo porque se constata que esses processos informais cons- tituem a macica maioria do que acontece na escola e 20 mesmo tempo se apresentam como um amontoado castico de fatos, ocorréncias des- continuas e comportementos isolados, Equivocos porque pode-se ser levado a supor que esse amontoa- {do de pequenos acontecimentos nfo mantenham entre si nenhuma relagéo ¢ nio sejam a outra face, a imagem invertida ou espelhada da face burocratizada e padronizada da escola. Para evitar © desinimo ou 0 equivoco ¢ indispensével que o pesquisador disponha de um instrumental te6rico que fornega critérios para relacionar, organizar e dar sentido a0 Conjunto de acontecimen- tos, padronizados ou no, que constituem 0 dia-a-dia de uma escola. xI ‘A teoria educacional pouco se preocupou, até época recente, com essa compreensio mais global do funcionamento da unidade escolar Dispersa ¢ fragmentada no estudo de aspectos isolados — 0 pedagd- gico, 0 administrativo, o processo de aprendizagem, a relacao pro- fessor-aluno —, produziu um conhecimento, em alguns casos, até rele vante sobre essa escola enquanto parte integrante da totalidade socisd ‘© enquanto espaco onde a prética humana se reveste de caracteristicas muito peculiares, porque destinada a efetuar (ou a nfo efetuar) 0 processo de transmissio/apropriagio do conhecimento. Por ouiro lado, para as cincias humanas em geral, @ escola no tem sido objeto “nobre” de conhecimento, Numa determinada perspec- tiva funcionalista ela foi tratada como & “‘ceixa preta” de Skinner, interessando muito mais investigar as “entradas” ¢ “saidas” — varid- veis de origem e destino séecio-econéimico da clieniela — do que of processos. intemos ou varidveis intervenientes, Seja para atirmar que 4 passagem pela escola conduz & asconsio social, soja para negar essa conchusio, mostrando que os resultados da agio escolar apenas repe- tem e legitimam as desigualiades socais, esse tipo de andlise pouco contribuiu para uma compreensio mais ampla sobre como se produ- siriam internamente esses resultados em contextos histérico-sociais si- tuadas © determinados. Outra variante da perspectiva funcionalista buscou o entendimento da dinamica interna da instituigdo escolar, entendendo-a como uma lade, onde se repetiriam as mesmas relagies ali observadas: relagbes entre pares, entre adultos ¢ criangas, entre posi- ‘Ges diferenciadas na estrutura organizacional de um sistema, relagdes formais e informais, e assim por diante. Embora se observe neste caso ‘um esforco para olhar dentro da escola, 0 padrao funcionalista, que seleciona como digno de consideragéo apenas 0 que ¢ comum ¢ reite- rativo, impede # compreensio da realidade concreta da escola, porque ignora ser ela parte integrante da dinimica, néo da sociedade em absttato, mas de wma determinada sociedade, com caracteristicas his- ‘ricas © conjunturais proprias ‘Apenas ha algumas décadas o estudo da instituicio. escolar adguiriu caracteristicas novas, pelo trabalho de estudiosos da educa- cdo que vém se esforcando para realizar a dificil tarefa de articular teorias educaciomais numa_perspectiva_histérica, tomando como foco a escola no seu dia-a-dia e buscando entender como se determinam x reciprocamente os processos internos, buroeriticos ow néo, com os processos sociais mais amplos que esto ocorrendo num determinado periodo e conjuntura. A tarefa é diffcil te6rica ¢ metodologicamente, porque quando se fala em teoria educacional, mais do que em qualquer area, isso se refere a uma teoria interessada, que implica obrigatoriamente um compromisso do pesquisador com fins, valores e fungdes da educa- do na sociedade. Metodologicamente, a compreens4o da verdadeira natnreza da escola na sociedade requer, por seu lado, que as relagBes ‘entre a dindmica social ¢ a dindmica interna da instituigdo sejam esta- belecidas e analisadas com rigor ¢ objetividade. O rigor ¢ a objet dade, neste caso, 36 serdo resguardados se o ponto de. vista do estu- dioso — isto é, sua teoria da educacio — for explicitado com clareza suficiente para condicionar a aceitagio de suas conclusdes a validade do cenério te6rico no qual ele circulou para elaborar essas conclusdes. Por tudo isso, pode-se afirmar com seguranca que 0 traballio de Sonia T. S. Penin — Cotidiano e escola: a obra em construcio — uma inestimével contribuigdo teérica e metodolégica para a tarefa acima mencionada, Como © proprio titulo induz, a autora orientou sua mirada da escola trabalhando simaltaneamente duas dimens6es apenas aparente- mente irreconciliéveis:"a hist6rid e ¢cotidiand, Hist6ria, no caso, com duplo significado, Em primelro lugir;-0contexto_hist6rico no qual surge uma determinada escola e que responde pelo local onde cla se implanta, pelos processos que desencadeiam sua ccnstrugao e efetuam continuamente seu funcionamento, Em segundo lugar, como_histéria de_wma_escola, uma histéria onde existem personagens soci tados, e por que nao dizer, hetdis e vildes. Em outras palavras, a histéria de uma escola enquanto relagdes que so estabelecidas entre classes e grupos sociais num espaco e tempo determinados, para atender demandas e interesses muito concretos, porgue decorrentes das necessidades de viver, sobreviver, reproduzr, dominar, ser dominado, resistr, saber, conhecer, trabalhar, ganhar a vida, realizar um projeto profissional, ¢ assim por diame A dimensio mais ampla do tempo histérico, todavia, Sonia T. 8. Penin acrescenta a cotidianidade, de fato a hist6ria de todo e de cada dia. Quando © cotidiano € apreendido como resultado da histéria e, xa portanto, no trabalho em questio, das “modifieagdes.nas_relagdes socials, no modo de producio, nas ideologias”, ele deixa de ser ou simples rotina, ou um amoatoado descontinuo de fatos @ comporta- mentos, para se revelar como a face mais imediata da vida de pessoas ccujos comportamentos, valores © representagSes so, em altima ins- Xineia, produto da organizagio social do trabalho © da producto, Por isso, 0 cotidiano com 0 qual trabalha a autora, ou seja, 0 cotidiano escolar, s€ revela por condutas e valores regidos pela urba- nidade;, pelo crescimento desordenado da periferia pobre da cidade ¢ as coniradigSes que esse processo produziu; pela industrializaczo tal como ela acontece nos paises periféricos; pela repeti¢io e homoge- neizacio préprias no modo de produco capitalista num contexto onde ‘© modemo e 0 arcaico convivem e afetam contraditoriamente a vida das pessoas. Estamos, assim, falando do cotidiano de uma escola piblica ue, por fatores histéricos, chegou & periferia pobre da grande cidade dle pais capitalista periférico. Com data e lugar assinalados, 0 cotidiano enquanto categoria tedrica permite integrar e organizar 0 que antes parecia descontinuo. Burocracia ¢ caos_revelam-secoma-cduas-faces de um mesmo processo, pelo qual se efetuam as relagdes sociais pe- Galiares & escola. Ou, quando falamos da outra escola, estamos nos referindo a escola pitblica que, também por fatores histéricos préprios da dinimica do crescimento urbano, situow-se nas faixas intermedié- rias da classe média. Regides melhor equipadas de servigos, onde acabaram se fixando as camadas de renda intermediria no continuo ‘movimento pelo qual 0 centro rico foi empurrando para mais longe ‘5 grandes contingentes de baixa renda, Histéria_c cotidiano se entrelacam em cada escola, cada. “obra” para revelar como, por que, com quem, para quem,-contra ou a favor ‘de quem o funcionamento. interno dessa.escola se efetua a cada die, cada ano, com cada turma de alunos, professores, funciondrios, pais. Porque uma no & apenas escola dos pobres mas ¢ também escola ‘empobrecida, esvaziada, abandonada e excludente, & fato que pode ser explicado nesse entrelagamento, ‘A poucos trabalhos académicos potle melhor aplicar-se a frase de Sartre na epigrafe deste preficio. E 0 olhar sintético — a mirada te6rica e metodol6gica, na qual nfo se omite a posi¢do interessada da xIV pesquisadora, que explicita seu entendimento da escola como espaco de transmisso/apropriagao do conhecimento organizado — a mirada que busca sintetizar histéria e cotidiano, é essa mirada que dé vida 08 fatos e dados recolhidos pela observagéo. Considero-me em condigao privilegiada para afirmar que a autora conseguiu, no fmbito de um trabalho académico e, portanto, de suas limnitagoes, realizar a tarefa dificil de constrair um referencial teérico que nos permita compreender, no sentido amplo do termo, a escola, 2 “caixa preta” cujo conteddo ¢ resultados tém desafiado tantos estu- diosos. Digo isso porque os dados utilizados por Sonia T. S. Penin foram coletados diretamente por mim ou sob minha orientagéo. E claro ‘que eu jé possuia uma sintese tesrice preciria que dirigiu a selecio coleta dos dados, mas isso € uma outra hist6ria que ndo tem inte- resse neste momento. © importante € que esses dados, com os quais por razbes diver- sas eu nao trabalhei, ganharam vida no momento em que se dirigiu para eles o olhar interessado © a0 mesmo tempo tigoroso, sintético porque te6ri¢o, da autora de Cotidiano e escola: a obra em consirug Outro tivesse sido o olhar, outra a sintese, outra face viva da escola poderia ter se revelado. Ou entio, se a mirada no conseguisse trans- por o limiar da andlise, mais um monocérdio discurso descrtivo da escola teria sido produzido. ‘Mas ndo foi, o intereste da pesquisadora dev vida aos dados, 0 que, © para terminar, tornou as informagSes_significativas.para_a prética, Nao se engane 0 leitor. O trabalho de Sonia T. S. Penin nfo se limita & contribuigdo tedrica, porque sua teoria é interessada e por isso mesmo indicativa da boa pritica: a prética de que tanto preci- samos hoje, para fazer a escola funcionar, todos os dias, # favor dos que dela mais precisam, aqueles a quem a sociedade vem sistemat ccamente exciuindo do acesso ao saber organizado, Guiomar Namo de Mello Ubatube, pastagem de 88 para 89, xv INTRODUCGAO Acredito que nenhum trabalho é separado de uma vida, de suas circunstancias. Assim, como fruto de minhas preocupagies © das rela- ‘ges pessoais que mantenho devido a essas mesmas preocupacées, dediquei-me a desenvolver a investigacio aqui apresentada, ¢ que, também por conts das circunstncias de trabalho, serviram para cum- prir as exigéncias de obtengio do titulo de doutor junto & pés-gra- Guaglo da Faculdade de Educagio da Universidade de Sdo Paulo, cuja defesa ocorreu em janeiro de 1988.! represeniagbes que professoras, equipe técnica e pais de alunos apre- sentavam sobre tais condigSes. ‘Ao confrontar dados concretos e representagbes tivemos como, objetivo perseguit a natureza e a génese do processo educativo que) se desenvolve no coiidiano escolar e identificar pistas para’ sia trans- 1. O presente estudo (cuja edigio 6 uma versio condensada do trabalho original) originou-se de outro que investigou as representagiies © expectativas ‘de professores em relagio a alunos de nivels sécio-econdmicos diferentes, através ‘de questionérios e com uma amostra de S65 professores de 1.° grau de todo 0 Estado de So Paulo, coordenado por Guiomar Namo de Melio, do qual resul- tou seu lio: Magitério de 1.° grow — Da competéneia técnica a0 compromisso politico. Cortez, Sio Paulo, 1982 formagio no sentido de promover com sucesso a aprendizagem escolar dos alunos. Com este objetivo, exploramios as relagdes que a educagio © a diddtica mantém com a psicologia social, a histéria, a sociologia ® a antropologia, campos que possibilitam ampliar a compreensio de escola e do processo educative af desenvolvido. No contexto da pesquisa social, esta investigagio 6 caracterizada como “estudo de. campo”, de tipo exploratério.? O “exploratério” sig- nifiea que 0 objetivo maior foi explorar 0 campo, a existéacia de eventos ¢, em menor proporcdo, identificar freqiiéncia, distribuigao ou intensidade dos mesmos. Estudos de campo podem ser desenvolvidos a partir de varias me~ todologias. Neste trabalho, a abordagem metodoldgica que adotamos refere-se & que Lefebvre denomina “sntropologia dialética” (Le- febvre, 1961: 99). Dentro dessa abordagem, discutimios a obra escola a partir de duas veriesifes. A primeira teve por finalidade descrever a8 condighes objeiivas sobre as quais a vida cotidiana acontecia e que constifuia a “matéria-prima” da obra construida. Para esta desericéo Utilizamos insirumentalmente as categorias préprias de uma_andlise estrutural e formal. A utilizagio-destas categorias tornou-se insirumen- tal, pois ocorreu no bojo de uma anélise critica mais abrangente € totalizadora pela qual buscamos captar a natureza do que foi descrito de forma estratural e formal. A segunda vertente de andlise da obra- escola tratou das representagdes dos sujcitos coletivos envolvidos (pro- fessoras, diretores e pais de alunos). Na investigacdo do cotidiano subjetivo ou representacio dos sujeitos do cotidiano, nao pretendemos investigar tudo, mas_as representagdes que esses sujeitos mantinham com a questo cential aqui perseguida: “causas escolares do alto indice de repeténcia e evasdo escolar dos alunos” ou seus desdobra- mentos. 2. Sobre as caract (1973: 406-8). 53. Sobre a questo do que invesiigar ao se pretender estudar o universo subjetivo de categorias de sujeitos, foi observada a posi¢io de Kosik, para quem 4 “ttalidade néo significa todos 0s fatos" (ditcordando da posigio de Popper, para quem a totalidade so todos os fatos e, J que estes no podem ser alcan: ¢ados, a totalidade € considecada uma mistica). Para Kosik, ao contrrio, acumu: lar todos 0$ fatos nfo signitice ainda conhocer a realidade. Para ele, o: fatos ‘io conhecimento de realidade se sio compreendidos como fatos de’ um todo Jialético, isto é, como partes estruturais do todo. Neste sentido, totalidade no sigaifica'tudo, mas, sim, os mecanismos ¢ articulagées essencais que ligam 9 ‘objeto de estudo a eventos especiticos (Kosik, 1976: 35-6) jeas de estudos de campo, consultar: F.N. Kerlinger 2 Ao se estudar a escola, a primeira consideragdo que se evidencia € que ela, apesar de questionada sobre virios aspectos, apresenta-se como uma instituicdo sélida no cantexto da sociedade moderna. Indi- viduos de todas as classes sociais clamam por ela, exigindo seu cres- cimento ¢ aprimoramento para cumprir aquilo que ela. promete © empenho pela democratizagio da escola ver se manifestando tanto por parte daqiieles qué dela tém sido excluidos quanto por parte de educadores ¢ outros individuos que propugnam sua obrigagdo de ‘oferecer educagao formal a todas as eriangas e jovens, Esse empeaho foi fortalecido ma vitima década, quando estudos apontaram com clareza a seletividade promovida no interior da escola, atingindo espe- cialmente 05 slunos provenientes das eamadas populares, Tais estudos colocaram a nu uma contradigao bésica dessa escola; a de no cum- prir_aquilo que promete e, mais especificamente, nfo cumprir seus objetivos para com um determinado tipo de aluno.* O debate sobre a seletividade escolir tem apontado a quantidade © as caracteristicas das pessoas que participam do processo educativo, tanto como alunos, quanto como profissionais, mas tem enfocado com ‘mais insist2ncia, a partir de uma andlise macrossocial, a natureza do servigo que a escola presta & populacio, no contexto de iima socie- dade de classes. Estudos que privilegiaram essas questées, a nivel ma- crossocial, tém sido de extrema importincia, porque discutem as ea- ravieristicas, possibilidades e limitagGes que a escola apresenta para ‘cumprir seu objetivo em nossa realidade. Contudo, esses estudos no | so concordantes entre.si..Ao contrério, apresentam respostas dife- rentes & questio fundamental sobre 0 tipo de relagdo que a escola mantém com a sociedade, Diferencas nas respostas..cortespondem_a __Aiferengas quanto a posigées tedricas que também tém orientado dife- fentes politicas de agio © priticas pedagdgicas presentes no cenério educacional brasileiro da atualidade. ‘As posigées te6ricas mais diferenciadoras foram objeto de refle- do recente de diversos autores e cabe aqui somente uma visio sinté- tica de cada uma, como referéncia basica a andlise que segue.* “4, Enire os estudos que mostram a solotividads escolar: Barreto et ali 1979; Seoretaria da Edueagio do Estado de Sio Paulo, 198: 5, Entre os autores que tém contribuido para’ clasificar as. diferentes tendéncias educacionais na histria da educaglo brasileira, destaca-se Derm Saviani « partir de sua obra pioneira: “Tendéncias ¢ correntes da educagto bra- sileica”, in'A. Bosi et ali, 1983, meiro grupo, esto 0s autores que consideram a escola © @ educagio ue ai se realiza como relativamente neutras, diante da estrutura conjuntura social de.um_deferminado ‘pais'€ época,* DiferenciagSes no rendimento escolar dos alunos, segundo esta posigio, séo_atribui das fundamentalmente a particularidades individuais. Esta posicao, ainda presente no cendrio educacional, foi dominante entre estudiosos dda educagdo até meados deste sEculo, apesar de Marx ter afirmado a dependéncia das diversas insttuigdes sociais & caracteristicas econd- micas ha quase um século.? As pesquisas em educagio dese periodo, dominadas pela abordagem positivisia ou neopositivista. da ciéacia, retorcaram esse posicionamento “acritico” sobre a relagdo escola © sociedade, AcSegunda_posigad diferenciadora aparece mais recentemente, ‘com antores que reintroduzem a forca dos-determinantes.saciais sobre a manifestagio do fendmeno educative. Embora haja diferengas especifieas entre os varios autores que tém defendido esta posigio, todos (@m em comum o suposto de que # escola mantém estrcita de- pendéncia com 0 contexto social e que, no quadro da sociedade capi- talista, dividida em classes, a escola apenas reproduz, no seu ammbito, as diferenges de_ classe existentes nagucla, Nesse sentido, diferengas dg fendimento escolar entre alunos sGo entendidas como reproducto das diferengas de.classe social desses alunos no contexto da sociedade dle élasses. Os autores defensores desta posi¢do, conhecida como “eri- tico-reprodutivista”, j@ estio se tornando cléssicos na literatura dé reieréncia dos educadores ¢ sto, basicamente: Illich (1985), Bour- dieu e Passeron (1975), Althusser (s.d.), © Baudelot ¢ Establet (1971). A posigdo desses autores obteve tal impacto sobre os educa- dores na nossa histéria recente que provocou paralisia na prética pe- 6. Os defensores deste grupo ge apsiam no peatamento de autores clés da edvcagio como Joan Dewey, Deeroly, Montessori Ta. Marx explic esta posigio em varios trechos de sua obra, No texto enor “Do sosialismo utépico ao socialismo cientifico”, ele afirma: "A ‘coneepeo materilista da histéris parte da tese de que a produsfo, e com ela 2 troca de praduiot, & 4 base de toda a ordem socal”. F logo depois: “..0s 5 profundas.de_tedas.as tronsformagSes sociais.c de. todas.as-revolugdes | politieas nfo. ever sor-procuradas nas, cabegas.dos. homens. (...) mas nas | transformagdes operadas no. modo. de. produgio © de troca’. Marx ¢ Engels, 1961, 22322 4 ‘Tais posigfes podem ser classiticadas em trés_grupos. Num pri- dagégica de muitos deles* De fato, 0 entendimento de que a con- tradigio da ‘escola é uma "“contradicao secundaria”, dependente da contradigio primeira que se encontra no interior das diferengas de classe da sociedade capitalista, e de que aquela contradigio nto pode ser resolvida dentro da escola levou muitos educadores a acreditarem que tudo que se tinha por fazer no fimbito da escola cra esperar a mudanga revolucionéria ocorrer pa sociedade, pelo acitramento das contradigoes entre as classes socias. A terceita posigad originou-se de estudos menos ortodoxos do ppensamento marxista, ressaltando-se a obra de Gramsci (1979 e 1984). A amélise que este autor efetuou sobre as superestruturas e, de modo especial, sobre a sociedade civil, incluindo af o papel das_insttvigdes c dos intelectuais, trouxe elementos confrontadores & posigio crtico- reprodutivista da escola. Esta terceira posigdo considera, tanto quanto a anterior, os determinantes sociais do fenémeno educativo, mas apre- senta uma andlise dinimica da relacio sociedade-escola, onde as con: tadigdes da escola sio evidenciadas ¢ entendidas no movimento his- Grico. Por considerar movimento hist6rico das contradigbes que ‘ocorrem no interior da escola, esta posigdo tem sido denominada “his- trico-critioa”® Segundo este ponto de vista, a escola, apesar de estar cstruturada © organizada na atualidade para atender as necessidades das camadas privilegiadas, desenvolve.tal.tclagdo ¢ dinimica com a sociedade que The possibilite servir a causa, das camadas. populares. Ou seja, a e8cola, 86 mesmo tempo. que. reproduz_as desigualdades de classe presentes no contexto social — oprimindo os individuos pertencentes as camadas populares ~~, & também. o_espago onde os Jindividuos que a ela pertencem podem se apropriar do saber escolar, utiizando-o em beneticio de seu projeto social. Entendendo ¢ escola a partir dessa tereeira posigdo, julgamos que o atual momento de pesquisa necessita conhecer a realidade esee= far, integrando 0 conhecimento de sua dintimica intema 4 dindmica histories, apreendendo assim, sentido das contradigSes presentes Na nossa resided, além dos autores citados, obieve Impacto, entre cutras, 8 obra de LA. Cunha (1977) '9, Esta denominagio foi apresentada por Dermeval Savieni, que a historia em “A pedagogia histrico-critiea no quadro das tendéncios ertieas da Educacto Brasileira” (1987). Independentemente da desominazio, outros autores vinham procarando superar crtieamente as teorias da reprodusio. Faire eles destacam-se Snyders (1977) e, entre nds, Freitag (1978). 1920. A busca deste caminho integrador nos levou a analisar mais detidamente as diferentes tendéncias no estudo a escola, até chegarmos aquela que melhor servisse aos n0ss0s pro- Pésitos. To que discutiremos no capitulo I da primeira parte; no capitulo II abordaremos algumas quesi6es tedrices sobre @ vida coti- diana ¢ sua critica [Na segunda parte apresentaremos ¢ discutiremos 0s dados rela- tivos as eondigdes coneretas do cotidiano nas quatro escolas investi- gadas (capitulo TV a VII), precedidos da apresentagio do contexto hist6rico brasileiro no perfodo compreendido entre a criagdo das es- colas e a época em que foram pesquisadas (capftulo III). Ainda nesta parte, analisaremos comparativamente a hist6ria e as condigbes concretas das quatro escoles (capitulo VIII). Na terceira parte apresentaremos ¢ discuticemos as representa: Bes que professoras (capitulo IX), diretores (capitulo X) © pais (capitulo XT) mantinham sobre as eseolas. Por fim, desenvolveremos uma discusséo global sobre o estudo. PRIMEIRA PARTE, ESCOLA E COTIDIANO: ALGUMAS QUESTOES TEORICAS FALO SOBRE A CIDADE 2 cidade que nos soa todos aus todorfazemos ¢ desfazemos » refzemos enguanto sone 4 cidade ae eos fonamos e que muda tem cesar engoanto a sonamos, 2 Side que desta» endn cet anos te olba no expelbo de una pala © no so reconhece « pose ouiravea a dor. a sae qb brota dat pestis da mulher que dorte 40 mie ado e converte, com stones ean ein, hi st en num mmanancal feito de multor cos e cada olho eflte & meson puigem interrompida, fae sziet dat ect das prises, dor slfsetos © dos nero, do ata e dll falo sobre a cidade imensa, realidade diiria feta do’ duas palavras: 08 outros, em cada um deles hi um eu cerceado de-nés, um eu a deriva {alo sobre nossa histéria pablica © nossa histéria secreta, a tue © @ minha falo sobre a selva de pedra, 0 deserto do profeia, o formigueito de almas, a congregasio de tribos, a casa dos espelhos, o lbitinto de ecos, flo sobre 0 grande rumor que ver do fundo dos tempos, murmirio incoerente de mages que se juntam on dispersam, girar de multdes e suas armas como ppenhascos que se despenham, surdo soar de ost0s caindo na cova da hist6ri, falo sobre a cidade, pastora de séculos, mie que engendra ¢ nos davora, nos inventa © nos esquece. Octavio Paz Capitulo 1 Tendéncias no estudo da escola 1, Abordagens parciais ¢ totalizadoras no estudo dos fenémenos umanos estraturados e da escola Estudos da sociedade como um todo e de fendmenos humanos estruturados — como a escola — tém sido empreendidos a partir de enfoques os mais diversos, determinados pelas categorias explicativas ‘mais difundidas em cada momento historico. Analisando esses enfoques no tempo, 0 historiador soviético Kon (in Kosik, 1976: 44) afirma que a <éncia, num_primeiro momento, |estudava principalmente.fatos isolados, fendmenos bem localizados e, Imais récentemente, tem se orientado para o estudo dos processos ¢ das relagées. Nesse primeiro momento, a orientagio positivista de inwvestigagao muito contribuiu para esta abordagem niveladora que re- duaiu toda a realidade a realidade fisica, Kosik (1976: 38) afirm entretanto, que € necessério no esquecer que nesse instante esta foi uma posigio revolucionfiria, pois desmistificou a crenca teleol6gica da realidade, extirpando-a do Ambito da ciéncia, Q’segando momento — dos processos e relagBes — representa, para Kon, novo avanco no conhecimento, pois a realidade passa 2 ser entendida como uma configuragdo mais abrangente ¢ inter-rela- cionada. | Lefebvre chega as mesmas conclusées de Kon, explicitando as categorias pelas quais os fendmenos ¢ a sociedade passaram a ser analisados — funcional, estrutural e formal — ¢ acrescenta (fato tam- bém identificado por uma revisio bibliogréfica) que pela abordagem funcional tem sido estudadas as instituigdes; pela estrutural, os grupos © as estratégias; pela formal, as redes © ramiticagées, os canais de informacio, 0s fltros etc, (Lefebvre, 1972: 93) Os estudos sobre a escola refletiram as caracteristicas do pano- rama de pesquisas dominante nos diferentes momentos. Assim, no prti- meiro momento de pesquisa caracterizado, 2 escola ou algumas de suas especificidades foram estudadas principalmente de forma isolada ©, no segundo momento, ainda vigente, cla é comumente estudada em luma das abordagens: estrutural, funcional ou formal. Os estudos. da escola baseados nestas abordagens tém trazido alguas problemas, especialmente por terem dogmatizado sua via ex: plicativa dos processos educativos e da escola, tomanda como absolu- tas explicagdes que. sio apenas parciais. Com ‘sto, t8m impedido uma compreensio mais abrangente e significativa da realidade eseolar. V4 rios autores discutem 0 problema destas abordagens em pesquisas sobre diferentes fenémenos. Aqueles identificados com a abordagem ‘ritico-dialética da pesquisa nfo condenam o estudo da estratura, fun- ‘edo ou forma dos fenémenos em si, mas sim 0 fato de esses conceitos serem tomados de forma absotuta © dogmética, transformando-se em fetiches. Apresentaremos, a seguir, algumas consideracSes desses auto- tes sobre esta questo. Goldmann sugere que, para nfo se tomarem dogmatizados, os estudos da estrutura, fungo ou forma de um fendmeno devem ser realizados néo isoladamente, mas de mancira concomitante, Para ele, consideracao da estrutura separada da funcGo foi o que levou ao estruturatismo a-histérico, nio-genético, formalista, que nfo considera as madangas histéticas, bem como ao funcionaliomo, que mostra 0 aspecto “funcional” das instituigdes ou comportamentos, sem nunca colocar o problema da transformacdo. Ele afirma ainda que a propria maneira pela qual o funcionalismo designa 0 que chama de “disfun- ‘98es" (entendido como carter negativo) pode no ser mais do que luma nova funcionalidade, referindo-se a uma nova ordem social 86 captivel ma abordagem historica dos fatos sociais (Goldmann, 1986: 10) 0 Lefebvre, de forma semelhante, alerta para 0 perigo da « zago dos esquemas.explicaivas e aponta para a necessidade des particilarizar, “historicizar” e selativizar os conceitos, pois & relati- vizando-se que 0 conceito se dialetiza (Lefebvre, 1961, II:” 208-9) Lembrando que todo conceito se esgota, Lefebvre alerta ainda para o perigo do conceito “totalidade” também se fetichizat, sotrer do abuso dogmético (1961, II: 33-6). Considerando a dinamicidade Uo conceito, ele pretere 0 emprego do termo “totalizagio” ao invés do de “totalidade” e sugere que a busca da totalizacio para explicar os fendmenos deve partir da deserieio fornecida pelos estudos que identificam 0 funcional, o estrutural ou o formal e criticé-los e ultra- passé-los a fim de alcangar a natureza do funcional, estrutural e for- ral dos fendmenos (Lefebvre, 1961, TT: 189 a 191). Com a mesma prescupacio, Kosik (1976: 42) afirma que, na busca da totalidade, no se deve contentar somente com 0 conjunto do relagées, fatos © processos identificados, mas ir além ¢ desvendar a sua criagao, estrutura e génese AS Considaragdes desses autores apontam para a necessidade de ve estabelecer um quadto de andlise amplo que possibilite.aleangar, ainda que parcialiienie, a realidade concteta dx escola. Clentes de que @ apreensio completa deste realidade é impossivel, aereditamos, com Golditann, Lefebvre e outros autores, que 0 esforco deve ser mat Nosso objetivo 0 investigar quatro escolas publicas de 1.° graw foi, portanto, perseguir a natureza e a génese de processos educacio- nais que ocorrem no interior da escola, especialmente o fracasso dos alunos pertencentes as camadas populares, a partir_da_abordagem mais totalizadora. possivel. Entretanto, esta decisio nao preenchia ainda todas as necessidades da investigacéo. Reslava.-decidit_ sobre qual ponte. comecar no. estudo da escola: se das caracteristicas da sociedade, se da estrutura escolar,.ou se da vivéncia dos sujeitos liga- dos a escola. E o que discutiremos a seguir. 2. Estudo da vida cotidiana: via de acesso A realidade concreta — escola Na busca de um caminho que nfo fragmentasse os fenémenos cestudados e que melhor revelasse.a”génese € a natureza do processo educativo presente na escola, duas vias foram identificadas. uw ‘A primeira via, a mais privilegiada pelos investigadores que optam pela abordagem totalizadora, caracteriza-se por analisar a escola a partir de um ponto de vista macrossocial, ou seja, que procura esta- belecer explicagdes abrangentes. sobre.a_ escola ¢.seupapel. Nestas explicagies, @ escola € entendida ou como “instituigao” (conceito her- dado das investigacdes de cunho positivista) ou como “aparelho de Estado” (conceito herdado das explicagbes “crtico-reprodutivisias” a. escola). Outra via,2indicada para procurar a natureza do estratural, for- maf ow funcional de determinados fendmenos, tem sido a andlise des- tes a partir de um ponto de vista microssocial, ou seja, das_pessoas € de suas relagies sociais. i fato de a maior parte dos autores que adotam a abordagem dialética de investigagao preferir a via da andlise macrossocial pro- vyavelmente € devido ao ponto de vista marxista sobro a estreita rela- cdo entre as questdes individuais e de grupo e as determinagdes socia mais amplas, reafirmada por vérios autores, em especial da érea da sociologia e da psicologia social? Mais recentemente, autores que também adotam @ abordagem dialética de pesquisa, mas menos orto- doxos na leitura de Mars, tém_cyiticado.andtises que privilegiam as ‘questdes macrossociais por julgarem que elas nfo consideram de for- ma adequada as relagdes desias questdes com aquelas produzidas ¢ existentes no Ambito microssocial. A critica tem se dirigido, nfo & inutilidade destas pesquisas, mas ao fato de que ‘contribuido para o esclarecimento ¢ avanco das questdes mais coneretas. De Fato, cexplicagies provindas deste tipo de pesquisa tém categorizado a es- 1. Alguns autores estabslecem uum teresiro nivel, entre © macro e 0 mi © “inlermedidrio". Nesta distingéo, “microssocial” envolveria apenas 0 nivel fevtritamente individual © daz intertelagdes pessoal, © 0 “intermedifrio™ envol- veria os individuot e grupos no contexto de suas stividades sociais, ou sela, tomados numa coletividade (Thiollent, 1986: 89). Nio feremos ‘aqui esta distinglo, eonsiderando quo os individuos, mesmo em sus representagGes mais “peso eabelcom o tm como refrénca 0 grupo ov Selanne mas préxima, 2. Nio nos elongoremos aqui sobre as rtieas j4 formuladas por esses autores a sexpeio das pesquisas “postivisas”, que tém inverigado o individuo e ‘os pequenos grupes sem considerar a¥ quesiGes socials. Consular, sobre essas cerftcas, enlze outros autores: Moscovicl, in Tsract & Tajfel C1971) cola como “reprodutivista”, “libertéria” etc., mas nfo tém avancado ‘em explicagSes de eventos mais concretos e vivos da realidade escolar. A busca de eventos que explicassem melhor a realidade escolar nos levou & leitura de autores que discutiram e analisaram o cotidiano (Gramsci? Kosik, Lefebvre, Heller);¢ a escola a partir do cotidiano (Ezpeleta e Rockwell) A leitura das obras desses autores fortaleceu nossa crenca_na riqueza, das explicagSes mierossociais para o melhor equacionamento dos problemas que a escola enfrenta, De fato, € no Ambito da anélise do cotidiano que podemos hielhor entender as acdes dos sujeitos que ‘movimentam a escola ¢ com isso alcancar a natureza dos processos ‘constitutivos da realidade escolar, tendo em vista a sua transformacao.. Acreditamas, entretanto, que a natureza das ages © dos. processos ‘escolares nfo é alcangada apenas pela identificagio da existéncia des- 16s, mas na sua_articulacdo. com eventos presentes no_nivel social © fhist6rico, com os guais a andlise macrossocial se preocupa. Apenas ~-|o conhecimento critica de um ¢ outro nivel pode levar adiante o conhe- cimento da realidade. Nesse sentido, concordamos com Lefebyre (1961, TI: 102), para quem “nao possivel conhecer a sociedade “(global) sem conhecer a vida cotidiane (...) e no é possivel conhe- cer a cotidianidade sem o conhecimento critico da sociedade (global)”. Partindo do pressuposto de que o atual momento de pesquisa sobre a escola catece de explicagdes, microssociais para avancar no conhecimento das questdes concretas € tedricas que sobre ela se colo- cam, optamos pelo estudo da vida cotidiana que se desenvolve no inte- rior da escola, ‘A intengio de investigar o cotidiano escolar nos levow a procurar uum arcabougo.conceitual. que orientasse a andlise eritico-dialética @ set efetivada, Nesta procura encontramos coneeitos valiosos em Kosik, Moscoviel e Heller (esta inspiradla principalmente em Lukics), mas foi em Lefebvre que encontramos maior riqueza conceitual. Apesar de ter sido Lukées quem introduzin a. tema do cotdiano, foi Lefebvre © primeiro autor a fazer da vida cotidiana o objeto de uma reflexio flos6tiéa Hstemea: sua primeita obra sobre o assunto data de 1946 ¢ desde entio, 20 longo dos anos, ele tem construfdo sobre o assunto ‘um conjunto de formolagdes facilitadoras de uma andlise concreta Suas formulagées foram desenvolvidas a partir do marxismo que, para 13 cle, & um conhecimento critico da vida cotidiana, j6 que descreve analisa a vida cotidiana da sociedade e indica os meios de transfor- mé-ta, __No préximo capitulo exporemos algumas posicées te6: ceitos sobre a vida cotidiana © sua critica tomados principalmente, ‘mas no exclusivamente, de Lefebvre. 14 Capitulo II Vida cotidiana: conhecimento ¢ critica 1, Conceituagio de vida cotidiana, cotidiano e cotidianidade Entendemos vida_cotidiana como Lefebvre, ou seja, como um nivel de realidade social? Nesee sentico, uma primeira providéncia para tornar mais preciso 0 conceito “vida cotidiana” & distingui-lo do conceito mais abrangente de “praxis”. Para Lefebvre (1961, II: 50-1), “praxis” coincide com a totali- dade em ato, englobando tanto a base como as superestruturas © as intéragbes entre as duas.2 Sua conceituaglo de “préxis” coincide com a de Kosik, para quem esta abrange a totalidade da prética humana, incluindo tanto.a_atividadeobjetiva do homem, transformadora da natureza ¢ do mundo social, quanto a formacio da subjetividade hu- mana, Desta forma, todos os momentos do homem, ou seja, todos os seus tipos de acio, reflexdo e sentimentos, que se originam no traba~ tho, fazem parte da praxis (Kosik, 1976: 201-2). Sendo um nivel da realidade social, a vida cotidiana apresenta-se como um rifvel da “totalidade”, da mesma forma que sio niveis, ¢ podem ser investigados como tal, 0 biolégico, 0 fisiolégico, o psicolé- 1, Lefebvre, 1961, Il: 46:51; sobre a nogdo de nivel, pp. 122.9. 2) Agnes Heller (1972: 32) posicionase diferentemente de Lefebvre a0 considerar que as atividades cotidianas no fazem parte da. préxis, 15 t j t gico, 0 econdmico ete, Como afirma Lefebvre (1961, II: 61-2), 4 partir do contetido de uma mesma atividade, 0 pensamento pode cons- tituir um mémero quase ilimitado de conjuntos e, portanto, de niveis de investigacio. Nese sentido, Lefebvre lembra que muitos leitores de Marx, por nfo entenderem a andlise deste sobre 0 nével econémico da soviedade, exacerbaram papel da andlise econdmica na explica- io da sociedade, Marx, segundo Lefebvre, jamais concebeu 0 eco- némico como determinante ox como determinismo, mas t#o-s6 apre- senta 0 capitalismo como modelo de produgio em que predomina ‘econdmico. Em conseqiiéncia disso & que designou 0 econdmico como nivel a que referir-se (Lefebvre, 1972: 237). Para Lefebvre (1961, TT: 123), num determinado momento ot conjuntura, um nivel pode ser dominante sobre os demais, ser integrador dos demais. Por constituir-se nivel de reatidade, a vida cotidiana nao se reduz 10 conhecimento de situagies circunscritas apenas a este nivel da rea- lidade, Estamos, 20 mesmo tempo, na vids cotidiana e fora dela, Iss0 significa que 0 nivel cotidiano nao € um campo fechado, mas liga-se a outros niveis da realidade, assim como a globalidade. Para Lefebvre (4961, TI: 122 ss.), © conceito"de vel assemelha-se ao de impli- ‘cacao, onde cada nivel resulta de uma andlise que resgata e explicita © contesdo de outros nives esse sentido, as atividades.supetiores distinguem-se daquelas da vida cotidiana, mas delas nao se desligam. Para Lefebvre, o conheci- ‘menio;~a cigneia, a descoberta cientifica consistem em breves instantes ~de-deScoberta e, durante esse tempo, hi uma vida cotidiana da ciéncia: aprendizagem, ensino, clima dos meios cientificos, questdes de admi- nistracdo, funcionamento das instituigSes ete.° Ha, por exemplo, uma vida cotidiana do Estado, cujo nome & burocracia, ¢ estudar a vida cotidiana do Estado ¢ estudar “no concreto” as funges © funciona- ‘mento dos aparelhos buracriticos, sua relagdo com a praxis social (Le- febvre, 1961, Il: 46). & do cotidiano que emergem as grandes deci- ses © os instantes. draméticos de decisio.¢.de_acdo. Por exemplo, € do cotidiano dos sindicaios ou associagies de classe que emerge a grove. Para Lefebvre, as atividades superiores dos homens nascem do etme contido na pritica cotidiana, 3. Neste aspecto Heller (1972: 29) posiciona-se como Lefebvre, Ela deno- mina as atividades superiores de umano-genéricas, contrapostas a8 atividades 16 Esse afirmagio de Lefebvre nos remete & importincia de estudos do cotidiano para iluminar a reflexd0 de problemas de conhecimento, qualquer que seja 0 objeto em questio. No caso da escola, conhecer com preciso a natureza das préticas e processos desenvolvidos no seu cotidiano pode orientar decisbes tomadas a nivel quer das associacées de classe, qUer da insituieo. A andlise que realizamos neste estudo mostrou que praticas do cotidiano escolar encontradas em 1980 nas escolas pesquisadas se Tofnaram normas institucionais quatro anos de- pois.* Outra afirmagio de Lefebyre sobre a relagdo entre atividades superiores e cotidiano enfatiza, por Angulo diferente, a importancia do conhecimento da vida cotidiana. Refere-se a0 fato de que tudo aquilo que se_produz,e. se, constrGi,nas_esferas, superiores da_prética social deve mostrar sua verdade no cotidiano, quer se relacione a arte, 2 fitosofia ou a politica (Lefebvre, 1961, TI: 50), Ou seja, as eriacbes devem vir & vida cotidiana para verificar ¢ confirmar a validade da eriagiio.® Esta anélise, transposta a0 contexto da escola, sugere que deci- sGes institucionais de controle burocritico ou de cunho pedagogico (como programas de ensino, orientagées metodolbgicas etc.) 36 serao efetivadas se mostrarem sua “verdade” na prética cotidiana de cada ‘escola, com um especifico grupo de professores. E por isso que Lefebvre — apesar de ter como certo que & dos resultados concretos da préxis que aparecem tanto a produgdo regular quanto as verdadeiras criagées humanas — coloca como hipétese bé- sica que “é na vida cotidiana e a partir dela que se cumprem as ver dodeiras criacdes, aquelas que produzem os homens no. curso de sua hhumanizacio: as obras”.* Apostando também nesta hipétese estare- mos, neste estudo, entendendo cada escola pesquisada como uma obra que, nio obstante pertencer a uma inslituielo, & construida ¢ tans- formada pela aco dos sujeitos presentes, 4. Verificar a anilise realizada na segunda parte, capitulo VIL, item 2. 5, Também quanto a este aspecto Heller (1972: 20) posicionsse como Lefebvre (6. Lefebvre distingue obra de produto. A obra é snica, podendo apenas ser copiada, imitads. Produto, por definiglo, & reprodutivo (repetitive), pois a finalidade do dispositivo & precisamente esta (Lefebvre, 1983, espectalmente pp. 243-4). Voltaremos a discutir esta diferenciagio no item 3 deste capitulo, referente as “representagdes”. 7 Até aqui estivemos usando sem distingio os termos: vida coti- diana, cotidiano ¢ cotidianidade, Tornar estes conceitos mais precisos lise do cotidiano escolar. Para esta distingo Lefebvre se remete &s modificagées pelas quais a vida cotidiania passou ao longo da historia, Essas modificagbes silo estabelecidas por ele, no a partir de pormenores descritivos, mas através dos aspectos globais de cada sociedad, em cada época, ou seja, pela identificagso de m nas relagies sociais, no modo de produedo, nas ideologias." Num primeiro monivento, que se situa até 0 capitalismo competitive, ao desenvolvimento do “miindo da mez- ‘adoria”, a vida_cotidiana existente permanecia impregnada de valo- res, de ritos, de mitos. Nessas sociedades arcaicas e antigas, denomi- adas por Lefebvre de “ni mma nio se separava daquele sefor que consistia o ponto iis “alto” e “maior” ‘da cultura ¢ das jdgias. O cidadio mais primitivo sabia distinguir 0 profario do segrado, ainda que estes dois aspecios de sua vida se mis- turem para n6s. Quanto ao modo de producio, as pessoas produziam roupas, alimentos ¢ objetos, mas estas atividades néo passavam por um sis” tema rigido de plaificagio, repetitive © homogéneo. Nesse sentido, ..) existiam mais “obras’.do que, produtos, inclusive obras coletivas: mo- numentos € festas. O estilo acompanhava as obras conferinde. aos menores objetos, atos, atividades ou gestos. Para Lefebvre, este 6 um dos paradoxos da histOria: nessa época havia “estilo” apesar da existéncia da miséria e da opresséo dircta, Num segundo momento histérico, a partir do capitalismo compe- tivo, a obra quase desapareceu, substituida pelo produto (comercia- lizado), enquanto que a exploracao Substituiu a opressao direta. Nesse ‘momento, inicio do século XX, a sociedade curopéia torna-se “curm- lativa”, pelo crescimento das forgas produtivas. Aia_ vida cotidiana ‘entra na modernidade eo “cotidiano” (palavra que designa esta et- trada’na modernidade) consolidase. Ao estilo se opde a caltura ¢ esta se divide em cultura cotidiana (de massa) ¢ alta cultura, divisio que passa por fragmeniaghes sucessivas. Além de’ser substituido pela cultura, estilo também é substitufdo pela arte no sentido de “arte 7. Lefebvre escreve sobre esta questio em duas obras suas (1961: vol. TT, ‘especialmente 316-38 e 1972: 53-79). Expomos aqui os elementos basi sua anélise nessas obras. 18 pela arte”, ou seja, esteticismo, ‘Trés valores fardo a modernidade: a \éonica, © trabalho,¢ a linguagem, cada um com um destino diferente, No decorrer deste segundo momento, a modernidade torma-se tama ideologia, um valor basico a ser aleangado. A ideologia da mo- ddemnidade vigente tem mantido o cotidiano como lugar de continuidade, anuneiando a ilusio de uma ruptara com a época anterior. © alcance 2.0 valor da modemidade tém recebido interpretacées diferentes, po- sitivas de uns, negativas de outros. Para Lefebvre, esta controvérsia ficaré sem conclusio, em parte por depender do lugar atribuido a0 negativo no movimento, De qualquer forma, ele acredita que a moder- nidade mais recente sofreu uma “crise” que ocasionou_a separacio entre a modernidade e 0 que ele chama de modernismo, Em suas ané- lises mais recentes, Lefebvre afirma que a modernidade, que. teve. seu infeio no comeco do século XX, cessa por yolta de 1980, quando a civitizaea® ocidental entrou nio tereeité momento de sua classificacao (Lefebvre, 1981, IIL) Nesse'ierceiro momento, que atualmente Lefebvre denomina :modemismo” (pois em obras anteriores ele jé fazia a distingao entre 0 ttés momentos, sem qualificar o éltimo), o cotidiano, passa 2 ser ‘objeto de programacto, cujo desenvolvimento 6 eomandado pelo mer- ado, pelo sistenia de equivaléncia, pelo marketing e pela publicidads. Néite perfodo, e ideologia da modertidade € suplantada, ficando, no seu lugar, a pritica teenolégica propria do modemismo. Dé-se a ins- talagao © consolidacdo da couidianidade, que mostraré como 0 cot no se cristaliza. “Cotidianidade” insiste sobre o homogéneo, sobre.o tepetitivo, sobre o fragmentirio na vida cotidiana: mesmos gestos, mesmos trajetos etc. 1.1. 0 cotidiano hoje ‘A andlise de Lefebvre sobre a vida cotidiana incide sobre seu pais de origem, pertencente & comunidade européia, ou soja, pais ca- Pitalistaavancado. Sua anélise identifica, entretanto, muitos pontos Semelhantes aqueles encontrados em nosso pais capitalista periférico, principalmente no contexto das grandes cidades urbanas. Tanto 1d co- mo aqui, podemos perceber, no curso das siltimas. décadas,. mudancas 10 cotidiano. Este deixou de ser um eSpago abandonado, livre as in ciativas individuais, isto 6, no & mais o “Ambito da condigfo huraana fem que enfrentam sua miséria e sua grandeza” (Lefebvre, 1961, 1 93-4), © cotidiano deixou de ser um “setor”; hoje & submetido & 19 programacdo, & exploracio racional através do marketing da publi- idade. Estes fazem do cotidiano um de seus principais produtos. ‘A, programagié.do_cotidiano nfo incide somente sobre 0 tempo do tabelhe social © tempo do nfo-trabalho (repouso, férias, vida privada, lazeres) faz parte do. modo de producéo como o trabalho. O hao-trabalho anima a economia devido a dois fatores: porque € 0 “tempo” de consumo e porque poderosos setores produtivos se cons- troem a partir deste nao-trabalho (0 turismo, os lazeres, 0s espeté- culos, a indistria cultural). Nas grandes cidades brasileiras podemos pereeber esta organiza- ‘gio @ programacio do cotidiano das pessoas por varios indicios, A fgenda dria dos individuos da “classe média” & completada em eran de parte por ages estimuladas pelo marketing. Anélises impressio- nistas sobre nossa realidade urbana mostram programacées dirias, Crganizadas até nas “agendas” de criancas, muitas delas j transfor- maclas em pequenos “executives”, estes, representantes do homem tt pico da, modernidade. ‘A-escola, seguindo a tendéncia da modernicade, nfo passou 20 fa modernidade — a técnica — de maneira exemplar. O largo da Drogramssf jntensa. Na nossa realidade, ela “assumiu” um dos valores . Lefebvre, no vol. TI da Critique de ta vie quotidienne (1981), discute a quesito do papel e funcio das clasves médins. Nio nos aprofundamos aqui Ste a questdo, mas 6 novessirio situar alguns pontos da andlise empreendida serie Le) Lefebvre discute a afitmaso de Marx em 0 capital anunciando PPuaaparceamenio Ga classe média e trex & baila afitmagées de Marx, em Caisos eustios, onde teria revisto sua analise. 2.°) Lefebvre afirma que héy ends clguns anos, uma nova classe médis, composia de técnicos e teenocratas, Sem quo haje desaparecido a antiga classe média, composta por membros das Trotnsdes Tiberais. Apeser das difereaciagSes © diversidade de niveis de vida Ghuze a diversas “classes médias", considera que hi uma certa homogencidade nice as diversas camadas situadas ontre @ parte alla e a parte baixa, permb findo falar da classe média, 3°) no seio da classe média — classe média nédia— que o cotidiano moderno se constitti e se institu, & a partir deste Input que 0 modelo — ai construido — se difunde para a alta © para a balan classe media. 4°) Antigamente, os modos © modelos ds classe média provinham ds aristocracia ou da grande burguesia; hoje, a classe média impOe for fei Aos modelos culturais ¢ préticos, que nascem no. seio das classes médias, cacupam alta burguesia ea classe Taina, exla sem acesso mesmo 2 Clidanidade Lefebere distingue assim o infra c 0 supercotidiano « limita otidianidade aquela das classes médias, afirmando a predominincia das classes médias sob a hegemonia capitalise stual 20 tecnicisme tornou-se a tendéncia pedapigion predominanteno.cenério. edt@itional das duas dltimas décadas, mudando substancialmente a organizagto escolar e 2 pritica pedagégica dos agentes educacionas, ‘Avenada dos copecilists na escola ea Enfase ténica com que Seu trabalho fol ovientado na escola pablicafacltou a tragmentaglo do processo educativo a prtica docente tomouse. buroratienménte Sepabiznda ei todos os hives, Assim programado, o cotidiano escolar, tanto quanto o cotidiano de modo geral, tenderia a constituir-se em um sistema_com. fecha- mento. proprio: produgio-consumo-producéo. Entretanto, 0 cotidiana nio pode, como lembra mais fecentemente Lefebvre, definir-se como “subsistema” no interior de um sistema mais vasto. Ao contrério, o cotidiano & “base” a partir da qual o modo de producto tenta se consfituir em sistema por uma programacdo. Da mesma forma, o coti- iano & a base do Estado e, no caso da escola pablica, 0 catidiano e3c0- lar & a base da insituigio estatal sobre o qual esta procura programat 1 produgfo, Deste ponto ver a forca do cotidiano e nossa crenga fundamental: ele, como base da produgio programada (trabalho e ngo-trabalho) ¢ do. Estado organizado, impée o critério de mudanca da programagao da producéo ou da organizagdo do Estado. Enire- tanto, esta imposicdo nao se faz sem uma légica. Nesse sentido, a _Auestdo que se coloca & saber. como o.colidiano estabelece seus cri tétios de mudanca e saber quais critérios sio esses. Nas seqdes seguintes deste capitulo procuramos estabelecer pa- rimettos de anélise do eotidiano para melhor identificar sua fraqueza @ sua forca, ou seja, identificar como ele sofre manipulagées © como fle impoe mudangas (muitas vezes 2 revelia dele mesmo) seja a pro- dtugio programada, seja a0 Estado. 2. A busca de uma anilise critica da vida cotidiana Para conquistar a cotidianidade € necessétio, pois, conhect-la suas caracteristicas e suas manipilagSes. Quanto ao conhecimento das manipulagies, partimos do preisuposto de que para apreendé-las ¢ preciso examinar as representagbes dos sujeitos cotidianos, Das re- presentagies nos oouparemos na proxima segio. Nesta segiio, trataremos de analisar as_caracteristicus da_cotidia- nidade, Para isso, partimos do esquema pelo qual ela 6:pauiada, es- quema que, lembra Lefebvre, jé pautou o dominio do saber, do espaco, 2 da organizagio cstatal e, até mesmo, do capital. Este esquema, que depois de ter submetido os outros setores hoje também submete a cotidianidade, ¢ formado por fatores relacionados 8 homogeneidade, fragmentacio e hierarquizacdo (Lefebvre, 1981: 84 ss.). 2.1, Fatores de homogeneidadé, fragmentacao hierarquizagao do coridiano Este esquema de anslise da cotidianidade proposto por Lefebvre, cle mesmo o admite, encontra-se implicitamente em Marx, @ propés do trabalho social: este torna-se mais e mais homogénco, fragmentado hierarquizado, Ao ser generalizado, este esquema caracteriza tam- bém a sociedade atual, no importando nem o modo de producio capitalista, nem scus pr6prios objetivos. A aplicagio ao cotidiano do esquema que analisa o trabalho social faz corresponder 0 cotidiano Aquilo que se realiza nas zonas das atividades mais ou menos exterio- tes ao cotidiano, mas ligadas a ele, como, por exemplo, o emprego do tempo, os percursos, 0 trabalho etc. Para Lefebvre, o modo de producio atual tem produzido uma revolugio_cientifica ¢ técnica (em substitui¢ao & revolugio social e politica), uu sistema mundial de Estados, um espago expeciico, uma ‘urbanizagto maciga, uma divisio mundial do trabalho e, portanto, a cotidianidade, Esta cotidianidade € percebida pela homogeneidade dos tempos cotidianos onde a medida abstrata do tempo, © nd0 os cicios naturais, comanda a prética social; pela fragmentacao dos tempos cotidianos em que descontinuidades brutais destrocm os ciclos ¢ ritmos naturais & medida que obedecem & linearidade dos provessos de me- dida que dividem as atividades segundo uma ordenagio geral de- cretada do alto; pela hierarquizacdo dos tempos cotidianos onde a desigualdade de situagdes c instantes recebem designago de importan- tes ou despreziveis, segundo avaliagées mal justiticadas. Para Lefebvre, nio é ficil compreender 0 paradoxo segundo 0 qual 0 homogéneo cobre ¢ contém o fragmentado, deixando lugar a uma estrita hierar quizagzo. A partir do esquema geral — homogeneidade, fragmentagio © hierarquizagio — Lefebvre organizou um quadro dos fatores que intervém no cotidiano, que reproduzimos em suas linhas gerais, pois muitos deles, veremos, estéo presentes de modo incontestavel no coti- diano escolar. 2 Fatores homogeneizantes do cotidiano * a lei e a ordem estabelecida; * a racionalidade tecnolégica © burocritica; * a légica que se pretende unitéria ¢ se aplica a todos os dominios; * o tempo do relégio decomposto repetitivamente; # as midias (nfo tanto por seu contetdo como por sua forma, produzindo atitude uniforme de passividade diante do fluxo de informagio, de imagens, de discursos); ® a busca da coeréneia ¢ da coesio dos comportamentos ¢ a formago desses comportamentos sob 0 tipo de reflexo condi- jonado; © as representagies estereotipadas; * © mundo da mercadoria, intimamente ligado aos compromissos contratuais; * as tarefas repetidas linearmente (mesmos gestos, mesmas pala- ras); © 0s intervalos ocupados pelos interditos; a segmentacio das fungGes elementares (comer, dormir, repro- duzir ete.) n0 cotidiano uniformizado, que acompanha a frag- ‘mentagio das fungbes ditas superiores (ler, apreciar, conceber, {gerar etc.) ¢ sua reparticao programada no tempo; as ilegalidades méltiplas na legalidade formal da lei; 08 campos epistemolbgicos ¢ recortes operados para ¢ no saber; as burocracias e fidelidades burocréticas; 1 importincia das divisOes administrativas, partindo 0 espaco; ‘© desdobramento do espago, produto social; 4 tendéncia geral de gerar a vida cotidiana sob 0 modelo de ‘uma peguena empresa; a tendéncia de fazer apelo ao saber ligado as normas e, por consegiiéncia, reduzir o vivido; ‘+ a dominagao do abstrato que se concretiza socialmente; * 0 enciclopedismo de fachada. Fatores de fragmentaco do cotidiano (no seio da homogeneidade) ‘ as-miltiplas separagies, segregagSes, disjungbes, tais como: pri- vado/piblico, concebido/vivido, natural/téenico, estrangeiros/ cidadaos ete.; © 0s espacos especializadas de forma a estabelecer guetos; * a divisdo do trabalho; 23 * a atenuacio do contraste entre os momentos fortes (sagrados) @ os momentos fracos do cotidiano; multiplicagdo crescente de instantes neutros, indiferentes; * a separagao e disjuncio social entre os trabathadores protegidos (por sindicatos, estatutos) e os outros, menos ou nada prote- gidos. c. Fatores de hierarquizacto do cotidiano © a hierarquia multiforme’ das fungbés, dos trabalhos, dos Iueros, que se estende aos objetos: carros, habitacdes, vestimentas etc; © a hierarquia dos lugares, das “‘propriedades”, das qualidades xe- conhecidas aos individuos e 80s grupos; * a sociedade como morfologia hicrdrquica estratificada, a nivéis superpostos; * 0 corte dos tempos pelas midias, difundindo as representacSes fragmeniérias completadas por ilus6rias visdes globsis; © a hierarquia do saber, o fundamental e o aplicado, o importante © 0 sem importincia, o essencial eo anedético; © a hierarquia nas empresas, nas oficinas © nos escritérios (na urocracia, malgrado ou sobretucio na homogeneidade da priti- ca e na ideologia “competéncia-realizacéo"); * 0g graus da “participacio” no pode ¢ nas tomadas de decisées, as migalhas de autoridade ao poder soberano etc.; * a burocracia, a servigo da tecnocracia (ndo sem conflito), que ‘vem tratar 0 cotidiano © as pessoas no cotidiano como a maté- ria-prima de seu trabalho, como uma massa a “tratar”; como tum povo a assistir; que, entretanto, tende a fazer cumprir por seus “sujeitos” seu proprio trabalho de registro ¢ de inscrigbes, papéis de toda sorte a preencher. Na andlise que promovemos sobre as_escolas,identificamos a presenca de varios dos fatores arrolados por Lefebvre como ocasio- adores da homogeneizagio, fragmentacio ¢ hierarquizagéo do coti- diano. Os fatores assim identificados ¢ outros que se agregaram & and ‘mostraram como o cotidiana escolar era impelido para a cotidia- rnidade. Todavia, a andlise mostrou também que _presenga, desses fatores ndo dominava todo o cotidiano. Ao mesmo tempo que existiam fatores que levavam a escola para a cotidianidade, outros fatores, pro- cessos ou priticas resistiam & cotidianidade e indicavam pistas de trans- formagdes do cotidiano escolar. Lefebvre também analisou os movi- 24 mentos de resistincia do eotidiano, relacionando algumas linhas de ‘acdo que se opdem a0 esqiéma gerel apresentado; ele 0s denomina fatores de oposigéo, que teproduzimos, em seus aspectos gerais, a 2.2. Eatores de oposigdo a homogeneidade, fragmentagdo e hierar- quizagao do cotidiano Estes fatores ou Tinhas-de agi, para Lefebvre, sid_a5 diferencas. contra a homogeneidade,.a_unidade contra a fragmentagao © a cisto 0 igualdade contra a hierarqui |As diferengas contra a homogeneidade podem ser identificadas plas diversidades que penetram as classes, as hierarquias, as desigual- dudes? A unidade contra a fragmentagio pode ser determinada pelas contradigbes dialéticas que acontecem no curso. da busca ¢ realizacio da unidade, A igualdade contra a hierarquia pode sex identificada na ieiitativa, no de nivelar a sociedade, mas de fortficar 0 social no que diz respeito ao nivel mediador.entre @ econémiico € 0 politico, estes, fatores de desigualdadé. 0 combate das foreas que se opGem aos fatores que submetem 0 cotidiano (homogeneidade, fragmentacio e hierarquizacio), segundo Lefebvre, implica uma concepeéo dialética (endo I6gic-estitica) 1) da “centralidade” no tempo € no espago (amu ‘Fos; mobilidade, dinamismo); by) da “subjetividade”, referente ndo aos egos individuais, mas aos sujeitos coletivos (trabalhadores das empresas, habitantes das ci- dlades, asim como a classe trabalhadora como suténoma), recons- ‘rudos segundo conceitos renavados; dade dos cen- 9. Diferengas devem ser distinguldas das partcularidades. Particulardades se definemn pela naturezae pela relagio 2 natureza do set humano social; Consist, pois em °realidades biolGaicas © psicol6gicas”, dadas e determinadas, Como etnias sexo, idade, Diferencas, por outro lado, Uefinemse socialmente, has relagdes socinis, AO contririo das particularidades, as diferengas nfo 3 ‘Solar, mas fomam lugar no conjunto. F no curso das Iutas das particularidades (etnias, povos, classes, categorias) que nascem as diferengas. Para Lefebvre, a ‘eoria da diferenga” ficou ignorada, nesses iltimos anos, pot razSes potiticas tanto da direita quanto da esquerda) e por razdes cienlificas, onde, ideotosia da cientificidade tem tentado subsituir 2 diferenga pela distingto (Lefebvre, 1981, I 34 w 1229 ae 28 ©) da “socialidade”, oposta, néo ao individuo, mas ao Estado, de um lado (portanto, a0 politico, considerade como redutor), ¢ 20 setor econdmico, de outro, considerado como abstragdo (roca e mercadoria, dinheiro, divisio do trabalho etc.) (Lefebvre, 1981, MII: 89) Na anilise a que procedemos sobre o cotidiano escolar identi camos fendmenos relacionados & “‘centralidade”, “subjetividade” “socialidade”. Entretanto, somente uma_explicacio.histérico-dialética pode sugerir que tais fenémenos sejam indicio de transformacdo e no apenas de reproduco da ordein vigente. Os fendmenos escolates per- cebidos apenss na fotografia de um momento ndo possibilitam & com- preensio fotalizadora ¢ mais real dos mesmos. Para tal, 6 necessério {que também sejam identificados os movimentos contraditérios que 08 fazem moverem-se, seja no momento estudado, seja em momentos sucessivos, historicamente considerados. 0s conceitos formulados por Lefebvre até aqui apresentados po- dem ser tomados como referéncia para a andlise da vida cotidiana nos contextos mais diversos. Na tentativa por nés realizada de in- vestigar o cotidiano das escolas utilizamos os conceitos formulados por cle, assim como conceitos de ontras fontes sugeridos no préprio pro- esto de andlise. Entretanto, como afirmamos no inicio desta segio, | acreditamos que a cotidianidade pode ser melhor apreendida se ana- | lisarmos, aléni’ de” suas caractersticas, também suas manipulacdes, | Ainda aqui Letebvré @piésenta contribuicao importante ao apontar que essas manipulagSes podem ser alcancadas pelo estudo das representa- Ges. Esta suposigao veio 20 encontro dos nosios propésitos de ana- “ifgar as representagies dos sujeitos que viviam a cotidianidade escolar. Além disso, 0 estudo das representagdes nos possibilitou avangar no centendimento da propria escola. Na proxima secdo trataremos de algu- ‘mas quest®es te6ricas relativas 4. representacio. 3. As representagées ¢ a manipulacio do cotidiano © cotidiano.programado, ou seja, a cotidianidade) instaurada © consolidada no mundo moderno urbano, apresenta-se como o império, das representacies." 10. A discuss sobre “representagio” aqui desenvolvida bescis-2e funds ‘mentalmente na argumentagio teGrica elaboraia por Lefebvre (1983) 26 No cotidiano, as representagdes nascem e para ali regressam. No cotidiano, cada coisa (automével, edificio, pega de vestudrio etc.) acompanhada de represemtacbes que mostram qual ¢.0.seu-papel. A. publicidade, os modelos chamados “culturais” introduzem no cotidiano necessidades que fazem nascer novas representagies e, na convergén- das representagdes, 0 cotidiano se programa. As representacies se formam entre o vivido e 0 concebido, dif iiando-se de ambos. © concebido, por um lado, constitui o dis- 0 artieulado que procufa determinar o eixo do saber a ser promo- vido ¢ divulgado. Representa, assim, o idedrio tedrico.de uma época © vivido, por outro lado, € formado tanto pela vivencia da subjet vidade dos sujeltos quanto pela vivéncia social ¢ cOlstivir S63 sujeitos nil contexto especifco."* O coneebido e 0 vivido se relacionam em movimento constante dialético entre ambos as representacdes fazem as vezes de media- doras (Lefebvre, 1983: 223). Entre as representagdes que se formam entre o vivide ¢ 0 concebido, algumas se consolidam, modificando © concebido e o vivido; outras circulam ou desaparecem sem deixar “Representacao”, para Lefebyre, é o teteeiro termo que se forma 4 partir da dupla “representante-representado”, largamente discutida na filosofia, © terceiro termo aqui é 0 outro, que implica relagio tanto com o outro presente (vivide) quanto com o outro ausente (Concebido) (1983: 255). Assim é que as representacdes ocupam os intervalos, os intersticios entre 0 sujeito.¢.0.abjeto elissicos, entre a presenca © a auséncia, entre o vivido e o concebido (1983: 96-7) Na modernjdade, presenciamos a primazia do saber, do_coneebido sobre 0 vivido, através da superestimacdo @@ Togiedy do discu representacdo em geral, Todos os meios so empregados © individuo, junto. com as diferengus. Para Lefebvre, este projeto sub- jacente & modernidade, da absoluta-primazia do.saber, dar cigncia ¢ da técnica, suscitou ‘a contrapartida: o anti-saber, a anti 2, a antiteoria’ (1983: 212). Paracle, 6 conveniente nao cair no Gutro lado, no irracional, na apologia do simbolismo, do negativismo, 11, Concordamos com Lefebvre, para quem a vivéneia nfo coincide com 0 singular, com 0 individual, com 0 subjetivo, pois as relacées sociais também so vividas antes de serem concebidas. Para ele, existe vivencia social vieculada ‘com 0 individual, porém diferente de sua singularidade (Lefebvze, 1983; 223) 27 Lefebvre lembra que, no nosso mundo, enquanto os pensadores.tém absolutizado 0 concebido, os artistas tém partido da vivencia, Hé que relativizar, dialetizando o saber e sua relagio com a vivencia, sem excluila (1983: 215). Partir do vivido, sem rechacar_o concebido, reconhecendo a fragilidade da vivéncia, sua Vulnerabilidade — sem pretender apreendé-la com as “pincas dos conceitos”, sem redudi- (1983: 215), 3.1, As representagdes, 0 vivido ea obra ‘A medida que as representagSes nfo so sindnimo_do_vivido, as nio alcangam a realidade que se_vive. Uma realidade expecifica, entendida como “presenga”” nica (por exemplo, a realidade escolar), € uma obra sociaimente construida por aqueles que a vivenciam. O conceito “obra” inclui desde a obra de arte, 0 urbano, o monumental, a sociabilidade ¢ a individualidade, 0 cotidiano e o ins6lito, as insti- tuigdes, a linguagem, até o Estado (que, alids, para Hegel, é 2 obra suprema). Voltamos a lembrar aqui a distingo, anteriormente registrada, entre os conceitos “obra” € “produto”, onde o primeiro designa aquilo que & Gnico.e a segundo, aquilo que & reprodutivo.”® A. obra possui lima Presenca enquanto 6 produto permanece no meio das represen- tagées. A obra, portanto, situs-se além das representages, apesar de estas circularem a0 seu redor. Lefebvre discute 0 conceito “representagdo” junto com 0 con- ceito “obra” por dois motivos. Primeiro, porque a_obra_esclarece. as representagées, pois as atravessa, utiliza-2s e supera-as. Segundo, por- {que a representago esclarece a_obra, de forma néo suficiente, mas necesséria, jé que faz remeter & prética, a producSo e & criagio. Ape- sar de a producfo e a criagio, se distinguirem consideravelmente, a criacéo implica-explica a produgao e o trabalho produtivo (Lefebvre, 1983; 243). Pelo fato de entendermos a obra situando-se além das represen- tagdes 6 que, neste estudo, analisamos as representagdes dos sujeitos sobre a escola, confrontando-as com a descrigio constitutiva da obra ras quatro escolas: cada escola é obra tinica e se situa além das re- presentagSes. 12, Veie-se nota 6 [As representacdes circulam. ao redor de coisas fixas: instituigbes, simbolos, arquétipos. Jnterpretam a vivéncia e a prética, intervém ne- las sem por isto conhecé-las ¢ dominé-las. Também em relacio 3 obra-escola, as representagées pululam, ou seja, as pessoas que se ufilizam de alguma forma desta obra interpretam-na, explicando, desse modo, a vivéncia (vivéncias) e a prética af realizadas. Entretanto, a interpretagdo que as pessoas estabelecem sobre @ obra néo Ihes pos- sibilita conhecé-la e dominé-la 3.2. Problematizacoes sobre 0 conceito de representagao [As representagSes nao se distinguem em verdadeiras e falsas, Elas podem ser, ao mesmo tempo, Talsas e verdadeiras, ou seja, verdadei- ras como respostas a problemas “reais” e falsas como dissimuladoras das finalidades “reais”. As representagées se distinguem em estdveis ‘© méveis, em reativas e superveis, em alegorias e em estereétipos in- corporados de maneira s6lida em espacos ¢ instituigdes (Lefebvre, 1983: 24). Isto aproxima as representagdes da ideologia. Entretanto, afirmando que Marx e 0s marxistas confundiram freqiientemente idco- logia e representacio, Lefebvre as distingue, considerando que © con Zeito de ideologia pode ser reconstruide « partir da teoria (critica) das representagées (1983: 15, 25 ¢ 69). “Rica e confusa, a represen- 10 envolve ¢ inclui-a-ideologia, empobrecida e clarificada. A. efi cicia da abstracio'e da ideologia provém das representagdes que pet- sistem nelas, mais ou menos reconheciveis. Bficécia ou efeito, em torno do qual gira, sem apreendé-lo, a concepgio habicual da ideologia” (1983: 69). [As fepresentagies possuem caréter paradoxal: n&o so “fatos sociais”, pois ndo possuem consisténcia prépria; ndo séo “fatos psi- {quicos”, ainda que motivem os atos, pois s6 surgem na relagio; no sio “fatos de linguagem”, ainda que o discurso seja seu suporte. As representagées nfio podem reduzir-se nem a um yeiculo lingiistico nem a seus suportes. sociais; para capté-las ¢ nocessério. estudar_o discurso ba prética social correspondente €, por isso, Lefebvre (1983: Ye 199-200) se refere a elas como “fatos de palavras.c.de_prética social”. Concordamos com Lefebvre ¢, neste estudo, as representacdes Ws agentes pedagbgicos investigados estardo sempre se referindo as priticas por eles desenvolvidas no cotidiano escolar. 29 Cientes da controvérsia que cerca o conceito de representaco no discurso filos6fico, aceitamos a afirmacao de Lefebvre para quem nem a filosofia nem a hist6ria do conceito podem colocar ou resolver @ problemética da representagdo. Para ele, a teoria do conhecimento no basta © hé que incluir uma teoria do desconhecimento, Considera que os elementos de uma teoria do desconhecimento se encontram na filosofia cléssica ¢ moderna, porém 0 filésofo, no sentido tradicio- nal, no pode levé-la a cabo por falta de experiéncias politicas, pré ticas ¢ ideol6gicas. A filosotia, afirma Lefebvre, hé que adicionar hoje fem dia o conhecimento critico dos meios de comunicagdo de massa , sobretudo, a andlise politica, Af surge uma dificuldade e uma necessidade: partir da filosofia toda, de seu paradigma; depois, sair dela sem perdé-la de vista e do pensamento (Lefebvre, 1983: 26) Neste empenho reside uma das dificuldades discutidas por Lefebvre que se refere & contradicgo cada vez mais manifesta do mundo_mo- demo: por um lado, @ abundancia de representacdes e sua utilizagio desaforada; por outro, o esgotamento das representacSes, seu desgaste © 0 esforgo em renové-les. Essas consideragdes de Lefebvre sobre a abundancia, esgota mento ¢ renovagio das representagies no mundo moderno nos reme~ tem a afirmagdo exposta jé em 1848 por Marx ¢ Engels a propésito dda constante renovacio ¢ esgotamento dos instrumentos de producdo © das relagbes mo sei do capitalismo florescente. Esses autores afirmam: “A burguesia 26 pode existir com a condigio do rovolucionar inces- santemente os instrumentos de producto, por conseguinte, as relagées de produfo e, com isto, todas as relagées socinis (...).” Essa revolugéo continua da producio, este abalo constante de todo o sistema social, essa fagitagdo permanento ¢ essa falta de seguranga distinguem a époea burguesa e todas as precedentes. Dissolvem-se todas ax relacSes sociis antigas © crstaizadas, com seu cortejo de concepySes e de idéias secularmente Yene- +adas; as rslag6es que as substituem tornam-se antiguadas antes de terem ‘um eiqueleto que as gustente, Tudo o que era séido e est tudo © que era sagrado & profanado © os homens sio, fi sados a encerar com serenidade suas condicses de existéncia suas relacbes reciprocas”.° 13. Marx & Engels (1987: 79). Essa passagem do Manifesto foi recente- ‘mente utilizada como tema central de uma publicagio de grande tiragem (Ber ‘man, 1986), 30 ‘Ao analisarmos © discurso cotidiano, especialmente a0 consta- tarmos 0 uso ciclico de palavras € conceitos utilizados pelos individuos 0 explicar os fenémenos educacionais, revela-se a intensa_transito- riedade, desgaste e renovacdo das representagdes, que acompanham f desgaste e renovagéo de todas as relagdes sociais no mundo mo- derno. A anilise das representagies de agentes pedagogicas a que pro- cedemos neste estudo teve por objetivo distinguir as representagées estereotipadas e mistficadoras que bloqueavam agées transformadoras aquelas que, apresentando-se como produio de reflexio, contribuiam para o aparecimento de ages que possibilitavam & escola mudar eumprir sua tarefa de ensino.* 14, Nilo nos estenderemos aqui sobre questBes metodol6gicas além das jf cnunciadas. Queremos registrar apenas que, dado o carter da abordagem antro- poldgica dialética adotada, as hipOteses de trabalho tomaram a forma de propo- ‘Ses diretrizes e, com etsa nalureza, orientaram a andlise dos dados empiricos. “Maiores detalhes sobre estas questdes sio discutidos no trabalho original (Penin, 1987) 31 SEGUNDA PARTE A HISTORIA E AS OBRAS Quanto tempo Duram a5 obras? Tanto quanto ‘Ainda nfo estio completadas Pols enquanto exigem trabalho Nao entram em decadi Quem dari duragio as obras? (Os que viverio no tempo dels. Quem escolber como construtores? 8 ainda no nascidos. \Nio deves petguntar: como serdo eles? Mas sim Determinar. Bertold Brecht A vide colidiana € 20 mesmo tempo, Feflexo ¢ antecipagio da Histria Antonio Gramsei Capitulo 1 O contexto hist6rico do cotidiano escolar Discutimos a relagdo reciproca existente entre a sociedade ou realidade hist6rica e a vida cotidiana. Assumimos que 0 conhecimento da sociedade insplica o conhecimento da vida cotidiana e que 0 conhe- cimento da vida cotidiana implica o conhecimento da sociedade. Com base nesta crenca inserimos o cotidiano das escolas investigadas em 1980 num contexto mais amplo, tendo como referéncia 0 periodo his- ‘6rico que se inicia com a data em que foram criadas as duas escolas mais antigas, ou seja, 1964, O significado histrieo do periodo entre 1964 © 1980 pode ser melhor compreendido se examinarmos as principais mudangas ocorri- das no pais em termos politicos, econdmicos e educacionais, Em termos politicos, o perfodo em questo corresponde & quase totalidade dos anos em que o pafs viveu sob o regime politico autori- tério. Este regime teve inicio com o golpe militar de 31 de marco de 1964 ¢ terminou oficialmente com a cleigio indireta de um presi- dente civil em 1984, Entretanto, convencionou-se chamar a época apés 1980 de “abertura democritica”, quando foi apresentada (ou conquistada) a possibilidade de eleigdes diretas para governadores, cocorridas em 1982, ._, Em termos econdmicos, 0 periodo entre 1964 e 1980 esteve liga- do's caracteristicas do desenvolvimento econémico iniciado em 1950 35 que, com algumas mudaneas no modelo, chegou 2 1980. As cara ‘eristicas deste desenvolvimento econ6mico, aliadas & conjuntura pol fica dominante, determinaram em grande parte as mudancas sociais, «¢ educacionais no periodo. Neste capitulo apresentaremos as caracteristicas que entendemos como centrais no desenvolvimento econdmico desse periodo © que orientaram mudangas sociais a nivel urbano, populacional e, em grande medida, educacional. Nao nos propusemos um trabalho exaustivo; a0 contrério, procuramos identificar apenas os indicadores que, a nosso ver, determinaram a configuragdo hist6rica do periodo. 1. © desenvolvimento econémico brasileiro entre 1964 ¢ 1980 Em termos econémicos, uma caracteristica do desenvolvimento brasileiro permanece em todo 0 periodo que vai desde a época da criaglo das escolas mais antigas investigadas (1964) até a época da nossa pesquisa do cotidiano das quatro escolas (1980). Esta carac- teristica refere-se ao répido incremento da industralizacao no pals, tendo seu surgimento antes de 1964, mais especificamente, na década de 50. Apesar de mudangas no modelo econémico ¢ crises localizadas, cla esté presente, em suas bases gerais, até hoje (1988) ‘A. 6poca da criagéo de duas escolas (1964) eoincidiu com 0 golpe militar no Brasil. Segundo Celso Furtado (1982: 37), naguele ano, o Brasil vivia um momento critico para tomar decisées sobre 0 ‘modelo econdmico a seguir. Para ele, no inicio dos anos 60, 0 Brasil havia aleangado um ponto em seu processo de industrializagio que impunha uma politica mais ampla e decidida. Se o objetivo eta pre- parar o sistema econémico para alcancar niveis mais altos de desen- Volvimento, fazia-se necessério reforcar sua capacidade de autotrans- formagio ¢ também definir melhor os objetivos a alcancar. Entretanto, seque 0 autor, as modificagdes institucionais introduzidas entre 1964 © 1967 revelaram a intengdo do novo governo militar de orientar 0 desenvolvimento segundo as forcas do mercado, asseguradas pela im- plantago de sucessivas leis especificas que beneficiaram sobretudo as empresas transnacionais ¢ os intermedidrios financeiros. Nessa época, especialmente entre 1967 e 1973, deu-se 0 extraor dindrio erescimento da produgo manufatureira brasileira chamada 36 “milagre”. Segundo Celso Furtado, tal “milagre” foi fruto do apto- veitamento da poupanga externa (emprestada a juros altos, que au- mentou de forma gradativa mas violenta nossa divida externa) e go por real erescimento econémico. ‘A nivel da populagio assalariada, 0 modelo impos 0 também yamado “arrocho salarial”, 0 que levou contingentes populacionais enormes a viver miseravelmente. De qualquer forma, a ilusio de eres- cimento perdurou, a industrializagao cresceu quantitativamente, ofe- recendo emprego e salério baixo no bojo de seu crescimento. Este crescimento resultou em mudancas do cenério brasileiro em varios aspectos. Vejamos, 2 seguir, 0 que aconteceu na fisionomia urbana da cidade de S40 Paulo e no Ambito da educagio escolar, como resul- tado do quadro econémico descrto. 2. A urhanizagio da cidade de Silo Paulo no periodo 1950/1980 (de urna cidade 1 histéria Depressa muda mais que um coragio infel) Charles Baudelaire © processo de industrializagéo do nosso pais teve seu ‘espaco vital na cidade de Sao Paulo, Os marcos do inicio da industriaizago na década de 50 foram as instalagSes da primeira inddstria automobi- Iistica, as da primeira grande refinaria de petrdleo.e as de uma das grandes sidertrgicas brasileiras, Volta Redonda. A instalagéo deste pélo industrial a0 redor ou préximo a cidade de Sao Paulo é explicada devido aos excedentes econémicos acumulados pelas elites paulistas ligadas 2 agricultura cafesira, desde © chamado ciclo econémico de café (Furtado, 1968: cap. XXXII). O funcionamento do pélo indus. ocasionon a aceleracao do crescimento industrial em Sao Paulo fe marcou a cidade — espaco geografico das quatro escolas pesqui- sadas — com profundas transformagées urbanisticas ¢ humanas a par- tir da década de 50, Tal fato provocou movimento migratério intenso para Séo Paulo, proveniente principalmente das regides mais pobres do pais. Em conseqiiéncia, a fisionomia da cidade de Séo Paulo mu- dou, apresentando-se como vasto conglomerade, com uma populagio que passou de 1.847.580 em 1947 @ 8.493.226 em 1980. A tabela abaixo mostra o erescimento no perfodo. 37 Tabela 1 Populagio © Taxa de Crescimento Médio Anval nos Anos de 1947, 1960, 1970 1980 no Municipio d= Séo Paulo Populagio ge ‘Taxa de Creselmento Médio Anual ee a 1960 3.851.663 100, 1960/1947 — 5.8% 1970 5.924.615 100 1970/1960 — 47996 1980 8.493.226 100 1980/1970 — 3,679 Fontes: Populagio ‘© 1947/1960: SEADE, 1979, apud Sposito (1984: 32) © 1970/1980; Cidade de So" Paulo, Secretaria Municipal de So Paulo, Plano Trienal 1985/1987, p. 161. ‘Taxa de Crescimento Médio Anval: '* 1910/1960 ¢ 1980/1970: Cidade de Sio Peulo, Secretaria Municipal de Sio Paulo, Plano Trienal 1985/1987, p. 161 © 1960/1947: calculado pela autora, A cidade passou, no curso dos anos estudados, por um cre mento desmesurado ¢ cadtico. O desenho urbano foi ampliado nas suas extremidades ¢, nessa regio, denominada “periferia”, aparece- ram novos bairros: alguns, surgindo apés loteamento promovido plas imobiliérias, outros, em terrenos tomados clandestinamente.1 Nesses bairros, a caréncia de infra-estrutura era total: faltavam transportes, ras demarcadas, égua encanada, coleta de lixo etc. Af foi residir a mio-de-obra necesséria & concretizacao do novo modelo de desenvol- vimento brasileiro, Vejamos como era & populacéo em 1980. 2.1. A populacdo da cidade de Sio Paulo em 1980 © mimero de habitantes da cidade de Sio Paulo em 1980 — aproximadamente 8.500.000 — era o maior do pais, representando um tergo da populaglo de todo o Estado, A\ patticipagéo da populacdo economicamente ativa (PEA) na populagao total era mais alta do que a registrada, seja para o Brasil, seja para o Estado de So Paulo, seja para a Grande Sio Paulo (Ci- dade de Sio Paulo, 1985: 13). Entre a populagio economicamente ativa era elevado o mimero de jovens que trabalhavam, estando 8,3% 1. Sobre o surgimento e conotago ds palavra “perferia’, consultar Camargo ct alt (1976: 25). 38 na faixa entre dez ¢ dezessete anos (1985: 15). Comparando a dis- tribuigdo de jovens que trabalhavam com as diversas regides, obser- vamos que, nos bairros periféricos, a taxa de participagio dos jovens chegava a’ 13% ¢, nos bairros mais centrais, ela ndo passava de 4% (1985: 15). Apesar de a cidade possuir 0 maior contingente relativo de po- pulagio economicamente ativa no pais, a remuneracdo recebida pot grande parte era muito baixa: 37,7% recebiam até dois salétios mi nimos, 36,6% recebiam de dois a cinco salétios ¢ 74,3% recebiam até cinco salérios minimos. Da mesma forma que a proporgio de jo- ens que trabalhavam, a proporcio de individuos que recebiam salé- rios baixos era maior nos bairros periféricos, chegando, em alguns bairros, a atingir 60,8% a proporcio de pessoas que recebiam até dois salérios mfnimos mensais Considerando a renda familiar, ainda assim a proporgio do ren- dimento era assustadora. Em 1980, 11,7% das familias do municipio contavam com rendimento médio familiar de até dois salérios ménimos Repetia-se com este indicador a desigualdade entre as diversas regides da cidade: em regides peritéricas, a populagio cujo rendimento che- gava a até dois saldrios minimos compunha 18,9% ; em outras regides, ‘4 populacdo com tal rendimento compunha 3,3%. Inversamente, 9% das familias do municfpio contavam com rendimento mensal familiar de mais de vinte salarios minimos, sendo que de 0,7 a 2,6% residiam nas regides periféricas e uma proporcio de até 45% residia em re- ‘sides centrais (1985: 15-7). Dados relatives ao analfabetismo mos- tram que 0 indice em 1980 eta 13,2% do total de pessoas de cinco anos ou mais e se mantinha a disparidade regional ja discutida (1985: 17). Essas diferencas nas condigdes de vida da populagio paulistane em 1980 espelhavam 0 processo de urbanizacio desctito, que, pot sua vez, tefletia 0 modelo de crescimento econémico adotado no pe rfodo, Assim como a urbanizacio, a educacéo passou por caréncias de vérias ordens. 3. A educacio no pais ¢ na cidade de So Paulo no periodo 1950/1980 Analisaremos a evolugdo do desenvolvimento educacional a tir de alguns indicadores: erescimento de niimeso de vagas c pr escolares, regulamentagio escolar bésica, crescimento do mimero de 39 matriculas comparado ao indice de rendimento escolar dos alunos, percentual de gastos da Unio com a educacéo. Entendemos que, tomando por base estes indicadores, podemos chegar a algumas cor clusdes sobre os resultados quantitativos e qualitativos da educacao escolar no periodo, Veremos também que os resultados qualitativos, em grande niimero de casos, emergem dos dados quantitativos; por exemplo, o indice de gastos da Unido com a edifeacdo é indicador da ‘ma remuneragio do professor, mas condigées de trabalho na escola, mau atendimento aos alunos, entre outros fatores, o que reforca as ‘condigées gerais de ma qualidade do ensino. 3.1, O crescimento de vagas e prédios escolares de 1950 a 1980 ‘A migragdo de grandes contingentes populacionais para a cidade de Sio Paulo, acentuada a partir da década de 50, ocasionou, entre foutras caréncias, a falta de prédios escolares para abrigar alunos ma- Iticulados nas escolas de 1.° grau. Estudos realizados mostram que a partir de 1950 houve mudanca significativa no mimero de matriculas rho 1° grau (este, até 1971, abrangia apenas as séries de 1.4 a 4) (Sposito, 1984: 37), Tal fato forgou 0 servigo piblico a adotar 0 sistema de construgio escolar baseado em galpées de madeira. En- tretanto, upesar do sistema adotado, 0 ritmo de construgio de galpBes nunca conseguiu atender & demanda. Em 1956, foi criado o Ensino Municipal ¢ a Prefeitura iniciow atividade independente do Estado na oferta de escolaridade elementar a populagdo. Devido a divergéncias entre 0 poder estadual e municipal, as novas escolas eram inslaladas sem planejamento, ocorrendo multi plicagdo de criagio de classes em lugares onde néo havia demande e auséncia de criacio de classes em lugares mais procurados. Apesar de todos 0s desencontros entre 0s dois poderes, a década de 50 pre- sencion o aumento de novas unidades escolares na cidade de Si Paulo, Em 1961, a deficigncia de vagas girava, segundo Sposito (1984: 40), em torno de 10% da populagio escolarizAvel Em toda a década de 60, a evolucio dos servigos educacionsis continuow praticamente igual & da década anterior, apesar da criacio, fem 1960, do Fundo Estadual de Construcdo Escolar (FECE), que dleveria programar a construgio de escolas. Durante toda a década de 60, as instalagbes de escolas foram improvisadas. Em 1967, cerca de trinta e uma vnidades escolares da Grande Sdo Paulo funcionavam em regime de quatro periodos. 40 Os problemas de instalagdo escolar da década de 60 continua- ram na primeira metade da década de 70 ¢ modificaram-se substan- cialmente na segunda metade. ‘A segunda metade da década de 70, ité mais ow menos 1982, presenciou grande aumento na oferta de vagas. Houve 0 que se deno- rinou “democratizagéo quantitativa” da escola, quando grande con- tingente dos filhos das pessoas de baixa renda pOde matricular-se na escola piblica, Essa democratizacio quantitativa, jé bastante debatida pelos educadores, deu-se, em parte, pelo interesse do governo em escolarizar a mao-de-obra necesséria & producdo industrial e, em parte, pelas reivindicagSes por escola, organizadas pela populagdo dos bair- 10s periféricos. O aumento de vagas, entretanto, acontece também a custa da diminuigio dos salérios dos professores © da deterioracao das condigées de trabalho na escola. De fato, a década em que mais se construiram escolas foi aquela em que as dotagies da Unido para a educagio foram as mais baixas. © planejamento para a construcio dos prédios escolares era qua se nulo. A expansio da cidade para a periferia era constante, bairros eram formados “quase do dia para a noite” (conforme depoimento de um delegado de uma dessas regides) e as escolas eram instaladas primeiro em barracdes — segundo o modely dus auus 40 — até a construgio dos prédios de alvenaria, As condicdes de conservagio © manutengio dos prédios eram deficientes, pela falta de verbas. ‘Apesar da expansio de oferta de vagas no final dos anos 70, ‘muitas eseolas da periferia néo puderam atender & demanda em 1980. ‘A falta de classes, novos problemas se interpunham, Um deles era a grande quantidade de alunos repetentes nas primeiras séries que disputavam lugar com oS novos no ano seguinte. Outro problema relativo & dificuldade de atendimento a demanda pode ser computado fa extensio da escolaridade obrigat6ria ocorrida com a reforma de censino de 1971, apresentada a seguir. 3.2. Regulamentacdo escolar bésica Desde 1961 toda a organizagdo escolar era regida pela Lei n.° 4.024, que fixou as Diretrizes e Bases da Educacio Nacional. Com 0 governo militar esta orgenizacio foi revista e, entre as inimeras leis, decretos © pareceres que foram sendo emitidos, duas leis tiveram des- taque: a Lei n® 5.540, de 1968, € a Lei n.° 5,692, de 1971. A pri- aL meira reformava o ensino universitio © @ segunda, o ensino de 1.° © 2. graus, que nos inteessa neste estudo. Saviani (1976: 174-94) lembra que a reforma do ensino de 1.° @ 2° graus, ocorrida em meio a euforia do “milagre brasileiro” do governo Médici, receben apoio entusistico dos professores quando foram mobilizados para a eruzada da reforma em 1972. Os desacertos dda implantagio da reforma e a revisio mais profunda e crftica de seus propésitos contribuiram para que, nos iiltimos governos militares, tla fosse questionada, primeiro timida © depois mais enfaticamente Nilo 6 nosso objetivo discutir a reforma de ensino de 1971, mas ape- nas lembrar_as mudangas fundamentais ocorridas na organizago do tnsino de 1.° grau que influiram no cotidiano das escolas. Essas mu dlancas foram duas: organizagio curicular ¢ organizacdo dos cursos. Quanto & organizacéo curricular, trés pontos bésicos a nortearam. Primeiro, o currieulo deixon de ser unificado para todo o terit6rio nacional, sendo definido um nicleo comum bisico para cada grau fm todo o pais e uma parte diversificada, determinada pela escola, aproveitando sugestdes do Conselho de Educacio de cada estado. ‘Segundo, houve introdugdo na grande curricular, de forma obrigatoria, das disciplinas (ou atividades ou dreas de estudo) de Educacio Moral e Civica, Fducacio Fisica, Educagéo Artistica, Programas de Satide @ Ensino Religioso, este facultativo aos alunos, Finalmente, no 2° frau, houve diversifieaggo das matérias destinadas & formacao espe- cifica de orientacao profissionalizante. Quanto a organizacao dos cursos, a mudanga radical estabelecida cm lei foi a unificagio dos antigos cursos primario (1:# a 4. séries) © ginasial, transformados em curso de 1.° grau, com oito anos de Guracio. Esta ampliagdo do 1.° grau trouxe um ganho politico indis- cautivel para a Tua pela democratizacéo do ensino, pois amplion ‘ensino elementar obrigat6rio de quatro para oito anos. Entretanto, tal obrigatoriedade néo foi sufciente para o Estado atender todas as criangas de sete a quatorze anos. A descricéo das escolas, apresentada nos préximos capitulos, mostraré as dificuldades que cada uma en- frentou para efetivar tal obrigatoriedade, ‘Ao nivel mais concreto das escolas, a reforme, prineipalmente a extensio do 1.° grau, forcou a redisribuigSo da rede fisca. Escolas primérias e ginasiais sediadas em estabelecimentos distintos tiveram ‘que obedecer a uma s6 organizacio. Esta uniticacdo, ocorrida basica- mente em 1975, foi um processo bastante sofrido pelos seus integran- tes, pelo fato de que pressupds a escolha entre um dos dois diretores 42 atuantes (0 do primério ou 0 do ginésio). O peso do etitério “anti- ilidade na funedo” para a definiggo do diretor ocasionou que, na maior parte das escolas, 0 diretor do antigo primério assumiu todo 0 1.9 grau, As dificuldades dessa unificagio foram identificadas no es- tudo do cotidiano das duas escolas mais antigas de nossa investigacéo (Gama e Delta). ‘Além da mudanga na organizaglo escolar a partit da Reforma do Ensino de 1971 e da redistribuicgo da rede fisica em 1975, as escolas piilicas estaduais estavam orientadas, em 1980, por diretrizes pedagdgicas de organizacio escolar propostas em 1975 ¢ pelo Plano Trienal_ 1977/1979. Em ambos os casos, 0 objetivo que o sistema perseguia era: diminuir as altas taxas de repeténcia ¢ evasio escolar. Em 1975, a orientacdo estabelecida era que as escolas obedeces- sem ao que foi chamado “modelo pedagégico” de organizagao escolar. Este propunha 0 néimero méximo de trinta e cinco alunos por classe, trés periodos de funcionamento nas escolas e nova sistemética de re- cuperacio de alunos (continua, ocupando salas ociosas e trabalho aos sibados). J4 0 Plano Trienal tinha como diretrizes basicas: prover as unidades escolares de especialisias © pessoal administrativo © esten- der a escolarizagéo & populagio de seis anos. O estudo das escolas aqui realizado mostrou em que medida as diretrizes propostas oficial- mente foram efetivadas. 3.3. O crescimento das matriculas e o rendimento escolar dos alunos de 1960 a 1980 Outro indicador do desenvolvimento educacional no perfodo con- siderado foi o erescimento do némero de matriculas comparado a0 mimero de aprovacbes. A Tabela 2 mostra a evolucdo da matricula © das aprovagées em momentos distintos do perfodo, fornecendo ainda elementos de comparacéo entre rendimento da rede de ensino pes- quisada (ensino piblico estadual) ea rede de ensino péblico muni- cipal ¢ a rede particular. (Os dados da Tabela 2 mostram que a produtividade da rede de ensino estadual sofreu queda significativa em 1975, obtendo melhora relativa em 1980, mas ainda assim muito baixa — a mais baixa entre as trés redes. A outra rede de ensino pablico, a municipal, apresentou também baixa produtividade © variagio do’ rendimento escolar dos alunos, a0 contrério da escola particular, que nio sofreu variagdes ificativas no periodo estudado, 8 Tabela 2 2 i i 4 4 i a 4 ipio de So. Paulo de Alunos do 1° Gras, segun ros anos de 1961, 1966, 1970, 1975 ¢ 1980, no MM ‘Matricolas efeivas raves Matricalas Iniciais ¢ Aprova wages Aprov Rede Rede Rede cestadual sunicipal particular ‘Ano 294.480 75,84 8607 396,610 76,53, 49.105 #821 2.001 37.623 69,08 368.280 207.79 74,69 518.209 674.015 35.663 83.688 3.104 M1713 183.228 4458 53.223 157.297 1961_278.150 1965 380.929 1970 433.269 38.871 73,03 285.339 7490 74.106 99,17 543.854 80,68 120.581 103,255. 65,64 465.684 55,00 186.843 67.03 536.608 63,88 266.416 6,30 36,220 84,51 85,08 773.108 61,01 1.267.153 1.425.005 1975. 846.597 278.739 1980 839.975 401.802 156.449 85.38 959.473. 67,33 ia de Economia © Plancjamento, Departamento de ment, § 3 4 i 3 3 a 8 i 8 E g fea,” Anudrio Enadstico 1961, 1967, 1970, respect 1975: Governo do Estado de Sio Paulo, Secretaria de Economia ¢ Plancjamento, Estudo ¢ Pesquisa 20, Ensino de Primeiro e Segundo Graus, 1975-1978. 1980; Governo do Estado de Sio Paulo, Secretaria de Estado da Educagio, MEC/SEINF/SEEC — SE/SP, En- sino de Primeiro Grau — Avaliacéo e Movimentugdo Escolar, 1980. A diferenca pode ser 1. Nio foram considerados os dados da Rede Federal por representerem parcela. muito pequena do total. Por exemplo, em 1966, a matricula nfo chegou a 490 alunos, nfo crescendo a partir da Obs. faleulada comparando-se 0 total com a soma das irés redee de ensino consideradas. 2. Os célculos des porcentagens #80 nossos. ‘Tabela 3 ‘Média Percentual das AprovagSes de Alunos das Oito Séries do 1.° Grau, ‘segundo as Entidades Mantenedoras, no ano de 1980, no Municipio {de Sio Paulo Promosio (%) Série Estado Municipio Particular Total 1 57,8 5966 86,96 61,73 28 73.06 7523 90,96 764. 3a 78.36 78 9136 799 4a 3523 33,66 92.73 85.76 se 565 26 81,56 69 on 60,86 63,05 33,63 42 1” 396 6501 85,53 6173 ss BS 83,63 884 7B 8787 11,03 Total a3 1 Fonte: Governo do Estado de Sio Paulo, Secretaria do Estado da Educacio, MEC/SEINF/SEEC — SE/SP, Ensino de Primelro Grau — Avaliagdo ¢ Movimentagdo Escolar — 1980. Obe.: 1. Or céleulos finals das porcentagens sfo nossos. 2. A dierenga entre 0s dados de promocéo de 1980 da Tabela 3 ¢ da ‘Tabela 2 € devida ao cfleulo desta tabola ter sido efetuado a partir dos dados de matricula final e na Tabela 2 0 céleulo ter sido feito ‘partir da matricula inicil. Muitos so os fatores j& apontados para explicar a queda no rendimento escolar da escola piblica e, a0 longo deste estudo, esta- remos ressaltando uns e reiterando outros, partindo de dados concre- tos. De qualquer forma, podemas adiantar, de acordo com os dados da Tabela 2, que a escola piblica ndo soube lidar com o novo perfil do aluno majoritério que ela comecou a receber desde década de 70. Outro fendmeno ligado A questio do rendimento escolar deve ser considerado. B 0 relative & variagio do rendimento escolar a0 45 longo das oito séries do 1.° grau. A Tabela 3 mostra esta variagio no ano de 1980, quando as escolas foram pesquisadas. Apresenta dois ‘momentos criticos nas taxas de promogGo. O primeiro é a baixa taxa de promogio na 1.* série, que confirma o que jé foi registrado, ou seja, o “congestionamento” de alunos nesta série, provoeando 0 ndlo- atendimento de toda a demanda de alunos que procuravam as escolas do periferia para serem matriculados na 1.4 série. O segundo momento ctitico € a 5.* série, eujo indice de promocio explicita a dificuldade de concretizagio dos ideais da escola de oito anos. Problemas como esses poderiam ser contomnados com planeja- mento edueacional adequado ¢ com verbas em quantidade suficiente para 2 educacio, Vejamos como se apresentava a questio das verbas. 3.4. Gastos da Unido com a educacao A porcentagem de gastos que a Unido tem concedido de seu orcamento A educagéo é um indicador privilegiado para aferir as difi- culdades do desenvolvimento educacional. © Gréfico 1 mostra que entre 1960 1965, anos ameriores & mudanga do regime politico, houve tendéncia erescente na participagio das verbas para a educacgo no oreamento da Unido. A partir de 1966, vigente a politica do regime autoritério, a participacao das verbas Para a educaggo no total do oreamento da Unido comegou uma ten- déncia & diminuigo, chegando ao seu ponto méximo em 1975, em plena vigéncia do “milagre econdmico” e do aumento acelerado de construgBes escolares. De 1976 a 1979 as verbas voltaram lentamente 8 crescer com nova queda relativa em 1980, permanecendo sempre longe dos pontos alcangados na primeira metade dos anos 60. Comparando-se 0 aumento do mimero de matriculas nas escolas Pablicas de 1.° grau na década de 70 com a diminuigéo das verbas Para a educagio constatamos a convergéncia de fatores que determi- nam diminuigo na oferta e qualidade de ensino. Além disso, a ma qualidade de ensino € fruto de outras condigSes que dependem prin- cipalmente, da destinagdo de verbas, como construgdes escolares, sa- lirio do professor ¢ nimero de alunos por classe 46 Grético 1 Evolugéo da Participagao das Verbas no Ministério da Educago e Cultura (MEC) cia ‘no orgamento da Unifio, ém Porcentagem (1960-1980) wes 86's a's w's oer ety 86 we fa|§ 6 ws 68 0 aaa seme onnin ns m 5 1% 17 7% 1 a Fonte: FIBGE, Anuério Estatistico do Brasil, in revista Retrato do Brasil. SSo Paulo, Editora Politica, 1984. Nos préximos capitulos veremos como quatro escolas, na singu- laridade de suas hist6rias e dinfmicas cotidianas, ¢ por isso denomi nades obras, lidaram com todas as caréncias ¢ caracteristicas do mo- mento histérico mais amplo, Capttalo TV A obra Alfa 1. 0 fexto social: a escola e sua histéria “Vila Salvador” localiza-se em regiao periférica da zona sudeste da cidade, distante uns 30 quildmetros do centro de Sio Paulo Em 1980 era ‘um bairro novo em constante crescimento, observado pelo nimero de construgdes em andamento, A escola Alfa situava-se a vinte quadras da avenida principal de ‘Vila Salvador, no cume de um morro. As ruas de acesso a escola ‘ram esburacadas, sem calcamento ou sarjeta. A pobreza do local era evidente. As casas eram amontoadas umas sobre as outras dentro de terrenos mindsculos. Algumas eram construfdas com madeira ¢ lata, como os barracos tipicos das favelas, mas a maioria era feita com tijolos vazados, sem pintura ou outros acabamentos. Muitas casas tinham dois pavimentos, notando-se domicflio de duas familias. Havia muito lixo pelas ruas, amontoado aqui e ali. Nao havia iluminagio piblica, uma das maiores queixas dos moradores, que temiam sair & noite por ameaga a sua seguranca. Contrastando com a desolagao e desarmonia visual das cons- trugdes havia intensa manifestago de vida nas ruas préximas & escola: pessoas transitando, mulheres ‘com seus filhos a0 colo ou a volta, 1. Os nomes das escolas e seus bairtos so ficticios, | . qT conversando com as vizinhas, garotos brincando na rua, homens tra- 6 lS Bea fime| ai Sy aR balhando nas suas casas em algum melhoramento. eee ae ee ee © prédio da escola nfo combinava com o padrlo das const. g| 2 e8e8 |S a 8 Fe as a sua volta, Sua posigio, no alto do morro, e sua arquitetura mederaa & aii lea s.2 a cee © espacosa, embora sem acabamento sofisticado, emprestavalhe a g| 288 * { idéia de um “monumento”. Talvez a aparéncia da escola fosse um Elesaglazgaggegeng dos motivos que a fazia ser bem conceituada entre os moradores do | Z8aa;e& 9a a 8 5 bairro. £)eess sii irri 1 A ovata Ait, clad em. 1976, wl ft jlonejda com atta i Eloeae(2R89E25 déncia, Tanto como 0 bairro onde se situava, ela foi acontecendo, le | Pact mentee = ! primeiro em barracées separados e, depois de um ano, em prédio ae ies sgtg/ea nn eae S ) proprio, Gnica construgao s6lida no bairro improvisado com casas € 3 g|2 a & barracos também improvisados que, com o tempo, passaram a ter 0 Z Al cease |e ip soprano sentido de definitivos, © bairro onde a escola se situava foi se in- es zege |B SR Sas g chando, principalmente de migrantes que foram convergindo para a 3 glesdali ria : cidade e ocupando espacos disponiveis na periferia, no seio do movi- i OF ee a | eee ee mento social mais amplo conhecido como “milagre econdmico”, que 2 Eleseg/2 R888 5 3 canalizou para Sio Paulo grande contingente de pessoas. No mesmo pe iE] ae 2 | ritmo, a escola “inchou” (vide Tabela 4). Entre um periodo escolar j a |"|,|gedn|aze ete e | © outro, 0 mimero de criangas transitando pelo pitio, corredores € & arredores da escola — 1.400 alunos — lembrava a entrada de operd- i Zlseag(22823% 2 rios nas grandes fdbricas. Para atender a este nimero de alunos a 6 5 ) ‘escola funcionava em trés periodos. A falta de iluminacao piblica no 2 g)eese}i iii bairro impedia a abertura do quarto periodo e obrigava a escola a : Bt | eaeeeeaeas | ema vere uf matricular até quarenta e cinco alunos por classe para nao recusar 2 g/esae|8 BRE a grande quantidade deles, ifringindo assim o mimero méximo disposta 3 [8 a artis 2 na modelo pedseésich, A tutta Ge canskp Hsicd ubéat irovocou 6 re o|zs8e/2 -- B | ‘o-atendizento do modelo pedagopico quanto & sistemdtica de re- i Foie ul ou cums a cuperagao continua. = a (28db/5 98 8 * 5 2. © sluno da escola g)zede]ir I faguikiors Ge chor de caeola vital eta fia felon pail el glee] 88 ® é suiam pouca ou nenhuma escolarizagio e para quem a escola ndo 5 dy sel [eee if | \ cera Tugar familar, 2 [2888] = ‘A proporcio de pais analfabetos era um pouco maior que a Zilesae/3 8a 8 g 0 pais como um todo (17%, enquanto para o pais, 16%): © indice aumentava entre os pais de alunos da 18 4 4 série, indi- Bae ete ee cando seletividade intra-escolar. Outros indices desta seletividade rela- a iathehemty diesnes.spenscaasie aie 50 sl cionavam-se & qualificagéo profissional e renda familiar dos pais. Quanto & qualificagéo profissional, 70% dos pais de alunos das pri- imeiras séries exerciam ocupagSes de categoria semiqualificada para bbaixo, enquanto, dentre 08. pais de alunos das iltimas séries, 40% trabalhavam em ocupagées semiqualificadas ¢ 40% em qualificadas. Quanto A renda familiar, 50% dos pais dos alunos das primeiras séries se situavam na faixa de menos de um a trés salérios minimos contra 33% dos pais de alunos das dltimas séries. (0 sonho dos migrantes, de escolarizagio dos seus filhos, logo era frustrado. Isto € afirmado @ partir dos dados referentes & trajet6ria ‘escolar dos alunos ao nivel do seu rendimento escolar, 'A trajetéria escolar dos alunos era bastante acidentada, Mais de 15% estavam atrasados pelo menos um ano em relagio & série ideal © 50% dois anos. A série mais discrepante era a 5.4, onde apenas 10% dos alunos estavam na idade ideal e 70% apresentavam pelo menos duas repeténeias na sua histéria escolar. (© rendimento dos alunos dessa escola pode ser melhor analisado fa partir dos indices de promocéo, repeténcia e evasio nos diversos anos de funcionamento, desde sua eriagio (Tabela 5). Como se observa pela Tabela 5, os indices de promogao da escola como um todo decresceram violentamente (20%) de 1976 a 1978, subindo um pouco no ano seguinie e bem mais no final de 1980, no ‘alcangando, contudo, o indice de 1976. A queda no indice de promo- gio foi acontecendo & medida que a escola foi atendendo o maior rnimero de alunos, Nesses anos, a série com menor indice de promogio foi a 1.4, nfo passando até 1979 a marca de 50% ¢ chegando a 52% em 1980. A 52 série manteve uma média de 65% © a 6.4, 57% de aprovagéo nos trés anos em que funcionou. J4 a 7.* série, no seu primeiro ano de funcionamento obteve uma média de aprovagio ra- zofivel para os padrées da escola (81,4%), mas eaiu em 1980 (66,1%). Esta variac&o, que também se repetia em outros momentos ¢ séries, mosira que 0 ensino ¢ os critérios de avaliagio e promogio necessitavam ser repensados em profundidade. Comparando-se 0s dados do rendimento desta escola em 1980 com 03 dados médios da cidade como um todo (vide Tabela 3), vemos que o rendimento era menor nas trés primeiras séries, 52 Tabela 5 Resume dos Perventuais de Promogio, Repeténcia ¢ Evasio por Ano ¢ Série (Escola Alfa) Evasio Repeténcia Promosio Série 177 1978 1979 198 1976 1977 «197819791980 19761977 I9TR 19791980 1976 33% U8% 63% 12% {036% 37,6% 43,6% 52% 50% 47.63% S1,3% S6,30% 350% 0% 16% 4.6% 86% 63,085 624% 63.2% 62.7% 140 28)12% 37,5 36,7% 32,6% 803% 68% as SM% 12% 645% 9.2% 20% 16% 30.84% 27.0% 40,0% 19,596 6401% 623% 60,0% 11.2% 68% a8 103% 43% 490% 47% 88.23% BAG BLD 122% 10% 686% 1645 18,1% 23,406 908% 4a 11% 8,696 8.69% 12.1% 846956 420% AMS 254% 82.60% 57.9% 565% 65.9% 585% 364% 247% 166% 79% AIAG 63,5% 67.29% «a 18,146 30,6% 100% 322% BIA 661% a 86% 13.2% 782% ISS 605% 69% 1.2% 3% ‘Total 12,56 67,65%% 52,9% 563% 67,0696 22.556 244% 41.4% 43,6% 25,5¢6 33 3. A situagiio ¢ @ momento institucional da obra 8.1, A simagdo da obra Entendendo situacdo coma as condigdes bésicas de funcionamento da escola, possibilitadas fundamentalmente pelos recursos provindos do sistema e subsidiariamente pelos recursos gerados na propria es cola, vojamos com o que a escola Alfa contava em 1980, Devido principalmente a época em que a escola foi criada (quan- 40 08 gastos da Unio com a educacao eram muito baixos), os recur sos tsicas, materiais © humanos eram escassos. Além de ser extre- mamente pequena a verba oficial para os gastos com educacéo, esta verba era mal distibuida e mal gasta, jd que era fommecida em parcelas com destinagio rigida para os tipos de gastos, no possibilitando & regio ullizé-ln conforme as necessidades mais prementes. Para que a escola funcionasse com 0 minimo de condigdes, era necessério que 0s pais de alunos contribuissem com a Associagio de Pais ¢ Mestres “= APM (mantinham uma eserturéria © trés serventes) © que, junto com os edueadores, dispendessem grande parte de seu tempo e esforso a promogio de eventos de arrecadagdo de fundos. Priticas neste sentido tinham 0 objetivo de assegurar a existéncia fisica da escola gue, entretanto, nao era suficiente para assegurar boa qualidade de ensino. Outras dificuldades se acrescentavam as mencionadas em decor- réneia dos problemas originados no nfvel institucional: salas super Jotadas, inexisténcia de pré-escola, impossibilidade de matricular crian- as com menos de sete anos © mesmo com sete e de trabalho extra @ nivel de recuperacio, falta de biblioteca e de recursos de atendi- mento médico e dentério, Quanto aos recursos humanos pedag6gicos, a escola contava com uiregdo, assistente de direeo, coordenadora pedagégica, coordenadora Ue saiide e professores. A diretora, com pés-graduagio em Psicologia da Educagio, possuia nivel discrepante da maioria dos professores. Ele estava na escola desde 1977, sendo a terceira diretora da escola. Era consciente quanto ao scu papel de educadora, tendo em vista a realidade s6cio-econdmica dos alunos ¢ suas familias. Nao se ocupava de problemas pedag6gicos diretamente, mas propunha estratégias de trabalho produtivas, como pedir aos professores sem preparo para assisticem as aulas dos professores mais experientes de outro period. s4 Era a iinica pessoa que tomava iniciativas diferenciadas, mesmo entre ‘os demais elementos téenicos, A assistente de direclo estava na escola desde sua criagéo. Res pondia pela escola nas auséncias da diregio. Suas atitudes demons- travam desprezo pela escola, ‘A coordenadora pedagégica trabalhava na escola desde 1977. A existéneia desta profissional naquele local devia-se ao fato de a escola ser considerada carente, critério fundamental da rede de ensino para a designacdo da mesma, Havia muita queixa das professoras em relagio ao trabalho da coordenagéo. De fato, de acordo com os ¥% gistros de observagio, durante certo tempo sua alividade consistia ‘mais em dar apoio burocrético ao professor, tangenciando o problema do ensino. As professoras constituem o recurso humano fundamental na ‘escola e stia competéncia define, em grande medida, @ qualidade do trabalho escolar, A competéncia da professora € determinada por viérios fatores: situacdo funcional, escolaridade, formagao © condicdes de trabalho, entre outros. Em 1980 havia, na escola, cingiienta ¢ seis professoras ¢, apesar de trinta © duas serem efetivas, @ rotatividade era prande, pois sempre que possivel elas removiam-se para escolas sais centrais, Quanto a escolaridade, a maioria das professoras I ha- ‘via obtido apenas o diploma do curso de preparacao para o magistéro. Constatamos que o nivel de preparacio das professoras I, especial- mente as do segundo perfodo, era muito baixo. Nos seus planos de ensino © mesmo na lousa foram observados muitos erros de ortogratia @ até de tracado de letras. Algumas professoras eram migrantes, de origem sécio-econdmica baixa, apresentando historia de vida de mui tos sacrificios. Finalmente, era grande o mimero de faltas das pro- fessoras. 3.2. © momento institucional da obra A caréncia de recursos de toda ordem (fisica, material © hu- mana) constitufa referéncia conereta para a atuagdo dos diversos ele- mentos da escola. Mas esta atuacao era definida por outros eventos de caréter institucional que também tinham manifestacdo concreta nna escola, Fatre esses eventos, medidas institucionais a nivel da poli~ tica de pessoal e da orientacdo pedagégica interferiram negativamente sobre 0 trabalho na escola. ss ‘A primeira medida de caréter institucional que interferiu na es- cola relacionou-se com a revogacéo, em marco, da jornada dupla de trabalho, em periodos consecutivos. As professoras que iniciaram 0 trabalho em duas classes tiveram que deixar uma delas, Nao se dis- cute aqui o valor da medida — pois dobrar, sem descanso, a jornada de trabalho nao & em si, uma medida adequada —, mas sim 0 mo: mento em que foi tomada, obrigando os alunos a nova adaptacdo ‘com outra professora no segundo més de aula e a coordenadora peda- ‘g6gica a repetir a orientagdo para as novas professoras. ‘A segunda medida institucional que interferiu no trabalho peda- g6gico da escola relacionou-st & decisio de que as primeiras séries die varias unidades escolares da rede piblica — a escola Alfe incluida — deveriam adotar novo programa de alfabetizagio. Novamente, no se questiona o valor pedagégico do programa ¢ sim, a forma de ado- co utilizada dentro do sistema de ensino:* A esta altura do ano, as professoras das primeiras séries j4 haviam planejado o trabalho do ano letivo e jd estavam adiantadas no periodo preparatério para a alfabetizacio, dentro do método adotado. A adocd0 do novo programa propunha forma especitica de preparacio para a alfabetizagdo, o que obrigava as professoras a retomarem as atividades tidas como de pe~ ode preparat6rio, resultanda em straco no processo dle alfahetizagio. Além disio, as professoras tiveram que passar por periodo de trein mento com 0 novo método, © que provocon desgaste por parte das rmesmas, pois faziam isto em outro periodo. Havia ainda 0 agravante de que slgumas orientagSes diferiam das ja adotadas pelas professoras junto aos slunos ¢ a experiéncia tem mostrado que pior do que a utilizago de um ow outro método é a mistura de métodos no pro- cess0 de alfabetizacéo do aluno. Durante as férias escolares de julho, uma terceira decisio a nivel institucional veio alterar o ritmo de trabalho da escola, Diferindo dos anos anteriores, a Secretaria da Educagio promoveu, em julho, escolha de classes para professoras concursados e remoeio, A escola em ques- to, por ser nova e de periferia, possufa, como vimos, grande nimero 2. © programa em questfo (Jenominado Alfa) foi elaborado por uma cquipe da Fundacio Carlos Chagas, que vendeu seus dircitos autorais a uma ceditora, Esta, por sua vez, venden ad governo do Estado o material que editou, por alto valor, e através de uma troca comercial pouco esclarecida Isto & colo: Fa interferéncia politica em decisio.pedagégica, com de professoraé substitutas e grande parte dessas professoras foi substi- tuida. A. posse das professoras novas deu-se no primeiro dia do segundo semestre letivo © 0 inicio das aulas quatro dias depois. Entretanto, toda a primeira semana de aula foi muito confusa. Entre as professo- ras novas houve as que assumiram e no compareceram as aulas por estarem ajeitando sua vida particular e houve as que tentaram obter licenga ou afastamento, pois néo desejavam, nem podiam assumir as aulas. Muitas professoras novas efetivas s6 puderam assumir suas classes vinte dias depois, data limite para definir o caso de cada uma, ‘As que assumiram a 1. série no haviam passado pelo treinamento ‘com 0 novo programa de alfabetizacio e tiveram de fazé-lo durante ‘uma semana, com suspensio de duas horas de aula para os alunos. Todos esses relatos mostram a intensa interferéncia do sistema no ritmo de trabalho da escola, fragmentando 0 cotidiano escolar. Entre outros eventos, a troca de professoras, motivada por processo de escolha © remocéo de escola em época letiva, ¢ a mudanca de método de alfabetizacéo no processo foram fatores de fragmentacio do cotidiano escolar ¢ do ensino. Na busca da racionalidade tecno- 6gica (melhor método de alfabetizagdo) e homogeneizagio do sistema implantagio imediata em grande nimero de escolas) foi desconsi derada pela instituigéo a importéncia da experiéncia vivida pelos alu nos ¢ professoras no processo de alfabetizacao dos primeiros, frag- mentando de forma negativa 0 ritmo mais natural do ensino ¢ da aprendizagem, ‘Todas essas interferéncias institucionais tiveram de ser cumpridas nas escolas. Contudo, restava ainda & escola e seus membros agit sobre os resultados negativos das medidas a nivel do cotidiano, Veja- ‘mos agora como a escola se organizou em 1980 para lidar com as determinagées institucionais a situago conereta dos alunos. 4. O ritmo e a organizacio do trabalho escolar: combate entre cotidianidade e sua superacio 0 trabalho escolar € dividido em administrativo © pedag6gico. Este caracteriza a escola, mas sustentado pelo administrative, que tem 0 objetivo fundamental de possibilitar a melhoria do trabalho pe- dagégico ¢ também controlar, no contexto burocratico do sistema de ensino piblico estadual, tanto as atividades das professoras e técnicos 37 (dados pessoais, carreira, prética pedagégica) quanto as dos alunos (dados pessoais, freqiiéncia, comportamentos € rendimento escolar). © trabalho adminisirativo © 0 pedagégico sfio repetitivos © se desenvolvem segundo determinado ritmo. O ritmo de repetighes & diferente conforme sua dependéncia do tempo natural (ciclico) ou racional (linear) [As repetigdes efclicas ou ligadas a0 tempo natural so escassas no contexto escolar; resumem-se ao ritmo da entrada — recreio (tem po da merenda, restabelecimento fisiolégico), safda dos alunos © pro- fessores. “Natural” refere-se ao tempo em que as pessoas se movi- ‘mentam (trabalham), descansam e se alimentam, atendendo as suas necessidades normais. [As repeticdes ligadas ao tempo racional — repetigées lineares — so as mais presentes no contexto escolar, j4 que foram estabelecidas como solugéo & organizacio do trabalho na escola: tempo do ano Jetivo, tempo de planejamento do trabalho docente, tempo das rev- ides pedagégicas, tempo de avaliagéo dos alunos ete. Sao ritmos impostos pelo sistema ou pela pr6pria escola, baseando-se em prin- cipios “racionais”. Veremos que a racionalidade buscada na escola nem sempre 6 encontrada (por exemplo, o ritmo de avaliagio dos ‘lunos nem sempre se baseia em prinefpios “racionais"). Uma das tarefas importantes dos educadores hoje & procurar aproximar os tempos lineares da escola do tempo natural de aprendizagem da maio- ria dos alanos, Estabelecidos os “tempos escolares”, é através deles que a pritica pedagégica se firma os processos sdo desenvolvidos.* Podemos categorizar as priticas ¢ processos acionados pelos agentes pedagégicos da escola de duas maneiras: aqueles que sugerem contribuigdes com a permanéncia de més condigdes de trabalho © baixa produtividade escolar categoricamos como fragmentadores, ho- mogeneizadores e hierarquizadores do trabalho escolar; aqueles que 3) Para aprofundamento dot conceltos de repeticdes “cclicas” © “lineares", consultar Lefebvre, 1981, I: 17. “t. DecisGes sobre esses tempos so reafirmadss a cada inicio de ano tei vo e constam de: organizagio das turmas de alunos, istrinuigSo das xéies petos iversos turnos, designagio dat classes pelos professores, tempo ¢ forma de ‘isiibuigdo da merenda e recrelo, organizasio das entradas ¢ seides dos alunos de cada turno, solupto para falas de profenores 38 indicam superacdo de tais condigées ¢ produtividade categorizamos ‘como fatores de oposicdo & homogeneidade, fragmentacio © hierar: quizacdo do cotidiano escolar.® A primeira evidéncia de fragmentagio do processo educative foi ‘dentificada através do processo de planejamento escolar. Neste as- pecto, as ages dos agentes escolares se caracterizavam por seguit forma burocratizada da orientacéo 2 nivel institucional, dominada, na época, pelo modelo teenicista de ensino. © processo de planejamento era fragmentado na medida em que (03 problemas educacionais da escola nao eram objeto de reflexio dos educadores © muitas vezes nem detectados. As atividades seqiienciais “planejamento-execucdo-avaliago-replanejamento” mio cram alimen- tadas por reflexdes sobre dados concretos ¢ se tomavam cristalizadas, repetitivas ¢ lincares. Havia uma separagio entre a questo formal dos planos ¢ a situacdo conereta dos alunos, sua aprendizagem e 0 ensino. Desta separagio, a prioridade era para a formalizacio do plano mais do que os aspectos referentes 20s alunos. As professoras limitavam-se a discutir alguns aspectos do ensino em sala de aula, principalmente a divisio dos contetidos pelo ano letivo, tendo como tinico critério orientador a seqiiéncia dos livros didaticos. Além disso, nessa tarefa, cada grupo de professoras elaborava partes do plano, Apesar da forte tendéncia a formalizacio e fragmentacio da ai Vidade de planejamento, verificamos indicacBes de movimentos contra tal fragmentacao. Elas provinham des agSes da diretora, pessoa critica no contexto da escola. Suas agées, entretanto, manifestavam-se mais a nivel do discurso (no qual se colocava contra a elaboragio sofis- ticada, formalizada dos planos de ensino) do que a nivel da pritica, continiuando @ cobré-los das professores para cumprir com a exigén- cia do sistema. Percebemos assim que, no ambito da agio da diretore como no processo de planejamento escolar, este era um conflito ainda ndo ultrapassado, Quanto aos processos homogeneizadores, varios foram identifi- cados, especialmente a nivel do processo de ensino e formas de ava- liagao de alunos, evidenciando contradigdes, A contradicio maior dev se no sentido de que, 20 mesmo tempo que as classes eram formadas 5. Consultar a conceitnacto desses termos na primeira parte deste estudo, especialmente p. 21 e seguintes. segundo os diferentes niveis de aprendizagem dos alunos, as provas cram unificadas para toda a escola. Da mesma forma os critérios de promocio, por exemplo, na 1.* série, eram os mesmos nesta escola (quo nao tinha pré-escola) e na maioria das escolas da rede. O tra- balho com as primeiras séries € 05 eritérios de aprovago dos alunos foram discutidos, no se chegando, contudo, a um consenso. Algumas professoras preferiram critério mais flexivel, considerando a producao « evolugio concreta dos alunos; outras, persistiram no crtério forma- lizado proposto pelo sistema ¢ este foi mantido, Discussdes como as que aconteceram na escola Alfa neste periodo também ocorriam em outras escolas e em outras reunides de debate cducacional evidenciando 0 conflito do movimento social no cotidiano escolar. Posigdes diferentes sobre critério de aprovago_indicando formas alternativas de enfrentar os altos indices de repeténcia rom- piam com a posigéo oficial tida como “verdadeira”. Tanto as dis- cusses cofidianas, quanto os debates mais ofganizados, mostravam pistas de medidas oficiais que ocorreram em anos posteriores, De fato, medidas como a do “ciclo bésico”, adotada na rede estedual ‘em 1985, e como a do “desdobramento do processo de alfabetizacio" implantada cm 1984 na rede municipal de Séo Paulo, foram medidas progressistas no sentido de que, na prética, “questionaram” o tempo racional estabelecido para a alfabetizagio, cristalizado no nosso sis- tema de ensino como um ano € que, ha pelo menos quarenta anos, & negado pela prética dos slunos (vide taxas altas de repeténcia na 1.8 série desde 1940). Ao reverem o tempo de alfabetizagio, as novas propostas aproximavam-se do ritmo natural de aprendizagem dos alu- nos, no infeio da vida escolar, contra a medida tradicional de atendi- mento ao ritmo racional de um ano letivo.* Fssas novas propostas, contudo, nfo se efetivaram nesta escola. Outras priticas contra a homogeneizacio e fragmentagdo foram observadas. Por exemplo, a reorganizacéo de classes e periodos para tender as necessidades reais (vividas) dos alunos da 1.* série, critério anteriormente observado era matricular todos os alunos de luma série no mesmo periodo, o que mantinha primeiro periodo ‘6. Relembrando: “Tempo natural” referese a0 tempo em que as pessoas atendem is suas necessidedes normais e que obedece a repetipGes cilicas. “Tem: po tacional” referese a0 tempo imposto as pessous © que se baseia em repe Tigdee lineares, igadas a prinepios racionais. 60 apenas com alunos da 1.* série. Ao perceber a dificuldade de adap- tagdo desses alunos, que pela primeira ver freqiientavam a escola, a diretora tomou a medida de colocar os alunos de 1.* e 2. séries no ‘mesmo periodo, estes ultimos servindo de “modelos” de comporta- mento para os primeiros, Decisdes de organizagdo da escola e dos tempos escolares, como formagio de turmas de alunos, distribuicgéo das séries pelos diversos ‘urmos, designag&io das classes’ pelas professoras, tempo ¢ forma de distribuicdo da metenda e reereio, organizacio de entradas ¢ saidas dos alunos de cada turno, solucdo para faltas de professoras si assu- midas pelos agentes pedag6gicos com algum nivel de autonomia. De- cistes deste tipo tomadas no Ambito da escola Alfa evidenciavam que a organizagdo administrativa é uma instincia na qual a autonomia pode ser exercida com éxito. As possibilidades de exploracio das mais, iversas formas desta organizacéo devem ser experimentadas tendo fem vista a melhoria da qualidade do ensino. A comunidade escolar, professores e pais de alunos precisam ser ouvidos em decisSes deste nivel. Uma deciséo organizacional que necessitava ser profundamente repensada na escola era relativa ao tempo efetivo de aprendizagem dos alunos. Computamos que os alunos das primeiras séries tinham, no maximo, iréy luras/aula por dia, j& que pordiam tempo ma atri- bulada entrada de alunos, na formaggo de filas, nas interrupgoes administrativas, na saida de professores da sala de aula, na rotina de distribuigio de merenda e no tempo de recreio. Quanto a hierarquizacdo, a instituigio escolar possui critétios bem definidos, Além de essa hierarquizacao se dar a0 nivel dos cargos ¢ fungGes, ela também ocorre ao nivel das idéias pedagégicas, algumas se tornando dominantes e assumidas pela maioria dos educadores. [Nessa linha se encontra a suposicao de que o “saber escolar” 6 melhor do que outros saberes (inclusive o saber popular da maioria dos alu- nos € seus pais) e 0 \inico que deve ser considerado na escola, Esta- ‘mos de acordo que o objetivo principal desta é transmitir 0 saber calturalmente organizado, mas acreditamos que a escola s6 poderd levar o aluno a atingir tal saber se considerar adequadamente 0 saber popular, em especial aquele presente no universo cultural dos alunos fe seus pais, Nesta escola este saber nao s6 era tido como “inferior”, como também era desconsiderado pelos educadores, principalmente professoras e coordenadora através de suas préticas. 61 Nao foi menifestade por ninguém a vontade ou necessidade de se conhecer os pais. Esse desconhecimento levava a escola a cometer cerros primérios com a clientela, como humilbé-la, mesmo que de ma- neira inadvertida, Numa reuniso pedagégica, uma professora se pro- pds a informar os pais sobre 0 processo de aprendizagem dos alunos. Procurando explicar a esses pais a exceléncia do novo método de alfabetizagio que desenvolvia, a professora apresentou-thes alguns “cartdes de seqiiéncia”, embaralhados, pedindo-lhes que colocassem tais cartdes em ordem temporal. Nenhum pai conseguiu. A professora relatou que os pais ficaram encabulados, chegando um deles a ma- nifestar que sua filha no resolveria aquela tarefa. Para comprovar © contrério a professora pediu a uma aluna para efetuar 0 exerecio. Esta, obtendo o éxito desejado, deixou aquele pai “apavorado”. Pré- ticeas como a deserita e outras, por exemplo, pedir para pais anal- fabetos assinarem listas de presenga, apresentam-se como desarticuls- doras do processo educativo que ocorre no interior da escola ‘Uma evidéncia de prética contra a hierarquizagio foi encontrada nesta escola a partir da atuagao dos habitantes do bairro. Com a mudanga da escola dos barracées para 0 prédio novo, houve ocupagio daqueles por familias da redondeza. Esta era e ainda é prética usual de familias de baixa rencla para fazerem frente as profundas earéncias de moradia na cidade. Essa classe social rompe com a hicrarquizagio dos critérios “legais” do uso do solo como forma de enfrentar seu problema de moradia ou mesmo de sobrevivéncia. Nao € nossa in- Tengdo aprofundar esta questao, mas era necessirio registrar 0 fato, pois fazia parte da histéria do bairro onde a escola se localizava e, portanto, dos pais das crianeas que freqiientavam essa escola, Certa- ‘mente essas questées geravam conflito tanto para os educadores quanto para os alunos e dificultava sua aproximagio, Finalizamos este capitulo com duas afirmagSes que sintetizam ‘© momento hist6rico de construgao da obra Alfa. Primeira, que, se or um lado 0 controle institucional exercido sobre a escola, assim como medidas tomadas ao nivel da organizacao escolar, empusravam 0 cotidiano para agdes e préticas repetitivas e programadas, por outro, agbes e praticas especificas de educadores e mesmo de pais indicavam. pistas de supera¢io da cotidianidade. Segunda, podemos afirmar que, 1 partir das agbes e praticas de diversos agentes do processo educative desta escola, emergia uma estratégia de conquista dessa cotidianidade, ‘ta foi evidenciada por algumas medidas concretas adotadas, mas 62 principalmente pelo processo de discuss que foi desencadeado pela diretora e professoras, tendo como preocupacio resolver a questio do alto indice de repeténcia nas primeiras séries. Apesar de algumas das idéias apresentadas durante a discussio nio terem sido vitoriosas naquele momento histérico, a existéncia do espaco para debate repre sentou, no processo de sua consirucdo, estratégia promissora na di reco da conquista da cotidianidade. Capitulo V A obra Beta 1. 0 texto social: a escola e sua histéria A escola Beta situa-se no Parque Luanda, na regido de Campo Limpo, a 50 quilémetros do centro da cidade. Em 1980 esta jf era uma area densamente povoada, com 450 mil habitantes, tendo sido a de maior crescimento populacional da capital na década de 70. Do total da populacdo nesse ano, 60 mil habitantes moravam em favelas, distribuidas em duzentos nécleos; um deles localizava-se proximo a escola Beta e dai provinham algumas criancas matriculadas. ‘A escola Beta, criada em dezembro de 1976, da mesma forma que a Alfa, foi instalada precariamente cm salas agrupadas num bar- taco ou salas alugadas, onde funcionou por um ano, O pridio que passou a ocupar foi construido as pressas para atender ao intenso crescimento do bairro ¢, em 1980, estava menos conservado do que a escola Alfa; em contrapartida, 0 bairro apresentava melhor apa- re Diferentemente da escola Alfa, a Beta nfo possufa boa fama na comunidade, Problemas com o primeiro diretor, troca de trés 64 diretores em poucos anos ¢ mé organizacdo nos whimos anos contri- buiram para sua baixa aceitagio entre a populagio. E posstvel que a mé conservaga0 do prédio num bairro onde existiam prédios co- merciais de boa aparéncia reforgasse a rejeigfo da escola pela comu- nidade. Em 1980 0 crescimento do bairro era ainda intenso e nem mesmo a representacéo da escola como “ruim” e “desorganizada” por parte da populacdo fazia com que 0 némero de matriculas diminuisse. Ao contrério, naquele ano foram colocados trinta e sete/quarenta alu- 105 por classe nas primeiras séries, instalado 0 quarto periodo (curso noturno) € mesmo assim a demanda ngo foi totalmente atendida, A Tabela 6 mostra a procura da escola pela populagao, desde sua fun- dagdo, ‘Nao havia. intervalo previsto entre um periodo e outro ¢, na rética, tornava-se impossivel garantir 0 tempo das atividades esco- lares, O movimento de alunos nas trocas de turnos repetia o da escola anterior, com excegio do iltimo perfodo, quando apenas qua- tro salas eram utilizadas. O tempo teal de ensino encontrado nas duas escolas até aqui descritas permite estabelecer a hipStese de que “tempo” é variével substantiva na baixa producio escolar dos alunos nnessas escolas. ‘A abertura do curso noturno na escola. aconteceu por determi ago do delegado de ensino, que receben 0 pedido através de abai xo-assinado, de parte da populacao do bairro. O pedido dos pais foi prontamente atendido pelo fato de a Gnica escola noturna da redondeza ter sido fechada no ano anterior. Contava-se, na escola Beta, que a diretora da escola vizinha, que mantinha o curso noturno, conseguiu o fechamento do mesmo com a alegacdo de que néo havia ituminago piblica, funcionérios etc, Dizia-se, também, que essa di- retora orientou seus alunos do curso noturno ¢ seus pais a encami- harem o abaixo-assinado a0 delegado pedindo a abertura desse curso na escola Beta. Essa hist6ria e a obrigatoriedade de abertura do curso rnotumo da escola Beta provocaram muita reclamacio m vontade do pessoal desta com o referido curso. 65 Tabela 6 66 see de 1977 a 1980 (Escola Bet Numero de Alunot © Ci 1980 9 1978 a Node Node Node slunoy Noge N2 de alunos IN de alunos Node Margo Novembro 55° Margo Novembro SIS Margo Novembro S565 Margo Novembro ‘lasses No" de alunos | on s6 4 oD 661 18 m ano 90a su 469 487 wo 53a 30 39 Ms 23 0 298 325 236 me 6 sy 206 7 as m % 2 66 Pe a6 55 ‘1 ao 2 50 154 1.905 S428 1.948 4 Lest st 36 2.242.136 Total 2. O aluno da escola Qs alunos da escola Beta provinham de familias em que 80% dos pais © 60% das maes trabalhavam, A maioria dos pais era de trabalhadores semiqualificados © a maioria das mies nfo tinha qua- lificagio profissional. Muitas maes nfo trabalhavam por nao terem ‘com quem deixar os filhos pequenos, A. situagdo sécio-econémica das familias, expressa pela renda liar, indicava que 50% delas localizavam-se na faixa de menos de um a trés salérios minimos, podendo ser classificadas como pobres ou muito pobres. fay Fato a ressaltar, com base nos dados da renda dos pais de alunos das oito séries do 1.° grau, era a seletividade intra-escolar. Repetindo o evento encontrado na escola Alfa, x maior concentragdo de eriangas economicamente carentes se dava nas séries iniciais (1.2 © 2.8), Nas mais adiantadas, percebia-se nitida melhoria relativa & situagio sécio-econémica das familias, Considerando-se os indices de reprovacio e repeténcia nas séries iniciais (ver Tabela 7), fica evi- dente que o fracasso escolar atingia prioritariamente os alunos desta- vorecidos economicamente. Em relagdo a escolaridade dos pais dos alunos, cerca de 20% ram analfabetos, revelando, também nesta escola, indice superior aos dados divulgados na época para os adultos do pais como um todo (aproximadamente 16% ). Dentre os pais que sabiam ler ¢ escrever, nnem todos haviam concluido as quatro primeiras séries ¢ um nimero desprezivel tinha chegado a ingressar ou concluir o 1.° grau. © lazer dos alunos da escola provinha da televisio e do radio, s alunos mais novos brincavam no quintal ou na rua, em frente de casa, mas no chegava a 20% 0 mimero de criangas que possuia bbrinquedos ou livros de literatura infantil, Cerea de 40% dos alunos declararam passear 20s domingos, visitando familiares ou indo a jogos de futebol no bairro, Era muitissimo pequena (nem 1%) a quantidade de criangas que j havia ido ao zool6gico, que costumava ir a0 cinema ou a parques ¢ jardin. 67 68 Resumo dos Percentuais de Promosio, Reprtincia e Evislo pot Ano e Série (Fscola Bela) Ev Repeténcia Promogio Série 178 1979~«1980=«977=«NTRSC«CA9T.~=«NBO.SCLT?—=sSTB «19791980 1977 30374737 4826-5230 63.96 «4815 41754068567 448998 7:01 4883 732162556899 47412-22907 7237405389974 GR as 832 10.15 57 16,06 9.90 7210 71,73 799575402618 22,80 38 $913 7794 «8533 8432435—«15,69 579 94065237626 a 24 15,26 11,80 1237 25,19 6289 59,54 16.15 nos x 833 1238 2746 1 39,15 833 93,33 6s 1224 988 142 19,61 6632 7048 0 1557 666 mn an 60.1 709 6A 6797354 3S BAT D0 Toral Delineava-se assim 0 quadro de uma infaincia circunscrita, agra~ vada pela necessidade de trabalhar em casa ou na rua, Quase 90% das criangas ajudavam no servigo doméstico, sendo as mais novas em tarefas leves e as mais velhas fazendo um pouco de tudo, desde lavar roupas até o preparo das refeicées. Fora do trabalho doméstico, cerca de 14% dos alunos possuiam trabalho remunerado, Os trabalhos realizado eram do tipo: pacoteiro ‘em supermercado, embalador em fabrica, balconista, ajudante em ge- ral, ausiliar de costura, aprendiz. de cabeleireira etc. ‘Tendo como referéncia a vida cotidiana particular e de trabalho dos alunos, vejamos como era seu rendimento escolar ¢ sua trajetéria 1a escola. Similar Alfa, a populacdo de alunos da escola Beta mostrava, uma trajet6ria bastante acidentada. Mais de 60% dos alunos do diur- no apresentavam pelo menos uma repeténcia. Os maiores indices de repeténcia estavam nas 1.4 ¢ 2.% séries (70% em 1979, sendo 42% s6 na 1.8), Observa-se pela Tabela 7 que, uma vez ultrapassada 2 barreira da 1.8 série, as repeténcias diminufam significativamente, Apenas 7% dos alunos que cursavam a 8.* série em 1980 cram re- petentes dessa série, muito embora 48% deles tivessem repetido em séries anteriores. Outro fator que demonstra a vida escolar acidentada era a por- centagem de alunos fora da idade ideal de cada série. Este fato era mais pronunciado nas 1.s 2.8s séries, pois, ao mesmo tempo que 60% das criancas tinham de dez a quatorze anos, mais da metade delas estavam nas 1.ts © 2.8 séries. ‘A caracterizago s6cio-econdmico-cultural dos alunos © suas fa~ milias delincava uma situaglo desfavorével a um bom rendimento, segundo os padr6es tradicionalmente esperados a escola, compro- vvado pelos resultados de rendimento escolar. Esta situaco, semelhante & maior parte das escolas piblicas de periferia em 1980, permanece ‘ainda hoje, caracterizando-se como fendmeno especifico da realidade educacional brasileira contemporinea. Sendo esta situagio um dado de realidade dos alunos, ela ndo pode figurar como causa do mau rendimento escolar dos mesmos, conforme veremos nas representagBes das professoras na terceira parte deste estudo. © 3. A situagio © @ momento institucional da obra 3.1, A situacao da obra Os recursos da escola Beta apresentavam-se em situagio. mais precéria do que os da Alfa: eram escassos tanto em relacéo 2 infra-es- trutura fisica, quanto & administrativa, de apoio téenico © de ass {éncia a0 escolar ‘Quanto aos recursos fisicos, além de o prédio estar pior co servado, nao havia biblioteca, laborat6rios ou consultério dentatio, nem mesmo salas de aula em nimero suficiente para atender & de- manda, Quanto aos recursos materiais, havia apenas um mime6grafo para uso das professoras, sendo que s6 a 1.* série, a que mais 0 utilizava, contava com vinte docentes. Até atrasos na entrada em sala de aula eram provocados pela necessidade do uso do mime6grato. ‘Nas salas de aula, quando existiam armérios, estavam quebrados ov no tinham fechadura. Ainda faltavam recursos didéticos: cartazes, mapas ete, Os recursos humanos cram a grande earéneia da cacola, tanto na 4rea administrativa quanto na de apoio técnico (alimentacdo, limpeza seguranca). No inicio de 1980 havia um funciondrio de secretaria, um casal de serventes (caseiros) e um guarda (pago pela APM), cujo trabalho no cobria as necessidades da escola. Nao havia merendeira, nem inspetor de alunos. A decisio de se utilizar o dinheiro da APM para pagar um guarda baseou-se na frequiéncia de brigas de alunos e de outros elementos na frente da escola, desde anos anteriores. Com 2 instalagao do curso noturno, a expectativa era de que os problemas cde seguranga iriam aumentar. Os recursos humanos na érea administrativa eram parcos, Além de um secretétio ser insuficiente para o yolume de trabalho, o cle- mento, em 1980, apresentou problemas de saiide, estando constante- mente em licenga médica, Nao tendo sido substitufdo, a assistente de diregéo, a coordenadora pedagégica ¢ algumas professoras. passaram 4 auxiliar nesse trabalho. A assistente e a coordenadora, por acréscimo de trabalho, realizaram, em vérios periodos do semestre, jornadas de trabalho exaustivas, das 7:00 as 19:00 e até das 7:00 as 23:00 horas. 70 Os recursos na érea pedagégica eram menos precérios: sessenta © oito professoras, uma assistente de direcdo e uma coordenadora pe- dagsgica, A histéria da diregio era bastante acidentada. A segunda diretora tinha sido removida e a terceira s6 foi designada em marco de 1980, tendo sido essa funedo preenchida até entdo pela assistente. A nova diretora, a0 tomar contato com a realidade da escola, chorou, prov cando uma imagem de pessoa insegura © incompetente que ainda per- durava em agosto. Além disso, a situacdo da escola, dificil desde 0s afastamentos do secretério, agravou-se ainda mais quando, em fins de marco, a assistente de direcio, que se mantinha 14 desde a época do primeiro diretor, sofreu um acidente de carro e entrou em licenca, ‘A coordenadora pedagégica, a pessoa mais eficiente da escola, era ativa, enérgica e diretiva, mas, ao mesmo tempo, cordial com as professoras e demais pessoas, Nas reunides, orientava as professoras de forma pritica ¢ ndo admitia irresponsabilidades. Antes de assumi a atual fungo, lecionou competentemente cm diferentes séries. Além de cuidar do seu trabalho, colaborava muito na parte administrativa, A [alla de orientadora educacional, médico © dentista numa es cola como esta atestava a faléncia das pretensbes do sistema em prover ‘as escolas mais necessitadas com especialistas © servigos assistenciais, ‘aos alunos, conforme propunha o “modelo pedagégico’ Quanto as professoras, das sessenta e ito docentes, cinco eram cfetivas, cinco estagiérias © cingllenta e oito admitidas em cardter temporario. Quanto a sua escolaridade, das vinte e duas professoras de 5.4 a 82 série, deroito possuiam licenciatura plena e quatro licen ciatura curta. Todas as professoras que lecionavam nas quatro primei- ras séries tinham apenas 0 2.° grau quando jé era tendéncia, nas escolas melhor situadas da capital, que a maior parte das professoras tivesse nivel universitirio. Esses dois fatores conjugados (maioria de professoras nio-con- cursadas e sem formagio universitéria) apontam para a seguinte con- clusio: as menos preparadas eram as que lecionavam nas escolas ‘mais carentes, onde estavam os grandes desafios do ensino. Esta cons- tatagio era ainda agravada pelo fato de que, ndo sendo efetivas, elas ‘estavam sujeitas a perderem seu lugar a cada nova escolha de classes n pelas concursadas, Foi o que aconteceu no final do primeiro semestre, acarretando uma ruptura no processo de ensino, 0 que deve ter int ferido no rendimento do aluno. A nJo-efetivacdo das professoras fa Jitava mudangas por conveniéncia, aumentando a sua rotatividade. Naquele ano, houve classe que trocou cinco vezes de professora 3.2. O momento instinucional da obra No que se refere ao momento institucional, esta escola, da mes- ‘ma forma que a Alfa, sofreu dois momentos de ruptura com mudan- as de professoras; em marco, quando varias delas que j& haviam assumido classes em dupla jornada consecutiva tiverami que deixar ‘uma e, em agosto, por causa da remocdo que alterou significativamen- te 0 quadro de docsntes, afetando o ritmo do trabalho escolar. No final de agosto, a nova diretora estava comegando a se en- trosar melhor com o trabalho administrativo © a coordenadora péde se concentrar na sua rea. A esta altura do ano, ela jé estava esgotada pretendia deixar em ordem seu trabalho para pedir licenca ou remo- vver-se da escola. Por isso, ela teria que atender, como atendeu, as novas professoras, procurando conhecer suas dificuldades, socorré-las «, segundo suas palavras, “pegar no pé” de uma ou outta. Outra dificuldade na troca de professoras relacionou-se a0 pro- cesso de alfabetizacdo dos alunos. A maioria que assumiu a 1.* série ‘no conhecia 0 método adotado na escola.* A coordenadora teve que comecar toda a orientaco outra ver. As professoras estavam apavo- radas, inseguras, temendo a avatiacdo e indignadas porque observaram que as criancas estavam muito atrasadas no processo de aprendizagem. Foi preciso, mais uma vez, dispensar os alunos duas horas mais cedo, durante uma semana, para que as professoras lessem e manipulassem © material. Com isso, a ansiedade diminuiu um pouco, mas 0 medo © a perplexidade ainda eram grandes, pairando no ar a davida sobre © desenvolvimento da 2.* série no ano seguinte, Depois desse trabalho com as professoras, a coordenadora.afir- mou que, felizmente, as novas eram melhores do que as anteriores. Afinal, haviam passedo no concurso piblico ¢ a maioria possuia oito, der, anos de experigncia, Esses dados sugerem a seguinte relagio: se 1, Programa Alfs, mencionado no capitulo anterior, experigncia e formagio so condig6es para se tornar boa professora © se 08 alunos da periferia so alunos mais desafiadores ao ensino, entdo a medida institucional necesséria seria recompensar as melho- res para que se animassem a escolher ¢ permanecer nas escolas da periferia. 4, © ritmo © a organizag#o do trabalho escolar: combate entre cofidianidade ¢ sua superacio J& afirmamos que a organizacio do trabalho na escola se faz segundo o ritmo racional de divisdo do tempo. Em fungio da divisio mais basica do tempo escolar — 0 ano letivo —, toda a organizacao 6 decidida e dividida em tempos repetitivos. As condigées de trabalho adversas, comprometedoras de um ensino de boa qualidade, constitu‘am pano de fundo para a dinamica das ages e relagSes sociais que aconteciam no cotidiano da escola, Essas ages e relagdes socisis apresentavam uma dinémica tal que fora reproduziam ou reafirmavam aquelas condigées adversas, ora produziam movimentos que rompiam ou indicavam tendéncia a rom- per e modificar aquelas condigSes. No contexto da dindmica que reproduzia condigSes adversas, impedindo a transformacdo do cotidiano e arrastando-o para a coti- ianidade, identificamos algumas ages: a perplexidade da diretora (manifestada através de choro) ao tomar consciéncia de como era aquela escola e o grande niimero de faltas © de Ticencas médicas das professoras. Tais reacécs ¢ préticas indicavam inabilidade ou recusa esses. profissionais em enfrentar a realidade escolar. Esses fatos reforcam nossa crenga na intima rela¢do existente entre natureza da excolarizagio ¢ natureza humana (socialmente construida). Emotivi dade diante da sensagio de impoténcia para enfrentar um problema ou resisténcia em enfrenté-lo; utilizagdo de todos os meios legais dis- poniveis para retardar ou mesmo evitar a assuncdo dos problemas profissionais so reagées tipicas da natureza humana, das quais as ‘questdes educacionais néo esti isentas. Ao contrério, elas tém que ser explicitadas ¢ levadas em consideracéo nas tomadas de decisio institucional e mesmo-na formagio desses profissionais. B As ages e priticas indicativas da reproducio das condigies de trabalho adversas, entretanto, no aconteciam sem contlito no movi- mento de construgao da obra Beta. Outras pritieas e processos presentes na dindmica cotidiana con: tradiziam a tendéncia a cotidianidade. Pistas neste sentido pudemos identificar principalmente pela atuagao da coordenadora pedagégica. Sua vinda para a escola foi fruto de uma deciséo institucional pro- vendo as escolas carentes com um elemento técnico (eis uma decisio institucional com repercussdo positiva na escola). Sua presenca nesta escola foi providencial, pois féncia ou auséncia ou mesmo in- competéncia do diretor deixaria a escola totalmente acéfala. Comparando mais uma vez as obras Alfa e Beta, verificamos que tanto em uma como na outra era através da mediagdo de uma pessoa (a diretora, na Alfa, ¢ a coordenadora, na Beta) que a escola se langava contra a cotidianidade, methorando a qualidade do ensino. Essas pessoas, juntamente com algumas professoras, criavam movi mentos contra a fragmentagdo, homogeneizacio e hierarquizagio do trabalho escolar, ‘Assim & que na escola Beta a fragmentac&o do processo de pla- nejamento escolar e de ensino for enfrentada com algumas praticas positivas, oportunizadas pela coordenadora: apresentar e discutir obje~ tivos gerais para a escola e atender as dificuldades docentes das pro- fessoras. Da mesma forma, resistindo contra os aspectos negativos da ho- ‘mogeneizacio do trabalho escolar, a coordenadora e 0 grupo de pro- fessoras optaram por critérios de avaliacao escolar nas primeiras séties mais coerentes com o ritmo de aprendizagem da maioria dos alunos. Esta opgdo representou a vitéria do “vivido” sobre 0 “concebido”. Outra pratica contra a homogeneizacio foi representada pela adapta- ‘glo que as professoras faziam da prova “comum", formulada para todos 0s alunos da mesma série, independente do ritmo das classes. ‘A uta contra a hierarquizagdo do cotidiano escolar apresentou pareos sinais de superacio. Pelo contrério, ela foi reafirmada de varias, formas, Uma delas foi a pouca participacao das professoras. ao lado ‘As causas atribufdas pelos agentes escolares diminuigio de matriculas eram: saida dos alunos de melhor poder aquisitivo para escolas particulares, mudanca de muitas familias para um conjunto residencial da Cohab em bairro mais distante, abertura de mais uma escola de 1.9 © 2.9 graus na regigo e implantagdo do Projeto de Distribuigiio da Rede Fisica, fruto da Reforma do Ensino, que esta- belecia a matricula de alunos apenas em seus setores de domici Discutiremos esta situacéo no capitulo VIII, ao confrontarmos as condigdes das quatro escolas, 1. A tendéncia de diminnigio das matricolas continuou nos anos poste riores } nossa investigacéo. Em 1983, a escola pastou a funcionar em dois periodos, nn 5 3 i k 3 : 2 3 : i Z 1964 1965 1966 1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979 LK ‘Série/Ane ‘Total de classes Total de alunos 608 1.105 1.287 1.177 1.163 1.194 1.400 1.442 1.848 1425 1467 1.398 1.241 1.205 1.183 1.015 34 iodo uno ‘Total de alunos oes 172 1.130 1.076 885 1.019 1.223 1.112 1.074 1.114 1.541 1.559 1.748 1.571 1390 1.201 faueterminaram S18 2. O aluno da escola Dos allunos da escola Gama, 82% nasceram na cidade de Sio Paulo, 12% em outros estados e 6% em outros municipios deste estado. ‘Quanto escolaridade dos pais, a grande maioria possuia 1.° grau completo, 3% 0 grau superior © aproximadamente 5% cram analfabetos. A. situagdo s6cio-econémica das familias, expresia pela renda familar, mostrava que 73% delas situavam-se na faixa de um a trés salérios minimos mensais, sendo poueas as que percebiam menos do que um salério. Apenas numa classe de 1.* série, cujos alunos nfo tinham feito o pré-primério, 75,8% dos pais recebiam até um salé- rio minimo ¢ meio, ‘A faixa salarial dos pais aumentava segundo as séries: era mais alta nas séries mais adiantadas,registrando o fenomeno da seletividade intra-escolar também nesta escola. Quanto ao trabalho do menor, 10% dos alunos da escola traba- Thavam para ajudar a familia. Interessante notar que esta escola, considerada ha muitos anos pelos agentes escolares como tipica de classe média, apresentou, no levantamento que realizamos, significativa diferenca no perfil ‘econémico da clientela, Esta mudanca parece nao ter sido notada no cotidiano, pois, quando foi mostrado o resultado desse levantamento A direcio, houve reagao de espanto. ‘Alguns indicadores de mudanca do perfil da clientele vinham se explicitando havia algum tempo. Por exemplo: as familias melhor situadas economicamente © as. préprias professoras estavam transfe- rindo seus filhos para escolas particulares; aumentava o indice de reprovagio, principalmente nas primeiras séries, e crescia o nimero de matriculas de alunos na 1.% série que nfo haviam freqtientado a pré-escola Fator que talvez estivesse influindo na nio-pereepgio dos ele- mentos da escola sobre a real condigio econdmica das familias dos ‘alunos era a aparéncia dos mesmos. Seu aspecto era agradavel, mes- 9 ‘Tebela 9 ‘Ano e Série — 1973-1979 (Escola Gama) iio por vas worfo Retumo das Porcentagens de Prom: Bvasio 787980 MEd 7 “15 a % 7 79 80 Meal us a Pa ® & e 20 187 142 91 94 ma 10 150 800 760 850 77.2 661 640 640 73,41 50.187 60. 1s a4 41 1s 19 ie en ssn pen a ale tu mo ess to. 2a 20 5,61 30 20 4458 142 20 8s 100,0 942 97,0 87,0 87,0 91,65 940 93.0 810 30 103,87 68 67 71 38 36 10 19 950 953 940 880 880 92,78 950 940 93.0 4a 40.765 50 78 40°77 A 45 106 93,0 865 780 $7.0 $70 7588 161 76 750 830 ra 493 68 39 46 35 83,2 82,0 20 97,0 852 860 530 53,0 1767 10, fe 50 50 66 Rs 67 46 16 93. 47 62 762 730 810 920 41 830 730 730 79.41 a 20 37 20 19 49 64 46 87,0 87,0 920 990 88,2 760 780 780 85,65 ne 1075 753 646 S42 287 25 726 12,76 9,86 ‘Total 84,75 84,12 83,87 94,75 86,84 82,62 72,50 72,59 82.74 [No efleulo da promosio no se consideraram os alunot evadidos durante © ano Ietivo. mo nos alunos da 1.8 série. A maioria trazia uniforme limpo, ténis @ melas em ordem, Além disso, muitos dispensavam @ merenda e tra- ziam fanche de casa para nao darem a impressdo de “pobres”. A fim de mudar tal conceito, o diretor fez campanha de valorizacio da ‘merenda, servindo-se cle proprio da mesma, junto com os alunos. A mudanga no perfil sécio-econdmico da clientela desta escola era acompanhada do fenémeno, jé registrado, de diminuigao das ma- triculas de criangas das camadas médias nas escolas piiblieas em S40 Paulo nos tltimos anos da década de 70. Discutiremos, a seguir, como a mudanga no perfil sécio-econd- mico da clientela teria influido no rendimento e na trajet6ria escolar dos alunos. © rendimento dos alunos pode ser melhor observado a partir da anélise da porcentagem de promogdo desde 1973, ano de maior procura da escola, quando esta ainda era freqiientada, em grande Proporsio, por alunos provenientes das camadas médias, mas ja re- cebia alunos das camadas populares, que foram gradativamente au- mentando no cetne do processo chamado de “democratizagio quan. titativa do ensino”, Observamos pela Tabela 9 que, em alguns anos, howe maior heterogencidade do que em outros com relagio & porcentagem de aprovacdo nas diversas séries, Os anos de 1975, 1976 ¢ 1977 foram os que alcancaram maior homogeneidade, com melhores resullados nas diferentes séries. A partir de 1978 nota-se uma queda significativa da promogio, inicialmente na 1.* série (1978) e depois na 1.4, 5.4 € 6. series (1979 e 1980), Uma explicagto para esta queda é 0 fato de que a partir de 1979 se acentuou 0 que vinha acontecendo de forma progressiva nos anos anteriores: a transferéncia dos alunos de familias com melhor poder aquistivo para escolas particulares. Se alunos que apresentavam melhores resultados escolares — os filhos de pais pertencentes As camadas médias — saiam da escola ¢ a escola ndo tepensava seus padrées de avaliagio e seu ensino, era de se es- perar que as taxas de aprovagao caissem, A nica série na qual no houve queda do nivel de aprovacio de 1978 para 1979 foi a 82, E ligico supor que nesta série tenha havido menor nimero de trans. teréneia por ser a wilima do 1° grav, 81 [A freqiiéncia das eriangas a pré-escola pode ser considerada um dos motives de o indice de aprovacao nas primeiras séries ter se conservado relativamente alto por Iongos anos. Da mesma forma, a {queda das aprovagBes nas primeiras séries a partir de 1978 pode ser explicada pelo aumento de criancas que se matriculavam sem terem cursado a_pré-escola, E signifiativo que nos anos de 1978, 1979 ¢ 1980 a abertura de classes de 1.* série para alunos que nfo tinham freqiientado a pré-escola coincidisse com a queda do indice de pro- mogio nessa série. smbém era seletiva. Um dos motivos desta selegéo era que ela solicitava aos pais material escolar de custo elevado € isto afugentava aqueles de menor poder aquisitivo. Esses fatos relativos & escola Gama revelam um lado pe a escola piblica para com os alunos mais pobres. Ao nio possi 1 freqiigncia desses alunos & pré-escola, a escola reproduz ¢ amplia, na sua singularidade, os dispositivos pelos quais a sociedade inviebili- 74.0 avesso dos alunos das classes populares ao saber escolar. A des- vantagem social desses slunos, produzida no scio das relagées sociais gerais, a escola acrescenta uma desvantagem gerada no sou proprio contexto, Este processo mostra uma contradigio entre interesses ex- pressos e realizagio efetiva na construgdo de uma obra © necessita Ue confronto com outros pracessos pare que possamos idemtficar em {quo medida a obra resiste & mera reproducio das desigualdades sociais f abre caminho a processos diferenciados e socialmente justos. A hi tbria dessa escola e muitas agdes de seus agentes sugeriam pista neste sentido. O aparecimento de processos diferenciadores comega, em grande parte, com @ revelagio, numa situagdo concrete, da inexisténcia Ue igualdade de oportunidades na escola a todas as criangas, depen- ddendo da classe social a que pertengam. No cotidiano desta escola, ‘mesmo sem que seus agentes o notassem, eles praticavam a discrimi- hnagdo social das criangas pobres. Este fato, trazido 4 consciéncia desses agentes e mesmo dos pais, representa o primeiro passo para sua ultrapassagem. O quanto os agentes escolares locais estavam cientes disso veremos nos capftulos IX e X deste estudo. 3. A situagio e © momento institucional da obra 3.1. A sitwagdo da obra Quanto aos recursos fisicos, vimos que a escola contava com ‘um nimero suficiente de salas para atender & demanda, Tal disponi- 82 bilidade nao cobria, entretanto, as necessidades de Educagio Fisica A quadra cimentada ¢ 0 patio coberto eram insuficientes para 0 ni- mero de turmas, tendo sido o problema solucionado altemando-se 0 local para as aulas das diferentes séries: uma vez no patio e outra vyex na sala, As aulas de Educacio Fisica de 1.4 a 4.* série eram mi- nistradas pelas préprias professoras das classes, que consideravam as aulas como “tapa-buracos”, pois néo se sentiam competentes para esse encargo. A falta de docentes habilitados em Edueagio Fisica para as séries iniciais do 1.° grau era uma deficiéneia nao desta escola ‘mas da rede de ensino como um todo. Anda quanto 20s recursos fisicos, esta escola contava com: gabinete dentirio, biblioteca ¢ laboratério de cigncias (montado pela APM). O Estado nao fornecia o material dentério em quantidade suficiente e a sugestio da dentista foi de que os alunos economica- ‘mente nao-carentes da escola pagassem uma taxa que permitisse com- prar mais material. Quanto & biblioteca, jé estava instalada no inicio de 1980, faltando, contudo, as cadeiras que foram enviadss na me- tade do ano; porém, ainda ndo havia sido designada uma bibliotecéria, Os préprios professores levavam os alunos para a biblioteca e perma neciam com eles enquanto pesquisavam, Quanto aos recursos materiais, a escola tinha © sufisente para atender is necessidades do trabalho docente. Havia trés projetores de slides, um projetor de filme, um gravador, um mimedgrafo elétrico © um a alcool, Materiais da escola que iam se quebrando out desgas- tando com o tempo, como vidros, cortinas, limpadas, eram reposios com os recursos da APM, Desde os primeiros anos de existéacia da escola a APM vinha atuando de forma decisiva na sustentacdo ou sofisticacio da infra-es- trutura escolar. Alguns pais pertenciam 4 APM hé mais de doze anos, comparecendo as reunides regulares ¢ trabalhando ativamente nas promogées que objetivavam arrecadar dinheiro: festas, bazar, venda de material escolar etc. Segundo o diretor, sem o trabalho da APM @ escola “'nflo se sustentaria”. _ Quanto aos recursos humanos, existia caréneia na érea adminis- trativa, mas sobretudo na educacional, como professoras estagiérias e téenicos (orientador ¢ coordenador pedagégico). Sem estagiérias de 1.4 a 4. série os alunos, na falta de suas professoras, eram distribu dos pelas outras classes, prejudicando 0 trabalho destas. Na. érea 83 educacional, a escola contava com os seguintes recursos humanos: um. Giretor, uma assistente de direcdo e trinta e cinco professoras. © diretor estava nessa escola hé um ano. Encontrou-a jé estru turada, pois tanto a diretora, que petmaneceu por quase dez anos, quanto a assistente, que respondeu pelo cargo nos Glkimos cinco anos, trabalharam com empenho © envolvimento. © airetor formou-se no curso de Histra, em 1967, pessou na concuno pata dirtor em 1871 © Ke 0 quarto ano pormal em 1972 sate omblementar o curcuto pedagipico. Desde 1973 tabalhava Sioa sdo ea saa su seu expen os fast Duragio das aulas — Nivel 1 sng) th th th 1 amo 4h th SH Imtervalo entre um perodo € outro eas th Recuperagio continua = Set Outra discriminagao das escolas que atendiam as criancas da classe trabalhadora era o tempo real do trabalho pedagbgico. A Ta- bela 14 mostra discrepincia no tempo difrio de trabalho entre as vtias escolas. Considerando-se apenas 0 nivel I, observase que, entre as escolas de periferia, uma ndo completava quatro horas/aula (Alfa) © a outta (Beta), apesar de considerar as quatro horas, nao as cumpria na prética, pois 0 hordrio nfo considerava o tempo de saida dos alunos do turno anterior. Na escola Beta, 0 nimero de criancas transitando entre os perfodos era téo grande que quinze mi- 106 nutos eram insuficientes. A escola Alfa, que descontava quinze mi- nutos, estava apenas assumindo a realidade, Entre as escolas que fatendiam as camadas médias, numa, o problema de perda de tempo no existia, pois funcionava’ apenas em dois turnos, sobrando uma hora de intervalo entre o fim de um ¢ o inicio do outro; noutra, 0 problema também existia, mas minorado, pois eram computados cinco minutos de intervalo (0 méimero de criancas transitando era equeno). Considerando-se 0 nivel Il, a Tabela 14 mostra que também havia diferenca nos tempos de trabalho em cada escola. Gama (de alunos das camadas médias) e Beta (de alunos da classe trabalha- dora) cumpriam quatro horas/aula. Entretanto, nesta ltima, repe- tindo o jé encontrado no nivel I, nfo havia intervalo na troca de petiodos, 0 que diminuia, na prética, o tempo de trabalho. Nas outras Guas escolas 0 tempo de trabalho era maior: quatro horas ¢ vinte minutos na Alfa (frequentada por alunos da classe trabalhadora) & cinco horas e vinte minutos na Delta (de alunos das camadas mé- dias). Estes dados mostram diserepincia significativa entre o tempo destinado as aulas nas escolas Delta e Beta, Essa diferenca toma-se ainda maior se considerarmos que, na escola Delta, eram providen- ciadas aulas extras para az classes com baixo aproveitamento. sta era uma situacdo privilegiada dentro do sistema pablico estadual, de- sejvel de ser estendida a todas as escolas, especialmente as que con- tavam com alunos mais necessitados. Entretanto, 0 quadro que se delineava era 0 contrério: menos tempo de trabalho nas escolas com alunos sem pré-escola, que j traziam desvantagens culturais e s6cio- econémicas Resta zinda lembrar que, a0 longo de 1980, foi subtraido tempo do trabalho pedagégico dos alunos por determinacao tanto das pro- prias escolas quanto da instituigdo. As escolas de periferia realizavam reunides pedagégicas quinzenalmente com ag professoras de 1.* série, sendo os alunos dispensados duas horas antes nesses dias. No que diz respeito & organizacéo institucional, dois eventos concorreram para subtrair 0 tempo de aprendizagem dos alunos. Primeiro, foi a requisigéo das professoras de 1.* série das escolas Alfa e Beta para ‘treinamento com 0 novo programa de alfabetizacao no horatio de aulas. Segundo, foi a temocdo, em marco ¢ agosto, quando algumas classes ficaram sem professora durante varios dias. Como as remogdes 107 atingiram principalmente as escolas que tinham maior ntimero de pro- fessoras substitutas, foram as escolas de periferia as que mais sofreram com isso. ‘Tempo de trabalho escolar com os alunos, assim como condigées bisicas de infra-estrutura, so varidveis fundamentais na obtencdo de determinada qualidade de ensino. A conformagio dessas varidveis em cada escola possibilitou a realizado de uma determinada prética ins- titucional e 0 oferecimento de uma qualidade especifica de ensino para os alunos. Veremos, a seguir, as especificidades do ensino que conseguimos identificar em cada escola, comparativamente, ©) As historias na definicao da qualidade do ensino Os dados descrtivos da histéria de cada escola — condigies coneretas de trabalho € organizagao do tempo escolar, quer a nivel da instituigdo, quer a nivel da prépria escola — evidenciam diferengas significativas com conseailéncias previsiveis sobre a qualidade do en- sino © possibilidades de aprendizagem dos alunos. Vejamos concre- tamente como essas diferencas se manifestaram na produtividade es- colar, seja quantitativa, seja qualitativamente nas quatro escolas Dados quantitativos podem ser mais facilmente identificados a partir da comparagdo entre os indices de promogio ¢ retengio de alunos mostrados nas Tabelas 15 e 16. A anilise dos dados das tabelas & luz das condigSes concretas de trabalho em cada escola & de primordial importincta, A partir desta comparagio pode-se estabelecer a profunda disparidade de escolariza- ‘Ho oferecida aos alunos das diversas escolas. As condig6es concretas dde infra-estrutura e tempo de ensino existentes nas escolas Alfa e Beta, construfdas nos anos 70 na periferia de Sao Paulo, comparadas as condigGes nas escolas Gama e Delta, construfdas nos anos 60 em zonas mais centrais da cidade, evidenciam diferengas to acentuadas que, independentemente do nivel sécio-econémico dos alunos matri- culados, qualquer crianca estaria em desvantagem ao freqlentar as dduas primeiras. Entretanto, como eram as criangas menos_privile- giadas economicamente que freqilentavam as escolas com piores con- digfes de funcionamento, podemos afirmar que para as pobres foi oferecida uma escola pobre: 108 Tabela 15 Resumo Comparative das Poreentagens de Promasio de Alunos, por Ano e Série nas Quatro Escolas Pesquisadas 1980 1977 Gama Del i Aa Beta Beta Gama Delta Alfe Bets Game Dé Alfa Gama Delta Alfa Beta sé 85 482. 640 4 30372 403 aa 6899 85,50, 9721 800 950 627 025 62 a 488 860 977 68 60 938 60,0 799 870 99.2 712 75.40 91,65 87,50 970 7a. 852 891 953 912 24 779 940 936 B12 BFA BBO 934 722 8432 92,78 78,16 59,54 75.88 8299 6 565 828 $70 645 659 70 26 sa ss 767 7473 9 G&S 69 530 B48 572 860 a 661 6632 7941 7445 a 60 84 74 730 7 20 841 TAT 8565. 81.73 t00 160 934 882 ee 83,65. 67.06 6797 82.74 8387 ns 684 563 eB 79 529 86.84 87,63 «0 6765 Total Tabela 16 [Escolns Pesauisadas So 2 & < a 2 2 : : 1978, 1977 & Gama Beta eta Goma Delta Alfa ets Gama Delta Alfa Beta Gama Della Alfa Alfa Série 1.96 49,68 25,59 1180 35,0 4395 340 823 562 48 BT 584 513 4164 63,96 2290 16 555 367 2771 140 50 326 2337 93 526 ans wn 1606 635 54 195 9.90 444 400 2,80 1242 270 30584 26,18 38 622 940 657 234 9 579 685 435 10 849 164 15,69 a 143 1615 1538 420 869 sa 2746 233 21,05 Dar 1239 270 15,7 2413 364 9 833 585 6a 2142 15,59 2043 27.64 306 1967 220 2820 20 244 ma a8 5.656 1235 6,66 132 ana 209 4 656 a 2128 1476 11.83, 1546 255 may 24,63 1196 1490 436 67 244 3540671159 ane Total ‘A anélise dos dados nos permite ir mais Jonge. Nao somente as escolas pobres da periferia ofereciam a crianga condigées de ensino de pior qualidade; também as escolas mais antigas, cujas condigdes fariam prever ensina de melhor qualidade para a maioria dos alunos, ofereciam as criancas pobres que as freqtientavam ensino de pior qualidade. A andlise da escola Gama, por exemplo, mostrou que eram as criangas pobres as que no iam A pré-escola. Por este motivo, 0 trabalho pedagégico inicial dessas criancas j4 comecava diferenciado, Outra questio cra a de como os agentes escolares fidavam com esta desvaniagem. Isto remete & prética pedagépica desses agentes no co- tidiano escolar € nfo somente as condigdes objetivas da escola, Reto- maremos algumas questdes concretas da pritica pedagégica cotidiana desenvolvida nas quatro escolas, identificando aspectos reforcadores ‘ou diferenciadores da “programagao” escolar para as diferentes clas- ses sociais a que pertencem as criancas da escola piblica 2. Priticas do cotidiano: critério definidor do movimento de construgio da escola pibliea ‘Coma todas as insttuig6es do Estado, a escola é estruturada de forma burocritics, orientando a prética cotidiana para agies form: lizadas e repetitivas que procuram: homogencizar aquilo que & mut vel e diferente, fragmentar aguilo que € continuo ou obedece a um ritmo natural ¢ hierarquizar aquilo que deve convergir para um fim determinado. As préticas cotidianas dos diversos agentes petiag6gicos, contudo, ora cumprem e reforcam 2 orientacdo burocritica, ora se contrapOem 1a ela, Nosso estudo teve 0 objetivo de captar as contradigdes e 0 “mo- viento” da ordem social presente através da identificagio de préticas que submetiam 0 cotidiano programagio institucional (seja de or dem homogeneizadora, fragmentadora ou hierarquizadora) © préticas quo resistiam a tal submissdo. As préticas identificadas ¢ registradas nos capitulos dedicados a cada escola serio agora consideradas em seu conjunto, de forma resumida, possibilitando estabelecer compara- ‘ges entre as praticas dos diferentes agentes pedag6gicos no contexto da historia e das condigGes de trabalho das respectivas escolas, No que se refere & tendéncia homogeneizadora do proceso edu- ative observamos contradigdes relacionadas as priticas de avaliagio e critérios de promogio de alunos. M1 A primeira contradigdo foi constatada pela inadequagio entre critério de avaliagao © organizagio das classes. Enquanto a or ‘G40 das classes se dava segundo critério de semelhanca — cada classe com alunos em nivel semelhante de aprendizagem —, a avaliagdo dos alunos se fazia através de provas unificadas para toda a escola, Igualmente contraditérios eram os critérios de promogdo na. 1. série: similares nas duas escolas que mantinham pré-escola (Delta e Gama), assim como numa das escolas de periferia que néo a man- inha (Alla). Entretanto, a outra escola de periferia (Beta), sem pré-escola, adotou eritério diferente daquele utilizado no conjunto da rede para promocao dos alunos na 1. série. Enquanto a escola Alfa adotava 0 critério oficial de promover alunos para a 2. série com 0 dominio das silabas simples e compostas, a escola Beta aprovava alu- ‘nos apenas com o dominio das silabas simples. A ndo-obseryagao da orientacio oficial na escola Beta ou sua “desobediéncia” ou resisténcia representou, na pritica, 0 respelto pelo ritmo de aprendizagem dos alunos (que ndo tinham passado pela pré- escola e provinham, em sua maioria, de um meio nao-letrado). Re- presentou, sobretudo, considerar a escola do ponte de vista do aluno © no do sistema, Em termos hist6ricos, essa decisio antecipou uma norma que itia ser institulda oficialmente em 1984, estabelecendo pe- riodo mais elistico para o processo de alfabetizacao através do cha- mado “ciclo basico”? A insttucionalizagio, em 1984, de uma medida gue quatro anos antes ja existia na prética cotidiana de uma (ou mais) escola reforca uma das proposigSes tedricas orientadoras deste estudo, isto 6, que as 1. Quanto 2 decisio oficial de aprovasio de alunos das primeicas séres, em 1984, pelo menos dois eventos devem ser analisados. Primeiro. a. adminis. traglo estadual que assomsia em 1982 tinha um cardter bastante diferente do das anteriores, O governo democratico eleito apse vinte anor de repime mililar autoritéio tinha como proporta a democratizagda da escola pabliea e do saber ‘escolar. Segundo, estudos na Area da psicologia mostravam a dinamicidade ea extensio do processo de alfaetizasio, fornecendo sustentaeio cieatifiea” 20s educadores que vinham defendendo a necessidade de “tempos” mais. lésticos para as eriangas se alfabetizarem. Esses dois eventos possivelmente Faciitaram 0 proveitamento das experincias cotdianas das escolas que jé adotavam repras prdpriae de tornar menos fragmentado o processo eductiva. A propdsito, um pouco antes, no Ensing Municipal de Sio Paulo, foi institua, com o3 mesmos jbjetivos, 2 proposta denominada “desdobramento do processo Ue alfabetizagi0" 112 e nfo 0 contrério. O entendimento de que as decisdes se orientam ape- nas “de cima para baixo” — presente nas representagbes das pro- fessoras, como veremos na terceira parte deste estudo — revela um ponto de vista estitico de avaliagio dos acontecimentos escolares. So- mente a andlise histérica capia a relacéo dialética ou “via de dupla mo" na determinacio das medidas institucionais em relagao as quais as prétieas do cotidiano representam a orientacdo fundamental, Além da “desobediéncia” referente a0 critério de promogio de alunos na 1.* séric pudemos identificar outras “desobediéncias” ou préticas “atipicas” no cotidiano das escolas, evidenciando resistencia a fragmentagdo e hierarquizagio do trabalho educativo. Uma dessas priticas foi manifestada pela diretora da escola Delta quando, que- brando a hierarquizacio das fungGes no interior da escola, ministrou aulas de recuperagio aos alunos. Outra, similar & anterior, foi desen- volvida pela diretora da escola Alfa, orientando o trabalho de ensino das professoras. Consideramos 0 envolvimento dos dirctores com 0 ensino como resisténcia hierarquizacdo e fragmentaclo porque as determinagbes institucionais de sua funeio nessa época, como ainda hoje, os afastavam desse tipo de questies. Outra prética de resisténcia contra a fragmentagio do trabalho escolar foi idemtficada através de decisBes da diretora da escola Delta que, independentemente das normas burocréticas sobre o némero © 05 momentos de avaliagio dos alunos, propiciava “segundas ou mais 6pocas”. ‘A anélise do cotidiano da escola Delta suscita consideracées com parativas entre as préticas da diretora ¢ as das professoras TIT que se efetivaram em bloco em determinado momento. Estas, apresentan- do discurso supostamente progressista ao afirmarem: “conosco chegou 1 lei", atuavam de forma a reforcar a fragmentagao do proceso es- colar.'Ao se negarem a apoiar a prética da diretora de oportunizar novos perfodos de avaliago aos alunos, elas reforgavam as determi nagées de cardter burocrético sobre as avaliagdes. Portanto, na rea~ lidade da escola Delta, a diretora, que apresentava discurso mais con- servador, mostrava uma pritica mais transformadora do que a das professoras ITT, que possufam discurso mais “progressista”. Além da diretora, também as professoras I da escola Delta desen- vyolviam priticas que representavam resisténcia & inadequagio (espe- 13 cialmente fragmentagio) de vérias normas da instituigio. Enire estas acBes estava 0 esforgo de tentar todos os meios de melhorar a apren- dizagem dos alunos: aulas extras, contato com pais etc. Algumas consideragées podem ser estabelecidas quanto ao fato de essas priti- cas terem acontecido numa escola que atendia a criangas da classe média. Em primeiro lugar, as ages desses educadores sugeriam que cles consideravam particularidades (questo individual) as diferencas de aproveitamento escolar entre criangas provindas da classe média (maioria em suas classes) © as provindas das camadas populares. En- tendendo as diferengas entre criancas de diferentes classes sociais como particularidades € nfo como diferenca socialmente construida, ‘os educadores multiplicavam ages que pudessem melhorar 0 apro- veitamento escolar dos alunos. Esse ponto da anélise merece destaque. porque sugere uma via explicativa importante da prética dos educadores nas excolas: 0 de enfrentarem de modo diversoas dificuldades de aprendizagem dos alunos conforme sua interpretagéo da classe social dos alunos. AS di ficuldades de aprendizagem dos alunos percebidos como da “classe média” eram enfrentadas com modificagdes nas préticas escolares: usavanse ai todas as alternativas possiveis de serem tomadas, inclu- sive desobediéneias institucionais. Parece que, quando a maioria dos alunos da escola pertence as camadas médias, 0 perfil de aluno que os educadores t8m em mente € 0 de um aluno trabalhével a partir ‘das agbes da escola, Diferentemente, quando a maioria dos alunos da ‘escola pertence a classe trabalhadora, suas dificuldades de aprendi gem nfo levam os educadores, com a mesma énfase, a modificagies nas prdticas escolares: aqui, a5 alternativas de mudanca das préticas se dio em menor némero ou grandeza, Na base desta diferenciagdo em lidar com criangas de uma ou de outra classe social parece estar o conhecimento e desconhecimento de uma ov de outra, Quanto aos alunos com perfil “classe média”, 1s professoras pareciam conhecer as condig®es basicas de aprendiza- gem dos alunos, O universo simbélico no qual elas e esses alunos transitavam era mais ou menos o mesmo, Quanto aos alunos com per- fil socialmente diferente, as professoras parcciam desconhecer suas condigSes basicas de aprendizagem, Neste ponto, 0 posicionamento de classe imbrica com 0 dominio técnico da metodologia ¢ do ensino. O nGo-conhecimento do aluno pobre, ou porque no se quer conhocé~ 0, ou porque nao se julga necessério conhecé-lo para ensiné-lo, reme- 14 le a0 que computamos ser 0 maior n6 da questi do ensino © da aprendizagem dos alunos desfavorecidos economicamente. Ainda que ‘do consideremos a opgio ideolégica dos educadores, on soja, sua vontade de proporcionar ou no @ esses alunos 0 dominio do saber escolar, julgamos necessério que 0 agente pedagdgico conheca as es- pecificidades das relagSes sociais (especialmente dos alunos e pais) resentes na escola publica contempornea a fim de cumprir adequa- damente sua fungdo. ‘A relagdo social estabelecida entre pais e agentes pedagdgicos dependen do nivel sécio-cconémico dos pais: aqueles que pertenciam A classe média freqiientavam a escola ¢ rclacionavam-se com os, edu- cadores; 0s pertencentes 3 classe trabalhadora, nio. A dificuldade de aproximagao entre estes ltimos € a escola se dava de ambas as par- tes, No caso da escola Gama (mais heterogénea quanto a0 nivel s6cio- econdmico dos pais), observamos que o diretor ndo facilitava 0 espaco da escola para os pais da classe trabalhadora que, alm de nfo fre- qUentarem a escola, também nao eram atrafdos por ela. A escola se contentava em trabalhar com os pais que espontaneamente apareciam fe estes pertenciam as camadas médias. A diretora da escola Beta, ape- sar de procurar considerar a questo sécio-econdmica das criangas, ‘no se empenhava em atrair os pais a escola. A agravante nesta escola era que 0s pais socialmente “diferentes” constituiam a maioria. ‘Todos 0s eventos do cotidiano escolar aqui descritos mostram ca- racteristicas do movimento social presente nas escolas na medida em ‘que localizam como e em que grandeza esses eventos orientaram deci- s6e8 institucionais em momentos posteriores. A hipétese reforeada neste estudo, de que as priticas cotidianas historicamente consideradas orientam decisdes institucionais, aponta para a necessidade de nos aprofundarmos no cotidiano das escolas, pois do conhecimento das préticas e processos af desenvolvidos no presente retiramos as pistas para a escola de emanha, Tal fato poder, inclusive, apressar ou direcionar algumas transformagées positivas. us TERCEIRA PARTE AS REPRESENTACOES DA OBRA OU » “A OBRA ABERTA”’ A atitude critica para muitos mio muito fruttfera Tato porque com sua critica Nada conseguem do Estado. Mas o-que neste caso é alltude frotifera apenas uma atitude fraca. Pela erica armada Flados podem ser esmagados, ‘A canalizagio de um rio © enxerto de uma arvore ‘A edacagio de uma pesson ‘A tranaformagso de um estado Estes sfo exemplos de critica frutifrs E sio também ‘Exemplos de arte. Bertold Brecht © inicio da. elaboragio critica & a consciéncia aquilo que somos realmente, isto & um *eo- shece-te ati mesma” como produto do procesto histérico até hoje desenvolvido, que deixou em {i'uma fafinidade de tracos recebidos sem bene~ ficio no inventéria, Deve-se fazer iniialmente este inventirio. Antonio Gramsci Introducao Na segunda parte deste estudo procuramos deserever a escola a partir de suas condigées objetivas, ou seja, a partir do que ela tem de presenca inica: a “obra”. Acreditamos, com Lefebvre, que as re- presentacdes dos sujeitos que vivem a construgdo de uma obra podem esclarecé-la. A representacdo, tanto quanto a vivencia, faz parte da obra; ambas 30 necessérias na sua explicagdo, apesar de nfo serem suficientes. Foi com o objetivo de expandir 0 conhecimento do vivido na vida cotidiana que procuramos conhecer tanto as condigées obje- tivas do vivido quanto as representagies dos sujeitos que af vivem. As representagbes se alimentam tanto da vivéncia quanto do con- cebido, do ideério disponivel sobre a obra e suas manifestacdes. As representacdes dos sujeitos, formadas entre o vivido e o concebido, cit- culam ao redor da obra, interpretam a vivencia ¢ a prética que acon- ‘tecem no seu interior e podem intervir nesta vivéncia e nesta prética Entretanto, a interpretago que as pessoas estabelecem sobre a obra 1. Entendemos que o ettudo da vida cotiiana, efetuado através ap-nas das condighes objetivas, 6 incompleto © mais incompleto ainda é estudar essa vida cotidiana através das representagSea. Estes, sem a referéacia das condi- {3608 objetivas do cotidiano no qual elas se ranifestam, podem levar a con- ‘lusées enganosas, O sentido dss representagGes € akcangado nfo s6 por scus préprios reystroe (pensamento, reflexdo, discurso), mas também pelos fatos € Pritias sociais dos sueitos. 9 rio thes possibiita conhect-la © dominé-la, Algumas representagies, fo invés de desaparecerem, consolidam-se, modificando ou o vivido ‘ou o concebido. Conhecer as representagées dos suj nada situagio nos possibilita ainda compreender as manipulacbes do totidiano programado nesta situaglo. E no cotidiano que as represen: fagdes imperam e 6 através delas que identificamos o papel estipulado para cada coisa. Nossa crenga bésica 6 de que o cotidiano, apesar de Programado, € também o nascedouro de mudanges sociis. Todavis, Pereditamos que o poder do cotidiano na orientacio de transformagées Sociais depende da conquista da sua situacio de cotidianidade ou pro- framaglo pelos sujeitos que o vivenciam e, sobretudo,-da vontade des- ses sujeitos em transformé-lo, jeitos que vivem uma determi- ‘Tendo como referéncia as condigdes abjetivas de cada escola, nosso abjetivo nesta parte 6 identificar as representagies dos diferen- {es sujeitos, que permitem explorar possivels transformagGes da obra to processo de sua construcéo e as representagdes que blogueiam essa postibllidade. Apesar de cientes de que o cotidiano é vivido por sujet too singulares, analisaremos as representacGes segundo # condicdo s0- ee die sujeltos, ou seja, de acordo com a categoria ou subeategoria Sg que pertencem. Acreditamos, com Lefebvre, que as representagoes pravént tanto do individuo como da sociedade, numa interferéncia con- nua, ¢ que as representagSes divergem principalmente em funcéo das Uiferengas sociais do sujeito e ndo de suas particularidades.* sta parte esté dividida conforme as discussoes a que procedemos a respeito das representacées das professoras (capitulo IX), dos dire ores, (capitulo X) e dos pais (capitulo XI) sobre a obra ¢ os fend- Shenos a ela relacionados. No capitulo XII compararemos as repre- sentagbes dos diversos sujeitos. 7D. eler também se refere a ess questdes. Por um lado, denomina “cot diane aatopocéntice” ao fato de que no centro do cotidiano ha sempre um fhamens que vive a prépria vide cotidiana. Por outro lado, afirma que o “pens, rere citiiano néo € separivel da forma de atividede, da vida cotidiana” (elle, 19751390 © 104). Sobre as afirmagbes de Lefebvre, ver 1983: 6. 120 Capitulo 1x Representag6es da obra pelas professoras As professoras cujas representagSes analisamos vi F a lisamos viviam 0 momen- le Mico tra pulstan (cpu I) ptr de eee iano objetivo (cepitulo IV a VII, conforme a escola a qual estavam Hondas). Vimos que cada escola, apsarde petencer_a um. mesmo sistema de ensino, constitufa uma “obra”, que tanto em hoje ainda estava em construcio. ‘i ti Nosso objetivo neste capitulo foi o de analis 6 i lisar as representat das pofeora sche vtior aspects que intereiam na constr da abra,procurando ienlifcr represents que exploavam determin inhos de transformagio da obra ¢ daquelas que os bloquea- ‘vam. AS representagGes que nos interessava investigar eram aquelas que propunham caminhos para a escola cumprir com seu objetivo fundamental de ensinar, especialmente 0 ensino destinado aos filhos dda grande massa trabalhadora. i | Os aspectos analisados neste capitulo referem-se as represen Ie da eee ey fae see alin ats el tendo alguma articulagio com questio central: alto indice de repeténcia, evasfo escolar dos alunos provenientes da classe traba- lhadore, Os fendmenos analsados foram: fracasso escolar dos alunos, postibilidades da escola trabalhar com criancag desfavorecidas econo micamente, aluno dessjével/indesejével, pais de alunos ¢ diretor. 121

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