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TECENDO A LEITURA' Um gio sori nto tece uma man cle preciard sempre de outos gos. Dem que apante ese gto que ee feo lance a outro; de um outro gato ‘ue apanhe ogito que um galo antes ‘lance a owo ede ots gales {ue com muttos outros gals se cruzer (5 fs de sol de sus gitos de ao, pare que amanha, cesce unatelaténue, $e vatecendo, etre todos 0 galos.* 0 seca de jin cabelsugere une bela concepio de leitara: os galos que tecem a mani evocam os leitores {que tecem 0 significado dos textos com que s€ deparam 20 fbngo da vida, Trendo «meek conota artesanato, solidatic= date e didlogo, constraind uma metifora que sublinha aspec- tos relevantes para una reflexio sobre o papel da leitura ‘numa sociedad democratica, Fica, pois, a tecelagem, prética ancestral de iar de tine sire deurdiros fis, de entrelac-los em tecidos, matriz meta fbrica da leitura. Ao longo da hiséra, a arte de tecer desem ‘boca nas hoje barulhentas indGstiast2xteis, onde o antigo tee Ifo, por participar apenas de ume das etapas da produgio, perde 0 Sentide da totalidade tanto do objeto que prods, Eomo do processo pelo qual 0 objeto € produzido, i ‘A semelhanca da histris da tecelagem, a moderizaga ininterrupta do modo de produsio do livro a partir de Guten Vig de oma pn "Con ne 1 Mle Neto ate Gaal de, Tacend a man. ot — Psi me ode Jao: Om, 115 p 1 10s berg tornou possivel (e mesmo necesséris) a massificacio da li- tra, trazendo para o horizonte dela o risco de alienacio, de fracionamento ¢ esgarcamento do significado da texto e do ato de ler, atividade de leitura, que, em suas origens, era indie ‘dual rellesiva (em oposicio ao carter coltivo, volatile ime- cupersvel da oralidade de poctas e contadores de histérias), ‘ransformou-se hoje em consumo r4pido do texto, em letura dinimica que, para ser lucrativa, tem de envelhecer depress, sgerando constantemente a necessidade de novas textos, (© ato de ler fai de ta forma se afartando da pica indvi= dual que a tarela que hoje se solicita de profissionais da leur, ‘como professores,biblotecriose animadares eulturis, 6 exori- zarem 0 riseo da alienagio, muito embora cles porta acabar ‘onstituindo elo a mais na longa e agora inevitivel cadcia de ‘mediadores que se interpSem entre o lito e o significado do texto, Esse papel de intermedirio pode afasar da pritica docente fo anesanato que a leitura exige. O que se reserva 20s protesso- res de hoje, a partir inchusive de sua formacio proissional, € a livulgasSo de livos, adeciracio de signfieados, a intermedia ‘lo © © patrocinio do consumo de textes impressot. B36 muito incidentalmente, © como que por acréscimo, a iniciagio de Jovens na leitura, tlvez porque, em nossa tradigéo cultural, a Teitura, como pritiea coletiva, s6 exista muita exgargadamente, Tomar consciéneia das ambigtidades desse papel pode ser o primeiro passo para mudancas qualitaivas nos projetos © priticas de leitura — partcularmente as escolares — que ocorrem em diferentes cireuitos da cultura brasileira, a come= ‘car da ruptura da cadeia de alienagies em que se insere a pri tica escolar da leitura no Beasil de hoje A literatura constiai modalidade privilegiada de leitura, fem que a liberdade e prazer so virtualmente ilimitados Mas, se a leituraTterdria € uma modalidade de leitura, eam: pre nfo esquecer que hi outras, e que essas outras desfrutam inclusive de maior trinsito social. Cumpre lembrar também ‘que a competéncia nessas outras modaldades de leitura € an Fiore condicionante da participagio no que se poderia cha ‘mar de cepital cultural de uma sociedade e, conseqientemente, responsdvel pelo grat de cidadania de que desfruta 0 cidadao, Numa sociedade como a nossa, em que a divisio de bens, de rendas e de Iueros 6 tio desigual, nfo se estranha aque desigualdade similar presida também & distribuigio de bens eulturas, que a participagio em boa parte deste ilti- ‘mos é mediada pea letura, habilidade que no esté ao alcance de todos, nem mesmo de todos aqueles que foram a escola ‘Mas ler, no entanto, €essencia. E nfo apenas para aqueles que almejam participar da pprodugio cultural mais sofstcads, dos requintes da ciéncia © ‘a técnica, da filosofia e da arte lterdria. A prOpriasociedadle de consumo faz muitos de seus apelos através da linguagem cscrta © chega por vezes a transformar em consumo 0 ato de Jer, of rituals da leitura e 0 acesso a ela. Assim, no contexto de um projeto de educagio democrética vem a frente a habil dade de leitura, essencial para quem quer ou precisa ler jor thai, atsinar contratos de trabalho, procurar emprego através de andncies, solicitar documentos na policia, enfim, para todos laqueles que participam, mesmo que & revelia, dos cireuitos dda sociedade moderna, que fez da escrita seu c6digo oficial ria também 6 fundamental EA literatura, como linguagem e como instituigio, que se confiam os diferentes imaginatios, as diferentes sensibilida- des, valores © comportamentos através dos quais uma soci dade expressa ¢ dseute, simbolicamente, seus impasses, seus ddesejos, suse utopias. Por isso a literatura € importante no ceurrfculo escolar: 0 cidadio, para exercer plenamente sua ‘idadania, precisa apostar-se da linguagem literdria, alfabeti- zarse ncla, tomar-te seu unsirio competente, mesmo que ‘nunca vé escrever um liveo: mas porque precisa ler muitos. Gomo a manh, que no poema de Joia Cabral se perfa- ia pelo entrelagamento do canto de muitos galos, também a Ieitura, principalmente a literéia, parece constituir um tecido ‘a0 mesmo tempo individual e oletivo, Cada leitor, na indivi- ddualidace de sua vida, vai entrelagando o significado pessoal dde suas leitaras com 0s vérios signifiados que, ao longo da hhstéria de um texto, este foi acurmlando. Cada leitor em a histéria de suas leitaras, cada texto, a histéria das suas. Lei- tor maduro € aquele que, em contato com 0 texto novo, faz ‘Mas a leiura lite convergir para o significado deste o significado de todos os tex- tos que leu. E, conhecedor das interpretacdes que um texto ji recebeu, € livre para aceti-las ou recusi-las, e capar de sobrepor a elas a interpretagdo que nasce de sew dilogo com © texto. Em resumo, o significado de um novo testo afasta, aleta redimensiona o significado de todos os outros esse pomto de vist, a histria da literatura de um povo 6 histria das leturas cle que foram objeto os livros que inte- fram o corpus dessa literatura. No entanto, se 0 texto literaio = mais do que qualquer outro — oporrunizaleturas divergen- tes, hf também o risco de que 9 peso e a autoridade das leit ras de que ele foi objeto ao longo da histéra silenciem as outras tantas leituras que ele virwalmente péde © pode susctar em ‘outrs leitores. Nesse sentido, hisériae ora literdrias, quando tuansformadas em argumento de autoridade, quer como justi= ‘ativa para a inclusio de determinado texto ot autor no curr ceo escolar, quer como endosso de interpretagio deste aquele texto, podem ser paraisantes. Entre a interpretagio sancionada pela comunidade intclectual e a iterpretagio livee do leitor anénimo, reside o equlfbrio dificil em que precisa rmover-e o professor de leitura e de literatura, Apostando, assim, numa concepeao de leitura que a vé ‘ap mesmo tempo como instituigd0 ¢ como prética coletiva, parece que se pode privilegiar a reflexio sobre a natureza ¢ © percurso social da leitura, deixando em plano secundério diseussBes sobre metodologias ¢ estratégias que, em nome dela (leitura), costumam ser incorretamente vistas como os clementos determinantes do famoro e reclamadamente ausente interesse dos jovens pela letra Se algumas metedologiss ¢ extratégias proportas para o desenvolvimento da leitura parecem enganosas por trilharer ‘caminhos equivocades, o engano instaura-se no comeco do ccaminho, a partir do diagnéstico do delinio ou de invistneta do habit de litwra entre os jovens. Esparilbada em. habito, a lei tara toms-te passivel de rotina, ce mecanizagio e automagio, semelhante a certos vituais de higiene ¢ alimentagao, = para Citar dress nas quais 0 termo fabio € pertinent ‘Tanto 0 diagnéstico (auséncia ou deelinio do Aébite de Jeirara) quanto a terapia (estratégias de motivacto para aleitu- we a. EMUeaD0 UNDO ra) sugerem alienacio do modo de letra patrocinado numa otiedade como 4 nossa, o que também se revela no léxico Ge controle social ede aucomaco com que se discute a forma tia do professor: recielagem, reinamento, estratégis, hibits. ‘Os eaminhos precisa ser outros 'A discussio sobre leurs, principalmente sobre = licara numa sociale que pretende democratizar-se, comeca dizendo fue os profisionais mais dirctamente responsévels pela nici {Ho na leitura devem ser bons leitores. Um professor precisa tgotar de ler, precisa ler muito, precisa envelver-se com o que I TE ese iio é infelizmente, o perfil comum do professor. Pesquisa recente ‘ita entire professores de primeiro gra € bibliotecérios de Campinas e de Recife mostrou como o reper- trio de leitura desscs profissionais & desolador, consituido, ‘a maior parte das vezes, por dzelles tao antigos quanto Fer~ na Capslo Gatvota, O marina do dedo verde © O poqueno principe fou pelo que se podria chamar de clssicos escolares, como A woreninka, Tacoma e A esrava [sane | precariedade da sityacio que esss pobreza de repert6 rio indica € grave. Ea gravidade aumenta quando se sabe que, para muito além do conhecimenta mecinico de metodologias © técnicas de ‘desenvolvimento da leiura, aformagdo de um lito exigefami- Tiaridade com grande nimero de textos. E preciso, pois, que hhaja espago para Ieitura nos cursos destinados a profssionais, de leiura, Se afirmar isso soa redundante, cumpre lembrar ‘gue, em tais cursos, a énfase fia geralmente por conta da pres~ ‘Grigio de titlos, © da treinamento em atividades como fazer artazes,recortar figuras, dramatiar textos, fier jograis. Ati Widades interescantes, e que porem realmente tornar mais agra- ‘velo tempo de escola, mas que sHo inécuas quanto ap papel {que representam na interagio letorlivro, que €, afinal, aquilo fem que a letara consist importante frisar também que a prtica de leitura pstro- cinada pela escola precisa omrrer um espago de maior liber dade poasivel, A leitura s6 re toma livre quando se respcita ‘a0 menos em momentos inieias do aprendizado, o prazer ou & versio de cada leitor em relagio a cada livro. Ou sja, quando pnio se obriga toda una class Jeitura de um mesmo livro, com rs Tends a 1 4 justificativa de que tal livro & apropriado para a fuixa etria daqueles alunos, ou que se wata de um tema que interessa Aguele tipo de crianca: a relagio entre livtos e fairs etéria, ‘entre faxes etérias, interesses © habilidades de leitura é bem Ina relativa do que fazer exer pedagosias e markting Menos ou mais sofiticados, os exercicios que sob 0 nome de intepreasao, comprernsdo ou exendimento do texto cost imam suceder-se 3 leitura slo, quase sempre, exerccios que ssugerem a0 aluno que interpreter, compreeder ow entender wm testo (atividades que podem muito bem definir 0 ato de leitu- 18) € retro que 0 texto diz, O que & absolutamente incorreto Sony como diz o samba, é este, mas é a realidad 1 apenas severidade e rigor permitem perceber que ‘escola e profetsor tia talvez os Gnicos pontos de ruptura da Teitura alienada ¢ consumista, E rigor e severidade de andlise rgerem também que, para que ocorra a ruptura, € preciso tama guinada radical nos rumos que norteiam as poliicas de Ieitura atualmente ex» prdtiea, ‘© mecenato do Estado através do provimento de bbliote 8s, © pattoctnio empresarial que esporadicamente doa lives a tama ox out escola, a aggo do Estado na formaco de professo: res constin- i instineias a. que se dee (pude tom dé) recorrer. [Recorrenc ela, no entanto, & preciso que se aprenda a fazer frente ao patemalismo de que geralmente se reveste a auacio de te insneias, para o que é preciso que as assocagBes profise ‘Sons conquistem expago eftco e que, através dela, a comun dade docente passe ater vor e voto na politica cultural e eduea ‘onal brasileira, © macielo capitalista de nossa sociedade nosst ‘condo dle pals dependente nao deixar abetos outros caminhes. ‘Mas descaminhos hé muitos. ‘Relativamente 8 leitara, nosso desgoverno e nossa imaturi- dade paltea parece manifesar-se, As vezes, através de uma rv Tidade de competéncias: biblitecrios,esritores, professarespri= ‘ris, secundfros e universiérios parceem desculparse cada tum de sero que € ede nfo sero outra, O resultado € 0 descart, ‘numa equivoceds condenacdo da competfneia, exatamente laquilo que, por ser atributo da cultura e do saber, permite a pastagem do discurso A ag30, da leitura & vida, e, para encerrar ‘etomando a0 texto de abertura, do canto de galo luz da manki

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