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———S~=*é=<=<;272;2SCSC;C; iI, 0 pag DO FILME Sergei Eisenstein O Sentido do Filme Apresentagéo, notas e revisio técnica: José Carlos Avellar Tradusao: ‘Teresa Ottoni Jorge Zahar Editor Rio de Janciro re ‘Tieulo original: The Film Sense Copyright © 1947, 1942 by Harcourt Brace Jovanovich, Inc. Copyright renewed 1975, 1970 by Jay Leyda Published by arrangement with Harcourt Brace Jovanovich, Inc. Copyright © 2002 da edigéo em lingua portuguesa: Jorge Zahar Editor Leda, tua México, 31 sobreloja 2031-144 Rio de Janciro, RJ 1) 2240-0226 / fax (21) 2262-5123 e-mail je@zaharcom.br sites wwwzahar.com.br tel “Todos os direitos reservados, A reprodugio nio-autorizada desta publicasao, no todo ‘ou em parte, consticui violagio de direitos autorais. (Lei 9.610/98) Capat Séigio Campance Primeita edigio em lingua portuguesa: 1990 Oseditores ageadecem & Fundagio do Cinema Brasilcto e, em especial, {sua Diretoria Técnica, ropresentada por Ana Pessoa, pela reprodusio fotogréfica das cenas dos filmes de Eisenstein utilizadas na edigio brasileira de farma do filme e Osentide do filme. Os edicores agradecem também & Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeito por ter cedido cépias dos filmes Alexander Nevsky, A greve, O encounigado Potemkin e Ourubro para que as reprodugies fossem feitas dirctamente dos fotogramas desses filmes. Reprodugio dos fotogramas feita no Laboratério da Pundagio do Cinema Brasileiro por José de Almeida Mauro. CIP. Brasil, catalogagio-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Li Eisenstein, Ser 1898-1948 E375 _ Osentidodo filme/ Sergei Eisenstein; apresentacio, notase revisio técnica, José Carlos Avelar; traducio, ‘Teresa Oxtoni. — | Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002 ity ‘Tradugio de: The film sense Anexos ISBN 85-7110-107-8 1, Cinema — Estética, I. Avellar, José Carlos, 1936-, iI. | Tilo. | CDD 791.4301 02-1642 epu743 | Sumario INTRODUGAO: Seria imposstvel viver, por José Carlos Avellar . . . « Palavra e imagem . . Sineronizagao dos sentidos Core significado... Forma e contetido: pratica NOTABIOGRAFICA © eee ee eee 147 FILMOGRAFIA. Se ee ee 149 SUGESTOES DE LEITURA « 153 153, 154 INDICE DENOMESEASSUNTOS .. 2... ee eee eee ee see 15S Textos de Eisenstein Textos sobre Eisenstein As notas ao final de cada capftulo assinaladas com as iniciais N.S.E. slo originais de Sergei Eisenstein. Apesar de 0 autor ser da profissio e saber tudo aquilo que a experién- cia, com a ajuda de mutta reflex4o, pode ensinas, nfo se debrugard tanto quanto se poderia pensar sobre esta faceta da arte que, para muitos artistas medfocres, parece.constituir a arte em seu todo, mas sem a qual a arte nfo existiria, Com isso, estard dando a sensagio de invadir o dominio dos eriticos das questdes estéticas, gente que, sem diivida, acha a experiéncia desnecessdria para ascenderem & andlise especulativa das artes. Tratard mais de questées filosdficas do que técnicas. Isto pode parecer singular num pintor que escreve sobre arte: muitos semi-eru- ditos se dedicaram 4 filosofia da arte. Parece que consideravam sua profunda ignorincia das questées técnicas um titulo a ser respeitado, convencidos de que a preocupagio com esse aspecto to vital para qualquer arte privava os artistas profissionais da especulagio estética. Parece até que imaginaram que uma profunda ignordncia das questées técnicas era uma razio a mais para se elevarem As considera- ges estritamente metafisicas; em suma, que a preocupagio com a técnica impede os artistas profissionais de ascenderem a alturas proi- bidas para os que nio pertencem aos campos da estética ¢ da pura especulagio. Euggne Delacroix Journal, 13 de janeiro de 1857 INTRODUGAO, Seria impossivel viver José Carlos Avellar A idéia deste liveo surgitt em agosto de 1941. Eisenstein, entio ainda em Moscou (em outubro cle ¢ todo pessoal da Mosfilm setiam transferidos para Alma-Ata), enviou um telegrama a Jay Leyda, em Nova York, perguntando se ele conseguiria nos Estados Unidos a edigao de um livro com Montagem 1938 ¢ outros artigos nao conhecidos fora da Unio Soviética. Pouco depois do telegrama, uma carta. Nela, os textos ¢ uma indicagio da ordem em que deveriam ser publicados — primeiro Montagem 1938, depois as trés partes de Montagem vertical; tambérn nela, as fotos de Alexander Nevsky para as ilustrag6es ¢ uma observagdo quanto 4 tradugio do primeiro capitulo — deveria ser consultada a versio de Montagem 1938 publicada em Lift and Letters Today, de Londres, porque para esta revista ele selecionara especialmente exemplos de poemas escritos em inglés. Jay Leyda, que na década de 1930 estudara cinema com Eisenstein em Moscou ¢ fora seu assistente de ditegéo no interrompido O prado de Bejin, conta como tudo aconteceu em Eisenstein at Work, liveo que escreveu com Zina Voynow, publicado em 1982 pela Pantheon Books e pelo Museu de Atte Moderna de Nova York. O sentido do filme ficou pronto em agosto de 1942, ¢ Eisenstein recebeu o seu exemplar no dia em que comemorava 45 anos, em 23 de janeiro de 1943. Ele preparava entio a filmagem da primeira parte de vd, o Terrivel, que comesatia em abril. Contente com o livro, escreve a Leyda dizendo que gostara de tudo, a comecar pela capa, amarelo e preto, como a capa de uma histéria de detetive, com um retrato dele com um sorriso de Giocondo, uma expressio meio irénica, um tipo de face daquele usado para ilustrar algo como “cle sabe tudo sobre o seu futuro”, ou como um livro sobre hipnotismo. A foto, diz Eisenstein, fora tirada no México. Ele tinha na mao direita, etguida até a altura do ombro, uma caveira de agiicar, das usadas nas festas do dia dos mortos. Cortada a caveira 0 que ficou foi aquele sorriso de Giocondo. “Wonderful. Splen- did”, comentou para Leyda. O sensido do filme foi o primeito liveo a reunir textos de Eisenstein. Foi também o tinico de seus livros publicados enquanto ele vivia. Pouco depois da edigéo norte-americana veio a inglesa, que ficou pronta no comego de 1943, ¢ para ela Eisenstein escreveu um preficio que jamais chegou as mios do editor. Ele se encontrava entio em Alma-Ata, O texto — Seria imposstvel viver — foi escrito ¢ enviado para Londres em outubro de 1942, mas se extraviou 10 O semtido do filme por causa da guerra, Parte deste prefiicio foi retomada pelo autor ¢ citada no quarto capitulo de A natureza néo indiferente, escrito cm 1945, Nele, Eisenstein conta como em outubro de 1941 deixou Moscou, entéo bombardeada pelos nazistas, 20 lado de outros cineastas soviéticos, em diregio a Alma-Ata — doze dias e doze noites num trem, espécie de nova arca de No no meio do diltivio da guerra. Diz como encontrar Alma-Ata no mapa, tragando com a ponta do dedo uma linha que vai do Sul da {ndia para o alto, parando na fronteira asidtica do Sul da Unio Soviética. Diz que ali, tio Longe, tio na retaguarda, seria vergonhoso trabalhar ¢ criar, seria imposs{vel viver, se ndo estivessem todos conscientes das missdes que deveriam desempenhar durante a guerra: primeito, disparat filmes ¢ filmes contra © inimigo, aplicando com o cinema golpes tio devastadores quanto os de um tanque ou de um avisios segundo, presezvar a cultura cinematogrifica da onda de destruigdo fascista. Diz mais, que as enormes montanhas cobertas de neve contra.o céu azul de Alma-Ata convidam A meditagio; que observar a neve na montanha desloca o pensamento do caos daquele instante de guerra para aarte ea cultura que virgo depois de terminada a loucuras que quem luta longe do front tem como missio analisar o passado para preparar o futuro; lembra que o fim da Primeira Guerra Mundial trouxe um inesperado florescimento da cultura, ¢ que o perfodo entre as duas guerras foi, mais do que qualquer outra coisa, a era do triunfo do cinema; diz que neste mesmo petfodo as outras artes se langaram febrilmente no caminho da desintegtagio e da desagregagao da forma, da imagem e do pensamen- to; que em nenhum outro momento da histéria as artes viveram semelhante impasse; que depois de atingit 08 mais altos pontos de seu desenvolvimento a arte subitamente despencou até chegar ao grat zeros ¢ que sé 0 cinema, porque ¢ a mais jovem das artes, porque partiu exatamente da desintegracdo em que as outras artes encalharam, sé o cinema soube resistir A tempestade de desagregagdo. Corta entdo © seu texto com uma frase solt Aarte € 0 mais sens{vel dos sismégrafos. E retoma a conversa dizendo que o impasse tragico em que as artes se encon- trayam nos tiltimos anos antes da Segunda Guerra refletia com preciso o grau de tensfo e as contradigGes dilacerantes em que o mundo se encontrava, contradigGes que finalmente explodiram numa carnificina de proporgées jamais vistas até entio, de proporgies dificeis de estabelecer quando observadas dali, daquele momento, de outubro de 1942. Diz nfo ter dtividas da vitéria sobre as trevas, mas que nao era posstvel ainda determinar o que 0 mundo teria de suportar até a vitéria ¢ depois dela. Relembra a histéria de Arquimedes, que teria gritado para os soldados roma- nos que invaditam sua casa para massacré-lo “no toquem nos meus desenhos”, ¢ diz que todos deveriam gritar um grito semelhante para salvar os filmes e as reflexes de toda a gente que trabalha em cinema; e que era por isso, que era como um grito, que ele publicava entéo, no meio da guerra, esta coletinea de artigos que examinam o passado ese voltam para o futuro da montagem, que foi de certo modo Seria impossivel viver " acoluna vertebral da estilfstica do cinema soviético até entdo. Nos iltimos anos, diz em seguida, esta linha foi mais ou menos apagada, a montagem deixou de ser 0 meio mais largamente usado nos filmes soviéticos, 0 que, sem diivida, historica- mente, no foi simples obra do acaso. Explica que nos textos de O sentido do filme procura demonstrar que a montagem é uma propriedade orginica de todas as artes. E que, estudando a histéria dos aumentos e diminuigées de intensidade do uso da montagem através da histétia das artes, chegou & conclusio de que a importincia do método e da estrutura de montagem diminui invariavelmente em épocas de estabilizacgo social, em épocas em que as artes se dedicam antes de qualquer outra coisa a refletir a realidade. E que inversamente, nos perfodos de uma intromissio ativa no desmonte, reorganizagio ¢ reestruturagao da realidade, nos perfodos de uma reconstrugfo ativa da vida, a montagem ganha entre os métodos de construgio daarte uma importincia ¢ uma intensidade que nio cessam de crescer. Eo primeiro livro a reunir artigos de Eisenstein. Foi o tinico que ele chegou a ver publicado. Na carta que enderecou a Jay Leyda com.os textos e a indicagao da ordem em que eles deveriam ser publicados, Eisenstein cita outros artigos que terminava de escrever entio, agosto-setembro de 1941; um texto sobre El Greco, a versio inglexa de um artigo sobre Griffith, partes iniciais de um futuro livro sobre a histéria da idéia do primeiro plano, projeto que nfo chegou a terminar, O artigo sobre El Greco, El Greco y el cine, foi posteriormente integrado 4 coletinea Cinematisme: 0 attigo sobre Griffith, Dickens, Griffith e nds foi posteriormente integrado & segunda coletinea de textos de Eisenstein. A forma do filme, editado em 1949, primeiro nos Estados Unidos, logo depois na Inglaterra, a partir de uma sclegio de artigos feita pelo autor no final da década de 1930 ¢ revista em 1947, um ano antes de sua motte, época em que trabalhava num outro projeto de livro: A natureza ndo indiferente, mais ou menos organizado de acordo com o projeto original ¢ divulgs- do em francés ¢ inglés a partir de 1978, E bem af, no final deste ensaio, quando diz que no indiference nao é tanto a natureza que nos cerca mas sim a nossa prépria natureza, a natureza humana que jamais indiferente mas sim apaixonada, ativa e ctiativamente investiga ¢ reconstréi o mundo, bem af nesta frase € que quase se pode resumir a energia de isenstein (igual a m de montagem e cde velocidade da luz, ou de cinema ao quadrado, 0 que existe nos filmes, ¢ 0 que existe também em. todas as outras artes), Energia nfo indiferente que se espalha igual em scus textos ¢ em seus filmes, que contagia 0 leitor ¢ 0 espectador a ponto de fazer presente pelo menos por um instante, pelo menos como sensagdo que brilha o tempo de um relimpago, pelo menos como coisa sentida como um sonho, s6 no consciente, pelo menos como sentimento que mal se traduz em razdo, que sem o cinema seria imposstvel viver. og I. Palavra e imagem: ‘Cada palavra foi permeada, como cada imagem foi transformada, pela intensidade da imaginagio de um ato criativo instigante. “Pense bem”, diz Abt Vogler sobre o milagre andlogo do mtisico: Dense bem: cada tom de nossa escala em si é nada; Exté em toda parte do mundo —- alto, suave, esdo estd dito: Dé-me, para usd-lo! eu 0 misturo com mais dois em meu. pensamento; Eis all Vocés virame e ouviram: pensem ¢ curvem a cabecal Dé a Coleridge uma palavra vivida de alguma antiga narrativa; deixe-o misturd-la a outras duas em seu pen- samento; ¢ entio (traduzindo termos musicais para termos literdrios), “a partir de trés sons ele formard ndo um quarto som, mas uma estrela,” JOHN LIVINGSTONE LOWES? Houve um perfodo do cinema soviético em que se proclamava que a montagem era “cudo”. Agora estamos no final de um perfodo no qual a montagem foi considerada como “nada”, Considerando a montagem nem como nada, nem como tudo, acho oportuno neste momento lembrar que a montagem é um componente tio indis- pensdvel da produgio cinematogrifica quanto qualquer outro elemento eficaz do Cinema. Depois da tempestade “a favor da montagem” e da batalha “contra a montagem”, devemos voltar a abordar esse problema com a maior simplicidade. Isto é ainda mais necessétio quando se considera que, no perfodo de “negacao” da montagem, seu aspecto mais inquestiondvel, o tinico clemento realmente imune 20 desafio, também foi repudiado. A questio ¢ que os criadores de numerosos filmes, nos iltimos anos, “descartarars” a montagem a tal ponto que esqueceram até de seu objetivo e fungio fundamentais: papel que toda obra de arte se impSe, a necessi- dade da exposigéo coerente e organica do tema, do material, da trama, dat ago, do movimento interno da seqiiéncia cinematogrifica ¢ de sua agio dramética como 13 14 O sentido do filme um todo, Sem falar no aspecto emocional da histéria, ou mesmo de sua légica continuidade, o simples ato de narrar uma histéria coesa foi freqiientemente omi- tido nas obras de alguns proeminentes mestres do cinema, que realizam vérios géneros de filme. O que precisamos, claro, é nao tanto da critica individual desses mestres, mas basicamente de um esforgo organizado para recuperar o exercicio da montagem, que tantos abandonaram. Isto é ainda mais necessétio a partir do momento em que nossos filmes enfrentam a missfo de apresentar no apenas uma natrativa logicamente coesa, mas uma narrativa que contenha o méximo de emagdo ¢ de vigor estimudante. ‘A montagem é uma poderosa ajuda na solucio desta tarefa. Afinal, por que usamos a montagem? Mesmo 0 mais fandtico inimigo da montagem concordar4 que. nfo a usamos apenas porque o rolo de filme 4 nossa disposi¢go nfo tem um comprimento infinito ¢, conseqiientemente, condenados a trabalhar com pedagos de comprimento restrito, temos de colocé-los ecasional- mente, Os “csquerdistas” da montagem estZo no extremo oposto. Ao brincar com pedagos de filme, descobriram uma propriedade do brinquedo que os deixou aténitos por muitos anos. Esta propriedade consiste no fato de que dois pedagos de (filme de qualquer tipo, colocados juntos, inevitavelmente criam um novo conceita, uma ‘nova qualidade, que surge da justaposi¢ao, Esta nao €, de modo algum, uma caracte- ristica peculiar do cinema, mas um fendmeno encontrado sempre que lidamos com a justaposicao de dois fatos, dois fendmenos, dois objetos. Estamos acostumados a fazer, quase que automaticamente, uma sintese dedutiva definida ébvia quando quaisquer objetos isolados so colocados & nossa frente lado a lado. Por exemplo, tomemos um timulo, justaposto a uma mulher de futo chorando ao lado, ¢ dificilmente alguém deixard de concluir: uma viva, E exatamente neste aspecto da nossa percep¢io que a seguinte minianedota de Ambrose Bierce baseia seu efeito. Trara-se de: “A vitiva inconsolavel”, uma de suas Fébulas fantdsticas: Uma mulher de luto chorava sobre um timulo. “Acalme-se, minha senhora’, disse um estranho compassivo. “A misericérdia divina é infinita, Em algum lugar hé um. ‘outro homem, além de seu marido, com quem ainda poderd ser feliz.” “Havia’, ela solugou— “havia, mas este € 0 seu timulo.”3 Todo o efeito da histéria é construfdo tendo por base o fato de que o timulo eamulher enlutadaa seu fado levam a inferéncia, devido & convengio estabelecida, de que cla é uma viva que chora o marido, quando na tealidade 0 homem por quem chora &seu amante. ‘A mesma circunstincia é freqtientemente encontrada em charadas — por exemplo, esta do folclore internacional: “O corvo voou enquanto um cachorro sentou-se em seu rabo, Como isso € poss{vel2” Automaticamente combinamos os Palavra e imagem 5 elementos justapostos ¢ os reduzimos a uma unidade, Como resultado, entende- mos a pergunta como se 0 cachorro estivesse sentado no tabo do corvo, quando na realidade a charada contém duas ages nfo-relacionadas: 0 corvo voa, enquanto 0 cachorro senta-se em seu préprio rabo. Esta tendéncia a juntar numa unidade dois ou mais objetos ou qualidades independentes é muito forte, mesmo no caso de palavras isoladas que caracterizam diferentes aspectos de um tinico fendmeno. ‘Um exemplo extremo disso pode set encontrado no inventor da “palavra portmanteas, Lewis Carroll. A despretensiosa descrigao que fez de sua invengio, de “dois significados colocados em uma palavra, como se a palavra fosse uma mala portmantean”,* conclui a introdugio de seu A caga ao Snark (The Hunting of the Snark). Por exemplo, pegue duas palavras, “tezr(vel” e “horsivel”. Decida que diré as duas palavras, mas nio decida qual dint primeiro. Agora abra a boca e fale, Se seus jensamentos se inclinam mesmo sé um pouco em ditegio a “terrivel”, vocd dirk ‘errivel-horrivel”; se eles se voltam, até devido a um golpe de ar, em diregio a “horrivel”, vocé diré “horrivel-terrfvel”; mas se vot tem o mais raro dos dons, uma mente perfeitamente equilibrada, dird “torrivel” > E claro que neste caso ndo ganhamos um novo conceito, ou uma nova qualidade. O encanto deste efeito “portmanteax” & construtdo com base na sensa- Gao de dualidade que existe na palavra formada arbitrariamente. Todo idioma tem seu profissional de “portmanteax:” —o noste-americano tem seu Walter Winchell. Obviamente, 2 manipulaggo méxima da palavra portmanteau é encontcada em Finnegans Wake. Por isso, o método de Carroll ¢ essencialmente uma parddia de um fendémeno natural, uma parte de nossa percepgio habitual — a formagio de unidades qualita- tivamente novas; em conseqiiéncia, é um método basico para se obterem efeitos cémicos. Este efeito cOmico é conseguido através da percepgdo tanto do novo resultado quanto de suas duas partes independentes — ao mesmo tempo. Os exemplos deste tipo de engenho sio inumerdveis, Citarei aqui apenas trés exemplos que se podem encontrar em Freud: Durante a guerra entre a Turquia eos Estados ba‘cinicos, em 1912, Punch retratou 0 papel desempenhado pela Roménia (Roumania) representando-a como um ladtio de estrada assaltando membros da Alianga Balcanica. A caricatura fol intitulada: Klepto- rourmania... ‘A malfcia européia rebatizou um ex-potentado, Leopold, de. Cleopold, por causa de sua relagio com uma dama chamada Cleo... 16 ‘O sentido do filme ‘Num canto... um dos personagens, um “brincalliio”, fala da época do Natal como aleoholidays (férias aleoslicas). Por redugio, pode-se perceber facilmente que te- mos agui uma palavra composta, uma combinagio de aleobo!(dleool) e holidays (férias)... Acho evidente que o fendmeno que estamos discutindo esté. mais do que difundido — ¢ literalmente universal. Por isso, no hé nada de surpreendente no fato de uma platéia cinematogréfi- ca também fazer uma inferéncia precisa a partir da justaposicéo de dois pedagos de filme colados. Certamente no estamos criticando estes fatos, nem seu valor, nem,sua uni- versalidade, mas apenas as falsas deduges ¢ conclusées a que deram origem. Com base nisso, sera possivel fazer as corregSes necessérias. De que omisséo fomos culpados quando destacamos pela primeira vez a indubité- vel importincia do fendmeno acima citado para a compreensio ¢ dominio da montagem? O que estava certo, ou errado, nas nossas entusidsticas declaragées da época? © fato fundamental estava certo, ¢ permanece certo: a justaposicéo de d planos isolados através de sua unido ndo parece a simples soma de um plano mais outro plano — mas o produto. Parece ui produto — em vez de uma soma das partes — porque em toda justaposigao deste tipo o resultado ¢ qualitativamente diferente de cada elemento considerado isoladamente. A esta altura, ninguém realmente ignora que quantidade ¢ qualidade nao sio duas propriedades diferentes de um fenédmeno, mas apenas aspectos diferentes do mesmo fendmeno. Esta lei da fisica ¢ verdadeira cm outros campos da ciéncia ¢ da arte. Entre os muitos campos em que pode ser aplicada, 0 uso feito pelo professor Koffka na esfera da psicologia comportamental tem relago com nossa discussio: Ji foi dito: o tado é mais do que a soma de suas partes. E mais correto dizer que o todo algo da soma de suas partes, porque a soma é um process insignificant, enquanto a relagio todo-parte é significativa, A mulher, voleando 20 nosso primeiro exemplo, é uma representagio, 0 luto que ela veste ¢ uma representago —- isto é ambos esto plasticamente representados, ‘Mas “uma vittva”, que surge da justaposigio de duas representacbes, nfo é plastica- mente uma representaggo - - mas uma nova idéia, um novo conceito, uma nova imagem. Qual foi a “distorgdo” de nossa posigio, na época, com relagio a este fendme- no indiscutivel? e Palavra e imagem 7 O erro residiu no fato de ressaltarmos mais as possibilidades da justaposigio, enquanto parecfamos dar menor atengio 20 problema da andlise do material justa- posto. Os que me criticaram apressaram-se em apresentar isso como uma falta de interesse pelo corteiide dos fragmentos de montagem, confundindo o interesse de experimentador pela andlive de certo aspecto do problema com aatitude do préprio experimentador diante da realidade representada. Deixo-os com suas préprias consciéncias. O problema surgiu devido & minha atragio, antes de tudo, por aquele aspecto entio recém-descoberto na jungéo de dois ftagmentos de montagem de um filme, pelo fato de que — nio importa se eles no sio relacionados entre si, ¢ até freqiientemente a coisa se dd por causa disso mesmo -- - quando justapostos de acordo com a vontade do montador engendrarem “uma terceira coisa” ¢ se torna- rem correlatos. Por isso, eu estava preacupado com uma potencialidade atipica da construgio ¢ composigao cinematogréficas normais. ‘Trabalhando desde o infcio com este material e esses fatos, era natural especu- lar principalmente sobre as potencialidades da justaposicao. Foi dada menor aten- gio andlise da natureza real dos fragmentos justapostos. Tal atengio nfo teria sido suficiente por si mesma. A histéria provou que este tipo de atengio, dirigida apenas a0 contetido de planos isolados, na pratica levou o declinio da montage ao nivel de “efeitos especiais”, “seqiiéncias de montagem”, etc., com todas as suas conse- qiiéncias. Qual deveria ter sido a énfase correta, 0 que deveria ter recebido maior atengio, a fim de que nenhum elemento fosse indevidamente exagerado? TTeria sido necessitio voltar & base fundamental que determina igualmente tanto o contetido dos planos isolados quanto a justaposicfo compositiva dos con- tetidos independentes entre si, isto é, voltar 20 contetido do todo, das necessidades gerais ¢ unificadoras. Um extremo consistiu na falta de atengao quanto ao problema da técnica da unificagdo (os métodos de montagem), o outro — na desatengao aos elementos unificados (0 contetido do plano). Deverfamos ter-nos preocupado mais em examinar a natureza do préprio principio unificador. Precisamente 0 princfpio que deveria. determinar tanto 0 contetido do plano quanto 0 contetido revelado por uma determinada justaposigiio desses plans, Mas, com isso em mente, seria necessirio que o interesse do pesquisador se voltasse basicamente nfo em dire¢do aos casos paradoxais, nos quais o resultado global, geral ¢ final nao & previsto, mas emerge inesperadamente. Deverfamos ter-nos voltado para os casos nos quais os planos no sé esto relacionados entre si, mas nos quais este resultado final, geral, global nao é apenas previsto, mas predeter- 18 O sentido do filme mina tanto os elementos individuais quanto as circunstinclas de sua justaposicéo. Casos como esses sio normais, comumente aceitos ¢ ocorrem com freqiiéncia. Nestes casos, o todo emerge normalmente como “uma terceira coisa”. A imagem total do filme, determinada tanto pelo plano quanto pela montagem, também emerge, dando vida e diferenciando tanto 0 contetide do plano quanto o contetido da montagem. Casos assim é que sio tipicos da cinematografi Com este critério de montagem, os planos isolados e sua justaposicéo atingem uma correta relagio muitua, Além disso, a prépria nacureza da montagem nao apenas deixa de se distanciar dos principios do estilo cinematogrifico realista, mas funciona como um dos recursos mais coerentes e préticos para a narraco naturalis- tado contetido de um filme. O que esta compreensio da montagem implica essencialmente? Neste caso, cada fragmento de montagem jé nfo existe mais como algo nio-relacionado, mas como uma dada represensagdo particular do tema geral, que penetra igualmente todos os fotogramas. A justaposigio desses detalhes parciais em uma dada estrutura de montagem cria e faz surgir aquela qualidade geral em que cada detalhe teve patticipagdo e que reine todos os detalhes num oda, isto é naquela imagem genetalizada, mediante a qual o autor, seguido pelo espectador, apreende o tema, Se agora observamos dois fragmentos de filme reunidos, vemos sua justaposi- fo sob uma luz bastante diferente. Ou seja: Fragmento A (derivado dos elementos do tema em desenvolvimento) frag- mento B (derivado da mesma fonte), em justaposigao, fazem surgir a imagem na qual o contedido do tema é corporificado da forma mais clara. No imperativo, com o objetivo de estabelecer uma formula de trabalho mais exata, esta proposigio soaria assim: A representagdo A ea representagdo B devem ser selecionadas entre todos os aspectos possiveis do tema em desenvolvimento, devem ser procuradas de tal modo que sua justaposigdo — isto 6 a justaposigio desses préprios elementos ¢ no de outros, alternatives — suscite na percepso ¢ nos sentimentos do espectador a mais com- pleta imagem do préprio tema. Em nossa discussio sobre a montagem entraram dois novos termos: “repre- sentagio” e “imagem”. Quero definir a demarcagéo entre eles antes de prosseguir- mos, Usaremos um exemplo para demonstragio. Tomemos um disco branco de tamanho médio e superficie lisa, dividido em 60 partes iguais. A cada cinco partes é colocado um numero na ordem consecutiva de 1 a 12. No centro do disco sio fixadas duas varas de metal, que se movimentam livremente sobre sua extremidade fixa, pontu- Palavra e imagem 19 das nas extremidades livres, uma do tamanho do raio do disco, a outra um pouco mais curca. Deixemos a extremidade livre da vara pontuda mais longa marcat 0 ntimero 12, ¢a da mais curta, consecutivamente, apontar para os ntimeros 1, 2, 3 assim por diante, até 0 ntimero 12. Isto implicard uma série de representagdes geomdrricas de relagies consecutivas das duas varas de metal, expressadas nas dimen- s6es 30, 60, 90 graus, e assim por diante, até 360 graus. Porém, seo disco dispuser de um mecanismo que movimenta uniformemente as varas metdlicas, a figura geométrica formada em sua superficie adquire um significado especial. Agora nao é simplesmente uma representagiio, é uma imagem do tempo. Neste caso, a representacéo e a imagem que ela suscita em nossa percepcao esto tio completamente fundidas que apenas sob condigées especiais distinguimos a figura geométrica, formada pelos ponteiros do reldgio, do conceito de tempo. Isto pode acontecer com qualquer um de nés, evidentemente que em circunstincias incomuns. Aconteceu com Vronsky depois que Ana Karenina the contou que estava grivida: Quando Vronsky olhou para seu relégio, na varanda dos Karenin, estava tio preocu- pado, que olhou para os ponteiros no mostrador do relégio e no viu as horas.* Neste caso, a imagem do tempo criada pelo reldgio nfo surgit.. Ele viu apenas a representagao geométrica formada no mostrador pelos ponteiros do relégio. Como podemos ver, mesmo num excmplo tio simples, que diz. respeito apenas a0 tempo astronémico, & hora, a representagio formada no mostrador do relégio é insuficiente cm si mesma. Nao é suficiente apenas ver — algo tem de acontecer com a representacio, algo mais tem de ser feico com cla, antes que deixe de ser percebida como apenas uma simples figura geomécrica e se torne percepttvel como a imagem de uma “hora” particular na qual o acontecimento esté ocorrendo, Tolstoi nos mostra o que acontece quando esse processo nfo ocorre. O que é esse proceso exatamente? Uma determinada ordem de ponteitos no mostrador de um relégio suscita um grupo de representagGes associadas a0 tempo, que corresponde & hora determinada. Suponhamos, por exemplo, que o ntimero sejacinco, Nossa imaginagio esté treinada para responder a este ntimero recordan- do cenas de todos 0s tipos de acontecimentos que ocorrem nesta hora. Talvez o ch, o fim de uma jornada de trabalho, o comeso da hora do rush no mett6, talvez lojas fechando as portas, ou a peculiar luminosidade do final da tarde... Em qualquer dos casos, automaticamente nos lembraremos de uma série de cenas (tepresentagées) do que acontece as cinco horas, A imagem das cinco horas é composta de todas essas representagées parti- culaces. 20 O sentido do filme Esta é a seqiigncia completa do processo, que ocorte deste modo na etapa de assimilagio das representagdes formadas pelos mimeros que suscitam as imagens das horas do dia ¢ da noite. Em seguida, as leis de economia da energia psiquica entram em funcionamen- to, Ocorre uma “condensagao” no interior do processo acima descrito: a cadeia de vinculos intermedidrios desaparece e se estabelece uma conexo instantanea entre 0 niimero e nossa percepgio do tempo ao qual corresponde. O exemplo de Vronsky nos mostra que uma forte perturbagio mental pode destruir esta conexio, ¢ a representagio e a imagem se separam. Estamos discutindo aqui a apresentago plena do processo que ocorre quando uma imagem é formada a partir de uma representagao, como descrito acima. Esta “mecénica” da formagio de uma imagem nos interessa porque os meca- nismos de sua formagio na realidade server como protétipo do método de criagio de imagens pela arte. Recapitulando: entre a representaggo de uma hora no mostrador de um relégio ¢ nossa percepgio da imagem dessa hora, hé uma longa cadeia de repre- sentagSes vinculadas aos aspectos caracter{sticos distintos dessa hora. E repetimos: 0 habito psicolégico tende a reduzir esta cadeia intermediéria a um minimo, a fim de que apenas 0 in{cio ¢ 0 fim do processo sejam percebidos. Mas assim que precisamos, por qualquer razio, estabelecer as conexées entre uma representagao ¢ a imagem a ser suscitada por ela na consciéncia € nos senti- mentos, somos inevitavelmente impelidos a recorrer novamente a uma cadeia de representaces intermedidrias que, juntas, formam a imagem. Consideremos primeiro um exemplo bem préximo daquele outro exemplo da vida cotidiana. Em Nova York, a maioria das ruas no tem nome — Quinta Avenida, rua 42, ¢ assim por diante. Os estrangeiros acham este método de designagio de ruas extremamente dificil nos primeiros momentos, Estamos acostumados a ruas com nomes, o que é muito facil para nés, porque cada nome imediatamente suscita uma imagem da rua determinada, isto ¢, quando vocé ouve o nome da rua, aparece um conjunto particular de sensases ¢, com ele, a imagem. Achei muito dificil lembrar das imagens das ruas de Nova York ¢, conseqiien- temente, reconhecer as ruas, Suas designagées, ntimeros neutros como “42” ou “45”, nao produziam em minha mente imagens que concentrariam minha percep- do nos aspectos gerais de uma ou outra rua. Para produzir estas imagens, tive de colocar na meméria um conjunto de objetos caracter(sticos de uma ou outra rua, um conjunto de abjetos surgidas em minha consciéncia em resposta ao sinal “42”, ¢ bastante diferentes dos surgidos em resposta ao sinal “45”. Minha meméria reuniu os teattos, lojas ¢ edificios caracteristicos de cada uma das ruas que tinha de recordar. Este processo passou por estigios definidos. Dois desses estdgios deve ser ressaltados: no primeiro, 4 designagio verbal “rua 42”, minha meméria com. Palavrae imagers a grande dificuldade respondeu enumerando toda a cadeia de elementos caracter{sti- cos, mas eu ainda ndo tinha a verdadeira percepgio da rua, porque os varios elementos ainda ndo haviam se consolidado numa imagem tinica. Apenas no segundo estdgio todos os elementos comegam a se fundir numa tinica imagem: A mengio do “ntimero” da rua, ainda surgia todo este grupo de elementos independentes, mas agora ndo como uma cadeia, mas como algo tinico — como uma caracterizagio total da rua, como sua imagem total, Apenas depois deste estigio se pode dizer que realmente se memorizou a tua. ‘A imagem da rua comeca a emergir ¢ a viver na consciéneia e na percepgio exatamente como, durante a ctiaggo de uma obra de arte, sua imagem total, nica, reconhectvel, é gradualmente formada por seus elementos. Em ambos os casos — seja uma questio de memorizagio, ou o processo de petcep¢io da obra de arte—, o método de entrada na consciéncia ¢ nos sentimen- tos, através do todo, e no todo, amraveds da imagem, permanece fiel a esta lei. Além disso, apesar de a imagem entrar na consciéncia e na percepgio, através da agregacéo, cada detalhe & preservado nas sensagdes ¢ na meméria come parte do todo. Isto ocorte seja ela uma imagem sonora -- - uma seqiiéncia rftmica ¢ melédica de sons — ou plistica, visual, que engloba, na forma pictérica, uma série lembrada de clementos isolados, De um modo ou de outro, a série de idéias ¢ montada, na percepgfo ¢ na consciéncia, como uma imagem total, que acumula os elementos isolados, ‘Vimos que no proceso de lembranga existem dois estégios fundamentais: 0 primeiro é a reunido da imagem, enquanto o segundo consiste no resultado desta reunio e seu significado na meméria. Neste tiltimo estdgio, & importante que a meméria preste a menor atengio posstvel a0 primeiro estigio, e chegue ao resultado depois de passar pelo estégio de reunifio o mais répido possivel. Esta ¢ a pritica na vida, em contraste com a prética na arte, Porque, quando entramos na esfera da arte, descobrimos um acentuado deslocamento da énfase, Na verdade, para conse- guir scu resultado, uma obra de arte dirige toda a sutileza de seus métodos para o proceso. Uma obra de arte, entendida dinamicamente, & apenas este proceso de organizar imagens no sentimento e na mente do espectador. E isto que constitui a peculiaridade de uma obra de arte realmente vital ¢ a distingue da inanimada, na qual o espectador recebe o resultado consumado de um determinado processo de criago, em vez de ser absorvido no processo & medida que este se verifica. Esta condigao surge sempre e em qualquer parte, nio importa qual a forma artistica em discuss4o. Por exemplo, a interpretagao realista de um ator é constitut- da nfo por sua representagio da cépia dos resultados de sentimentos, mas por sua capacidade de fazer estes sentimentos surgirem, se desenvoluerem, se transformarem em outros sentimentos- - viverem diante do espectador. 22 O sentido do filme Deste modo, a imagem de uma cena, de uma seqiiéncia, de uma criaggo completa, existe néo como algo fixo e jd pronto. Precisa surgir, revelar-se diante dos sentidos do espectador, Do mesmo modo, um personagem (tanto num texto quanto na interpretagio de um papel), para produzir uma impressio verdadeitamente viva, deve ser cons- trufdo diante do espectador, durante o curso da ago, ¢ nfo apresentado como uma figura mecinica com caracterlsticas determinadas a priori. No drama, ¢ particularmente importante que, no curso da agio, scja no apenas construfda uma idéia do personagem, mas também que seja construtdo, seja “formado mentalmente”, o préprio personagem. Conseqtientemente, no método real de criagio de imagens, uma obra.de arte deve reproduzir 0 proceso pelo qual, nz pripria vida, novas imagens sio formadas na consciéncia e nos sentimentos humanos. ‘Acabamos de mostrar a natureza disto em nosso exemplo das ruas numeradas. E seria correto se esperar de um artista, diante da tarefa.de expressar uma determi nada imagem através da cepresentagio factual, o recurso a um método idéntico a essa “assimilagio” das ruas de Nova York. ‘Também usamos o exemplo da representagio formada pelo mostrador de um relégio, ¢ revelamos o processo pelo qual a imagem da hora surge-em conseqiiéncia, desta representacio. Para ctiar uma imagem, a obra de arte deve se basear num método idéntico, a construgio de uma cadeia de representagdes. Examinemos mais amplamente este exemplo da hora. Com Vronskry, acima, a figura geomeérrica nao surgi como uma imagem da hora. Mas existem casos em que o importante nao é ver que é meia-noite cronome- tricamente, mas sentir a meia-noite com todas as associagSes ¢ sensagies que 0 autor quer suscitar de acordo com seu enredo. Pode ser a meia-noite da ansiosa espera de um compromisso, a meia-noite da morte, a meia-noite de uma fuga fatal; em outras palavras, pode muito bem estar longe de ser uma simples representacio da meia-noite cronométrica. Neste caso, de uma representagio das doze badaladas deve emergir a imagem da meia-noite como uma espécie de “hora do destino”, repleta de significado. Isto também pode ser ilustrado por um exemplo — desta vez de Bel Ami, de Maupassant. O exemplo tem uma importincia adicional por ser sonoro. E ainda mais uma porque, sendo em sua natureza pura montagem, através do método corretamente escolhido para sua solugio ele é apresentado na histéria como uma natrativa de acontecimentos reais. Ea cenaem que George Duroy (que agora assina Du Roy) estd esperando no fiacre por Suzanne, que concordou em fugir com ele & meia-noite. ‘Aqui, doze horas da noite sé é a hora cronométrica num grau minimo, e é, num grau méximo, a hora na qual tudo (ou, de qualquer modo, muito) est4 em jogo (“Acabou-se. Deu tudo errado. Ela nao vird.”). Palavra eimagem 23 Este ¢ 0 modo como Maupassant dirige 4 consciéncia e aos sentimentos do leitor a imagem desta hora ¢ seu significado, diferente de uma mera descriggo da hora particular da noite: Tornoua sair 4s onze horas, errou durante algum tempo, tomou um fiacre e mandou parar na Place de Ja Concorde, junto as arcadas do Ministério da Marinha. De vez em quando acendia um fésforo, para olhar a hora no relégio. Quando viu aproximar-se a meia-noite, sua impaciéneia tomou-se febril. A todo instante punhaa cabega na portinhola para olhat. Um reldgio distante deu doze badaladas, depois um outro mais pezto, depois dois juntos, depois um ltimo, muito longe. Quando este acabou de tocar, pensou: “Acabou-se. Deu tudo errado. Ela néo vird.” Estava entretanto resolvido a ficar, até de manhi. Nestes casos é preciso ser paciente. Escutou ainda tocar um quarto, depois meia hora, depois trés quattos; ¢ todos os relégios repetiram a “uma”, tal como tinham anunciado a meia-noite...!° Neste exemplo, vemos que, quando Maupassant quis gravar na consciéncia ¢ nas sensagées do leitor a qualidade emocional da meia-noite, nao se limitou a mencionar que primeiro bateu a meia-noite ¢ depois uma hora. Ele nos obrigou a experimentar a sensagio da meia-noite, fazendo com que as doze horas batessem em varios lugares ¢ em varios reldgios. Combinados em nossa percepcao, estes grupos individuais de doze badaladas se transformam numa sensagio geral da meia-noite. As representagSes separadas se transformaram em uma imagem. Isto foi inteiramente feito por meio de montagem. © exemplo de Maupassant pode servir de modelo para o mais requintado estilo de roteiro de montagem, onde o som das “doze horas” ¢ denotado por meio de uma série completa de planos “de diferentes angulos de camera’: “distante”, “mais perto”, “muito longe”. Este badalar dos relégios, registrado a varias distan- cias, é como a filmagem de um objeto a partir de diferentes posig6es da camera repetida numa série de trés diférentes enquadramentos: “plano geral”, “plano mé- dio”, “plano de conjunto”. Porém, a badalada real ou, mais correcamente, a batida variada dos relégios de modo algum é escolhida por sua virtude como um detalhe naturalista de Paris A noite. O efeito primério destas batidas conflitantes de reldgios em Maupassant é a énfase insistente na imagem emocional da “meia-noite” fatal, no a mera informagio: “zero hora”. Se seu objetivo fosse apenas informar que era zero hora, Maupassant dificil- mente teria recorrido a uma composigio téo requintada. Do mesmo modo, sem a escolha cuidadosa de uma solugfo criativa de montagem, ele nunca teria obtido, através de um meio tio simples, um feito emacional tao palpavel.. Enquanto falévamos de telégios ¢ horas, lembrei-me de um exemplo de minha prépria experiéncia. Durante a filmagem de Outubro, nos deparamos, no 24 O sentido do filme Paldcio de Inverno, com um curioso espécime de relégio: além de mostrador principal, também tinha uma coroa de pequenos mostradores em redor do maior. Em cada um desses mostradores estava o nome de uma cidade: Paris, Londres, Nova York, Xangai, e assim por diante. Cada um mostrava a hora destas cidades, em contraste com a hora de Petrogrado, no mostrador principal. O aparecimento deste relégio ficou gravado em nossa meméria. E quando, em nosso filme, precisamos apresentar de modo especialmente enérgico 0 momento histérico da vitéria ¢ instauragdo do poder sovidtico, este reldgio sugeriu uma solugdo especifica de montagem: repetimos a hora da queda do Governo Provisério, marcada no mostra- dor principal pela hora de Petrogrado, em toda a série de mostradores secundarios que. marcavam a hora em Londres, Paris, Nova York, Xangai. Assim, esta hora, nica na histéria e no destino dos povos, emergiu através de uma variedade enorme de horas locais, como que unindo ¢ fundindo todos os povos na percepgio do momento da vitéria, O mesmo conceito foi também anunciado por um movimen- to rotativo da prépria coroa de mostradores, um movimento que, ao aumentar € acelerar-se, também fundiu plasticamente todos os indicadores de tempo diferentes cindependentes na sensagio da hora histérica nica..." Neste ponto, ougo a pergunta de meus adversitios invisiveis: “Est4 tudo bem, mas 0 que tem a dizer sobre um longo pedago de filme, sem cortes, com a interpretagdo de um ator — o que isto tem a ver com a montagem? A sua interpre- tagio, por si mesma, nao impressiona? A interpretagao de um papel por Tcherka- sov'2ou Okhlopkov,!? Tehickov'4ou Sverdlin'Stambém nio impressionam?” E fitil supor que esta pergunta significa um golpe mortal na concepgio de montagem. O princfpio da montagem é muito mais amplo do que uma pergunta como esta supde. I totalmente errado supor que se um ator atua num tinica e longo pedaco de filme, nao cortado pelo diretor ¢ cinegrafista em diferentes Angulos de camera, esta construgéo é intocada pela montagem! De modo algum! Neste caso, tudo o que temos a fazer ¢ procurar pela montagem em outro lugar, na realidade, na interpretagdo do ator. Mais tarde discutiremos a questio do grau em que o principio da técnica “interior” da interpretagio est relacionado com a montagem. No momento serd suficiente deixar um grande artista do palco e da tela, George Arliss, dar sua contribuigao: Sempre acreditei que, no cinema, a interpretagio devia ser exagerada, mas vi imedia- tamente que a discrigdo era a coisa principal a ser aprendida, por um ator, para transferir sua arte do palco para a tela... A atte da discrigio ¢ da sugestio no cinema pode ser estudada a qualquer hora observando-se a interpretago do inimicdvel Charlie Chaplin.!¢ A tepresentagio enfitica (exagero), Arliss contrapée discrigao. Ele vé o grau desta discricfo na redugao da realidade & sugestio. Ele rejeita nfo apenas a repre- Palavra e imagem 25 sentagio exagerada da realidade, mas até a representagio da realidade na integral Em vez disso, aconselha “sugestéo”. Mas o que é “sugestio” sendo um elemento, um detalhe, um “primeiro plano” da realidade que, justaposto a outros detalhes, fun- ciona como uma resolugio do fragmento inteito da realidade? Assim, de acordo com Arliss, 0 eficaz trecho de interpretagio amalgamado é nada mais do que uma justaposicao de primeiros planos deste tipo, os quais, combinados, criam a imagem do contetido da interpretagio. E, para ir mais além, a interpretagdo do ator pode ter o carter de uma tepresentagio insipida, ou de uma imagem genufna, de acordo como método que empregue para constru(-la. Mesmo se sua interpretacio for toda tomada de um tinico Angulo (ou mesmo de uma tinica poltrona da plaréia de um teatro), apesar disso — num caso bem sucedido —a interpretagio ter4 a qualidade de “montagem”. E preciso que se diga que o segundo exemplo de montagem citado acima (de Outubro) nao & um exemplo de montagem comum, ¢ que o primeiro exemplo (de Maupassant) ilustra apenas um caso onde um objeto ¢ filmado de varios pontos com varios angulos de cimera, Outro exemplo que citarei é bastante tipico da cinematografia, no mais relacionado a um objeto individual, mas, em vez disso, a uma imagem de todo um fendmeno — formada, potém, exatamente do mesmo modo. Eum exemplo notivel de “roteiro de filmagem”. Nele, através de uma acumu- lagdo crescente de detalhes e cenas, uma imagem palpdvel surge diante de nds, No foi escrito como uma obra literdria acabada, mas apenas como uma nota de um grande mestre que tentou colocar no papel, para si mesmo, sua visualizagio do Dilivio. O “roteiro de filmagem” a que me refiro séo as notas de Leonardo da Vinci para uma representacéo do Dilivio pela pintura, Escolhi este exemplo em particu- lar porque nele a cena audiovisual do Diltivio é apresentada com uma clareza incomum. Uma realizagio como esta de coordenagio sonora e visual é notdvel vinda de qualquer pintor, mesmo sendo Leonardo. Que se veja 0 ar escuro, nebuloso, agoitado pelo impeto de ventos contririos entrela- gados com a chuva incessante e o granizo, cartegando para If e para c4 uma vasta rede de galhos de drvores quebtados, misturados com um mimero infinito de folhas. Que se vejam, em torno, dtvores antigas desenraizadas e feitas em pedagos pela firia dos ventos. Deve-se mostrar como fiagmentos de montanhas, arrancados pelas torrentes impetuosas, precipitam-se nessas mesmas torrentes ¢ obstrucm os vales, até que os rios bloqueados transbordam e cobrem as vastas plantcies e seus habicantes. Novamente devem ser vistos, amontoados nos topos de muitas das montanhas, muitas espécies diferentes de animais em trope, atettorizados ¢ reduzidos, finalmen- te,aum estado de docilidade, em companhia de homens ¢ mulheres que fugiram para ld.com seus filhos. 26 O sentido do filme E, nos campos inundados, a superficie da dgua estava quase que totalmente coathada de mesas, camas, barcos ¢ virios outros tipos de balsas improvisadas devido A necessidade ¢ a0 medo da morte; nos quais havia homens ¢ mulheres com seus filhos, amontoados, gritando e chorando, apavorados com a firia dos ventos, que encrespavam as ondas, fazendo-as gitar como um poderoso furacéo, carregando com elas os corpos dos afogados; € nio havia objeto flutuando que nio estivesse coberto de varios ¢ diferentes animais, que haviam feito uma trégua ¢ se amontoavam aterrorizados, entre eles lobos, raposas, cobras ¢ criaturas de todo tipo, fugitivos da morte. E todas as ondas que golpeavam sem cessar, com os corpos dos afogados, os golpes matando aqueles nos quais ainda havia vida, Serio vistos alguns grupos de homens, com armas nas mios, defendendo os miniisculos pedagos de terra que hes restaram dos ledes, lobos e bestas predadoras que neles procuravam a seguranga. © tumulto aterrador se ouve ressoando pelo at sombrio, rasgado pela firia do trovéo ¢ dos raios que ele. cospe € que o atravessam céleres, levando destruigio, derrubando tudo o que se atravessa em seu caminho! ©, quantas pessoas podem ser vistas tampando os ouvidos com as miios para calar 0 rugido feroz langado através do ar obscuro pela firria dos ventos misturados com a chuva, pelo estrépizo dos céus ¢ pelo chispar dos relampagos! Outras no se contentavam em fechar os olhos, mas, tapando-os com as maos, uma em cima da outta, 0s cobriam, ainda mais apertados, para no ver o massacre impiedoso da raga humana pela ira de Deus. Aide mim! quantos lamentos! Quantos em seu terror se jogavam das rochas! Podem-se ver galhos enarmes dos gigantescos carvalhos, repletos de homens, sendo carregados pelos ares com a fiiria dos ventos impetuosos. Quantos barcos emboreados, alguns inteiros, outros em pedasos, em cima de homens que lutam para escapar com atos e gestos de desespero que pressagiam uma terrfvel morte, Outros, com atos frenéticos, tiravam as préprias vidas, no desespero de nao conseguitem suportar tamanha angistia; alguns se atiravam das altas rochas; outros se estrangulavam com as préprias mos; alguns agarravam os préprios filhos, com grande violéncia os matavam de um s6 golpes alguns viravarn suas armas contra si mesmos, para ferit-se e morrer; outros, caindo de joelhos, entregavam-se a Deus. Ail quantas mies choravam 0s filhos afogados, segurando-os sobre os joelhos, erguendo os bragos abertos para o céu e, com diversos gritos ¢ guinchos, clamanda contra ira dos deuses? ‘Outras, com as mios fechadas ¢ os dedos entrelagados, mordem-nas até sangrar € as devoram, curvando-se a panto de os peitos tocarem os joelhos, em sua intensa e insuportdvel agonia. Palavra e imagem 27 Manadas de animais, como cavalos, bois, cabras, ovelhas, devem ser vistos jé cercados pela 4gua, isolados sobre os altos picos das montanhas, apertados contra os outros, € 08 que esto no meio subindo até © topo ¢ pulando em cima dos outros, ¢ jutando encarnicadamente, e muitos morrendo de fome. E 0s pissaros jd comegavam a pousar nos homens € sos animais, por nio mais encontrarem neahum pedaco de terra & flor d’igua que jd nio estivesse cobervo de seres vivos. A fome, o instrumento da morte, jf privara de vida a maior parte dos animais, quando os caddveres, jf mais leves, comecaram a surgir do fundo das 4guas profun- das, emergindo para a superficie no torvelinho das ondas; ¢ lé ficaram batendo uns nos outros e feito bexigas cheias de vento, que ticocheteiam de volta ao lugar de onde foram langadas, caem e se espalham uns sobre os outros. E, acima desses horrores, a atmosfera se via coberta de nuvens higubres rasgadas pela chispa serpenteante dos terriveis raios do céu, que refulgiam, ora aqui, ora ali, em meio a densa escuridio...!7 Esta descrigio nao foi concebida por seu autor como um poema ou ensaio fiterdrio, Péladan, 0 organizador da edicdo francesa do Trattato della pittura, de Leonardo, a considera o projeto de um quadro nunca realizado, que teria sido uma insuperével “chefd'oeuvre da paisagem e da representagio das forgas da natureza”.!® Apesar disso, a descric¢o nfo é um caos, mas foi executada com elementos caracte- risticos das artes “temporais”, em vez. de “espaciais”. Sem analisar em detalhe a estrutura desse extraordindrio “roteiro de filma- gem’, devemos salicntar porém o fato de que a descrigéo segue um movimento bastante definido. Além disso, o curso deste movimento de modo algum é fortuito. O movimento segue uma ordem definida, e depois, na correspondente ordem inversa, volta aos fendmenos do infcio. Comegando com uma desctigao dos céus, o quadro termina com uma descri¢ao semelhante, mas consideravelmente intensificada, No centro estd o grupo de seres humanos ¢ suas experiéncias; a cena se desenvolve dos céus para os homens, ¢ dos homens para os céus, passando pelos animais. Os detalhes maiores (os primeiros planos) sio encontrados no centro, no climax da descricéo (“... mios fechadas com os dedos entrelagados... mordem-nas até san- grar..”). Com absoluta nitidez emergem os elementos tipicos de uma composigao de montagem. O contetido de cada quadro das cenas independentes ¢ reforgado pela crescen- te intensidade da acdo. ‘Vejamos o que chamaremos de “tema animal”: animais tentando fugirs ani- mais arrastados pela torrente; animais se afogando; animais Iutando com seres humanos; animais lutando uns com os outros; as carcagas de animais afogados flutuando na superficie, Ou o progressivo desaparecimento da terra firme sob os pés das pessoas, animais e pdssaros, que atinge o auge no ponto em que os passaros 28 O sentido do filme so forcados a pousar nos homens ¢ animais, sem encontrar nenhum pedago de terra ainda ndo-submerso, ou desocupado. Esta passagem nos lembra obrigatoria- mente que a distribuigio de detalhes em um quadro de um sé plano também presume movimento — um movimento dos olhos, de um fenémeno para outro, de acordo com a composigao. Aqui, é claro, 0 movimento é expressado com nfo menos nitidez do que no cinema, onde 0 olho néo pode discernir a sucessio da seqiiéncia de detalhes numa ordem diferente da estabelecida por quem determina a ordem da montagem. Inquestionavelmente, porém, a descrigio extraordinariamente seqiiencial de Leonardo cumpre nao apenas a tarefa de enumerar os detalhes, mas a de tragar a trajetéria do futuro movimento sobre a superficie da tela. Aqui vemos um exemplo brithante de como, na aparentemente estdtica “coexisténcia’ simultinea de deta- thes, num quadro imével, ainda foi aplicada exatamente a mesma selegdo de montagem, existe exatamente a mesma sucessio ordenada na justaposigao de deta- thes, como nas artes que incluem o fator tempo. ‘A montagem tem um significado realista quando os fragmentos isolados produzem, em justaposigio, o quadro geral, a s{ntese do tema. Isto é, a imagem que incorpora o tema. Passando desta definigdo para o processo criativo, veremos que este ocorre do seguinte modo, Diante da visio interna, diante da percepgio do autor, paira uma determinada imagem, que personifica cmocionalmente o tema do autor. A tarefa com a qual ele se defronta é transformar esta imagem em algumas representagées parciais bésicas que, em sua combinagio ¢ justaposicao, evocario na consciéncia e nos sentimentos do espectador, leitor ou ouvinte a mesma imagem geral inicial que originalmente pairou diante do artista criador. Isto se aplica tanto a imagem da obra de arte como um todo, quanto Aimagem. de.cada cena ou parte independente. No mesmo sentido, isto explica a criagao de uma imagem pelo ator. O ator tem diante de si exatamente a mesma tarefa: expressar, com dois, trés, ou quatro aspectos do carter ou modo de conduta, os elementos bisicos que, em justaposicSo, criam a imagem integral concebida pelo autor, pelo diretor ¢ pelo ptéptio ator. O que é mais digno de nota num método como este? Primeiro ¢ antes de tudo, seu dinamismo. Que reside basicamente no faco de que a imagem desejada mio é fia ou jd pronta, mas surge-~ nasce. A imagem concebida por autor, dirctor ¢ ator € concretizada por eles através dos elementos de representagio independentes, ¢ é reunida — de novo e finalmente— na percepgio do espectador. Este é, na realida- de, o objetivo final do esforgo criativo de todo artista. Gorki colacou isto com elogiiéncia numa catta a Konstantin Fedin: Palavra e imagem 29 Vocé diz: Esti atormentado com a questéo “como escrever?”. Ha 25 anos observo como esta questio preocupa as pessoas... Sim, ¢ uma questo séria; preocupei-me, preocupo-me, e continuarei me preocupando com ela até o fim de meus dias. Mas para mim a pergunta se formula assim: como devo escrever, a fim de que o homem, nao importa quem seja, emerja das paginas da histéria a seu respeito com a forga da palpabilidade fisica de sua existéncia, com a irrefutabilidade de sua realidade semi- imagindria, com a qual 0 vejo € 0 sinto? Este ¢ 0 ponto como o entendo, este € 0 segredo da questio... !? A montagem ajuda na solugdo desta tarefa. A forca da montagem reside nisto, no fato de incluit no proceso criativo a razdo ¢ o sentimento do espectador. O espectador ¢ compelido a passar pela mesma estrada criativa trilhada pelo autor para ctiar a imagem. O espectador niio apenas vé os elementos representados na obra terminada, mas também experimenta o processo dindmico do surgimento ¢ reuniio da imagem, exatamente como foi experimentado pelo autor. E este é, obviamente, o maior grau possivel de aproximagao do objetivo de transmitir visual- mente as petcepgdes ¢ intengdes do autor em toda a sua plenitude, de transmiti- com “a forga da tangibilidade fisica”, com a qual elas surgiram diante do autor em sua obra e em sua visio criativas. - Relevante nesta parte da discussio ¢ a definigéo de Marx do caminho da verdadeira investigagao: Zur Wahrheit gehért nicht nur das Resultat; sondern auch der Weg. Die Untersu- chung der Wahrheit muss selbst wahr sein, die wahre Untersuchung ist die entfaltete ‘Wahrheit, deren auseinander, gestreute Glieder sich im Resultat 2usammenfassen.2” A forca do método reside também no fato de que o espectador ¢arrastado para © ato criativo no qual sua individualidade nao est4 subordinada & individualidade do autor, mas se manifesta através do processo de fusfo com a intengio do autor, cxatamente como a individualidade de um grande ator se funde com a individuali- dade de um grande dramaturgo na criagio de uma imagem cénica cléssica. Na realidade, todo espectador, de acordo com sua individualidade, a seu préprio modo, ea pattit de sua prdptia experiéncia-_ -a partir das entranhas de sua fantasia, a partir da urdidura e trama de suas associagées, todas condicionadas pelas premis- sas de seu cardter, habitos ¢ condigio social —, cria uma imagem de acordo com a orientagdo plistica sugerida pelo autor, levando-o a entender ¢ sentir o tema do autor. E a mesma imagem concebida e criada pelo autor, mas esta imagem, 20 mesmo tempo, também ¢ criada pelo proprio espectador. + Em alemfo no original: A verdade pertence nio apenas o resultado, mas também o caminho. A investigagio da verdade deve em si scr verdadcira, a verdadcira investigagio é a revelagio da verdade, cujos membros separados se unem no resultado. 30 ‘O sentido do filme Seria possfvel achar que. nada poderia ser mais definido ¢ claro do que a listagem quase cientifica dos detalhes do Dihivio, que passam diante de nés no “toteiro de filmagem” de Leonardo. Porém, quio pessoais ¢ individuais sio as imagens resultantes que surgem na mente de cada Ieitor, que derivam de uma especificagio e justaposigio de detalhes partilhadas por todos os leitores de um documento como este. Cada imagem € exatamente tio semelhante ¢ diferente quanto o seria o papel de Hamlet, ou Lear, interpretado por atores diferentes de diferentes paises, épocas ou teatros. Maupassant oferece a cada leitor a mesma estrutura de montagem para a batida dos reldgios, Ele sabe que esta estrutura particular evocard na percep¢do mais do que mera informagio sobre a hora, Uma experiéncia do significado da meia-noi- te seré lembrada. Cada leitor ouve o bater das horas de modo idéntido. Mas em cada leitor surge uma imagem prépria, sua propria representagio da meia-noite, ¢ seu significado. Cada representagdo é, no que diz respeito 4 imagem, individual, diferente ¢, no entanto, idéntica tematicamente. E cada uma dessas imagens da meia-noite, a0 mesmo tempo em que é para todo leitor também a do autor, € também do mesmo modo a sua prépria — viva, proxima, {ntima. ‘A imagem concebida pelo autor tornou-se carne ¢ oss0 da. imagem do espec- tador... Dentro de mim, espectador, esta imagem nasceu e cresceu. Nao apenas 0 autor criou, mas eu também — 0 espectador que cria — participei. No inicio deste capftulo falei de uma histéria emocionalmente excitante ¢ comovente, diferente de uma exposigio Idgica dos fatos — tao diferente quanto uma experiéncia é diferente de um testemunho. Uma exposigo-tertemunho seria a correspondente estrutura de ndo-montagem de cada um dos exemplos citados. No caso das notas de Leonardo da Vinci para O Dihivio, uma exposigio-testemunho nao teria levado em consideragio, como ele 0 fez, as varias escalas ¢ perspectivas a serem distribufdas sobre a superficie do quadro terminado, de acordo com seus cdlculos da trajetéria do olho do espectador. Teria sido suficiente a mera apresentagio do mostrador do reldgio que mostra a hora exata da queda do Governo Provisério. Se Maupassant tivesse usado um método como este na passagem sobre o encontro de Duroy, teria dado a breve informasio de que a meia-noite soara. Em outras palavras, uma abordagem como esta transmi- te apenas informagio documental, nao transformada pela arte em uma forga esti- mutlante ¢ um efcito emocional criados. Como exposicées-testemunho, todos esses exemplos scriam, na linguagem cinematogrdéfica, representagdes filmadas de um iinico angle, Mas, moldados pelos attistas, estes exemplos constituem imagens, ctiadas através da eserusura da montagem, Eagora podemos dizer que é precisamente o princ{pio da montagem, diferente do da representagdo, que obriga os préprios espectadores a criar, e 0 principio da montagem, através disso, adquire o grande poder do estimulo criativo interior do espectador, que distingue uma obra emocionalmente empolgante de uma outra Palavea e imagem 31 que nfo vai além da apresentagao da informagao ou do registro do acontecimento.* Examinando esta diferenca, descobrimos que o princ{pio da montagem no cinema € apenas um caso particular de aplicagio do princtpio da montagem em geral, um principio que, se entendido plenamente, ultrapassa em muito os limites da colagem de fragmentos de filme. Como afirmamos acima, os métodos de montagem compatados, de criagiéo pelo espectador criagao pelo ator, podem levar a conclusdes fascinantes. Nesta compara- 40, ocorre um encontro entre o método de montagem ¢ a esfera da técnica interior do autor; isto é, a forma do pracesso interno através do qual o ator cria um sentimen- to palpitante, exibido em seguida na autenticidade de sua atuagio no palco ou na tela, Foram criados vitios sistemas ¢ doutrinas sobre os problemas da intetpretagdo do ator. Para ser preciso, h4 na verdade dois ou trés sistemas, com varias ramifica~ Bes. As ramificagées se distinguem umas das outras nfo apenas por diferengas de terminologia, mas principalmente por suas diferentes concepsSes quanto ao prin- cipal papel desempenhado pelos diferentes pontos bésicos da técnica da interpreta- cio. Algumas vezes uma escola esquece quase completamente todo um elo do proceso psicolégico da criagio da imagem. Algumas vezes um elo ndo-bdsico & clevado & posigio principal, Mesmo num método to monolftico quanto o do Teatro de Arte de Moscou, com todo 0 seu corpo de postulados bdsicos, hé tendéncias independentes na interpretagao desses postulados. Nao tenho a intengio de entrar nas sutilezas das diferengas, essenciais ou terminolégicas, dos métodos de treinamento ou de criagéo do ator. Meu objetivo é analisar os aspectos da técnica do trabalho do ator que o capacitam a obter resulta- dos — que conquistem a imaginagio do espectador, Qualquer ator ou diretor é, na realidade, capaz de deduzir estes aspectos a partir de sua experiéncia “i se cle consegue deter o proceso para examind-lo. As técnicas do ator ¢ do diretor so, com relacio a este ponto, indistinguiveis, a partir do momento em que o diretor, neste processo, é também, numa certa medida, um ator. A partir da observagdo deste “lado ator” em minha prépria experiéncia como diretor, tentarei esbogar esta técnica interna que estamos analisando através de um exemplo concreto. Ao fazé- lo, nao tenho a menor intengio de dizer algo novo com relasio a esta questo em particular. Suponhamos que estou diante do problema de interpretar a “manha seguinte” de um homem que, na noite anterior, perdeu dinheiro dos cofres ptiblicos num jogo de cartas. Suponhamos que a cena esté cheia de todo tipo de peripécias, inclusive, digamos, uma conversa com a mulher que nfo suspeita de nada, uma cena com a filha que fixa atentamente o pai, cuje comportamento Ihe parece 32 sentido do filme estranho, uma cena do autor do desfalque esperando nervoso que o telefone toque responsabilizando-o, ¢ assim por diante. Suponhamos que uma série destas cenas leve 0 auror do desfalque a uma tentativa de suic{dio com um tiro. A tarefa diante do ator ¢a de interpretar o ultimo fragmento do climax, no qual ele chega 4 conclusio de que sé hd uma soluggo — o suicfdio— ¢ suas maos comegam a tatcar, na gaveta de sua escrivaninha, & procura do revdlver... Acredito que seria quase imposs{vel encontrar um ator expetiente que, nesta cena, comegasse tentando “incerpretar o sentimento” de um homem A beira do suicidio. Cada um de nés, em vez de suar ¢ se esforgar para imaginar como um homem se comportaria sob tal circunstincia, abordaria a questio de um modo bastante diferente. Farfamos com que o estado de animo apropriado eo sentimento apropriado se apoderassem de nés, E 0 estado, a sensacio, a experiéncia autentica- mente sentida, em conseqiiéncia direta, se “manifestaria” em movimentos, agdes, comportamento geral emocionalmente corretos. Este ¢ 0 caminho em diregio a descoberta dos elementos iniciais de um comportamento correto, correto no sentido de que é apropriado a um estado ou sentimento verdadeiramente vivenciado. O prdximo estégio do trabatho de um ator consiste na escolha da composigio desses elementos, depurando-se de qualquer acréscimo fortuito e refinando-os para dar-lhes o grau méximo de expressividade. Mas este é 0 estigio seguinte. Nossa preocupacao aqui é com o estdgio anterior, Estamos interessados na parte do processo na qual o ator & possuido pelo sentimento. Como isto é conseguido? Ja dissemos que no pode ser feito com 0 método do “csforgo e'suor”. Em vez disso, tomamos o caminho que deveria ser usado em todas as situagSes como esta. O que na realidade fazemos é obrigar nossa imaginagio a descrever para nds varias situagbes ¢ quadros concretos apropriados ao nosso tema. A agregagio dos quadros imaginados suscita em nés a emoso requerida, o sentimento, acompreen- so ¢ a experiéncia real que estamos procurando. Naturalmente, o material desses quadros imaginados vai varias, dependendo das caracter{sticas peculiarcs do cardter da imagem do personagem que o ator est interpretando no momento. Suponhamos que um traco caracter{stico de nosso autor do desfalque seja o medo da opinido publica. O que o atetrorizard mais nao serd tanto o remorso, a consciéncia de sua culpa ow o softimento com sua futura priséo, mas “o que as pessoas vio dizer?” Nosso homem, ao se ver nessa posicao, imaginard em primeiro jugar todas as terrfvcis conseqiténcias de seu ato nesses termos. Serio essas conseqiiéncias imaginadas, ¢ suas combinagées, que reduzirio o homem a um tal grau de desespero que ele procurard uma safda inesperada. E assim, exatamente deste modo, que ocorre na vida. O terror resultante da consciéncia da responsabilidade comega a revelar o quadro febril das conseqiién- Patavra e imagem 33 cias. E este conjunto de quadros imaginados, agindo sobre os sentimentos, aumen- tao terror, reduzindo o autor do desfalque a0 auge do horror e desespero. proceso é idéntico aquele com que o ator provoca um estado semelhante no teatro. Existe apenas uma diferenga: 0 seu uso da vontade para forcar a imagina~ do a pintar o mesmo quadro de conseqiiéncias, que na vida real a imaginagdo do homem suscitaria espontaneamente. Os métodos pelos quais a imaginagio levada a isto, com base nas circunstan- cias presumidas ¢ imagindrias, nZo so no momento pertinentes, Estamos tratando do processo no momento em que a imaginagio jé esta descrevendo o que é necessd- rio para a situagio, Nao & necessirio a0 ator obrigar-se a sentir ¢ vivenciar as conseqiiéncias previstas. Sentimento e experiancia, como as agées que fluem deles, surgem por si mesmos, ctiados pelos quadros que sua imaginaggo pinta. O senti- mento vivo serd suscitado pelos préprios quadros, por sua agregagio e justaposicio. ‘Ao procurar modos de despertar 0 sentimento exigido, pode-se descrever para si mesino uma inumerdvel quantidade de situagées ¢ quadros relevantes nos quais emergird o tema sob vérios aspectos. Como exemplo, clegerei as duas situagées que me vieram & mente entre a multiplicidade de quadros imaginados. Sem refletir sobre eles cuidadosamente, tentarei me lembrar deles como me ocorreram. “Sou um criminoso aos olhos de meus ex-amigos e conhecidos. As pessoas me evitam. Sou colocado no ostracismo por elas”, ¢ assim por diante. Para sentir isto com todos os meus sentidos, sigo 0 processo esbogado acima, descrevendo para mim mesmo situagdes concretas, qua- dros reais do destino que me espera. A primeira situaggo na qual me imagino é 0 tribunal, onde meu caso ests sendo julgado. A segunda situagio serd minha volta 4 vida normal depois de cumprir minha pena. Estas notas tentario reproduzir as qualidades plasticas gréficas que varias situagées fragmentadas como estas possuem naturalmente, quando nossa imaginagao estd funcionando a pleno vapor. O modo como essas situagdes surgem difere de ator a ator. Isto ¢ apenas 0 que veio A minha mente quando estabeleci para mim mesmo a tarefa: O tribunal. Meu caso estd sendo julgado. Estou no banco dos réus. A sala esté repleta de pessoas que me conhecem — algumas casualmente, outras muico bem. Capto 0 olhar de meu vizinho fixado em mim. Somos vizinhos h4 30 anos. Ele percebe que o violhando para mim. Seus olhos resvalam sobre mim com afetada abstragio. Ele olha fixamente para a janela, fingindo fastio... Outro espectador na sala do tribunal —a mulher que vive no apartamento acima do meu. Encontrando meu olhar, ela baixa os olhos aterrorizada, enquanto olha para mim com o rabo do othe... Com um movimento claro, meus companheiros de bilhar viram as costas para mim... Ho gordo, dono do salgo de bilhar, e sua mulher — encarando-me com 34 O sentido do filme insoléncia... Tento me encolher olhando para os pés. Nao vejo nada, mas 4 minha volta ouso os sussurros de censura €.0 mutmiitio de vozes. Como um golpe atris do outro, caem as palaveas da stimula do promotor... Imagino a outra cena com a mesma nitidez — minha volta da prisio: A batida dos portdes atrés de mim, quando sou libertado... © othar espantado da cempregada, que pra de timpar as janelas do vizinho quando me vé entrando em meu velho prédio... Hi um nome nove na caixa do corrcio.. © chio do vestibule foi recentemente encerado ¢ hd um novo tapete em frente & mina porta... A porta do apartamento 20 lado se abre... Pessoas que eu nunca vira antes me olham com suspeita e inquisitivamente. Os filhos se agarram nelas; instintivamente se escondem. Debaixo, com os éeulos tortos no natiz, o velho porteiro, quese lembra de mim, olha para cima através do vao da escada... “Tets ou quatro cartas amareladas enviadas para meu endereco antes que minha desgraga fosse do dominio publico... Duas ou trés moedas soam em meu boiso... E entio — a porta é fechada em minha cara pelos ex-conhecidos que agora ocupam meu. apartamento... Minhas pernas carregam-me, relutantemente, para cima, em diregio a0 apartamento da mulher que eu costumava visitar e entio, quando sé faltam mais dois passos, volto. A gola rapidamente levantada de um, transeunte que me reconhece... E assim por diante. Acima esté o resultado apenas de anotagées sobre tudo 0 que passa pela minha mente e sentimentos quando, tanto como diretor, quanto como ator, tento me apossar emocionalmente da situagio proposta. Depois de me colocar mentalmente na primeira situagio, ¢ depois de passar mentalmente pela segunda, fazendo 0 mesmo com duas ou trés situagées relevantes de intcnsidade variada, gradualmente atinjo a percepgao auténtica do que me espera no futuro ¢, em conseqtiéncia, & experiéncia real da desesperanca e da tragédia de minha posigio. A justaposigéo de detalhes da primeira situagio imagi- nada produz um matiz desta sensagio. A justaposigio de detalhes da segunda situagio — outro. O matiz. de um sentimento é acrescentado ao outro, ¢ de todos eles comega a surgir a imagem da desesperanga, inseparavelmente ligada & intensa experiéncia emocional de sentir de fato tal desesperanga, Deste modo, sem esforco para representar o préprio sentimento, é possfvel suscité-lo pela reunigo ¢ justaposigéo de detalhes ¢ situagées deliberadamente selecionadas entre todas as que primeiro se acumularam na imaginagio. H inrelevante se a descrigao deste proceso, como esbocei acima, coincida ou no em seus detathes mecinicos com qualquer escola de técnica de representacio. © que importa € que um estégio semelhante ao descrito acima existe em qualquer caminho rumo a formagio e intensificagéo da emogio, seja na vida real ou na técnica Palavra e imagen: 35 do proceso criativo, Podemos nos convencer disto com um mtnimo de auto-obser- vagio, seja.das condigdes da criagao, seja das circunstancias da vida teal, Outra questdéo importante € 0 fato de que a técnica da criagdo recria um processo da vida, condicionado apenas pelas circunstancias especiais exigidas pela arte. Deve-se levar em conta, é claro, que nfo analisamos todo o corpo da técnica de interpretacao, mas apenas um tinico elo de seu sistema. Por exemplo, nfo abordamos absolutamente a natureza da prépria imagina- 40, particularmente a técnica de seu “aquecimento” até o ponto em que cla seja capaz de pintar os quadros que desejamos, aqueles exigidos pelo tema particular. A falta de espago néo permite um exame desses clos, apesar de que sua andlise confirmaria as afirmagGes aqui feitas. No momento, nos limitamos ao ponto ja discutido, mas tendo em mente que o elo que analisamos nfo ocupa um espao maior na técnica do ator do que a montagem entre os recursos expressivos do cinema. Nem tampouco podemos presumir que a montagem ocupa um lugar menos importante. Pois bem, de que modo essa introdugao a0 campo da técnica interior do ator difere, na prética ou em principio, do que esbogamos previamente como a esséncia da montagem cinematografica? A diferenga estd no campo da aplicagio, ¢ no no da esséncia do método. Nossa ultima pergunta foi como fazer para que os sentimentos vivos ¢ as experiéncias emerjam do interior do ator ‘A pergunta anterior foi como evocar nos sentimentos do espectador uma imagem sentida emocionalmente. Em ambas as perguntas, os elementos estiticos, os fatores dados os imagina- dos, todos em justaposicao, criam uma emogio que emerge dinamicamente, uma imagem que emerge dinamicamente. Nao consideramos isto, de modo algum, diferente, em ptineipio, do proceso de montagem no cinema: aqui hé a mesma concretizacao intensa do tema tornan- do-se perceptivel através de detalhes determinantes, sendo o efeito resultante da justaposigio desses detalhes a evocacio do préprio sentimento. Quanto a verdadeira natureza dessas “visées” que aparecem diante do “olho interior” do ator, seus aspectos plisticos (ou auditivos) sio completamente homo- géneos com as caracterfsticas t{picas do plano cinematogréfico. Os termos “frag- mentos” e “detalhes”, conforme aplicados, acima, a essas vis6es, nao foram escolhi- dos ao acaso, jA que a imaginagao nfo evoca quadros completos, e sim propriedades decisivas ¢ determinantes desses quadros. Porque, se examinamos as mutitas “vis6es” anotadas quase que automaticamente acima, que eu honestamente tentei registrar 36 O sentido do filme com a precisio fotogrifica de um documento psicoldgico, veremos que estas “vi- sées” tm uma ordem positivamente cinematogréfica — com angulos de cimera, tomadas de varias distancias e rico material de montagem. Um plano, por exemple, era principalmente o de um homem virando as costas, obviamente uma composigao que mostra as costas, em vez de toda a figura. Dois rostos com um olhar vitreo e obstinado contrastam com os cilios abaixados, sob os quais a mulher do apactamento de cima me olhava de soslaio —- obviamente exigindo diferentes distincias de cAmera. Hé virios primeiros planos Sbvios — do tapete novo diante da porta, dos trés envelopes. Ou, usando outro sentido, que ¢ igualmente parte de nossa midia —o plano geral sonoro do piblico que murmura na corte de justiga, contrastando com as poucas moedas tilintando em meu bolso etc. As lentes mentais trabalham deste modo com variages—ampliam a escala ou adiminuem, ajustando-se tio fielmente quanto uma cAmera de filmagem aos virios quadros exigidos —, avangando ou afastando o microfone. $é 0 que falta para transformar esses fragmentos imaginados num tpico roteiro de filmagem é a colocagao de ntimeros antes de cada fragmento! Este exemplo revela o segredo da realizagio do roteito de filmagem, com emogio genufna e movimento, em vez de uma mera alternincia tediosa de primei- ros planos, planos médios e planos geraist Acesséncia bdsica do método vale para ambas as esferas. A primeira tarefa € a divisio criativa do tema em representagdes detcrminantes, ¢ depois combinacio dessas representagies com o objetivo de dar vida & imagem inicial do tema. Eo processo pelo qual esta imagem é percebida idéntico 4 experiéncia original do tema, do contetido da imagem. Também tio insepardvel desta experiéncia intensa genuina ¢ o trabalho do diretor ao escrever o roteiro de filmagem. Sé ele pode Ihe sugerir as representagGes decisivas através das quais a imagem, completa do tema pode irromper na forma de vida criativa, Nisto reside o segredo daquela qualidade de exposi¢ao emocionalmente insti- gante (diferente da exposigéo-testemunho da mera informagio), da qual falamos antes, e que é uma condigéo tanto da interpretagdo viva de um ator, quanto da viva realizagio de filmes. Veremos que um conjunto semelhante de quadros, cuidadosamente selecio- nados ¢ reduzidos 20 extremo laconismo de dois ou.trés detalhes, sera encontrado nos melhores exemplos da literatura. Vejamos © poema narrative de Puchkin, Poltava — a cena da execugao de Kochubei. Nesta cena, o tema do “final de Kochubei” é expressado com brilho incomum pela imagem do “final da execugio de Kochubei”. A imagem real deste final da execugio emerge ¢ cresce da justaposi¢ao de trés representagdes seleciona- das quase “documentalmente” de trés detathes do episddio: Palavra e imagers 37 “Tarde demas”, disse alguém © dedo apontande para o campo. L4, 0 cadafalso fatal era desmontado : Um padre de sotaina preta rezava E sobre uma eatroga era colocado Por dois cossacos um caixio de carvalho. Seria dificil encontrar uma selegio mais eficaz de detalhes para descrever a sensagio da imagem da morte em todo o seu horror, do que esta da conclusio da cena de execugio. Avalidade da escolha de um método realista para criar ¢ obter uma qualidade emocional pode ser confirmada por varios exemplos muito curiosos. Eis, por exemplo, outra cena de Poltava, de Puchkin, na qual o poeta faz. com que a imagem de uma fuga noturna surja magicamente diante do leitor com todas as suas possibi- lidades pictéricas ¢ emocionais. Mas ninguém sabia como ou quando Ela sumira, Um pescador solitdrio Ouviu naquela noite 0 galope de cavalos, Vozes de cossacos ¢ o sussurro de uma mulher ‘Tiés planos: 1. Galope de cavalos 2. Vozes de cossacos 3. O sussurro de uma mulher Novamente trés representagées objetivamente expressadas (sonoras!) se jun- tam numa imagem unificadora expressada emocionalmente, diferente da percep- g4o de fendmenos isolados percebidos desvinculados de sua associagéo um com 0 outro. O método é usado apenas com 0 objetivo de suscitar a necessdtia experiéncia cemocional no leitor. Apenas a experiéncia emocional, porque a informagao de que Marya desaparecera fora dada no verso anterior (“Ela sumine, Um pescador solind- rio”). Tendo contado ao leitor que ela desaparecera, o autor quis dar-Ihe a sensaggo também. Para consegui-lo, usa a montagem, Com trés detalhes selecionados entre todos os clementos da fuga, sua imagem de fuga noturna surge na forma de montagem, comunicando a experiéncia da ago aos sentidos. ‘Aos trés quadros sonotos ele acrescenta um quarto quadro, que tem o efeito de um ponto final. Para obter este efeito, cle escolhe seu quarto quadro em outro sentido. Este tiltimo “primeiro plano” nao é sonoro, mas visual: a» E oito ferraduras de cavalos deixam suas pegadas Sobre o orvalho da manha no prado... 38 O sentido do filme Assim, Puchkin usa a montagem para criar as imagens de uma obra de arte. Mas também usa.a montagem com igual habilidade quando cria a imagem de um personagem, ou de todo um dramatis personae. Com uma combinacio superlativa de varios aspectos (isto ¢, “angulos de cAmera”) ¢ de diferentes elementos (isto é a montagem de coisas representadas pictoricamente, destacadas pelo enquadramento do plano), Puchkin obtém espantoso realismo em suas descrigdes. Ena verdade 0 homem, compleco em seus sentimentos, que emerge das paginas dos poemas de Puchkin. Quando Puchkin trabalha com uma grande quantidade de trechos de monta- gem, seu uso desse recurso se torna mais complicado. O ritmo, construfdo com sucessivas frases longas c frases tio curtas que constam de uma unica palavra, introduz uma caracteristica dindmica na imagem da estrutura da montagem. Este ritmo serve para estabelecer o verdadeiro temperamento do personage desctito, dando-nos uma caracterizagio dindmica de seu comportamento. Pode-se aprender também com Puchkin como fazer para que uma sucesso ordenada da apresentagao ¢ revelagio das caracterfsticas ¢ da personalidade de um homem aumente o valor total da imagem. Um exemplo excelente desta conexio ¢ sua desctigao de Pedro, o Grande, em Polsava: 1... Eent#o, coma maior veeméncia, .. Soou, vibrante, a voz de Pedro: Hit. “As armas, Deus esteja conos IV. Porinimeros favoritos rodeado, v. Pedro surge. Seus olhos vi. Fafscam. Seu ofhar é terrivel. VII. Seus movimentos dgeis. Magnifico, Vill. Todo o seu aspecto, fuiria divina. 1X. Avanga, Seu corel lhe ¢ entregue. X. — Fogoso e décil, fiel cavalo de batalha. XI. Pressentindo o fogo fatal, XIL Treme. Envicsa os olhos, Xill. Ese langa na poeira da luta. XIV. Orguthoso de seu poderoso cavaleiro.”4 Da tenda, A numeragio acima ¢ a dos versos do paema: agora descreveremos novamente esta passagem como se fosse o roteiro de um filme numerando os “planos” tal como montados por Puchkin 1, Eentio, coma maior veeméncia, sou, vibrante, a voz de Pedro: “As armas, Deus esteja conosco!” 2. Da tenda, por imimeros favoritos rodeado. 3, Pedro surge. Palavra eimagem 39 4, Seus olhos fatscam. 5. Seu olhar é tersfvel. 6. Seus movimentos 4geis. 7. Magnifico. 8. Todo o seu aspecto, fiiria divina. 9. Avanga. 10, Seu cozcel Ihe é entregue. 11. Fogoso e décil, fie! cavalo de batalha. 12. Pressentindo o fogo fatal, treme. 13. Enviesa os olhios. 14, Ese langa na poeira da luta, orguhoso de seu poderoso cavaleiro. O ntimero de versos ¢ 0 ntimero de planos se mostram idénticos, 14 em cada caso, mas quase no hd coincidéncia entre o esquema dos versos ¢ 0 esquema dos planos; cal coincidéncia ocorre apenas duas vezes nos 14 versos: VIII = 8 eX = 11. ‘Alémn disso, 0 contetido de um plano varia de dois versos completos (1, 14) a uma tinica palavra (9). Isco & muito instrutivo para profissionais de cinema, particularmente os espe- cialistas em som. Examinemos como Pedro é “montado”: Os planos 1, 2.¢ 3 contém um excelente exemplo de apresentagio significante de uma figura em ago. Aqui trés nfveis, trés estégios de seu aparecimento, so absolutamente distintos: (1) Pedro ainda nao é mostrado, mas é apresentado pelo som — sua voz. (2) Pedro sai da tenda, mas ainda nao € visivel. Tudo o que podemos ver € 0 grupo de favoritos rodeando-o. (3) Finalmente, apenas num terceiro estdgio, Pedro ¢ realmente visto ao se afastar da tenda. Isto € seguido pelos olhos faiscantes, o detalhe mais importante de sua aparén- cia geral (4). Em seguida, todo 0 rosto (5). Sé entao sua figura inteira é apresentada (apesar de cortada nos joelhos pelo enquadramento de um plano em traveling), para mostrar seus movimentos, sua agilidade ¢ energia. O ritmo do movimento e 0 personagem que cle ilumina sio expressados “impetuosamente” pelo choque de frases curtas. A apresentacio total de toda a figura s6 ocorre no Plano 7, e agora de um modo que supera a deserigdo informativa — vividamente, como uma imagem. “Magnifico.” No plano seguinte, esta descricéo ¢ reforcada e ampliada: “Todo o seu aspecto, fitia divina.” Apenas no oitavo plano Puchkin revela Pedro com 0 poder total de uma representagio plastica. Este oitavo plano, obviamente, enquadra Pedro em todo o seu tamanho, salientado por todos os recursos da composi¢io do plano, com uma coroa de nuvens acima dele, com tendas € pessoas rodeando-o a seus pés. Depois deste plano amplo, o pocta nos reconduz imediatamente para 0 Ambito do movimento e da agio, com a tinica palavra “avanga”. Seria dificil capturar de modo mais intenso a segunda caracter{stica decisiva de Pedro: o andar de Pedro - — a mais 40 O sentido do filme impressionante desde os “olhos faiscantes”. O lacénico “avanga” transmite comple- tamente a sensago do enorme, primitivo, impetuoso andar de Pedro, que sempre tornou dificil a seu séquito segui-lo, De um modo igualmente genial Valentin Scrov capturou ¢ registrou este “andar de Pedro” com seu famoso quadro de Pedro na construgio de Sao Petersburgo.*> Acredito que a apresentagio acima seja uma leirura cinematogréfica correta dessa passagem. Em primeiro lugar, uma “introdugo” como esta de um persona- gem de Puchkin ¢ geralmente tfpica de seu estilo. Basta ver, por exemplo, outra brilhante passagem de um tipo exatamente igual de “apresentagio”, o da bailarina Istomina em Eugene Oneguin.?*Uma segunda prova da correcéo da leitura acima a determinagao da ordem das palavras que, com absoluta exatidio, por sua ver, ordena o aparecimento sucessivo de cada elemento, os quais finalmente se fundem na imagem do personagem, “tevelando-o” plasticamente. Os planos 2 ¢ 3 seriam construidos de modo bastante diferente se, em vez de a Da tenda Por intimeros favoritos rodeado, Pedro surge... 0 texto dissesse: = Pedro surge, Por intimeros favoritos rodeado, Datenda... Se o aparecimento tivesse comecado com Pedro, em vez de conduzit a Pedro, a impressio seria bastante diferente. Como Puchkin escreveu, é um modelo de expressividade, conseguido através de um puro método de montagem e com meios de pura montagem, Para cada caso hi dispon{vel uma estrutura expressiva diferen- te. Masa estrutura expressiva escolhida para cada caso prescreve e traga previamente “a tinica organizagio correta das tinicas palavras adequadas”, sobre a qual Tolstoi escreveu no ensaio O que é a arte? O som da voz de Pedro ¢ suas palavras so ordenados com a mesma qualidade de sucessio Iégica que permeia as imagens pictéticas (ver Plano 1). Porque Puchkin nio escreveu: wa"As armas, Deus esteja conosco!” Soou a voz de Pedro, vibrante, com a maior veeméncia, Palavra e imagem a w» Eentio, com a maior veeméncia, Soou, vibrante, a vor de Pedro: “As armas, Deus esteja conosco! Se nés, como cineastas, tivermos que enfrentar a tarefa de construir a expres sividade de uma tal exclamagio, também devemos transmiti-la de modo que haja uma sucessio ordenada, revelando primeiro sua veeméncia, depois sua qualidade vibrante, seguida pelo nosso reconhecimento da voz como a de Pedro, ¢ finalmente, distinguindo as palavras que esta vor exaltada, poderosa, de Pedro emite: “As armas, Deus esteja conosco!” Parece evidence que, ao “encenar” tal passagem, a questo deveria ser resolvida simplesmente ouvindo-se primeiro uma frase de exclamagio saindo da tenda, na qual as palavras nao poderiam ser distinguidas, mas que ja transmitiriam as qualidades de veeméncia e vibragéo que mais tarde se reconheceria como caracterfsticas da voz de Pedro. Como vemos, isto ¢ de grande importéncia com relagdo ao problema do enriquecimento dos recursos expressivos do cinema. © exemplo é um modelo do tipo mais complexo de composigio som-imagem ou dudio-visual. Parece incrfvel que ainda exista entre nés quem considere desne- cessdtio buscar esse tipo de ajuda para nosso meio de expresso, ¢ considere que é possivel acumular experigncia suficiente através do estudo da coordenagio da nisica com a ago apenas na épera ou no bale! Puchkin nos ensina até como trabathar de modo a evitar uma coincidéncia mecanica entre os planos ¢ 0 ritmo da trilha musical. Consideremos apenas o caso mais simples — a ndo coincidéncia dos compas- sos (neste caso, os versos) com os finais, inicios e duragées dos quadros plisticos isolados. Num diagrama simples seria mais ou menos assim: Milsica_ Imagem mil wiv pvp Pron xX [xt [xm [xt] xiv L2 Biers fof | 2 [314 A linha superior é ocupada pelos 14 versos da passagem. A linha inferior, pelas 14 imagens feitas a partir dos versos. O diagrama indica sua distribuigao correspondente em relagao & passagem. Este diagrama torna evidente o primoroso estilo de contraponto de elementos sonoros-visuais que Puchkin usa para obter os magnificos resultados desta passa- gem polifénica do poema, Como jé vimos, com a excegao de VIII = 8 eX = 11, nao verificamos nem mais um tinico caso de correspondéncia idéntica de verso ¢ plano. Além disso, plano ¢ verso coincidem em relagdo & ordem apenas uma vez: VIII +8, Isto nfo pode ser acidental. Esta nica correspondéncia exata entre as articula- ges da mtisica e as articulagdes dos planos marca o trecho de montagem mais significativo de toda composigéo. E tinico: neste oitavo plano, as caracteristicas de 42 O sentido do filme Pedro sao plenamente desenvolvidas ¢ plenamente reveladas ¢, além disto, 0 nico Verso que usa uma comparagio pictérica: “Todo o seu aspecto, firia divina.” Vemos que este recurso de coincidir a énfase da miisica com a énfase da representagio é usado por Puchkin no caso de maior impacto da passagem. Isto é exatamente 0 que faria no cinema um montador experiente — como um compositor de harmonias audiovisuais. Na poesia, o encadeamento de uma frase descritiva, de um verso para outro, € chamado de “enjambement”. Em sua Introdugito a métrica, Zhirmunsky escteve: Quando a atticulagio métrica no coincide com a sintética, surge o chamado enca- deamento (enjambement)... © sinal mais caracter(stico de um encadeamento é a presenga, em um verso, de uma pausa sintdtica mais significativa do que a do inicio ou fim do verso...” Ou conforme se pode ler no Webster’ Dictionary: ENJAMBEMENT,,, Continuagio do sentido em uma frase, depois do final de um verso ou distico, prolongamento de uma frase de um verso para outro, de forma que palayras intimamente relacionadas caem em versos diferentes...’ ‘Um bom exemplo de enjambement pode set visto no Endymion, de Keats: «+ Assim terminou ele, ¢ ambos Sentaram-se silenciosos: porque a jovem relutava muito Em responder; percebendo bem que aquclas palavras sussurradas Se perderiam, sem serem ouvidas, ¢ vis como espadas Contra crocodilos empalhados, ox pulos De gafanhotos contra 0 sol. Ela chora, E imaginas esforsa-se para divisar alguma culpa Para colocar no olhar a expressio, Vergonha Por esta pequena fitqueza! mas apesar de todo 0 esforgo, ‘Seria mais facil para ela tirar a vida De uma pomba doente, Finalmente, para quebrar 0 siléncio, Ela disse, com trémula expcctativa: “E esse 0 motivo?”... Zhirmunsky também fala de uma interpretagio particular deste tipo de cons- trugSo que também nos interessa, de certo modo, com relago As nossas harmonias audiovisuais no cinema, onde o quadro desempenba o papel da frase sintética e a estrutura musical o papel da articulagao ritmicat Quatquer nao-coincidéncia da articulago sintética com a métrica é uma dissonancia artisticamente deliberada, que se resolve no ponto em que, depois de uma série de Palavra e imagem 43 ndo-cojncidéncias, a pausa sintdtica finalmente coincide com os limites da série sitmica.?? Isto pode ser ilustrado por um exemplo, desta vez de Shelley, de Julian ¢ Maddalo: Ele parou e, | perturbado, reclinou-se um pouco, || Entio levantando-se, com um sorriso melancélico Foi para um soff, || e deitou-se, || e dormiu Um sono pesado, || e em seus sonhos cle chorou E murmurou um nome familiar, |[e nés Choramos, sem nos envergonharmos, em sua companhia... Na poesia russa, 0 “enjambement” assume formas particularmente ricas na obra de Puchkin. Na poesia, francesa, 0 uso mais consistente desta técnica se encontca na obra de Victor Hugo ¢ André Chénier, apesar de 0 exemplo mais claro que jamais encontrei na poesia francesa estar num poema de Alfred de Musset: Lantilope aux yeux bleus, | est plus tendre peut-éire Que le roi des fortts;\| mais le ion répond Quil nest pas antilope, | et quil a nom |\ lon’. © “enjambement” entiquece a obra de Shakespeare ¢ Milton, reaparecendo em James Thomson, Keats ¢ Shelley. Mas é claro que o poeta mais interessante a este respeito é Milton, que teve grande influéncia sobre Keats ¢ Shelley em seu uso desta técnica. Ele declarou seu entusiasmo pelo “enjambement” na introducao de Panatso perdido: .. verdadeiro deleite musical... consiste apenas em Ntimeros apropriados, quantida- de adequada de Silabas, ¢ 0 sentido prolongado, de formas variadas, de um Verso para outro. O préprio Paraiso perdido & uma escola de primeiro nivel no ensino de montagem e relagdes audiovisuais. Citarei varias passagens de diferentes partes da ie © antilope de olhos aas| 6 talvex mais terno Que o Rei da Floresta |; Mas 0 leio responde Que nio ¢ antilope !e que seu nome é | leio 44 (O sentido do filme obra — em primeiro lugar, porque Puchkin, traduzido, nunca consegue dar a0 Ieitor estrangeiro o deleite dircto das peculiaridades de sua composigao, conseguido pelo leitor russo em passagens como as analisadas acima, Isto 0 leitor pode conse- guir obter mais sucesso em Milton. £, em segundo lugar, porque duvido muito que meus colegas britanicos ou norte-americanos tenham o habito de folhear com freqiitncia o Paralso perdido, apesar de ele conter coisas muito instrutivas para o cineasta, Milton é particularmente bom em cenas de batalha. Aqui sua experiéncia pessoal ¢ observagdes de testemunha ocular freqiientemente tomam corpo. Hilaire Belloc escreveu com justiga sobre ele: Tudo o que é marcial, que combina som e multidéo, atraiu Milton desde 2s Guerras Civis... Sua imaginagio capturava especialmente o apelo da miisica ¢ o esplendor das cores...3! E, conseqiientemente, ele descreveu as batalhas divinas com detalhes tio intensamente terrenos que freqiientemente foi alvo de sérios ataques ¢ reprovacées. Estudando as paginas de seu pocma e, em cada caso individual, analisando as qualidades determinantes ¢ efeitos expressivos de cada exemplo, enriquecemos extraordinarjamente nossa experiéncia com relagao a distribuicao audiovisual das imagens em sua montagem sonora. Mas cis as imagenst (A aprosimagto da “Hoste de Satd”) sofinalmente Ao longe, no Hlorizonte, descobriu-se De um lado a0 outro, Regido fgnea, disposta Sob a forma de exército, que, aproximando-se Mostrava poderes ligados a Sacands, Cobertos com os ralos inumerdveis De sélidas ¢ inflexiveis Langas; via-se uma afluéncla de Capacetes ede virios Eseudos Guarnecidos com Pinturas insolentes Esses Podeses se apressavam, Com furiosa rapidez..2? Notem a instrugéo cinematografica, no terceiro verso completo, para mudaro lugar da cémena; “aproximando-se”! (O movimento correspondente das "Hostes Celestais") .~- essa alta honra é reclamada, como direito, Por Azazel, grande Querubin, Palavra e imagem 45 Que, imediatamente, desfralda da Haste brilhante A Insignia Imperial que, clevada ¢ plenamente avangada, Brilha como um Meteoro, flutuando ao Vento, Como as Pérolas e a rica cintilagéo do Ouro, A brasonarem as Armas ¢ 0s Troféus serdficos. Durante tudo este tempo © bronze sonoro enchia o ar, com sons Marciais, Eo exército universal expediu Um grito, que rasgou a Cavidade do Inferno, e, mais longe ainda, ‘Assustou 0 Reino do Caos ¢ da velha Noit Num instante, no meio das Trevas, foram vistas : Dez mil Bandeiras levancadas no Ar ‘Ondulando as Cores Orientais: com estas bandeiras, ergueu-se Enorme Floresta de Langas, Capacetes aglomerados Apareceram e os Escudos curvaram-se em densa linha De extensio incomensurdvel! Dentro em pouco, os guezreiros movem-se Em perfeita Falange, & maneira dos Dérios: Flautas e suaves Oboés; uma tal meneita elevou A altura da mais nobre calma heréis antigos ‘Aatmarem-se para a Batalhas...3> E aqui esta uma parte da prépria batalha, Eu a transcreverei com os mesmos dois tipos de transcrigio como o fiz na passagem de Polzava de Puchkin. Primeiro, como dividida em versos por Milton, e depois arrumados de acordo com os virios quadros de composigao, como um roteiro de filmagem, onde cada ntimero indica um novo fragmento de montagem, ou plano. Primeira transcriga ... em forga, cada mio armada valia 1. Uma Legitio. Conduzido ao combate, cada Soldado parecia um Chefe, I, Cada Chefe um Soldado; destros, I, Sabiam quando deviam avangar ou deter-se, quando deviam mudar a diregio IV. Da Batalha, abrir ou fechar V. Os sulcos da horrivel Guerra. Nenhum pensamento de fuga Vi. Nem de retirada, nenhuma ago indecorosa VII. Que provasse o medo; cada um confiava em si mesmo. ‘Vill. Como se o momento da vitéria dependesse 1X. Somente do seu braco. Inumerdveis feitos de fama imorredoura X. Foram efecuados, pois vasta e variada se estendia XL. A Guerra; ora 0 combate mantido em terra firme XII. Ora elevando-se sobre poderosa asa, XII Atormentava todo o Ar, € entio todo o Eter parecia XIV, Fogo Militante. A Batalha por muito XV. Foi suspensa em igual balanga. 46 O sentido do filme Segunda transcrigio: 1, Conduzido ao combate, cada soldado parecia um chefe, cada chefc um soldado; 2. destros, sabiam quando deviam avangar 3. ou deter-se 4, quando deviam mudar a diregao da batalha 5. abrir 6. ou fechar os sulcos da horrivel guerra 7. Nenhum pensamento de fuga, 8, nem de retirada, nenhuma agio indecorosa, que provasse o medo; 9. cada um confiava em si mesmo, como se o momento da vitdria dependesse de seu. brago 10. Inumerdveis feitos de fama imorredoura foram efetuados 11, pois vasta e variada se estendia a guerra; 12. ora o combate mantido se estendia em terra firme 13. ora levando-se sobre poderosa asa, atormentava todo 0 ar, 14, eentio todo o éter parecia fogo militante 15. A batalha por muito foi suspensa em igual batanga... Como na citagio de Puchkin, aqui também h4 um ntimero idéntico de versos ¢ planos, Também como em Puchkin, constru{do aqui um esquema de contra- ponto ndo-coincidente entre os limites das representagies e os limites das articula- gées ritmicas. Ese levado a exclamar; nas préprias palavras de Milton em outra parte do poema: wwlabirintos intrincados, Excéntricos, envolvidos uns nos outros porém regulares ‘Ao méximo, quanto mais irregulares parecem...?? Mais uma passagem do Livro V1, quando 0s anjos rebelados sio jogados no Inferno: No entanto, o Filho de Deus nfo tinha ainda usado a metade de sua forga, ¢ refreou Q Seu Trovio no meio da Descarga, pois Ele nao visava Destruf-los, mas desarraigé-los do Céu; 1. Levantou os que estavam caldos ¢, como a um Fato 1 De Cabras ott a um rebanho timido, reunido em tropel, WI. Expulsa-os sua frente. Fulminados, perseguidos IV. Pelos terrozes e pelas firias até os limites, V. Atéa Muralha de Cristal do Céu, que, abrindo-se amplamente, Vi. Rola no seu amago e descobre, por espacos Brecha. Vil. Q Abismo devastado; esta vis a monstruosa Palavra e imagem 47 VIII. Os fere de horror, mas ao longe, horror ainda pior 1X. Os faz recuar; cabega para baixo, eles préprios se precipitam X. Daborda do Céu, a célera eterna XI, Arde atris deles até o abismo insondével. Nove dias eafram...36 E como se fosse um roteiro de filmagem: 1, Levantou os que estavam caidos, 2. como a.um fato de cabras ou a um rebanho timid, reunido em tropel 3. expulsa-os A sua frente, fulminados, 4, perseguidos pelos terrores ¢ pelas firias aré os limites, até a muralha de cristal do edu 5. que, abrindo-se amplamente, rola no seu Amago 6. edescobre, por espacosa brecha 7. oabismo devastado; 8. csta vista monstruosa os fere de horror 9. mais ao longe, horror ainda pior os faz recuar 10. cabega para baixo, cies préprios se precipitam da borda do céus 11. a célera eterna arde atrds deles até o abismo insondavel. E possivel achar em Milton tantos exemplos de coordenagio, instrutivos como estes, quanto se desejar O esquema formal de um poema, em geral, observa a forma de estrofes distribufdas internamente de acordo com a articulagao métrica — em versos. Mas a poesia também nos proporciona outro esquema, que tem um poderoso defensor em Maiakovski. Em seu “verso cortado”, a articulagio ¢ feita nao de acordo com os limites do verso, mas de acordo com os limites do “plano”. Maiakovski nao trabalha com versos: Vicuo, Voa nas alturas, Nas estrelas esculpindo seu caminho.2” Ele trabalha com planos: Vicuo. Voa nas alturas. Nas estrelas esculpindo seu caminho. Aqui Maiakovski corta seu verso exatamente como um experiente montador a0 construir uma seqiiéncia tipica de “impacto” (as estrelas — e Yesenin, Primeiro— um, Depois: -0 outro. Seguido pelo impacto de um contra o outro. 48 O sentido do filme 1, Vdewo (ge féssemos filmar este “plano”, enquadrarfamos as estrelas para enfatizar 0 vazio, mas 20 mesmo tempo fazendo com que sua presenga seja sentida). 2. Voa nas alturas 3. apenas no terceiro plano retratamos claramente os contetidos do primeiro € segundo planos nas circunstincias de impacto. Como podemos ver, ¢ como poderia ser multiplicado com outros exemplos, a ctiaggo de Maiakovski ¢ impressionantemente gréfica nesta questo da montage. Em geral, porém, neste caso é mais excitante voltar aos cldssicos, porque cles pertencem a um perfodo em que nem se sonhava com a “montagem” neste sentido. Maiakovski, afinal de contas, pertence ao perfodo no qual as reflexées sobre a montagem ¢ os princfpios de montagem se tornaram amplamente correntes em todas as artes préximas da literatura: no teatro, no cinema, na montagem fotografi- ca, eassim por diante. Em conseqiiéncia, exemplos de estilo realista de montagem tirados do tesouro de nossa heranga clissica, onde interagées desta natureza com campos préximos (por exemplo, com o cinema) eram poucas, ou totalmente inexistentes, sio os mais intensos ¢ mais interessantes ¢, talvez, mais instrutivos. Porém, nio importa se na imagem, no som ou em combinagdes imagem — som, se na ctiagio de uma imagem, de uma situagio, ou na “mégica” encarnagio diante de nossos olhos das imagens dos dramatis personae — seja em Milton ou em Maiakovsli —, em toda parte encontramos igualmente presente este mesmo méto- do de montagem. Que conclusio podemos tirar sobre 0 que foi dito até agora? A conclusio ¢ que nao hé nenhuma incompatibilidade entre © método pelo qual o poeta escreve, 0 método pelo qual o ator forma sua ctiagio dentro de si ‘mesmo, 0 método pelo qual o mesmo ator interpreta seu papel dentro do enquadra- mento de wn nico plano, e 0 método pelo qual suas ages ¢ toda a interpretacio, assim como as agdes que 0 cercam, formando seu meio ambiente (ou todo o material de um filme), fulguram nas mos do diretor através da mediagéo da exposigao e da construcio em montagem, do filme inteito. Na base de todos estes métodos residem, em igual medida, as mesmas qualidades humanas vitais ¢ fatores determinantes inerentes a todo ser humano ea toda arte vital. Nao importa quao opostos sejam os pélos nos quais cada uma dessas esferas possa parecer se mover, elas se encontram na afinidade e unidade final de um meétodo como o que agora percebemos nelas. Essas premissas colocam diante de nés, com nova forsa, a questo de que os profissionais da arte cinematogréfica devem nao apenas estudar o estilo dramdtico ea mestria do ator, mas devem dar igual atengo a0 dominio de todas as sutilezas da ctiagio da montagem em todas as suas aplicag6es. Palavra e imagem 49 Notas 1. Montazh 1938. Escrito em 1937, retrabalhado entre margo ¢ maio do ano seguinte © publicado apenas em parte na edigio de janeiro de 1939 de Lskusstvo Kino (Arte do cinema). Umma coutra vez retrabalhado para publicaso como primeito caplaulo de O sentido do filme em 1941: Eisenstein mudou o titulo (de Montagem 1938 para Palaura e imagem) ¢ ajustou o texto para o leitor de lingua inglesa. 2. NS.E: John Livingston Lowes, The Road so Xanadu, 1930. 3. NSE: Ambrose Bierce, The Monk and the Hangmant Daughter: Fantastic Fables, 1925. 4. NR: Chamavam-se malas portmanteau (literalmente: “porta-casaco”) as grandes valises muito ‘em voga na época durea das viagens de trem e navio, que podiam carregar varias roupas, penduradas em cabides, ao mesmo tempo. Palavras portmanteau sio as que carregam dois ou mais significados a0 mesmo tempo. 5.NS.E: The Complete Works of Lewis Carroll, 1937 (O texto original citado por Eisenstein usa as palavras fieming ¢ furious, € como montagem final fiumious.; 6.NS.E: Sigmund Freud, Der Wite und seine Bezichung cum Unbewussten (O chiste esua relagio com 0 inconsciente), Viena, 1905. 7. NS.E.: Kurt Kofika, Principles of Gestalt Pychology, 1935. 8.NSE: Leon Tolstoy, Anna Karenina. 9. NS.B: Mais tatde veremos que este mesmo princ{pio dindmico esté na base de todas as imagens realmente vitais, mesmo num meio aparentemente estdtica ¢ imével como, por exemplo, a pintura. 10. NS.E: Guy de Maupassant, Bel ami, [Traducio bi Livraria Martins, 1953.) 11, Eisenstein se refere aqui & seqiiéncia final de Outubro, onde 14 planos deste relégio com varios mostradores indicando a hora em diversas cidades aparecem montados ao lado de planos de mios que aplaudem c rostos que sortiem. 12. Nikolai Tcherkasov (1903-1976), intérprete de Poet § Coar (O posta e 0 tzar, 1927) de Vladimir Gardine (1877-1965), scu primeiro trabalho no cinemas Deputat Balti. (O deputado do Baltico, 1937) de Alexander Zarkhi (*1908) ¢ Iossif Kheifits (*1905); ¢ de dois filmes de Eisenstein, Alexander Nevsky (Cavaleiros de ferro, 1938) e Ivan Grozny (Iva, o Terrtvel, 1944-1946) entre outros. 13. Nikolai Okhlopkoy, incérprete, entre outros, de Lenin v Okviabr (Lenin em outubro, 1937) ¢ Lenin » 1918 (Lenin em 1918) de Mikhail Romm (1901-1971); ¢ de Alexander Nevsky (Cavaleiros de ferro, 1938) de Eisenstein, 14. Boris Tchirkow, intérprete, entre outros, de Utchitel (O professor, 1939) de Sergei Guerassi- moy (1906-1985) eda Trilogia de Maximo: Iunost Maxima (A juventude de Maximo, 1934), Vozvras- tchenie Maxima (A volta de Maximo, 1937} ¢ Vyborgskaia storona (O bairro de Vjborg, 1938) filmes de Grigori Kozintzev (1905-1973) ¢ Leonid Trauberg (°1902). 15. Lev Sverdlin, intérprete de, entre outros, Volochayevskyi dai (A defésa de Volotbaievski, 1938) de Sergei (1900-1955) © Georgi (1899-1946) Vassiliev; ¢ Vaadniki (Cavaleiros, 1939) de Igor Savtchenko (1906-1950). 16, N'S.E: George Arliss, Up the Years from Bloomsbury, 1927. 17. NSE. Leonardo da Vinci, Trastato della pittura, citado em Leonardo da Vinci de A. Volinski, Moscou, 1923. 18, N.S.B Leonardo da Vinci, Traité de la peinture, Paris, 1921. Nota de pé de pagina de Joséphin Peladan. ira de Clovis Ramalhete. Séo Paulo, so O sentido do filme 19. NSE: Publicado em Literaturnaya Gazeta, Moscou, 26 de margo de 1938. 20. NS.E: Karl Marx; Bemerkungen ueber de neueste pritsische Zensurinstruktion in Werke und Schriften, Briefe und Dkumenten, Bettim, Marx-Engels Gesamtausgabe, vol.t. ..NS.E: E dbvio que o tema come tal é capaz de excitar emocionalmente, independente da forma em que é apresentado, Uma curta noticia de jornal sobre a vitdria dos republicanos espanhéis em Guadalajara € mais emocionante que uma obra de Beethoven. Mas aqui estamos discutindo como, através da arte, podemos clevar um determinado tema ou assunto, que pode ser excitante “em simesmo”,a.um grau maximo de eficicia, E claro que. a montagem, como tal, de modo algum é um meio exaustivo neste campo, apesar de ser um meio tremendamente poderoso. 22. NSE: Alexander Sergeievitch Puchkin, Polnoye Sobraniye Sochinenil, Leningrado, 1936. 23. NSE: Ibid. 24. NSE: Ibid. 25, NS: Pedro , guache de Valentin Seroy, parte da colegio da Galeria ‘Tretiakov, de Moscou [Valentin Alexandrovich Serov (1865-1911) pintor famoso por seus retratos, professor de pintura ‘em Moscou entre 1909 ¢ 1921. No sétimo capitulo de Ciematisme (Editions Complexe, Bruxelas, 1980) Eisenstein anatisa longamente um quadro de Serov, 0 retrato da atriz Maria Nicolaicva Ermolova (1853-1928) pintado em 1908, No quarto capitulo de A natureza no indiferente (La non-indifferente nature, dois volumes, Union Générale d'Editions, Paris, 1978) Eisenstein analisa um, outro quadro de Seroy, o retrato de Gorki feito em 1904], 26.NS.E: O teatro estd cheio, os camarotes resplandecem, ‘As poltconas esto agitadas, a platéia ruge, A galeria bare palmas ¢ sapateia excitada; A cortina sussurra 20 ser levantada; ‘Una luz fantdstica em redor de sua danga, A migica da saudagio obedecendo, ‘Uma multidao de ninfas em volea dela-— veja! Istomina na ponta dos pés... (Puchkin, obra citada). 27. NS.E: Viktor Maximovitch Zhitmunsky, Vedeni v Metriku, teoria stikha, Leningrado, 1925. 28. N.R: Eisenstein cita diretamente 0 verbete do diciondtio Webster's na versio preparada para aedigio de lingua inglesa. 29. NSB: Viktor M. Zhismunsky, obra citada, ‘The Works of Jobn Milton, vol, Paradise Lost, The Verse. Columbia University Press, : Hilaire Belloc, Mitton. Lippincott, 1935. 32, NSE: John Milton, Paradise Lost {Panatso perdido, tradugio de Conceigio G. de Soro Maier, Edigées de Ouro, livro VI, p.189.] Ibid., Livro V NSE: Ibid., Livro VI 37. NS.E: A Sergei Yetenin [Este poema de Vladimir Maiakovski (1893-1930) foi publicado na evista LEF pouco depois da morte do pocta Sergei Yesenin (1895-1925), que se suicidou num hotel de Leningrado deixando uma ultima pocsia escrita com 0 sangue dos pulsos cortados, Aré ogo, até Jogo, companheiro|. Il. Sincronizag&o dos sentidos: na realidade, quanto mais as artes se desenvolvem, tanto mais dependem umas das outras para se defini- rem. Primeiro pediremos um empréstimo & pintura, € chamaremos de forma. Mais tarde, pediremos um em- préstimo A miisica, e chamaremos de ritmo. ‘EM, FORSTER” Ele gradualmente dissolveu-se no Infinito — seus sen- tidos corporais jé haviam sido deixados para trés, ou, de qualquer modo, estavam todos misturados: de modo que as mesinhas verdes do café s6 0 atingiara como um tilintante arpejo do sonoro contrabaixo da luz do sol, no estrondeante céu Ii fora: enquanto 0 chocalhar de um carro de boi que passava era traduzi- do por uma série de vividos clardes de cor, eo descon- forto da cadeira desconjuntada onde ele se sentava tinha um cheiro amargo em suas natinas... RICHARD HUGUES? Amontagem foi definida anteriormente aqui como: O fragmento A, derivado dos elementos do tema em desenvolvimento, ¢ 0 fragmento B, derivado da mesma fonte, ao screm justapostos fazem surgir a imagem na qual o contetido do tema é personificado de forma mais clara. Ou: A representagdo A ¢ a representagao B devem ser selecionadas entre os muitos poss(veis aspectos do tema em desenvolvimento, devem ser procuradas de modo que sua justaposic#o — isto é, a justaposigao destes precisos elementos ¢ nio de elementos alternativos — suscite na percepsao ¢ nos sentidos do espectador a mais completa insagemn deste tema preciso. 51 52 sentido do filme Esta formulagio foi apresentada deste modo, sem que féssemos limitados por qualquer tentativa de determinar os graus qudlitativos de A ou B, ou de fixar qualquer sistema de mensuragio de A ou.B. A formulagio permanece, mas devemos desenvolver suas quualidades © proporgées, “Entre os muitos posstveis aspectos do tema em desenvolvimento.” Esta frase nfo foi inclufda na formulagio por acaso. ‘Tomando por base que a imagem tinica, unificadora, determinada por suas partes componentes, descmpenha o papel decisivo na hora cinematogrdfica criati- va, queremos salientar logo no infcio desta parte da discussio que os meios de expresso podem ser retirados de qualquer um dos varios campos com objetivo de enriquecer ainda mais a imagem. Nao deve haver limites arbitrdrios 4 variedade dos meios expressivos que podem ser usados pelo cineasta. Gostaria de pensar que isto foi conclusivamente demonstrado pelos exemplos acima, de Leonardo da Vinci, Milton ¢ Maiakovski. Nas notas de Leonardo para O Dikivio, todos os seus varios elementos — os puramente plésticos (o elemento visual), os que indicam 0 comportamento huma- no (0 clemento dramatico), ¢ o barulho do desmoronamento ¢ dos gritos (o elemento sonore) — todos sfo igualmente fundidos numa imagem tnics, unifica- dora, definitiva, de um ‘Tendo isto presente, vemos que a transi¢go da montagem do cinema mudo para o cinema sonoro, ou montagem audiovisual, nio muda nada quanto ao principio. ‘Aconcepgio de montagem apresentada aqui engloba igualmente a montagem do cinema mudo e do cinema sonoro. Isto nfo quer dizer, porém, que, ao trabalhar com 0 cinema sonoro, no somos confrontados com novas tarefas, novas dificuldades e até métodos totalmen- te novos. Pelo contrdrio! Eis por que € to necessdrio fazermos uma andlise global da natureza dos fendmenos audiovisuais, Nossa primeira pergunta é onde devemos procurar uma base segura de experiéncia para comecarmos nossa andlise? Como sempre, a mais rica fonte de experiéncia ¢ o préprio Homem. O estuda Ver ae seit comportamento e, paricularments neste cn sle-seusmdiodas de perosber Nw" a realidade e de formar ima; fidade sera nosso determinante. ve ——“fosteriormente, em nosso exame de questdes estricamente de estilo, veremos que o Homem ¢ as relagSes entre seus gestos ¢ entonagées da vor, que surgem das mesmas emogées, so nossos modelos para determinar estruturas audiovisuais, que se descnvolvem de um modo exatamente idéntico ao da imagem dominante. Sobre isto -— mais tarde, Até entrarmos em maiores detalhes sobre este paralelis- “mo, esta Tese serd suficiente: ao selecionar 0 material de montagem asst fundido esta ou naquela imagem particular que deve ser manlfestada, devemos estudar a Besta ou naquela imagem particular que deve ser manilesiada, devemos estuclar 2 nds mesmos. Sincronizagio dos sentidos 53 Devemos ter plena consciéncia dos meios ¢ dos clementos através dos quais a imagem se forma em nossa mente. Nossas primeitas e mais espontaneas percepg6es sio freqlientemente nossas percepgies mais valiosas, porquc estas impressées intensas, frescas, vivas, invaria- velmente derivam dos campos mais arsplamente variados. Por isso, a0 abordar os clissicos, é vitil examinarmos no apenas obras acaba das, mas também os esbogos ¢ notas em que os artistas esforgaram-se para gravar suas primeiras impresses vividas ¢ imediatas, Por esta razo, um esboco é freqitentemente mais vivo do que a tela acabada — fato observado por Byron em sua critica de um colega poeta: «Campbell corrige demais: nunca est satisfeito com o que faz; suas melhores coisas. foram estragadas pelo excesso de polimento —a veeméncia do esbogo é jogada fora. Tal como os quadiros, os poemas também podem acabar muito retocados. A grande arte’ efeito, nao importa como produzido.4 — O Dihivio de Leonardo nfo foi um esbogo no sentido de um “esbaco feito a0 vivo”, mas certamente um esbogo no qual ele se esforgou para colocar todos os aspectos da imagem. como ela passava diante de seu olho interior. Isto € responsivel pela profustio, em sua descrigio, nfo apenas de elementos gréficos e plisticos, mas também de elementos sonoros e dramiticos. Examinemos outro esbogo, que contém toda a “palpitagio” de nossas primei- ras, imediatas impressées. E do Didrio dos Goncourt- - uma nota de pé de pagina, no registro de 18 de setembro de 1867: Encontro uma descrigio do Campo de Exportes no caderno de notas para nossos (fiuturos romances que nio foram realizados, vival ... Na profunda sombra dos dois cantos da sala, a cintilagao dos botses e das copas das espadas dos policiais. Os membros resplandecentes de. lutadores surgindo em plena luz. — Olhos desafiadores. — Mios golpeando a,camne ao se agarrarem. — Suor com cheiso de animal selvagem. — Palidez misturada a bigodes louros. — Carne machucada se avermelhando. — Dorsos suando como as paredes de pedra de um banho a vapor. — Avangando, arrastando-se de joelhos. — Girando sobre as préprias cabegas etc. etc.> A cena.nos atinge através de uma combinagio de bem escolhidos “primeiros planos”, e pela imagem incomumente tangivel que surge de sua justaposicio. Mas © que é mais notdvel em tudo isso? E que, nestas poucas linhas descritivas, os diferentes planos— os “elementos de montagem’ — atingem literalmente todos os sentidos — exceto, talvez, o paladar, que, porém, est presente de forma implicita: Sa O sentido do filme 1..O setide do rato (dorsos suando como as paredes de pedra de um banho a.vapor) 2. C sentido do offito (suor com cheito de animal selvagem) 3. O sentido da visdo, incluindo Juz (a profunda sombra e os resplandecentes membros dos Lutadores surgindo em plena luzs os botées ¢ copas das espadas dos policiais na sombra profunda) ¢ cor {palidez misturada a bigodes louros, carne machtcada se avetmethando) 4. O sentido da audigdo (mos golpeando a carne) 5. O sentido do movimento (avangando de joelhos, gitando sobre as préprias cabecas) 6. Puna emogdo, ou drama (olhos desafiadores) Incontiveis exemplos deste tipo poderiam ser citados, mas todos ilustrariam, num grau maior ou menor, a tese apresentada acima, a saber: Nao hé diferenca fundamental quanto ’s abordagens dos problemas da mon- tagem puramente visual e da montagem que liga diferentes esferas dos sentidos — particularmente a imagem visual & imagem sonora- - no processo de criagdo de ar uma imagem tunica, unificadora, sonoro-visual. Kaine um principio, isto era conhecide por nés desde 1928. quando Pudev- kin, Alexandrov ¢ eu Tangamos nossa laragio” sobre o cinema sonoro.® ——""Mas um principio nao € mais do que um principio, enquanto nossa tarefa atual e urgente é encontrar a correta abordagem deste novo tipo de montagem. Minha busca desta abordagem esteve intimamente ligada 4 produgao de Alexander Nevsky. E este novo tipo de montagem, associado a este filme, eu chamei de: montagem vertical. Quais as origens deste termo — e por que este termo em particular? “Todos estio familiarizados com o aspecto de uma pattitura orquestral. Hé vérias pautas, cada uma contendo a parte de um instrumento ou de um grupo de instru- mentos afins, Cada parte é desenvolvida horizontalmente. Mas a estrutura vertical nfo desempenha um papel menos importante, interligando todos os elementos da orquestra dentro de cada unidade de tempo determinado. Através da progressio da linha vertical, que permeia toda a orquestra, ¢ entrelagado horizontalmente, se desenvolve o movimento musical complexo ¢ harménico de toda a orquestra. Quando passamos desta imagem da particura orquestral para a da partitura éudio-visual, verificamos ser necessdrio adicionar um novo item As partes instru- mentais: este novo item € uma “pauta” de imagens visuais, que se sucedem ¢ que correspondem, de acordo com suas préprias leis, a0 movimento da miisica — € vice-versa, Essa cortespondéncia, ou relagdo, poderia descrever de igual modo © que ocorte se substituirmos a imagem da partitura orquestral pela estrutura de monta~ gem do cinema mudo, Sincronizagio dos sentides 5s Para isso, teremos de extrair de nossa experiéncia do cinema mudo um exem- plo de montagem polifiniea, na qual um plano é ligado ao outro no apenas através de uma indicaggo — de movimento, valores de iluminagio, pausa na exposigio do enredo, ou algo semelhante —, mas através de um avango simultdneo de uma série miltipla de linhas, cada qual mantendo um curso de composigao independente e cada qual contribuindo para o cutso de composicao toral da sequiéncia. ‘Um exemplo como este pode ser encontrado na estrutura de montagem da “seqiigncia da procissio” de O velho e 0 nova, Nesta seqiléncia, as varias linhas interdependentes virtualmente parecem uma bola de fios multicoloridos, com as linhas se interligando eligando todaa seqiiéncia de planos. Estas foram as linhas da seqii@ncia: 1. Allinha do calor, crescendo de plano a plano. 2. A linha de primeiros planos vatiados, ctescendo em intensidade ptistica. 3. A linha do crescente éxtase, mostrada através do contetido dramatico dos primeiros planos. 4, A linha das “vozes” das mulheres (rostos das cantoras). 5. A linha das “vozes” dos homens (restos dos cantores). 6. A linha dos que se ajoelham diante dos fcones que passam (aumentando o ritmo). Esta contracorrente deu movimento a uma corrente contriria maior, que foi tecida através do tema original — dos adoradores de fcones, cruzes ¢ bandeiras, 7.Alinha do restejamento, unindo ambas as correntes a0 movimento geral da seqiiéncia, “do cfu ao cho”. Dos radiantes pindculos das cruzes e bandeiras contra © céu até as figuras prostradas batendo com a cabega no chao. Este tema foi anunciado na abertura da seqiiéncia por um plano “chave”: uma répida panorami- ca baixando da cruz do campandrio resplandecente no céu para a base da igreja de onde a procissfo se move. O curso geral da montagem foi um entrelagamento inincerrupto dos diversos temas com um movimento unificado, Cada unidade de montagem teve uma dupla responsabilidade — construir a Jinha total, assim como continuar o movimento dentro de cada um dos temas contribuintes. Ocasionalmente uma unidade de montagem conteria todas as linhas, e algu- mas vezes apenas uma ow duas, excluindo as outras linhas por um momentos algumas vezes um dos temas dava um passo para trds, necessirio apenas para tornar mais efetivo seus dois passos para a frente, enquanto os outros temas prosseguiam em quantidades iguais, e assim por diante. Mas o valor de uma unidade de monta- gem era determinado no apenas por umm aspecto, mas sempre pela série toral de aspectos, antes que seu lugar na seqiiéncia fosse fixado, ‘Uma unidade satisfatéria em sua intensidade para a linha do calor ficaria deslocado no “coro” particular no qual cairia se medido apenas por sua intensidade. 56 . O sentido do filme posta as dimensdes de um resto em primeito plane podem cabet em um Inga aaxpréisdo do rosto ficatia melhor em outro lugar da seqiiéncia. A dificuldade deste “trabalho nao deveria surpreender ninguém, porque o processo é exatamente idénti- co preparacio da mais despretensiosa orquestracio, Sua principal dificuldade foi, é claro, 0 fato de o trabalho estar sendo feito com o material do cinema, muito menos flexivel, ¢ de a quantidade de variagio ser limitada pelas exigéncias desta seqiténcia particular. Por outro lado, deveinos ter em mente que esta estrutura polifénica feita de muitas linhas indeperidentes adquire sua forma final nao apenas a partir do plano para © qual foi determinada previamente. Esta forma final depende em igual medida do cardter da seqiiéncia do filme (ou filme completo) como um complexo — um complexo composto de tiras de filme contendo imagens fotograficas. Foi exatamente este tipo de, “colagem”, além de tudo complicada (ou talvez simplificada?) por outra linha - - a wrilha sonora ~., que tentamos obter cm Alexander Nevsky, especialmente na seqiiéncia dos cavaleiros alemaes que atacavam avangando no gelo. Aqui as linhas da tonalidade do céu —- nebuloso ow limpo, do ritmo acelerado dos cavaleitos, de sua diregdo, do corte para trds e para a frente dos russos para os cavaleitos, dos rostos em primeiro plano e dos planos de-conjunto, a estrutura sonal da musica, seus temas, seus ritmos, seus tempi etc. — criaram uma tarefa no menos dificil do que a da seqiiéncla muda acima, Muitas horas foram gastas para fundir estes elementos num todo orgénico. Naturalmente € dtil o fato de, sem contar com os elementos individuals, a estrutura polifénica obter seu efeito total através da sensagio de combinagéo de todas as pegas como um todo. Esta “fisionomia” da seqiiéncia acabada é uma soma dos aspectos individuais ¢ da sensagio geral produzidos pela seqiiéncia, Por ocasifo da estréia de O velho ¢ 0 novo escrevi sobre esta qualidade da montagem polifénica em relagio ao “futuro” cinema sonore. ‘Ao combinar a misica com a seqiiéncia, esta sensdgdo geral é um fator decisivo, porque estd diretamente ligada A percepedo da imagem da misica assim como dos quadros. Isto requer constantes corregées ¢ ajustamentos dos aspectos individuais para preservar o importante efeito geral, Por fazermos um diagrama do que ocorre na montagem vertical, devemos “Fea Tod i cole de nt arto Ue har wezs A bsea da corespondn- cia deve ocorrer a partir da intengio de combinar quadro e musica com a “imagem” geral, complexa, produzida pelo todo. © Diagrama 2 revela 0 novo fator “vertical” da intercorrespondéncia, que surge no momento em que as unidades da montagem sonoro-visual so conectadas. Sincronizagio dos sentidos 87 Diagrama 2 Do ponto de vista da estrutura da montagem, nao mais temos uma simples sucesso horizontal de quadros, mas uma nova “superestrutura” é erigida vertical- mente sobre a estrutura horizontal do quadro. Unidade a unidade, estas novas faixas da “superestrutura” diferem em comprimento das da estrutura do quadro, mas, desnecessdrio dizer, elas so iguais no comprimento total. As unidades sonoras no se encaixam nas unidades em ordem seqiiencial, mas em ordem simultinea. Einteressante notar que, quanto ao principio, essas telagbes sonoro-visuais nao diferem das relagbes dentro da mdsica, nem diferem das relagbes dentro da estrutu- ra da montagem do cinema mudo. Colocando de lado, no momento, nossa discussio sobre relagdes musicais, analisemnos primeito a solugdo para a questio da correspondéncia na montagem do cinema mudo. Aqui o efeito vem nao da simples seqtiéncia das tiras de filme, mas de sua simultaneidade, que resulta da impressio derivada de uma tira mentalmente sobreposta a tira seguinte. A técnica da “dupla exposig4o” apenas matetializou.este fendmeno bdsico da percepgio cinematogrdfica. Este fendmeno existe nos mais altos nfveis da estrucura cinematogréfica, assim como no limiar da ilusio cinemato- grifica, porque a “persisténcia de visio” de um fotograma sobre o fotograma seguinte da tira do filme € que cria a ilusio do movimento cinematogréfico. 58 O sentido do filme ‘Veremos que uma superposicao semelhante ocorre até no estdgio superior do desen- volvimento da montagem — a montagem audiovisual. A imagem em “dupla exposigo” € uma caracterfstica to inerente 4 montagem audiovisual quanto a todos os outros fendmenos cinematogrificos. Muito antes de até mesmo sonharmos com o som, recorri a esta técnica particular quando quis criar 0 efeito de som e mtisica através de meios puramente plisticos: em hd experiéncias nesta diregao, H4 uma seqiiéncia curta mostrando uma assembléia de grevistas com a aparéncia de um passeio casual com um acordedo, Esta seqiiéncia termina com um plano onde tentamos criar um efeito sonoro através de meios puramente visuais. As duas trilhas do futuro — visual e sonora - — eram, neste caso, trilhas visuais, uma dupla-exposicio. Na primeira exposigao, um ago podia ser visto a0 pé de uma montanha, pela qual subia, em diregio A cimera, uma fila de artistas ambulantes com seu acordefo. A segunda exposigao era o imenso acordeio em primeiro plano, en- chendo toda a tela com seu fole em movimento ¢ suas teclas muito brithantes. Este movimento, visto de diferentes Angulos, sobre a outra exposi¢io continua, criow a sensagio de um movimento melédico, que uniu toda a seqiiéncia” Os diagramas 1 ¢ 2 mostram como a jungio compositiva de um filme mudo (1) é diferente da de um filme sonoro (2). Parece 0 diagrama de uma jungdo porque a montagem € na realidade um amplo movimento temdtico em desenvolvimento, progredindo através de um diagrama continuo de jungées individuais. Acestrutura de composicéo dos movimentos relacionados como indicado pelo Diagrama 2 (Ay — By - -C,) é familiar na misica. Eas leis do movimento de composi¢io (A — B-— C) evolufram na prdtica do cinema mudo. O novo problema frente ao cinema audiovisual é encontrar um sistema para coordenar A- -Aj,A, By CyB — B,,C- -C)ctc,- - um sistema que determinard os complexos movimentos plisticos e sonoros de um tema através de todas as diferen- tes correspondéncias de A— Aj- — Bj — B-—C — Cy ete. (ver diagrama na pdgina 57). Nosso atual problema ¢ encontrar a chave para estas recém-descobertas jun- bes verticais, A ~ - Ay, B — By, aprendendo a reuni-las ¢ separd-las de modo tio ritmico como é agora poss{vel pelos altamente desenvolvidos meios da miisica, ou pelos alramente desenvolvidos meios da montagem visual. Ambos estes instrumen- tos da atividade cultural ha muito aprenderam a lidar com os comprimentos de Ai, B; etc., com total seguranga, Tsto nos leva & questo bdsica de encontrar os meios para se esttbelecerem as proporgaes entre imagens e som, ¢ pata aperfeicoar os compassos, réguas, instrumen- Sincronizagio dos sentidos 59 tos ¢ métodos que tornario isso vidvel. Esta ¢ na realidade uma questio de encon- trar uma sincronizagio interna entre a imagem tangivel e os sons percebidos de modo diferente. J& dominamos o problema da sincronizagio fisica, ao ponto de detectar- mos a discrepiincia, em um tinico quadro, entre libios ¢ fala! —— __ Masesta coordenaso vai muito além da sincronizagio externa, que combina a bota com seu rangido — estamos falando de uma sincronizagéo interna “oculta’, na qual os elementos plisticos e tonais encontram total fustio. Para ligar tais elementos, encontramos uma Hinguagem natural comum a ambos — o movimento. Plekhanov disse que todos os fenémenos, na andlise final, podem ser reduzidos a movimento. O movimento revelaré todos os substratos da sincronizagio interna que queremos estabelecer. O movimento nos mostrard de uma forma concreta,o significado ¢ 0 mézoda do processo de fuséo. Passemos dos temas exteriores e descritivos para temas de um cardter interior e mais profundo. © papel do movimento neste problema da sincronizago & auto-evidente. Examinemos varias abordagens diferentes da sincronizagao na ordem Iégica. Eo ABC de todo técnico de som, mas scu exame é essencial. A primeira sera na esfera da sinctonizagéo propriamente dita, fora do campo da, preocupagio artistica — uma sincronizagio puramente factual: a filmagem sonora de coisas naturais (um sapo coaxando, os acordes lamentosos de uma harpa quebrada, o rangido de rodas de carroga no pavimento). Neste caso, a arte sé comega no momento da sincronizagao em que a conexdo natural entre o objeto ¢ seu som nao é apenas gravada, mas ditada pelas exigéncias da obra expressiva em desenvolvimento. Nas formas mais rudimentares de expresso, ambos os elementos (a imagem e seu som) serao controlados por uma identidade de ritmo, de acordo com o conteti- do da cena. Este ¢ 0 caso mais simples, mais ficil ¢ mais freqtiente de montagem audiovisual, que consiste em planos cortados e montados com o ritmo da musica da trilha sonora paralela. Se existe movimento nesse plano, néo tem conseqiiéncias sérias. Se o movimento est presente, a tinica exigéncia é que ele se adapte ao ritmo fixado pela trilha paralela. Porém, é evidente que, mesmo neste nivel comparativamente baixo de sincro- nizagio, ha uma possibilidade de se criarem composigGes interessantes ¢ expressivas. A partir destes casos mais simples — simples coincidéncia “métrica” de cadén- cla (“escansio” cinematogréfica) —, é possfvel organizar uma ampla variedade de combinagio sincopadas ¢ um “contraponto” puramente ritmico na execugio con- trolada de ritmos livres, planos de diversas distincias, temas tepetidos e repercuti- dos, ¢ assim por diante. Que passo se segue a este segundo nfvel de movimento superficial sincroniza- do? Possivelmente um que nos capacitard mostrar nao apenas movimento r{tmico, mas também movimento melddico. “anz falou corretamente sobre a melodia quando disse: 60 O sentido do filme w+ no sentido exaro da palavra, no se “ouve” uma melodia. Somos capazes ou incapazes de segui-la, o que significa que temos ou nio a capacidade de oxganizar os tons numa unidade superior. Entre todos os meios plasticos & nossa disposigiio, certamente podemos en- contrar aquele cujo movimento se harmoniza nao apenas com 0 movimento do padrdo rftmico, mas também com o movimento da linha melédica. Jd temos alguma idéia sobre o que estes meios devem ser, mas, como estamos ponto de lidar com esta questo em detalhe, mencionaremos neste momento que podemos assu- mir que estes elementos provavelmente sero retirados basicamente de um elemen- to “linear” das artes pldsticas. “Aunidade superior” na qual somos capazes de organizar os tons independentes da escala de sons, pode ser visualizada como uma linha que os une através do movimento. As mudangas tonais nesta linha também podem ser caracterizadas como movimento, n3o mais como um movimento entremesclado, mas como um movimento que vibra, cujas caracterfsticas podemos perceber como sons de diapa- sfo ¢ tom variados. Qual o elemento visual que ecoa este novo tipo de “movimento” introduzido em nossa discusséo pelos tons? Obviamente serd um elemento que também se movimenta por vibragGes (apesar de ter uma formagio fisica diferente), ¢ que € também caracterizado pelos tons. Este equivalente visual é a cor. (Numa analogia répida, diapasdo pode corresponder ao jogo de /uz; e tonalidade, & con) Fazendo uma pausa para recapitular, demonstramos que a sincronizagio pode ser “natural”, métrica, rftmica, melédica ¢ tonal. ‘Ao se combinar imagem ¢ som, pode-se chegar A sincronizagao que preenche todas essas potencialidades (apesar de isto muito raramente ocorrer), ou cla pode ser construida com base numa combinagio de elementos nfo afins, sem tentar ignorar a dissonancia resultante entre os sons ¢ as imagens. Isto ocorre freqiiente- mente. Quando ocorrer, costuma-se explicar que as imagens “existem por si mes- mas”, que a musica “existe por si mesma’: som e imagem, cada um corre inde- pendentemente, sem se unirem num todo orginico. E importante ter em mente que nossa concepgio de sincronizacao nao presume coincidéncia. Nessa concepgio existem plenas possibilidades para a execugio de ambos, “movimentos” correspon- dentes e nio-correspondentes, mas em qualquer dos casos a relagio deve ser contro- lada composicionalmente. 6 evidente que qualquer uma dessas abordagens de sin- cronizagio pode servir como o fator “principal”, determinante da estrutura, de- pendendo da necessidade, Algumas cenas requerem ritmo como um fator detecini nante, outras sfo controladas pelo tom, ¢ assim por diante. ‘Mas voltemos As vérias formas ou, mais precisamente, aos varios campos da sincronizagio. Sineronizagao dos sentidos 61 Observamos que essas varias formas coincidem com as varias formas da montagem do cinema mudo estabelecidas em 1928-29, e que mais tarde inclufmos no programa de ensino de direcdo cinematogréfica.? Na época, estes “termos” devem ter parecido, a alguns de meus colegas, desnecessariamente pedantes ou analogias jocosas com outros meios. Mas mesmo entio salientamos a importancia de uma abordagem como esta para os “futuros” problemas do cinema sonoro. Agora isto € ébvia e concretamente uma parte sens{vel de nossa experiéncia com relagdes audiovisuais. Estas formas inclufam a montagem “atonal”, Este tipo de sincronizagao foi mencionado acima com relagio a O velho ¢ 0 novo. Por este tetmo, talvez nio totalmente exato, queremos dizer uma complexa polifonia, e uma percepgio das partes (tanto da misica quanto da imagem) como um todo. Esta totalidade torna-se 0 fator de percepgio que sintetiza a imagem original para cuja revelagio final toda a nossa atividade foi dirigida. Isto nos traz & questio bisica ¢ priméria que diz respeito 2 definitiva sincroni- zagdo interna — aquela entre a imagem ¢ 0 significado dos flagmentos, O cireuito foi completado. Pela mesma formula que une o significado de todo 6 fragmento (seja todo o filme ou uma tinica seqiiéncia) e a selegiia meticulosa, habil dos fragmentos, surge 2 imagem do tema, fiel a seu contetido. Através desta fusio, e através da fusio da légica do tema do filme com a forma superior na qual distribui este tema, aparece a total revelagio do significado do filme. ‘Uma premissa como esta naturalmente serve como uma fonte ¢ um ponto de partida para toda a série de variadas abordagens da sincronizagao. Porque cada tipo “diferente” de sincronizacao é englobado pelo todo orginico, ¢ personifica a ima- gem bisica através de seus ptdprios limites especificamente definidos. Comecemos nossa investigagio no campo da cor, nao apenas porque a cor éo problema mais imediato ¢ estimulante do cinema hoje, mas principalmente porque acor foi muito (¢ ainda é) usada para decidir a questio da correspondéncia pictbrica ¢ sonora, seja absolusa ou relasiva — ¢ como uma indicagio de emogées humanas especificas. Isto certamente serd de extrema importancia para os problemas ¢ prin- cfpios da imagem audiovisual. O desenvolvimento mais grifico e eficaz de um mdétodo de investigagio estaria no campo da sincronizagdo melédica devido 4 conve- niéncia da anidlise gréfica ¢ a0 nosso campo bésico de reprodugio em preto branco. Assim, primeiro passamos para a questio de associar a mtisica.A cor, o que nos levaré, por seu turno, a considerar a forma de montagem que pode ser chamada de cromofénica, ou montagem colorida-sonora. + Ver “Métodos de montagem” em A forma do filme; ver também a nota que explica a tradugio da cexpressio usada por Eisenstein em inglés, “overtonal”, por atonal. 62 O sentido do filme Remover as barreiras entre a visio € 0 som, entre o mundo visto e o mundo ouvit Realizar uma unidade ¢ uma relagio harmoniosa entre estas duas esferas opostas. Que tarefa absorvente! Os gregos, Diderot, Wagner ¢ Scriabin- .quem nao sonhou com este ideal? Hé alguém que nio tenha feito nenhuma tentativa de concretizar este sonho? Nossa pesquisa sobre sonhos nfo pode comegar aqui, porém. Nossa, pesqutisa deve nos levar a algum método de fusio do som.a visio, a alguma investigacao das indicagées preliminares que nos Jevem em diregao a esta fusio. Comegaremos observando as formas, tomadas por estes sonhos, de uma fusio de imagem ¢ som que perturbaram a humanidade por tanto tempo. A cor sempre recebeu mais do que uma parte média desses sonhos. O primeiro exemplo, nao téo antigo, é tirado de uma época nfo mais longin- qua do que.a fronteira entre os s¢éculos XVIII ¢ XIX. Mas é um exemplo muito grifico. Primeiro damos vez a Karl von Eckartshausen, autor de Revelagées da mdgica a partir de experitncias testadas das ciéncias filosbficas ocultas e segredos escon- didos da natureza:'® Hé muito tento determinar a harmonia de todas as impresses sensoriais, para torné-la evidente e perceptivel. Até agora desenvolvi a misica ocular inventada por Pére Castel."! Construf esta maquina com toda a perfeisio, de modo que todos os acordes de cor possam ser produzidos exatamente como acordes tonais. Eis a descrigio deste instru- mento. Peguei vidros cilindricos, com cerca de uma polegada de dimetro, de tamanhos iguais, ¢ os enchi com cores quimicas diluldas. Dispus estes vidros como as teclas de um eravo, colocando os tons da cor como as notas, Atris desses vidros coloquei pequenos !ébulos de bronze, que cobrem os vidros de modo que nenhuma cor possa ser vista. Esses Iébulos foram ligados por fios ao teclado do cravo, de modo que 0 Idbulo é Jevantado quando uma tecla é batida, tornando a cor visivel, Exatamente come uma nota se esvai quando o dedo é retirado de uma tecla, do mesmo modo a cor desaparece quando o Iébulo de metal cai rapidamente por causa de sett peso, cobrindo a cor. O cravo é iluminado por tris com velas de cera. A beleza das cores é indeseritivel, superando as mais espléndidas jéias, Nem se pode expressara impressio visual despertada pelos vitios acordes de cor. UMA TEORIA DE MUSICA OCULAR Exatamente como os tons da inisica devem se harmonizar com as palavras do dramatur- go-em um drama musical, do mesmo modo as cores devemn corresponder As palavras. Dou um exemplo para tornar isto mais compreenstvel. Escrevi um pequeno poema, que acompanho com minha miisica colorida. Ele diz: PALAVRAS: Tristemente ela vagava, a mais adordvel das donzelas.... MUSICA: As notas de uma flauta, plangentes. Sincronizagao dos sentidos 63 COR: Oliva, misturado com rosa e branco. : «em planicies floridas —- legre, tons crescentes. COR: Verde, misturado com violeta ¢ amarelo-bonino PALAVRAS: Cantando uma cangio, feliz como uma cotovia, MUSICA: Notas suaves, crescendo e gentilmente decrescendo em rdpida sucessio. Cor: Azul marinho listrado com escarlate ¢ verde-amarelado, PALAVRAS: E Deus, no templo da criago, a ouve. MUSICA: Majestosa, grandiosa. COR: Uma mistura das cores mais espléndidas — azul, vermelho e verde —, glorificada pelo amarelo do amanheeer ¢ piirpura — dissolvendo-se,em verde claro e amarelo pilido. PALAVRAS: O sol nasce sobre as montanhas... MUSICA: Um baixo majestoso, cujos tons médios elevam-se imperceptivelmente! COR: Amarelos brilhantes, misturados com a cor do amanhecer — dissolvendo-se em verde c amarelo esbranquicado. PALAVRAS: E brilha sobre a violeta no vale ... MUSICA: tons decrescendo suavemente. COR: Violeta, altetnando com verdes variados. Isto deveria ser suficiente para provar que as cores também tém a poder de expressar as emogées da alma. Seesta citagao soa muito pouco familias, escolhamos em seguida um dos mais conhecidos exemplos — o famoso soneto “colorido” de Rimbaud, Voyelles, cujo esquema de correspondéncia cor-som perturbou muitos cérebros: Voyelles . A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu: voyelles, Je dirai quelque jour vos naissances latentest ‘A, noir corset velu des mouches éclatantes Qui bombinent autour des puanteurs cruelles, Golfes d’ombre: E, candeur des vapeurs et des tentes, Lances des glaciers fiers, rois blancs, frisson dombeltes; 1, pourpres, sang craché, rire des lévres belles Dans la colére ou les ivresses pénitentes; U, cycles, vibrements divins des mers virides, Paix des pitis semés d’animaux, paix des rides Que Palchimie imprime aux grands fronts studieux; O, supréme Clairon plein des strideurs étranges, Silences traversés des Mondes et des Anges: © POmeéga, rayon violet de Ses Yeux!” 64 O sentido do filme © esquema de Rimbaud ocasionalmente se aproxima do de René Ghil,? apesar de na maior parte os dois divergirem claramente: 04, ou, oui, iou, oui Bruns, noirs 4 roux 6,0, io, io Rouges 4, a, al, ai Vermillons ed, eu, ieu, eui, evi Orangés 8 ors, verts tu, fu, ui, ui Jaunes, ors, verts 8, & ei, ef Blancs, & azurs pales ic, i, 14,84, ii Bleus, & azurs noirs” Foi depois que Helmholtz publicou os resultados de suas experiéncias com a correlagio dos timbres das vozes ¢ instrumentos!3, que Ghil “aperfeigoou” seu prdprio gréfico, introduzindo néo apenas consoantes ¢ timbres instrumentais, mas também todo um catdlogo de emogées, premissas e hipéteses que deveriam manter uma correspondéncia absoluta. Numa andlise do romantismo, Max Deutschbein concluiu que “a sintese das varias sensagées” é um dos ind{cios fandamentais de uma obra de arte romantica. Em total harmonia com esta definigao esté 0 gréfico de correspondéncia entre vogais e cores determinado por A.W. Schlegel (1767-1845): ‘A representa o vermelho claro, Juminoso (das rozelichthelle A), e significa Juventud, Amizade e Esplendor. [ € azul-celeste, simbolizando o Amor e a Sinceridade. O é ptirpura; Ué violeta, e OO € enfeitado de azul-marinho.'? Em francés no original. Texto do autégrafo dado a Emile Blémont, conservado na Maison de la Poésie ‘eatualmente parte do acervo da Biblioth’que Municipale de Charleville: Vogais Annegro, E branco, I vermelho, U verde, O azul, vogais: Qualquer dia ainda digo de que fontes brorais: A, negro corpete felpudo de moscas refulgentes (Que esvoagam em torno de fedores cruéis, Golfos de sombra; B, alvura das névoas difusas e dos dosséis, Langas das geleiras altivas, brancas rainhas, medusas frementes; 1, plirpuras, sangue escarrado, riso daquetes bios Belos na célera, ou nos éxtases penitentes: U, ciclos, vibragées divinas dos mares virentes, Paz dos pastos pontilhados de animais, e paz, nos sibios, Das rugas que a alquimia imprime is frondes tamanhas; , supremo clarim, cheio de estridéncias estranhas, Siléncios trespassados de Anjos e de Mundos: O—0 Omega, luz violeta de seus olhos profundos! (Thedusio de Eduardo Francisco Alve) “+ Em francs no original: Marrons, pretos até vinhos/vermelhos/vermelhes/Alaranjados até dourados, verdes/Amarelos, dourados, verdes/Brancos, avé amis claros/Azuis, até azuls escuros. Sincronizagio dos sentidos 6s Posteriormente, neste século, outro romAntico deu muita atengao a este pro- blema. Lafcadio Hearn, porém, nfo tenta fazer qualquer “classificagéo”, ¢ até critica © abandono de uma abordagem espontinea no que se refere a um sistema como este, como podemos ver em sua carta de 14 de junho de 1893,"6na qual desaprova © recentemente publicado In the Key of Blue, de Addington Symonds. Mas nessa mesma carta, escrita a seu amigo, Basil Hall Chamberlain, ele diz: .. vocé imediatamente ilustrou os valores para mim. Quando escreveu sobre “o profundo baixo” daquele verde, pude ver, sentir, cheirar, provar, mastigar a folhas cra bastante amarga, ¢ densa, ¢ fracamente perfumada... Tenho pensado sobre cores sopranos, altos, contraltos, tenores ¢ barftonos... ‘Alguns dias antes ele explodira num acesso apaixonado por causa disso: Reconhecendo a feitia das palavras, porém, vocé também deve reconhecer sua beleza fisiondmica... Para mim as patavras tém cor, forma, cardter; elas tém rostos, partes, maodos, gestos; elas tém temperamentos, humores, excentricidades —.clas tém mati- 2es, tons, personalidades...” Mais tarde, num ataque aos editores de revistas que nado concordam com um estilo como este, diz que eles afirmam: “Os Ieitores no sentem como voeés no que diz respeito 4s palavras. Nao se pode supor que eles saibam que vocés pensam que a letra A é rosa-carmesim, ¢ a letra E azul-céu pélido. Nao se pode supor que cles saibam que vocés acham que KEI usa uma barba e um turbante, que a inicial X um grego velho com rugas...” Aqui Hearn dé sua resposta a estas criticast Porque as pessoas no podem ver a cor das palavras, os matizes das palavras, os secretos movimentos fantasmagéricos das palavras: Porque elas no podem ouvir 0 sussurro das palavras, o murmuiio da procissio de Ictras, as flautas sonhadoras ¢ os tambores sonhadores que séo suave estranhamente tocados pelas palavras: — Porque elas no podem perceber o amuo das palavras, o franzir das sobrance- Ihas das palavcas © a itritagio das palavras, o lamento, a raiva, o clamor ea revolta das palavras: — Porque elas so insens{veis & fosforescéncia das palavras, & frageincia das palavras, 20 fedor das palavras, & ternura ow A aspereza, A secura ou & dogura das palavras — 0 interctimbio de valores do ouro, prata, latio e cobre das palavra — E esta uma razio pela qual nao devemos tentar fazé-las ouvir, ver ¢ sentir? Em outra parte ele fala da variabilidade das palavrast 66 ‘O sentido do filme HE muito tempo disse que as palavras sio como camale6es, com seu poder de mudar decor de acordo com a posisio.'* Este requinte de Hearn nfo é acidental, Pode ser parcialmente explicado por sua miopia, que intensificou sua percep¢io destas questées. Uma explicagio mais satisfatéria esti no longo tempo em que morou no Japio, onde sua faculdade de encontrar corzespondéncias audiovisuais foi desenvolvida com especial intensidade, Lafeadio Hearn nos levou a0 Oriente, onde relag6es audiovisuais ndo so apenas parte do sistema educacional chinés, mas na realidade estio incorporadas a0 cédigo legal. las derivam dos princfpios de yang ¢ yin, sobre os quais se bascia todo 0 sistema filoséfico e de visio do mundo dos chineses.!? De acordo com a tradigo Sung, esta lei (4o #'x) foi entregue a0 mundo na forma de um diagrama (logo adiante reproduzido), trazido encharcado do rio pela boca de um cavalo-dragio.?? mL Sul Verio Propriedade Vermelho we & Verde RSet F xf iy ae i a = A @ + Fad eoweig Agua Norte Inverno Sabedoria Preto 1 A Fm Sincronizagio dos sentidos o7 Ainda mais interessante do que a correspondéncia entre determinados sons cores € 0 reflexo andlogo das sendéncias arvisticas de certas “épocas” na estritura tanto da musica quanto da pintura. Da crescente e interessante literatura neste campo, mapeada pela primeira vez por Walfftin, escolhemos um artigo de René Guilleré sobre “a era do jazz”, IT ny a plus de perspective (Nao ha mais perspectiva): Outroraa ciéncia da estética encontrava contetido no principio dos elementos fundi- dos. Na misica — na linha melédica contfnua costurada através dos acordes harmé- niicos; na literatura — na fusio dos elementos de uma sentenga através de conjungées © transig6es; na arte — numa continuidade de formas plisticas e estruturas de combinagGes dessas formas. A estética moderna é construfda tendo como base ¢ desuniéo dos elementos, aumentando o contraste de cada um deles: repetisio de elementos idénticos, que serve para fortalecer a intensidade do contraste.,! Um comentitio necessitio sobre esta opiniao 0 de que a repetigdo pode muito bem desempenhar duas fungbes. Uma fungio € facilitar a criagio de um todo orginico, Outra fungio da repeti¢ao € servir como um meio para desenvolver a ctescente intensidade que Guilleré menciona. Nao precisamos procurat longe por exemplos de ambas as fangées, Ambos podem ser encontrados em filmes. ‘A primeira fungio & encontrada em ago em Potemkin -— na repetigio de “[rmios!”, que ocorre pela primeira vez no tombadilho antes de os fuzileiros se recusarem a atirars em seguida, nfo como um letreiro, mas como a seqiiéncia dos barcos a vela que fundem cais ¢ navio, ¢, finalmente, de novo em forma de letreiro, “[rmios!”, quando a esquadra.permite.que o Potenshin passe sem set atacado. Alexander Nevsky contém um exemplo da segunda fungio da repetigfo — crescente intensidade. Em vez de repetir um mesmo compasso da miisica quatro vezes, come escrito na partitura, multipliquei isto por tres, conseguindo doze repetig6es exatas. Isto ocorre na seqiiéncia em que a milicia camponesa corta a retaguarda da cunha alema. O efeito resultante, de crescente excitagio, nunca deixa de conquistar a aprovagio do espectador. Continuando com o artigo de Guilleré: na forma do jazz, se olharmos para seu elemento musical e para seu método de composigio— - encontramos uma tipica expresso desta nova estética. Seus componentes bdsicos: o sincopado eo dominio do ritmo. Isto elimina linhas suavemente curvas —- rabiscos, frases na forma de um tufo de cabelo encaracolado, catacterfsticos de Massenet, ¢ todos os arabescos lentos. O ritmo é afirmado pelo Angulo — extremidade saliente, perfil afiado. Tem uma estrutura rigida — firme- ‘O sentido do filme mente construfda, Esforga-se em diregio a plasticidade. O jazz procura volume de som, volume de,frase. A miisica eldssica baseou-se em planos (néo em volumes) — planos ordenados em camadas, planos colocades um em cima do outro, planos horizontais ¢ verticais, criando uma arquitetura de proporgies verdadeiramente no- bres: paldcios com sacadas, colunatas, escadarias com degraus monumentais— todos com uma profunda perspectiva. No jazz, todos os elementos sio levados para 0 primeiro plano. Esta é uma lei importante que pode ser encontrada na pintura, no desenho de cendtios, em filmes, ¢ na poesia deste perfodo. A perspectiva convencio- nal, com seu foce fixo ¢ sc ponto de fuga gradual, foi abandonada, Tanto na arte quanto na literatura, a ctiacdo ocorre através de virias perspectivas, ‘usadas simultancamente. A ordem do dia é uma sintese complexa — reunindo visées de um mesmo objeto, romadas tanto de baixo quanto de cima. ‘A antiga perspectiva nos apresentava conceitos geométricos de objetos — como eles s6 podiam ser vistos por um olho ideal. Nossa perspectiva nos mostra objetos como os vemos ambos os olhos — andando despreocupados. Nao mais construimos o mundo visual com um Angulo agudo, convergindo no horizonte, Abrimos este Angulo, colocando a representagio contra nés, sobre nés, em diregio a nés... Fazemos. parte deste mundo. Eis por que nao temos medo de usar primeiros planos nos fiimes: para retratar um homem como ele algumas vezes & para nés, fora das proporges naturais, de repente cingienta centimettos afastado de nés; néo temos medo de usar metéforas, que escapam dos versos de um poema, ou de permitir que o som penetran- te de um trombone se sobressaia na orquestra agressivamente, Na antiga perspectiva, os planos se comportavam muito como os bastidores de um palco— recuando num funil em diregdo & profundidade, ondea vista se firma numa colunata ou numa monumental escadaria. De modo semelhante, na musica, os bastidores teatrais formados pelos duplos baixos, os violoncelos e os violinos sio modelados como planos, um apés 0 outro, como as escadas de uma grande avenida, com 0 olho sendo fevado para as sacadas em direcio ao triunfante irromper dos metais. Na literatura, a mesma estrutura dominou o zailiex — construido com clegantes alamedas de uma érvote para a seguinte; cada personagem descrito minu- ciosamente — da cor do seu cabelo... Em nossa nova perspectiva, nfo hé degraus, nem alamedas. Q homem entra em seu meio ambiente — o meio ambiente é visto através do homem. Ambos funcionam um através do outro. Em outras palavras, em nossa nova perspectiva — nao hd perspectiva. Os volumes nao mais sio criados através da perspectiva; intensidades diferentes, variadas satura- g6es de cor agora criam os volumes, O volume musical no mais é criado através de planos recuados, com um evidente primeiro plano e recessos apropriados. Seu volu- me agora é criado pelo volume do som. Nao hd mais grandes telas pintadas com som A maneira dos panos de fundo dos cendrios teatrais. O jazz é volume. Nao usa vozes como acompanhamento, semelhantes a figuras contra um fundo. Tudo trabalha. Cada instrumento faz seu solo enquanto participa do todo. A orquestra perden até suas divisées impressionistas — com todos os violinos, por exemplo, tocando o mesmo tema com notas harmSnicas para criar maior riqueza de sons. Sincronizagio dos sentidos 69 No jazz, cada homem toca para si mesmo num conjunto geral. A mesma lei se aplica& arte: 0 fundo é em si mesmo um volume. O trecho acima ¢ interessante por causa da imagem que proporciona de estruturas equivalentes nas artes musical e gréfica, particularmente na arquitetura, apesar de as questées levantadas aqui dizerem respeito principalmente aos conceitos espacial ¢ proporcional, Porém, temos apenas de dar uma olhada num grupo de pinturas cubistas para nos convencermos de que o que ocorre nessas pinturas jé foi ouvido na mtisica jazz(stica, . Esta relacdo é igualmente evidente na paisagem arquitetanica — a arquitetura cléssica tinha a mesma relagio com os cléssicos da composi¢go musical que a moderna paisagem urbana com o jazz. Na realidade, pracas e cidades romanas, os parques e sacadas de Versailles podem ser “protétipos” da estrutura da miisica clissica. ‘A moderna cena urbana, especialmente a de uma grande cidade & noite, ¢ claramente 0 equivalente plistico do jazz. Particularmente evidente é a caracter{sti- ca apontada por Guilleré, isto é, a auséncia de perspectiva. Todo o senso de perspectiva ¢ de profundidade realista é apagado pelo mar noturno de antincios luminosos. Perto ¢ longe, pequenas (no primeiro plano) ¢ gcandes (no segundo plano), voando nas alturas ¢ apagando-se: correndo e andan- do em cfrculos, iluminando-se ¢ desaparecendo — estas luzes tendem a abolir todo © senso de espaco real, que finalmente se dissolve num tinico plano de pontos luminosos coloridos ¢ cm linhas de neon movendo-se sobre a superficie do céu preto, de veludo. Era deste modo que as pessoas costumavam pintar estrelas — como pregos resplandecentes pregados no céu! Faréis dos carros velozes, pontos mais luminosos dos trilhos que somem da vista, reflexos tremeluzentes nas ruas molhadas - todos espelhados em pocas que destroem nosso senso de diregdo (onde fica 0 topo? onde fica a base?), complemen- tando a miragem acima com uma miragem abaixo de nés, ¢, correndo entre esses dois mundos de sinais luminosos, nao mais os vemos como um simples plano, mas como um sistema de bastidores de teatro, suspensos no ar, através dos quais o fluxo noturno das luzes do erdfego flui. Isto nos lembra um outro céu estrelado acima e abaixo, porque os personagens de um conto de Gogol, Usa terrivel vinganga, achavam que 0 mundo flutuava 20 longo do Rio Dnieper entre o céu estrelado real acima deles e seu reflexo na dgua. Essas foram as impressées de pelo menos um visitante das ruas de Nova York durante a tarde ¢ a noite. © artigo de Guilleré causa mais interesse devido a sua descrigio nao apenas da correspondéncia entre as artes musical e gréfica, mas também devido & sua apresen- 70 O sentido do filme tago da idéia de que essas artes, fundidas, correspondem a propria imagem de uma dpoca ea imagem do processo de raciocinio daqueles vinculados & época. Este quadro _ no nos soa familiar? — com esta “auséncia de perspectiva’, que reflete a falta de perspectiva histérica na maior parte do mundo de hoje, ou a imagem de uma orquestra onde cada milsico estd por sua prépria conta, esforgando-se para quebrar este todo inorgdnico de muitas unidades tomando um curso independente —- mas ligados num conjunto apenas pela ecessidade férrea de um ritmo comum? E interessante notar que todos os tragos mencionados por Guilleré foram encontrados antes no curso da histéria da arte. Toda vez que estes tracos reaparecem, na histéria, considera-se que eles aspiram a um todo unificado, uma unidade supe- rior. ¥. apenas em épocas de decadéncia das artes que este movimento centripeto muda para um movimento censrifugo, separando todas as tendéncias unificadoras — tendéncias incompativeis com uma época que coloca uma énfase exagerada no individualismo. Lembramos de Nietzsche: +O que é caracteristico, em qualquer decadéncia literdria? B que a vida nao esté mais no todo. A palavra levanta ¢ salta para fora da sentenca, a sentenga se alonga muito e obscurece o significado da pégina, a pagina adquire vida & custa do conjunto — 0 conjunto nao mais é um todo... O todo deixou de viver completamente; é composto, somado, artificial, um produto nao-natural,> O aspecto fundamental caracteristico reside principalmente nisto ¢ nao nas particularidades isoladas. Nao sio os baixos-relevos egipcios obras vilidas, apesar de tetem sido feitos sem um conhecimento de perspectiva linear? Diirer e Leonardo no usam simultanea ¢ deliberadamente vatias perspectivas varios pontos de fuga quando convém a seus propésitos?”* E em scu quadro de Giovanni Arnolfini e sua mulher, jan van Eyck usou claramente iés pontos de fuga. Em seu caso, este deve ter sido um método inconsciente, mas que maravilhosa intensidade de profundidade este quadro ganhou com isso! “Nao é totalmente legftimo para as pinturas de paisagem chinesas evitar levar oolho a uma tinica profundidade, ampliando a visio ao longo de todo o panorama, de modo que todas as suas montanhas e cascatas parecem estar se movendo em nossa diregao? ‘As gravuras japonesas nfo usaram o primeiro plano em primeirfssimo plano, e caracteristicas efetivamente desproporcionais dos rostos em primefrissimo plano? Pode-se objetar que nossa tarcfa no consiste cm revelar as tendéncias de Epocas anteriores em diregdo & unidade, mas apenas cm demonstrar um diapasio menos importante e unicamente suplementar de nossa comparagio com uma época decadente. Onde, por exemplo, podemos encontrar também no passado um tal grau de simultaneidade de visées de cima e de baixo, de planos verticais ¢ horizontais Sincronizag4o dos sentidos n misturados, como encontramos quando anafisamos os exemplos de “sintese com- plexa” acima? Os modernos cenirios teatrais “simultdneos” tém seus ancestrais, também, tal como os desenhados por Yakuloy,”* na “tradiggo cubista’, que junta locais de ago totalmente dispares, insere interiores sem exteriores. Seus protétipos idénticos podem ser encontrados na técnica teatral dos séculos XVI ¢ XVII, onde podemos ver desenhos de cendtios tinicos contendo um deserto, um palcio, a caverna de um eremita, a sala do trono de um rei, o quarto de vestir de uma rainha, um wimulo ¢ varios céus — tudo pelo prego de um! Tal ingenuidade imediatamente lembra algumas obras de Picasso, tanto em seu periodo cubista quanto nos perfodas mais recentes, onde um rosto ou uma figura séo apresentados de miiltiplos pontos de vista, e em varios estagios de uma agio. A gravura em cobre no frontispicio da biografia espanhola, do século XVI, de San Juan de la Cruz, mostra o santo no momento em que contempla o milagroso aparecimento do crucifix. Com efeito, surpreendente, consta da mesma gravura uma segunda visio em perspectiva do mesmo crucifixo — como visto pelo santo. Se esses exemplos so especiais demais, entio passemos para El Greco. Ele nos proporciona um exemplo do ponto de vista.do artista saltando furiosamente para frente e para trds, fixando na mesma tela detalhes de uma cidade vistos ndo apenas a partir de varios pontos fora da cidade, mas até de varias ruas, alamedas e pragas! “Tudo isto é feito com a plena consciéncia de seu direito de trabalhar deste modo, e ele até registrou, num mapa inserido na paisagem com este propésito, uma descrigao deste procedimento, Provavelmente tomou essa providéncia para evitar qualquer incompreensio por parte das pessoas que conheciam a cidade de Toledo muito bem e podiam considerar sua obra apenas como uma forma de “esquerdis- mo” excéntrico. © quadro é Vista ¢ planta de Toledo, terminado em algum momento entre 1604 ¢ 1614 ¢ atualmente no Museu El Greco de Toledo. Contém uma vista geral de Toledo feita a uma distancia de aproximadamente um quilémetro a leste. A direita um jovem mostra o mapa da cidade. Neste mapa, El Greco instruiu o filho a escrever estas palavras: Foi necessdtio colocar o Hospital de Don Juan Tavera na forma de uma maquete [aquela na nuvem] porque nfo apenas chegava a cobrir o portéo Visagra, mas seu domo ou ctipula subia de ta! modo que sobrepujava a cidades uma vez colocado como maquete, e mudado de lugar, achei que assim se viaa fachada antes de qualquer outra parte; como o resto dele se relaciona coma cidade, serd visto no mapa..25 Que diferenga isto fez? Proporgées realistas foram alteradas, enquanto parte dacidade é mostrada de wma diregio, um detalhe é mostrado exatamente dat diregdo oposta 72 O sentido do filme Eis por que insisto em incluir El Greco entre os antepassados da montagem cinematogedfica. Neste caso particular ele aparece como um precursor do cinejor- nal, porque sua “remontagem” é mais informativa do que seu outro quadro Vista de Toledo (pintado no mesmo perfodo). Neste tiltimo trabalho, ele. realizou uma revolugdo de montagem da paisagem realista nio mesmo radical, mas o fez através de uma tempestade emocional, que imortalizou 0 quadro.” El Greco nos leva de yolta ao nosso tema principal, porque sua. pintura tem um equivalente musical preciso em uma parte da.vatiada miisica folclérica da Espanha, El Greco refleriu sobre nosso problema da montagem colorido-sonora, porque teria sido impossivel para ele no ter conhecido esta harmonia — jd que sua pintura esté Go préxima, em espirito, das caracterfsticas do chamado cante jondo?® A afinidade espiritual (naturalmente sem referéncia & cinematografia!) é le- vantada por Legendre e Hartmann na introdugio de seu monumental catélogo das obras de El Greco. Eles comecam citando o testemunho de Jusepe Martinez sobre o fato de El Greco freqiientemente convidar misicos & sua casa, (Martinez criticava tal compor- tamento como um “luxo desnecessirio”.) Nao podemos deixar de imaginar que uma afinidade.da misica com a pintura seria natural na obra de um artista que tinha um amor tio pessoal pela mtisica, Legendre ¢ Hartmann declararam abertamente: w» acreditamos realmente que El Greco amava 0 cante jondo, ¢ tentaremos explicar como sua obra representa, na pintura, 2 contraparte que o cante jondo representa na miisica.?? Ao procurar uma descrigéo eandlise do cante jondo, encontramos a espléndida brochura sobre o assunto, publicada anonimamente. por Manuel de Falla por ocasiéo do festival de. cante jondo otganizado em Granada pelo compositor ¢ Federico Garcia Lorca. Esta brochura foi resumida ¢ reproduzida na obra de J.B. “Trend sobre Falla. Depois de descobrir os elementos do canto bizantino, da cangao drabe e da musica cigana no cante jondo... Falla encontra analogias com alguns tipos de melodia encontrados na {ndia e em outros lugares do Oriente. As posiges dos intervalos menores na escala no sio invaridveis; sua produsio depende do levantamento ou abaixamento da voz devido & expresso dada a letra que est sendo cantada...; além disto, cada uma das notas suscetiveis de alteragio € dividida e subdividida, resultando, em certos casos, na alterago das notas de ataque ¢ na resolugio de alguns fragmentos da frase. A isto deve-se acrescentat © portamento da voz — a maneira de cantar que produz as Sincronizagio dos sentidos 73 infinitas gradagSes de diapasio que existem entre duas notas, estejam elas préximas ou distantes. “Resumindo o que foi dito, devemos afirmar, em primeiro lugar, que no cante bondo (como nas melodias primitivas do Oriente) a escala musical é a conse- aliéncia direta do que poderia ser chamado de escala oral... Nossa escala temperada s6 nos permite mudar as fung6es de uma nota; enquanto na “modulagdo enarmdni- ca”, assim aproprindamente chamada, este tom é modificado de acordo com as necessidades naturais de suas fungSes. Outra peculiaridade do cante hondo é0 uso de compassos que raramente excedem os limites de uma sexta. “A sexta, é claro, nic € composta apenas de nove semirons, como no caso de nossa escala temperada. Pelo uso da ordem enarménica, hd um considervel aumento do suimero de tons que o cantor pode produzin.” Em terceiro !ugar, cante Londo proporciona exemplos de repetigio da mesma nota — a0 ponto da obsessio — freqiientemente acompanhada de uma appoggiatunt acima ou abaixo... Apesar de a melodia cigana ser rica em ornamentagées, estas (como na muisica oriental primitiva) s6 so empregadas em determinades momentos como expansio Ifrica ou como explosées apaixonadas sugeridas pelas fortes emogGes desctitas no texto. “Elas podem ser consideradas, por isso, inflexées vocais ammpliadas, em vez de oramentagées, apesar de assumirem estas tiltimas, 20 serem traduzidas nos interva- los geométricos da escala temperada.”3! Legendre ¢ Hartmann nfo deixam civida no leitor quanto & sua analogia entre cante jonda ¢ El Greco. -quando contemplamos os sutis “intervalos” subdivididos de cor, onde as modula- ges dos elementos essenciais se prolongam infinitamente, esses violentos pontos de vista, estes gestos explosivos, estas violentas contorgées que tanto chocam as mentes medfocres e sem vivacidade —ouvimos 0 cante jondo da pintura — uma expresséo da Espanha e do Leste — do Ocidente e do Oriente... Outros especialistas em El Greco, com Maurice Barrés, Meier-Graefe, Kehrer, Wilhumsen ¢ outros, sem na realidade se referirem & mtisica, descreveram porém quase que com estas mesinas palavras este feito das pinturas de El Greco. Quéo afortunados aqueles que podem confirmar estas impresses com os préprios olhos! Uma evidéncia no-sistematizada e muito curiosa desta questio € proporcio- nada pelas memérias de Yastrebtev sobre Rimsky-Korsakov. No registro de 8 de abril de 1893 lemos: Durante a noite a conversa passou para a questio da tonalidade ¢ Rimsky contou como as harmonias em sustenidos funcionavam pessoalmente nele como cores, en quanto harmonias em emdis criavam nele estados de espirito de “maiores ou meno- res graus de entusiasmo”. O dé sustenido menor seguido do ré bemol maior da cena “egipcia" de Mlada foram deliberadamente introduzidos para criar uma sensagdo de 74 O sentido do filme entusiama, assim como a cor vermelha gera sensagées de calor, enquanto azl ¢ piirpura sugerem frioe ecuriddo. “Possivelmente é por isso”, disse cle, “que aestranha tonalidade (mi menor) do inspirado Prelidio de Das Rheingold (O ouro do Reno) sempre teve um efeito tio depressivo sobre mim. Eu teria transcrito este Prelidio na chave de mi maior”? Rapidamente, devemos lembrar as “sinfonias coloridas” de James McNeil Whistler — Harmonia em verde e azul, Noturno ems azul e prata, Noturno em azul e ouro ¢ suas Sinfonias em branco. ‘Associagies dudio-coloridas preocuparam até uma figura to pouco respeita- da como Bécklin: Para ele, que sempre refletiu o segredo das cores, todas as cores falavam —-como relata Floerke — ¢, por sua vez, tudo que.ele percebe, tanto internamente quanto externamente, é traduzide por cor. Estou convencido de que, para ele, 0 toque de uma trombeta, por exemplo, é vermelho-canela.# Considerando o predominio deste fendmeno, a reivindicagao de Novalis ¢ bastante relevante: Obras de artes plisticas nunca deveriam ser vistas sem miisicas obras musicais, por sua vez, deveriam ser ouvidas apenas em sales magnificamente decorados > Quanto a um “alfabeto da cor” absoluto, infelizmente devemos concordar com Frangois Coppée, filisteu que desprezo completamente, quando escreve: Rimbaud, fumiste séussi, —Dans un sonnet, que je déplore — Veut que les letres O.E.L. Formentle drapeau tticolore. En vain le Décadent pérore A questo porém deve ser estudada, porque o problema de se obter uma correspondéncia téo absoluta ainda preocupa muitas mentes, mesmo as dos produ- tores cinematogrificos norte-americanos. Hé apenas alguns anos passei os olhos, numa revista norte-americana, em especulagées bastante s¢rias quanto 4 absoluta correspondéncia do tom da flauta piccolo com — 0 amarelo! + Em francés no originals “Rimbaud, mistificador bem-sucedido, / — Num soneto que ex deploro — J Quer que as letras O.E.I. / Formem a bandeira tricolor. / Em vio 0 Decadente perora...” Sincronizagio dos sentidos 75° Mais deixemos esta cor amarela, supostamente produzida pelo piccolo, servir para nés de ponte para os problemas, nao de “abstragées nfo objetivas”, mas dos problemas encontrados pelo artista em seu trabalho criativo com a cor. Notas 1, Escrito em 1940 e publicado na revista Jikusstvo Kino de setembro deste mesmo ano com 0 tieulo de Monsagem vertical, Primeiro de trés ensaios- as duas partes seguintes foram publicadas nas cedigbes de derembro de 1940 ¢ janeiro de 1941 da mesma revista. 2, NS.E: ELM. Forster, Aspects of the Novel, Nova York, 1927. 3, NS.E: Richard Hugues, A Moment of Time, Londzes, 1926. 4. NSE: Thomas Medwin, Journal of the Conversations of Lord Byron: Noted during a residence with his Lordship at Pisa, in the years 1821 and 1822, Baleimore, 1825. 5. NSE: Journal des Goncourt, vol.3, Paris, 1888, 6. “O Futuro do Filme Sonoro”, declaragio assinada por Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov, publicada em agosto de 1928 nas revistas Zhizn Iskusstva (Vidas das artes) de Leningtado e Sovietski Ekran (Tela soviética) de Moscou. Ver apendice de A forma do filme. “Nao Colorido, mas em Cores”, texto escrito em 1940 para a revista Kino de maio do mesmo PAL. of Rime, Stanford University Press, 1931. 9. Em abril de 1936 Eisenstein publicou na revista /skussevo Kino (A Arte do Cinema) um texto ‘como titulo “Programa para o Ensino da Teoria e da Pritica da Diregio de Filmes”, versio ampliada do projeto de programa publicado cm 1933, em trés partes, nos nimeros 5/6, 7 ¢ 8 da revista Sovietskoie Kino, pouco antes do autor iniciar o seu curso de diresio no Instituto Superior de Cinema de Moscou, 0 VGIK. Este primeiro projeto intitulava-se “O Granito da Ciéncia do Filme”. No livro Ligées com Eisenstein, de Vladimir Nizhny, transcriggo das anotagGes estenogrificas do curso de Eisenstein em 1934, editado em Moscou em 1957, editado em Londres em 1962, em tradugio de Ivor Montagu e Jay Leyda, o “Programa” esté publicado em apéndice, paginas 143 a 177. (Lessons with Eisenstein, George Allen & Unwin Ltd, 1962), Outras aulas de Eisenstein encontram-se transcritas no Volume IV dos textos selecionados publicados em Moscou em 1966. 10. NS.E: Karl von Ekartshausen, Aufichlisse zur Magie aus gepriften Exfahrungen tber verboge- ne philosophische Wissenschaften und verdeckte Geheimnise der Natur, Munique,1791. 11. NS. Louis-Bertrand Castel, Eipris, saillies et singularités du P Castel, Amsterda, 1763. 12, NSE: René Ghil, “En methode & Yocuvte”, in Oeuvres completes, Pacis, Albert Messein, 1938. 13, NS.81 Hermann LB Helmholtz, Physiological Optics, Rochester, 1924. 14, NS.8: Max Deutschbein, Das Wesen des Romantischen, 1921. 15. NS. Citado em Henry Lanz, op. cit., p. 167. 16. 8.5.8. The Japanese Letters of Lafeadio Hearn, organizagio de Elizabeth Bisland, Nova York, 1910, 17. NS.t4 Ibid., carta de 5 de junho de 1893. 18. N.S.E: Ibid., carta de 14 de junho de 1893. 76 O sentido do fiime 19. Em dois ensaios escricos em 1940, “O desdobramento do tinico” e “Par-impar”, parces da coletinea Cinematisme, editada em francés, em 1980, em Bruxelas, pela Editions Complexe, Eisens- tein parte da oposigio entre yin e yang na filosofia chinesa para estudar a forma de composigio das obras dearte. 20. NSE: Reproduzido do Tx Shu Chi Cheng, edicio resumida da enciclopédia K'ang Hei, vol.1.116, cap.51. 2. René Ouilleré, “ll nly a Plus de Perspective”, Le Cahier Blew, 4, 1933. 22, NS.B: [mpress6es semellrantes foram registradas por Antoine de Saint-Exupéry ao descrever ‘uma [uta aérea com: uma tempestade: “Horizonte? Nao havia mais horizonte. Eu estava nos bastido- res de um teatro atravancado com pedagos de cendtios. Vertical, obliquo, horizontal, tudo da geometria plana rodopiava. Centenas de valestransversais se confundiam numa mistura de perspec- tivas... Por apenas um segundo, numa paisagem valsante como esta, 0 aviador foi incapaz de distinguir montanhas verticais de planicies horizontais (Vento, arciae etrela, 1941). 23. NS.E: “The Works of Friedrich Nierasche", vol.Xx1, The Case of Wagner, 1896. 24, NS.£ No conhecido quadro A slkima ceia, de da Vinci, 0s objetos da mesa tém um ponto de fuga diferente do ponto de fuga da sala. E.em intimeras gravuras de Durer encontramos 0 uso da perspectiva dupla. 25. Georgi Bogdanovich Yakulov (1884-1928), pintor e cendgrafo russo, 26. NS.B: O texto completo como aparece no quadro: “Ha sido Forgoso poner ef hospical de Don Joan Taucra en forma de modelo porque no solo venia a cubsir la puerta de visagra mas subia cl imborrios 0 copula de manera que sobrepujaua Ia giudad y asi una vez puesto como modelo y mouido de su lugar me paregio mostrar la haz antes que otra parte y en los demas de como viene con Ja siudad se vera en la planta. “Tambien en la historia de Nra, Sefiora que trabe la easulla aS, Ilefonso para su ornato y hazer las figuras geandes me he valido en gierta manera de ser cuerpos gelestiales como vemos en fas luges que vistas de lexos por pequefias que sean nos paresen grandes.” 27. Eisenstein desenvolve as idéias aqui esbogadas sobre as relagbes entre a pintura de El Greco 0 cinema num longo ensaio que escreveu entre 1940 e 1941. Com um titulo original em espanhol, “Et Greco y ef Cine”, este texto faz parte da coletinea Cinematizme, oito ensaios sobre cinema € pintura editados em francés, Editions Complexe, Bruxelas, 1980. 28. NS.E: Ou cante hando, que poderia ser traduzido por musica (canto) grave, funda, profun- a, 29. NSit: Maurice Legendre eA. Hartmann, Domenikos Theotokopaulos, El Greco, Batis, Editions Hyperion, 1937. 30, NSE: El “Cante jondo” (Canto primitive andalua), de Manuel de Falla e Federico Garcla Lorea, Granada, Editorial Urania, 1922. 31. NS.Es John Brande ‘Tend, Manuel de Falle and Spanish Music, Knopf, 1929. Legendre e Hartmann, op. cit, }. NS.Bs Vasili V. Yastrebtzev, Moi vaspominaniya o Nikolaye Andreyviche Rimskom-Korsakove, Perrogrado, 1915. 34, NS.E: Max Schlesinger, Geschichte des Symbols, ein Versuch Berlim, Leonhard Simion, 192. Citagio de Gustav Flocrke, Zebn Jahre mit Béellin, Munique, 1902. 35. NS.E: Friedrich Leopold Hardenberg, Novalis Sebriften, vol.Il, Berlim, G. Reimer, 1837. 36, NSE: Frangois Coppée, “Ballade”, Citado in Le Sonnet des Voyelles, de R. Esiemble. Reve de Littérature Comparée, abtil-julho de 1939. Ill. Cor e significado Formas, cores, densidades, odores — 0 que hd em mim que corresponde com eles? ‘WALE WHITMAN? No capftulo anterior, fizemos um exame bastante completo da questio de como encontrar “absolutas” entre som ¢ cor. Como esclarecimento adicional, examinemos outro problema ligado a isto, a saber: a questio das relagdes “absolutas” entre emoges particulares ¢ cores particulates. Em beneficio da variedade, abordemos esta questio menos através das “auto- tidades”, com seus raciocinios ¢ opinides, ¢ mais através das emoges ¢ impresses vivas que os artistas nos deixaram sobre 0 assunto. E em beneficio da conveniéncia, limitemos nossos exemplos a uma tonalida- de, Vamos compor nossa prdpria “rapsédia em amarclo”, Nosso primeiro exemplo é um caso extremo. Quando falamos de “tonalidade interior” ¢ “harmonia interna de linha, forma € cor”, temos em mente uma harmonia com algo, uma cotrespondéncia com algo. A tonalidade interna deve contribuir para o significado de um sentimento interno. Por mais vago que seja esse sentimento cle avanga sempre em direcio a algo concreto, encontra sua expresso externa em cores, linhas ¢ formas. Existem porém os que reivindicam que uma abordagem como esta nega a “liberdade” do sentimento. Em contraposigio a nossos pontos de vista ¢ opiniées, propéem uma tonalidade interna (der innere Klang) sem objetivo, vaga, absoluta- mente livre, nem como uma diregéo, nem como um meio, mas como um firm ems mesmo, como 0 auge da realizagao, como finalidade. Um ponto de vista de “liberdade” como este sé nos liberta da razao. Esta & realmente uma liberdade rara, singular, a tinica absolutamente ating{vel entre nossos vizinhos fascistas. 7 78 O sentido do filme Um importante expoente ¢ defensor vitalicio do ideal acima ¢ 0 pintor Kandinsky~ -a fonte das primeiras medidas de nossa “rapsédia em amarelo”. O que se segue é um trecho de “O som amarelo”3, uma composicio teatral de Kandinsky, que conclui o volume intitulado Der Blaue Reiter- - praticamente um manifesto do grupo de mesmo nome —c de considerdvel influéncia nas tendéncias subseqiientes da arte moderna européia. Este “som amarelo” é, na realidade, um “programa” para uma apresentagdo cénica dos sentimentos de seu autor com relagdo a0 jogo de cores como se fosse de miisica, do jogo de mtisica como se fosse de cores, do jogo de personagens de um modo ou de outro, ¢ assim por diante, Em sua obscuridade ¢ desconcertante indefinigio, sente-se eventualmente a presenga de alguma “semente” mfstica — apesar de ser muito difteil chegar a qual- quer definigio clara, Finalmente, na sexta cena, é revelada, quase religiosamente: Opaco fundo azu!... No centro do palco h4 um grande gigante amatelo forte com um rosto branco roldado e olhos negros grandes, redondos... Ele levanta vagarosamente os bragos na horizontal (palmas para baixo), aumen- tando de ramanho 20 fazé-lo. No momento em que atinge a altura total do palco, e que sua figura parece uma cruz, 0 paleo é repentinamente escurecido. A miisica & expressiva, seguindo a agio no paleo. Os contetidos desta obra ndo podem ser satisfatoriamente discernidos, devido A auséncia total de conteiido- -assim como de tema. © maximo que podemos fazer pelo autor é apresentar alguns exemplos de seus sentimentos, que envolvem os “sons amarelos”: Cena 2 ‘A neblina azul gradualmente dé lugar 3 luz, que ¢ completa e cruelmente branca. No fundo do palco, uma colina, completamente redonda, de um verde tio brilhante quanto posstvel. O fando € violeta, bastante brilhante. A misica é tfspida, violeta, recorrendo constantemente aos lake sis beméis. Estas notas individuais so finalmente engolidas pela barulhenta tempestuosidade, De repente siléncio total. Uma pausa. Novamente Ja esi gemem, lamentavelmente, mas de modo definido e seguro. Isto dura algum tempo. Entio, novamente uma pausa. Neste momento, o fundo de repente se torna marrom-escuro. A colina se torna verde-escura, E no centro da colina uma mancha preta indefinida é formada, alterna- damente se tornando mais clara e entio cinza-manchado, A esquerda da colina uma grande flor amarela de cepente se torns visivel. Lembra remotamente um grande pepino torto ¢ constantemente se torna mais clara. Sua haste é longa ¢ fina. Uma Cor e significado 79 tinica folha pontuda, estreita, cai do meio da haste, e se vira para o lado. Uma longa pausa, Mais tarde, em siléncfo mortal, a flor muito vagarosamente balanga da direita para a esquerda. Mais tarde ainda, a folha se junta na oscilaggo, mas nfo em unfssono como a flor. Mais tarde ainda, ambas oscilam num ritmo desigual. Entfo elas nova- mente balangam para Id e para cf, separadamente, um si muito suave soando com 0 movimento da flor, ¢ um /d muito grave com o movimento da folha. Entéo, ambas oscilam em unissono, com ambas as notas soando com elas. A flor treme violenta- mente ¢ péra. As duas notas musicais continuam a soar. Ao mesmo tempo, muitas pessoas entram da esquerda com roupss deslumbrantes, longas, so!cas (uma toda em. azul, outra em vermelho, a terceira em verde ete, — sé falta o amarelo). Elas cém enormes flores brancas nas mios, semelhantes & flor da colina. Executam um tecita- tivo com as vozes misturadas.. Primeiro, todo o palco de repente se obscurece com uma opaca luz vermelha. Em segundo lugar, uma escuridio total se alterna com violenta luz. branca. Em terceiro lugar, tudo de repente se torna cinza-desmaiado (todas as cores desaparecem). Apenas a flor amarela brilha ainda mai O orquestra gradualmente comega ¢ cobre as vozes. A miisica torna-se agitada, indo do fortisimo 20 piantssimo... No momento em que a primeira figura se tora visivel, a flor amarela treme como se com cfibra. Entfo, de repente, desaparece. Também de repente, todas as flores brancas se tornam amarelas... Finalmente todos jogam fora as flores, que parecem estar encharcadas de sangue, ¢, forcosamente se libertando de sua rigide2, correm em diregio A ribalta, apertados ombro a ombro, Olham em volta sem parar. Subita escuridao. Cena 3 Fundo do palco: duas grandes pedras em matrom-avermelhado, uma delas pon- tuda, a outra redonda e maior do que a primeira. Segundo plano: preto. Os gigantes (da Cena 1) estio entre as pedras e silenciosamente sussurram. um para 0 outro. Algumas vezes eles sussurram juntos, outras aproximam as cabecas. Seus corpos permanecem iméveis. Em répida sucessio, cam de todos os lados raios de luz violentamente coloridos (azut!, vermelho, violeta, verde — alcernando-se varias ve- zes). Esses raios encontram-se no centro do palco, onde se misturam. Tudo est imével. Os gigantes estio quase totalmente invisiveis. Subitamente todas as cores, desaparecem. O palco fica preto por um instante. Entéo uma opaca luz amarela inunda o palco, tornando-se gradualmente mais intensa, até que todo 0 paleo € banhado por amarelo-limio berrante. Enquanto a luzse intensifiea, a miisica se torna mais profunda e cada vez mais higubre (esses movimentos lembram o do préprio caracol em sua concha), Durante estes dois movimentos, nada, exceto a luz, deve ser vis{vel no palco — nenhum objeto... Etc. etc. © método usado aqui é claro —abstrair “tonalidade internas” de qualquer matéria “externa”. 80 O sentido do filme Um método como esse tenta conscientemente divorciar todos os elementos do contettdo; tudo o que diz respeito a tema ou assunto é dispensado, deixando apenas os elementos extremamente formais, que, na obra criativa normal, desempenham apenas um papel parcial. (Kandinsky formula sua teoria em outra parte do volume citado.) Nao podemos negar que as composigées deste tipo evocam sensagies obscunt- mente perturbadoras — mas nada além disso. Mas até hoje continuam a ser feitas tentativas de.organizar estas sensagSes subjetivas e muito pessoais em relagées significativas, que so, francamente, igual- mente yagas e remotas.* O que vem a seguir demonstrard como Paul Gauguin trabalhou com “tonal dades internas” semelhantes, como registrou num caderno de notas intitulado Gentse d'un tablean (Génese de um quadro)* com relagio a seu quadro Mando Tupapau- - O esptrito dos mortos vela:’ Uma jovem taitiana est deitada de bartiga para baixo, revelando parte de seu rosto assustado. Ela repousa numa cama, coberta com um pared azul e um lengol amarelo- cromo claro. Hé um fando violeta-puirpura estampado com flores semelhantes € faiscas elétricass uma figura bastante estranha esti junto & cama. Cativado por uma forma, um movimento, pinto isto sem nenbuma outra preocu- pagio senio a de fazer um nu. Como est agora, é um estudo ligeiramente inde- pendente de um nu. O que quero fazer, porém, é uma pintura casta, expressando © esphrito taitiano, seu eardter e sua tradigio. Uso 0 pared como coleha porque ele esta intimamente ligado a vida de um taitiano. O lengol, com uma textura de casca de drvore, deve ser amarelo — porque esta cor sugere algo inesperado ao observador; e também porque sugere luz de lampio, o que me economiza o tabalho de criar este efeito. Deve ter um fando ligeiramente aterrorizante. O violeta é obviamente necessirio. O arcabougo da har- monia do quadro esti ‘armado. Nesta pose.de certa forma ousada, o que uma jovem taitiana pode estar fazendo, completamente nua numa cama? Preparando-se para o amor? Isto seria tipico dela, mas é indecente, e nao quero isto. Dormindo? ~ - © ato de amor teria terminado, 0 que ainda é indecente, $é vejo medo. Certamente nfo 0 medo de alguma Suzana sutpreendida pelos ancifos. Este medo € desconhecido no Tait © tupapat (espitito dos mortes) & resposta que estou procurando, £ uma fonte de.constante medo dos taitianos. A noite, uma limpada é sempre mantida acesa. Quando no hé Jua, ninguém anda pelas ruas sem uma lanterna, e mesmo assim sempre andam em grupo. ‘Tendo encontrado meu tupapau, fiquei totalmente ligado a ele e fiz dele 0 motivo de meu quadro. O nu ganha uma importincia secundaria. Como uma moga taitiana imagina um Fantasma? Ela nunca foi a um teatro, nem Jeu romances e, quando pensa numa pessoa morta, s6 pode pensar em alguém que jé Core significado 81 viu. Meu fantasma s6 pode ser uma velhinha, Ela estica as mios, como que para agarrar sua vitima. Um senso de decoragio me leva a espalhar flores no fundo. So flores tmpapan, fosforescentes, indicando que o fantasma esti pensando em vocé, As crengas dos taitianos. O titulo Munao tupapau tem dois significados: ela pode estar pensando no fantas- ma, ou o fantasma estd pensando nela. Resumindo. O elemento musical: linhas horizontals onduladas; harmonia de Iaranja e azul entrelagados pelos amarelos ¢ violetas e suas derivadas, codas iluminadas por centelhas esverdeadas. O elemento literdrio: Espirito de uma moga preso a0 Espitito dos mortos. Noite e Dia. Esta génese é escrita para os que sempre insistem em saber os porgués © os para és. Pde eso, ésimplesmente um estudo de nu taitiano. Aqui estd tudo o que procuramos: “o arcabougo da harmonia do quadro est armado”; uma avaliagao dos valores psicolégicos das cores — O “aterrorizante” uso da violeta, assim como do nosso amarelo, aqui calculado para sugerir “algo inespe- rado para 0 observador”. Um amigo intimo de Gauguin registrou uma avaliagio semelhante de nossa cor. Vincent van Gogh descreve seu Caf? noturno, que acabara de tetminat, para seu irmio: Em meu quadro Café notuerno, sentei expressar a ideia de que o café é um lugar onde alguém pode se arruinay, ficar !ouco ou cometer um crime, De modo que tentei expressd-lo como se ele encarnasse os poderes da escuridio, um bar vulgar verde Luts XV suave ¢ cobre, contrascando com verde-amarclade fortes verde-szulados, tudo isto numa atmosfera como a de uma fornalha do diabo, enxofte-palido.” Eis outro artista que fala do amarelo — Walther Bondy, ao escrever sobre seus desenhos para a produgio de Brott ach Brott (HA crimes e crimes)® de Strindberg, em 1912: Ao encenar a peca de Strindberg, fizemos uma tentativa de levar os cendtios e 0 figurino a participar diretamente da ago. Para isso, era necessdtio que cada detalhe do milieu expressasse algo ¢ desempe- nhasse seu papel especifico. Em muitos casos, por exemplo, cores particulares seriam usadas devido a seu efeito direto no espectador. Havia vatios leit-motifi, descritos pela cor, a fim de mostrar uma relagéo mais profunda entre momentos isolados da pega. Assim, na terceira cena (ato ll, cena 1) um tema amarelo foi introduzido na agio. ‘Maurice e Henriette estéo sentados no “Auberge des Adres”; o tom geral da cena é preto, com uma cortina preta cobrindo quase completamente uma enorme janela de vidro coloridos sobre a mesa est um candelabro com trés velas. Na geavara-borboleta a2 O sentido do fitme nas luvas que ganhou de Jeanne, sendo desembruthadas por Mautice, a cor amarela aparece pela primeira vez. O amarelo torna-se o tema colorido do “mergulho no pecado” de Maurice (através deste presente ele estd inexoravelmente ligado a Jeanne © Adolphe). Na quinta cena (ato ill, cena 2), quando Adolphe deixa o palco © Maurice « Henriette tomam consciéncia de seu crime, grandes buqués de flores amarelas so levados para o palco. Na sétima cena (ato IV, cena 1), Maurice e Henrictte estéo sentados nos Jardins do Luxemburgo. O céu est4 amarelo brilhante, ¢, como silhuetas contra ele, 0s finos galhos pretos desfolhados, o banco ¢ as figuras de Maurice ¢ Henriette... Deve-se notar que o tratamento de toda a produgio se deu num plano amistico. A premissa aqui é que “cores particulares exercem influéncias especfficas” no espectador, Isto é “substanciado” pela relagio do amarelo com o pecado, ¢ pela influéncia desta cor na psique. O misticismo também é mencionado... # interessante ver 0 mesmo uso associativo feito com esta cor por T'S. Eliot, particularmente em seus primeiros poemas: No leito posta de través, ‘Teus papelotes retiravas, Ou com as mios sujas agarravas A planta amarela dos pés.” Bem! e daf se ela deve morrer uma tarde, dessas, “Tarde cinza e esfumagada, tarde amarela ¢ rosa... Aneblina amarela que esfrega o dorso nos vidros da janela, Anneblina amarela que esfrega o focinho nas vidragas, A lingua insinuow nos recantos da tarde, Demorou-se nas pogas das sarjetas..!* O uso do amarelo por Eliot estende-se até as substancias e objetos desta cor, Em Sweeney ensre os rouxindi: 1». homem de olhos pesados Recusa 0 gambito: fadigas Da sala sai mas reaparece De fora, 4 janela, inclinado, Por entre ramos de glicinia Enquadra-se,um ictus dourado... E Mr. Appollinax teemina com: Core significado 83 Eu me lembro de uma fatia de limo, ¢ um biscoito mordido. Para tornar a cor amarela totalmente “aterrorizante”, escolhemos outro exemplo. Hi poucos escritores tio intensamente sens{veis & cor quanto Gogol. E tam- bém poucos so 0s escritores da nossa época que entendem Gogol tio intensamente como Andrei Belyi. Em sua exaustiva andlise da arte de Gogol,!? Belyi sujeita as mudangas da paleta de Gogol, a0 longo de sua carreira ctiativa, a0 mais minucioso exame no capitulo, “O espectro de Gogol”. O que é revelado? Seguindo o grafico amarelo dos mapas de Belyi, vemos nossa cor crescendo estavelmente a partir de Noites na aldeia, através de Taras Bulba, e dando seu maior salto quantitative para cima no segundo volume de Almas mortas. De todas as cores usadas por Gogol em suas primeiras obras, a média de referéncias a0 amarelo ¢ de apenas 3,5%. No segundo grupo (dos romances e comédias), esta média sobe para 8,5%, no terceiro grupo (volume! de Almas mortas) alcanga 10,3%. E finalmente (volume 11 de Almas mortas), o amarelo ocupa 12,8% da atengao dada & cor por Gogol. Sendo préximo do amarelo, o verde se comporta de modo andlogo: 8,6 — 7,7 — 9,6 —21,6%. Juntas, estas duas cores ocupam mais de um tergo da paleta de Gogol em sua ultima obra. Isto nao inclui os 12,8% de referéncias ao “dourado”, Belyi salienta: 9 ouro no volume II (de Almas mortas) nao é 0 ouro da baixela ¢ fios de ouro, mas 0 ouro das catedrais ¢ cruzes, que intensifica o papel influence da Igreja Ortodoxas a ressonancia do “our” ¢ balanceada com a “ressondncia vermelha” da gléria cossaca; com o grifico vermelho declinado e os grificos amarelo ¢ verde elevando-se, este segundo ditige-se a um mundo colorido muito distante do espectro de Noites na alideja.. Ainda mais aterrotizante patece o tom “fatal” do amarelo quando nos lembra- mos que esta ¢ exatamente a escala cromitica que domina outra obra de arte, criada num trigico lusco-fusco — o auto-retrato de Rembrandt aos 55 anos. Para evitar acusagdes de preconceito pessoal ao descrever a cor desta pintura, cito aqui nao a minha, mas a desctigéo de Allen desta obra, como ele escreveu em seu artigo que relaciona os problemas da estética aos da psicologia: as cores so todas escuras e nebulosas, iluminadas apenas no centro. Este centro & uma combinagio de verde-escuro e cinza-amarelado, misturado com marrom-des- maiado; 0 resto é quase preto... 84 O sentido do filme Esta escala do amarelo, fundindo-se em verde-escuros ¢ marrom-desmaiados, é enfatizada pelo contraste com a parte mais baixa da tela: «+ apenas em baixo alguns tons avermelhados podem ser vistos; tampados e sobrepos- tos, mas, ajudados pela densidade e intensidade comparativamente grande, cles criam tum contraste claramente evidente com o resto da pintura... Com relagio a isto, é impossivel omitir uma referencia & infeliz imagem do envelhecido Rembrandt apresentada por Alexander Korda ¢ Charles Laughton em Rembrands.* Laughton foi para as cenas finas vestido e maquiado cuidadosamente, ‘mas nenhuma tentativa foi feita para espelhar esta trégica escala cromdtiea, to tlpica de Rembrandt, através de uma equivalence esaala de iluminagio cinematogréfica. "Toma-se evidente que muitas caracteristicas que atributmos 4 cor amarela derivam de sua vizinhanga imediata no espectro — o verde. O verde, por outro lado, é diretamente associado aos simbolos da vida - - jovens brotos de folhas, folhagem ¢ a prdpria “verdura” — de modo tao firme quanto 0 é com os simbolos da morte e decadéncia — musgo, limo, ¢ as sombras no rosto de um cadéver. Nio ha limite para as evidéncias que poderfamos trazer a esta corte, mas jd no temos o suficiente para nos perguntarmos, “Talvez,haja algo sinistro na natureza de cor amarela2” Isto diz respeito a algo mais profundo do que o mero simbolismo convencional c as associages habituais ou acidentais? Para respostas a estas perguntas devemos nos voltar para a histdria da evolugo dos significados simbélicos de determinadas cores. Existe, felizmente, um trabalho muito completo sobre este assunto, de Frédéric Portal, publicado pela primeira vez em 1857: Des couleurs symboliques dans Vantiquite le Moyen Age et les temps moder- nes (As cores simbdlicas na Antiguidade, na Idade Média ¢ nos tempos modernos). Esta autoridade no “significado simbélico” da cor teve o seguinte a dizer sobre a.cor que nos interessa aqui — 0 amarclo — ¢ sobre as idias de perfidia, sraigéo ¢ ‘pecado foram associadas a ela: ‘As linguagens divina e sagrada designavam pelas cores ouro eamarelo a unio da alma a Deus ¢, por oposigio, o adultério num sentido espiritual. No discurso profano, era um emblema material representando o amor legitimo, assim como o adultério carnal que rompe os clos do casamento. ‘A maga dourada cra, para os gregos, o simbolo do amor e da concérdia, mas, por oposicio, representava a discérdia e todas as desgragas em conseqtiéncia; 0 julgamen- to de Paris prova isto. Do mesmo modo, Atalanta, enquanto reine as magas douradas colhidas no Jardim das Hespérides, € vencida na corrida e se torna o prémio do vitorioso.'4 De particular interesse ¢ a evidéncia de Portal de um aspecto encontrado em toda questo mitoldgica ligada a esta cor: 0s significados ambivalentes dos quais se Cor e significado 85 extrai um sentido nao-explicito. Este fendmeno pode set explicado pelo fato de que, nos estigios primitivos da evolugio, 0 mesmo conceito, significado ou palavra representa igualmente dois opostos mutuamente exelusivos. O amarelo, ele mostra, tem ligagdes igualmente fortes tanto com “unio de amor” quanto com “aduleério”, Havelock Ellis nos dé uma convincente explicagiio deste fendmeno, isto é, do caso particular do amarelo: Foi claramente o advento do cristianismo que introduziu um novo sentimento em relagio ao amarelo, Em grande medida, sem diivida, foi claramente o in{cio de toda a reagio crist& contra o mundo clissico ea rejeigo de tudo o que era simbolo daalegria edo orgulho, O amor ao vermelho estava to firmemente enraizado na natureza humana que conquistou até o cristianismo, mas 0 amarelo era 0 ponto de menor resisténcia e aqui a nova religifo triunfow. O amarelo tornou-se a cor da inveja. O amarelo tornou-se a cor do citime, da inveja, da traigio. Judas foi pintado com roupas amarelas e em alguns paises os judeus foram obrigados a se vestir de amarelo. Na Franga, no século XVI, as portas dos traidores e delingiientes eram caladas de amarelo, Na Espanha, os heréticos que se retratavam eram obrigados a usar uma cruz amarela como peniténcia ea Inquisicéo exigia que eles aparecessem em autos da fé piblicos em roupas de peniténcia ¢ carregando uma vela amarela. HA uma razSo especial para o cristianismo ver o amare!o com suspeigao. Fora a.cor associada ao amor libertino. No in{cio, a associagio foi com 0 amor !egitimo... Mas na Grécia, e ainda mais marcadamente em Roma, a cortesi comegoua tirar vantagem desta associagao.!> Em uma das conferéncias a que assisti, dadas pelo académico Marr,'¢ ele ilustrou o fendmeno bdsico da ambivaléncia com o radical “kon”, que ¢ uma raiz tanto da palavra russa fim, “kon-yetz”, quanto de uma das mais antigas palavras russas que significavam infcio, “is-kon-i”. © antigo idioma hebraico contém um exemplo semethante na palavra wip “Kadish’, que tem o significado de “sagrado” e “profano. O significado “limpo” “sujo” da palavra sabu jd nos familia, E Gauguin jé mencionou que “Manao tupapau” tem um significado duplo: “ela estd pensando no fantasma”, e“o fantasma estd pensando nela”. Permanecendo no circulo de nosso interesse atual pelas idéias de amarelo ¢ ouro, podemos citar outro caso de ambivaléncia: ouro, um simbolo de valor supe- rior, também serve como uma popular metéfora que significa - - corrupao. Isto é verdadeiro nao apenas de um modo geral, como nos exemplos da Europa Ocidental abaixo, mas também no idioma russo, que contém o termo “zolotar” (“zoloto”, a raiz-ouro), cujo significado especifico é “limpador de fossas”. Veremos também que uma interpretagéo “positiva” (numa “chave maior”) deste dourado ou amarelo contém uma base diretamente sensual, € que nela esto entrelagadas associagGes intciramente marginais (sol, ouro, estrelas). 86 O sentido do filme Até Picasso notou estas associagées particulares: HA pintores que transformam o sol num ponto amarelo, mas hd outros que, com a ajuda de sua arte e sua inteligéncia, transformam um ponto amarelo em um so}.!7 EVan Gogh, para quem a cor amarela tinha vitalidade especial, coloca de lado as associagdes diabdlicas que ele explorou em seu Café noturno, e toma a palavra pelos pintores que “transformam um ponto amarelo em um sol”: .~- em. vez de tentar reproduzir exatamente o que.cenho diante de meus olhos, uso a cor arbitrariamente, de modo a expressar amim mesmo, obrigatoriamente. Bem, isso €o suficiente quanto 3 teorias vou dar-lhes um exemplo do que quero dizer com isso. Gostaria de pintar o retrato de um amigo artista, um homem que sonha grandes sonhos, que trabalha como a cotovia canta, porque &de sua natureza. Ele seré um homer bom. Quero colocar no quadro minha estima, o amor que sinto por ele. ‘Assim, pinto-o como ele é, o mais fielmente poss(vel, para comeco de conversa. ‘Mas 0 quadro ainda no esté terminado. Para terminé-lo, agora serei o colorista arbitrdrio. Exagero o louro do cabelo, chego a usar tons de laranja, cromo e amarelo- limao claro. Asrds da eabesa, em ver.de pintar a costumeira parede do quarto s6rdido pinto 0 infinito, um undo tiso do mais rico ¢ intenso azul que eu invento, e pela simples combinagio da clara cabega contra o fundo azul forte, consigo um efeito misterioso, como uma estrela nas profundezas do céu azulado...!® ‘A fonte positiva do amarelo no primeiro caso foi o sof (Picasso), e no segundo —uma estrela (Van Gogh). ‘Vejamos outra imagem do matiz dourado do amarelo- - encontrada em “um homem que sonha grandes sonhos” —o préprio Walt Whitman, “correndo através do espago, correndo através do céu e das estrelas”: Os pintores pintaram seus fervilhantes grupos com uma figura central. Da cabega da figura central espalha-se uma auréola de luz colorida de dourado. Mas eu pinto miriades de cabesas, mas nao pinto nenhuma cabega sem sua auréola de luz colorida de dourado. De minha mao, do cérebro de todo homem e mulher Hui, refulgentemente, Autuando infinitamente."? Whitman deve ter amado a cor, mas amou-a o suficiente para nfo limitar sua aplicagdo a apenas um uso. Suas descrigées da natureza esto cheias de. um uso “positive” do amarelo, que surge em maravilhosas, vigorosas, “positivas” paisagens: Rebentos agarram e proliferam, presentes na satjeta, prolificos ¢ vitas, Paisagens projetadas masculinas, amplas e douradas.”° Cor e significado 87 Vejo as terras altas da Abiss{nia, ‘Vejo os rebanhos de cabras pastando, e vejo a figueira, a tamarineira, a tamareira, E vejo campos de trigo afticano e regi6es de verdor ¢ ouro.”! A Califérnia recebe uma especial atengao “dourada”: Sempre as colinas ¢ vales dourados da Califérnia, e as montanhas argénteas do Novo México...” O cendrio flamejante e dourado da Califérnia, O drama repentino ¢ deslumbrante, as ensolaradas e amplas terras..29 Entre as importantes associagées positivas que Whitman faz com o amatelo, ha uma com 0 tema que o preocupou ainda mais do que a natureza~ -0 tema do trabalho: No meio-fio, na beira da calgada, Um amolador trabalha em sua mé afiando uma grande fica, Inclinando-se cuidadosamente, entrega-se pedra, com 0 pé¢ 0 joelho, Com um movimento uniforme, gira-a rapidamente, enquanto pressiona a faca com a mfo leve e firme. Em seguida, jorram em copiosos jatos dourados Chispas da mé,”* eda Cangio do machado: As lascas cor de manteiga voam em grandes flocos ¢ pedagos... Apesar da poderosa clave maior na qual essas referéncias 20 amarclo sio tocadas, ha também uma clave menor — ouvida pela primeira vez nas passagens do por-do-sol rural, das quais a transicio para a morte ea velhice despontam através de imagens diretas: irradiada pelo inclinado e Ifmpido pér-do-sol amarelo, Misica, mtisica italiana em Dakota.2> Quadros da nascente primavera ¢ fazendas ¢ lares, Com o creptisculo do quarto més, ea fumaga cinza lieida e brilhante, Com torrentes de ouro amarelo do resplandecente, indolente, dectinante sol, quei- mando, expandindo o ar. Passando pelas espigas de trigo amarelas, cada grio de sua mortalha nos campos marrom-escuros despontado, 88 O sentido do filme .Passando pelas florescéncias da macicira em branco e rosa nos pomares, Carregando um eadiver para onde ele repousard no timulo, Noite e dia viaja um caixio” ede Os picos bruxuleantes da vethice: A visio mais calma —o centio dourado, claro ¢ amplo... E finalmente 0 amarelo se torna a cor dos rostos dos homens feridos, das velhas — e é acrescentado & escala de cor da mortal decadéncia: Limpo uma ferids do lado, profunds, profunda Mais um dia ou dois, para ver o corpo gasto eem declinio, E veras feigées azul-amareladas.2* E meu rosto amarelo e enrugado em vez do da velha, Sento-me numa cadeira de palhinha ¢ cuidadosamente cirzo as meias de meu neto.? cemA pdlida grinalda: De algum modo, néo posso deixar ir ainda, apesar de ser o funeral, Deixe-o permanecer Id em seu cravo suspenso, Com rosa, azul, amarelo, todo esbranquigado, ¢ 0 branco agora cinza eacinzentado.. Mas pode-se detectar mesmo entre 0 uso amplo, variado, desta cor por Whitman, que ele faz distingio entre sutis diferengas de marizes do amarelo — abrangendo toda a escala do dourado 20 “amarelo, todo esbranquicado”. Volrando & nossa autoridade, Portal nos revela um estégio da evolugio das “cradig6es do amarelo” na Idade Média, A cor tinica, que na antiguidade fora um simbolo de dois opostos simultaneamente, passou por um “processo de racionaliza- 40” e emergiu como dois sons distintos, cada um reptesentando um lado da antiga dupla significagio: ..- 0s mouros diferenciavam os dois simbolos usando dois matizes diferentes: amare- lo-dourado significava conselho sdbio ¢ bom, e amatelo pilido significava traigéo ¢ falsidade..2° Os rabinos cultos da Espanka medieval deram uma interpretagio de interesse adicional: ... 05 rabinos sustentavam que o fruto da drvore proibida era um liméo, opondo sua cor pilida ¢ sua acidez a cor dourada e 4 dogura da laranja ou da magi dourada, de acordo com o termo latino.

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