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Capitulo 1 Aspectos metodolégicos do ensino da literatura Annie RouxeL Trab.: Neipe Luzia DE REZENDE Antes de questionar a maneira de ensinar literatura, gostaria de refletir sobre alguns aspectos que me pare- cem preliminares incontornaveis. 1. A primeira concerne As finalidades, as intengdes © aos objetivos do ensino da literatura: ensinar li- teratura para qué? O para qué determina 0 como. Métodos e finalidades esto ligados. Trata-se de aumentar a cultura dos alunos? (qual cultura?), de formar leitores? de contribuir para a construgéo de suas identidades singulares ou de propiciar, pelo compartilhamento dos valores, a elaboragao de uma cultura comum, o sentimento de perten- cimento a uma comunidade nacional? Esses ele- mentos nao se excluem e compdem o espectro das possibilidades entre as quais 6 licito escolher ou nao escolher. 2. A segunda preliminar concerne a definigao da lite- ratura: que literatura ensinar? A abordagem dos textos varia segundo o estatuto do texto estuda- do © seu grau de “legitimidade”: texto canénico, ‘Annie Rouxel o classico versus texto contempordaneo; Literatura geral,._ com “L” maitisculo, versus literatura juvenil. Ela depen- de ainda do modo de apresentagéo do texto estudado: fragmento ou obra integral. Essa preliminar é igual- mente determinada por seu pertencimento de géneros e pelos saberes disponiveis — e didatizados — no campo. Esses diferentes pardmetros interferem e tornam com- plexa, como veremos, a tarefa dos professores. Por fim, é preciso, evidentemente, levar em conta os avancos tedricos que configuram um novo quadro para refletir sobre o ensino da literatura. E é por ai que vou comecar. Os avancos da pesquisa em literatura e em didatica da literatura: mudangas importantes a considerar Esses avancos afetam as nogées de literatura, de leitura literdria e de cultura literaria. A. Concepcao de literatura: trés expressivas mudancas de paradigma: A 2. CROCS SCOPE O OFLETLEOE BE GLE BAPE? TEU TEED De uma concepgao da literatura como corpus, restrita aos textos legitimos, a uma concepgao extensiva da literatura. De uma concepgao da literatura como corpus a uma concep¢ao da literatura como pratica, como atividade: o interesse se desloca para 0 campo literario, para os pro- cessos de produgéo e de recepgaéo das obras e para os diversos agentes desse campo (escritor, edicao, critica, leitores, escola). . De uma concepgao autotélica da literatura (como con- func de textos we Cratwade esteticas a uta Comcepgado Wwansitiva da fiteratura como ato de comunicacdo: ha um interesse pelo contetido existencial das obras, pelos B. A leitura literdria: diversas mudangas de foco séoigual- . mente observadas nesse dominio: | 1. Do leitor modelo (que 6 uma virtualidade, uma cons- trugao textual, um conceito) aos leitores reais, plurais, empiricos. 2. Do texto a ler ao “texto do leitor”, realizagaéo singular, resultado de um processo de atualizagéo do texto do autor. 3. De uma postura distanciada, visando a uma descrigado objetiva do texto, a uma postura implicada, sinal do engajamento do leitor no texto. Essa transformagao da relacgdo com 0 texto se traduz por uma reabilitagéo do fendmeno de identificagéo, considerada durante muito tempo como uma regressao. Assim, trata-se de provo- car no jovem leitor uma “distancia participativa”. C. A cultura literaria: a concep¢ao tradicional da cultura literdria oscila em uma série de oposigées: Oo 1. Acultura literdria entendida como capital cultural com- posto de um conjunto de dados factuais, identificaveis e quantificdveis (trata-se com frequéncia de obras le- gitimas) se opde uma cultura literdria interiorizada, concebida como uma “biblioteca interior”, que integra obras conhecidas ou reconhecidas com dados singula- res, eventualmente virtuais ou imagindrios. A primeira se define como um inventdrio e obedece ao principio cumulativo (a adigdo); a segunda é apreendida como processo, submetida a variagdes. 2. Outro aspecto dessa dicotomia: a uma cultura literaria visando 4 valorizagao social, uma vez que responde a certa prescrigao social, se opde uma cultura literdria viva, concebida como um saber para si, para pensar, agir, se construir. A primeira concerne a identidade Aspectos metodolégicos do ensino da literatura 20 social do individuo, a segunda participa de sua constru- cao identitdria singular. O ensino da literatura: aspectos metodoldgicos Pensar o ensino da literatura e suas modalidades praticas supde que se defina a finalidade desse ensino. FE a formagao de um sujeito leitor livre, responsavel e critico — capaz de cons- truir o sentido de modo auténomo e de argumentar sua recep- cao — que é prevista aqui. K também, obviamente, a formacgdo de uma personalidade sensivel e inteligente, aberta aos outros e ao mundo que esse ensino da literatura vislumbra. Essa formagao resulta da sinergia de trés componentes, que so a atividade do aluno sujeito leitor no ambito da clas- se constituida em “comunidade interpretativa” (Fisch, 2007), a literatura ensinada — textos e obras — e a acao do professor, cujas escolhas didaticas e pedagdgicas se revestem de uma im- portancia maior. Instituir o aluno sujeito leitor Isso significa, em primeiro lugar, tanto para o professor quanto para o aluno, renunciar 4 imposigaéo de um sentido con- vencionado, imutavel, a ser transmitido. A tarefa, para ambos, é mais complexa, mais dificil e mais estimulante. Trata-se de, ao mesmo tempo, partir da recepgao do aluno, de convida-lo a aventura interpretativa com seus riscos, reforgando suas com- peténcias pela aquisicao de saberes e de técnicas. O paradoxo da leitura literdria em sala decorre de que lugar de estudos e de aquisicgaéo de saberes, ela, de fato, nfo é apenas mais uma leitu- ra. Como fazer para que ela 0 seja? Como desenvolver, em pro- veito da leitura — quer dizer, sem prejuizo para 0 investimento do leitor — a dialética leitura/estudo/leitura? Finalmente, como adquirir saberes no 4mbito da leitura? Na tens&o entre o texto e o leitor que caracteriza a leitura li- teraria em classe, os saberes Uteis sao de tras ordens: saberes sobre os textos, saberes sobre si e saberes sobre a propria atividade lexical Os saberes sobre os textos — conhecimento dos géneros, poética dos textos, funcionamento dos discursos etc. — sio descobertos e adquiridos no ambito da leitura. O estudo de uma obra integral, por exemplo, permite descobrir, identi- ficar e compreender os fendmenos sobre os quais serao es- tabelecidos conceitos e nogdes que, ao longo do tempo, se transformarao em ferramentas de leitura. A leitura da obra fornece a ocasido de reinvestimentos capazes de automatizar e de afinar as investigagdes nos textos. Esses saberes podem ainda ser verificados em atividades de escrita literdria em que o aluno se situa na posi¢4o de autor animado por uma intengao artistica. Os jovens alunos do ensino fundamental dispdem também de saberes sobre os textos (em geral sobre os contos e fabulas). Algumas experiéncias de leitura se sedimentaram e sio me- morizadas. A familiaridade com as formas, com os motivos, determina alguns saberes implicitos entre eles. As légicas as- sociativa e comparativa fundam essas elaboragées referentes, sobretudo, a escrita narrativa. Os saberes sobre si remetem A expressdo de um pensa- mento pessoal e de um julgamento de gosto assumidos. f a afirmagao de uma subjetividade em ato na leitura. Na primeira etapa do ensino fundamental, os alunos sempre revelam aber- tamente seus pensamentos e suas emogées, e 0 professor deve frequentemente lembrar a eles a necessidade de voltar ao texto. Na etapa seguinte, em contrapartida, os adolescentes resistem arevelar aquilo que consideram sua intimidade. Pudor ou medo do contrassenso, do erro de interpretacao que os desacredita i Aspectos metodolégicos do ensino da literatura Annie Rouxel N S diante da classe e de seu professor? Eles se refugiam com fre- quéncia num siléncio obstinado, as vezes no psitacismo ou em observagées sem risco para eles. Trata-se, pois, de infundir- -lhes confianga para que ousem pensar a. partir de si proprios. Diversas atividades podem ser planejadas para fazer emergir sua subjetividade, para que aprendam a escutar a si préprios. Trés exemplos: © apratica dos didrios de leitura (e a légica associativa); e a “escuta flutuante”: sensagdes e imagens mentais (pro- tocolo de investigagao de Nathalie Rannou a proposito do haicai); © aprdatica metacognitiva do autorretrato de leitor (ou da autobiografia de leitor, segundo a idade). Os saberes sobre o ato léxico ou saberes metaléxicos sio aqueles que regem a “cooperacao interpretativa” (Eco, 1985) ou, para dizer como Catherine Tauveron, aqueles que asseguram 0 equilibrio entre “direitos do texto” e “direitos do leitor” (Tau- veron, 2004)!. Se 6 conveniente encorajar a leitura subjetiva, 6 também conveniente ensinar os alunos a evitarem uma subjeti- vidade desenfreada, fonte de delirio interpretativo. O problema da liberdade do leitor e dos limites da interpretagdo deve ser abordado em classe, mesmo que isso pareca ambicioso. Distin- guir, como sugere Vincent Jouve (2004)?, subjetividade neces- sdria, programada pelo texto, e subjetividade acidental decorre de reflexividade critica que nao esta fora do alcance dos alunos. Eles séo capazes de compreender que existem muitas maneiras de ler e que uma leitura socializada impée regras. Este texto de C. Tauveron sera publicado no Brasil em A. Rouxel, G. Langlade & N. Rezende. Leitura subjetiva e ensino da literatura. Sao Paulo: Alameda Editorial (no prelo) [n. T]. Este texto também estara presente no livro a ser publicado no Brasil, conforme a nota 1 [n. T]- Para isso, os alunos dispdem de dois guarda-corpos: 0 re- curso ao texto, a arbitragem dos pares. A atengio ao texto é uma das primeiras competéncias desenvolvidas entre os alu- Z nos. Desde o comego da escolaridade, os professores se dedicam a estabelecer o habito de submeter as hipdéteses a autoridade do texto. Os alunos muito pequenos, querendo argumentar sobre seu entendimento do texto, apontam para ele e dizem: “Esta escrito!”. A sala de aula representa assim o papel de regulador. Ela é 0 espago intersubjetivo onde se confrontam os diversos “textos de leitores”, a fim de estabelecer 0 texto do grupo, ob- jeto se nao de uma negociag4o, ao menos de um consenso. A presenca da turma 6 essencial na formagao dos jovens leitores: lugar de debate interpretativo (metamorfose do conflito de in- terpretacao), ela ilumina a polissemia dos textos literdrios e a diversidade dos investimentos subjetivos que autoriza. A literatura ensinada: a escolha das obras N a Hssa escolha 6 determinante para a formagao de sujei- tos leitores. Sabemos que o professor deve levar em conta os programas e as prescricées oficiais, mas muitas vezes lhe é permitido escolher, de uma lista dada, as obras para ler e estudar em sala. Eis algumas reflexdes capazes de orientar suas escolhas. E importante confrontar os alunos com a diversidade dé literdrio (cujo conhecimento afina os julgamentos de gos- to): diversidade dos géneros: ao lado de géneros tradicionais (romance, teatro, poesia, ensaio), os novos géneros (autoficgao, hist6ria em quadrinhos, album); diversidade histérica: obras candnicas, classicas, fundadas em valores nos quais uma so- ciedade se reconhece, obras contempordaneas, literatura viva que langa um olhar sobre mundo de hoje; diversidade geogra- fica: literatura nacional, literatura estrangeira, principalmente Aspectos metodolégicos do ensine da literatura Co ee a a Annie Rouxel nN & as grandes obras traduzidas do passado e do presente, que se abrem para outras culturas e constituem lugares de comparti- Ihamento simbdlico na era da globalizacdo. FE importante também propor obras das quais eles ex- trairdo um ganho simultaneamente ético e estético, obras cujo contetido existencial deixe marcas. Durante muito tem- po, enfatizamos o estudo formal em detrimento do contetido, © que explica, como denunciou Todorov (2007) e muitos ou- tros socidlogos (Baudelot, Cartier & Detrez, 1999), a desafeicdo dos jovens pela leitura. 0 desafio 6 de monta, ja que concerne tanto ao desenvolvimento do gosto de ler quanto A construcao identitaria do leitor e ao enriquecimento de sua personalidade. De fato, as experiéncias de leitura evocadas pelos adolescentes durante as conversas ou em suas autobiografias de leitor — que representam para eles um “acontecimento” que os trans- formou — provém de obras que os confrontam com grandes questoes existenciais que marcam nossa humanidade: o amor, a morte, o desejo, o sofrimento etc. A literatura popular que agrada tanto aos jovens — Harry Potter, Crepiisculo — explo- ra esse veio. A antropdloga Michéle Petit (2002) explica que essas leituras privadas respondem a uma necessidade e que possuem 0 mérito de verbalizar emocoes e vivéncias, que mui- tas vezes se furtam a apreensdo (da consciéncia, da mem6- ria). A literatura lida em sala convida também a explorar a experiéncia humana, a extrair dela proveitos simbdélicos que 0 professor néo consegue ayaliar, pois decorrem da esfera in- tima. Enriquecimento do imaginério, enriquecimento da sen- sibilidade por meio da experiéncia ficticia, construgao de um pensamento, todos esses elementos que participam da trans- formacao identitéria est&éo em ato na leitura. “Nos pensamos somente a partir daquilo que nos 6 lancado por outros [...J”, escreve Michele Petit (2008: 38). “Sem o outro, nao ha sujeito” L..] [a identidade] “se constréi tanto num movimento centrifu- go quanto centripeto, num impulso em dirego ao outro, num descentramento de si, numa curiosidade — uma vontade as vezes feroz”. Segundo a modalidade de leitura (auténoma ou em clas- se), convém observar o grau de dificuldade da obra propos- ta. A aprendizagem da leitura literdria e o interesse dispen- sado a atividade do sujeito leitor levam a privilegiar as obras complexas, que n&o oferecem uma compreensao imediata. Es- sas obras impulsionam uma atividade intelectual formadora, suscitando processos interpretativos conscientes e inconscien- tes. Se nos ativermos 4 teoria de Umberto Eco®, “o texto 6 um organismo preguic¢oso”, “um tecido de brancos”, 0 texto 6 “es- buracado” e espera que o leitor 0 complete. O leitor investe no texto a partir de sua experiéncia de mundo e da literatura e se afigura 0 universo ficcional com imagens mentais que lhe séo préprias. Ao mesmo tempo, a incompletude do texto suscita no leitor uma forte atividade inferencial: inferéncias légicas, re- sultantes do sistema linguistico, inferéncias pragmaticas que convocam os saberes enciclopédicos — ambas s4o automaticas — e abdugées que requerem relagées cujos resultados perma- necem marcados pela incerteza. Sao essas tltimas que ofere- cem a possibilidade de ricos debates interpretativos em classe. No ensino fundamental I, a escolha de obras complexas 6 feita na maior parte das vezes justamente por causa de suas potencialidades formadoras. Catherine Tauveron (2004a) reco- menda para os alunos menores “textos resistentes”, que ofe-" regam “jogo e proporcionem o sentido do jogo”. Ela destaca a dimensao ludica da leitura literdria, que confronte o leitor com um obstaculo que o obrigue a uma transgressio de seu habitus de leitor. Entre esses textos, Catherine Tauveron (1999) distin- gue duas categorias: os textos proliferos e os textos reticentes. Os primeiros se caracterizam por sua forte polissemia; eles Lector in fabula e Os limites da interpretagao. nm a Aspectos metodolégicos do ensino da literatura Annie Rouxel N o comportam zonas de indecidibilidade que nado impedem, contu- do, 0 entendimento imediato. Os segundos programam a deso- rientacao do leitor, que devera rever sua compreensao errénea. Esses textos pedem vigilancia: 0 leitor atento e imaginativo se empenha em desmontar as armadilhas que lhe sao montadas, e esse jogo criativo de elucidacao, de busca de coeréncia, lhe da prazer. Esse prazer sutil 6 evocado por Wolfgang Iser em L’acte de lecture (1985): “A leitura s6 se torna prazer se a criatividade entra em jogo, se o texto nos oferece uma chance de pér nossas aptidées a prova”. A fim de ilustrar a natureza dos obstaculos aos quais os alunos menores s&o confrontados, quatro categorias podem ser convocadas. Obstaculos que: e decorrem de escolhas enunciativas: obras que dispdem de varios narradores, obras fundadas sobre um reve- zamento de narracgéo (que compée uma estrutura em quebra-cabegas); confusao da origem enunciativa (nar- rador externo ou personagem?); e resultam de escolhas formais, estruturais: estrutu- ra nao linear, encaixes de narrativas, de comentarios metanarrativos... ¢ que travam a mimese, que afetam o mundo ficcional re- presentado: confusdo cronoldgica, retencao de informa- gdes (sobre a motivacdo das personagens, por exemplo), disseminacdo de indicios ambiguos, representagado do contetdo de pensamento ou de sonho de uma persona- gem sem transigé&io com a representagdo do mundo do enredo; ° que manifestam escolhas éticas ou estéticas surpreen- dentes ou transgressoras: ponto de vista inesperado do narrador, surgimento do sonho ou da fantasia num uni- verso realista, ecos intertextuais ou reescrita transgres- siva ou parédica. A literatura infantojuvenil oferece uma mina de obras de qualidade para essa aprendizado da leitura literdria. HA um grande nimero de obras nesse dominio — Albuns, romances, pegas de teatro — cujas feiges correspondem as grandes obras da literatura contemporanea. A leitura dessas obras tende a criar um novo horizonte de expectativas nos alunos. No ensino médio, 0 confronto coma complexidade resulta primeiramente dos programas que estipulam 0 encontro com obras do passado. O sentimento de alteridade domina diante de textos que é preciso aprender a descobrir. Deve-se estimular a curiosidade por esses objetos estranhos cujos cédigos linguis- ticos, éticos e estéticos sio desconhecidos ou pouco conheci- dos. A inventividade do professor é requisitada para elaborar um dispositivo capaz de interpelar os alunos. Relacdo da obra com outros objetos semisticos da mesma época — um poema, um quadro, uma miisica; confrontacdo da obra com suas adap- tagoes contemporaneas, que funcionam também como “textos de leitores” — por exemplo, 0 romance de Proust, Em busca do tempo perdido, adaptado para quadrinhos ou para a tevé; vaivém entre uma obra do passado e sua reescrita contempo- ranea; leitura de um classico em compara¢éo com uma obra do presente que aborde a mesma problematica, como sugeria Italo Calvino (1996), propondo a seguinte dupla definigao do classico: 13-E classico aquilo que tende a relegar a atualidade a situad- ¢&o de rumor de fundo sem, no entanto, extinguir esse ru- mor. 14-E classico aquilo que persiste como rumor de fundo exatamente onde a atualidade que est4 mais distante reina soberana. Desse didlogo entre passado e presente pode nascer um conjunto de quest6es que revelam um inicio de interesse. Trata- -se de compreender a que necessidade respondia essa obra no seu tempo e é a historia da literatura que pode ser convocada N N Aspectos metodolégicos do ensino da literatura para tentar responder a essa questao. E também importante compreender como essa obra ainda pode nos dizer respeito hoje, um convite a leitura atualizadora proposta por Yves Cit- ton (2007) no seu livro Lire, interpréter, actualiser — pourquoi les études littéraires? [“Ler, interpretar, atualizar — por que estudos literarios?”]. Se levamos em conta as reagdes entusiasmadas dos alunos de ensino médio a partir da leitura de certos grandes classi- cos (com frequéncia mediadas pela adaptagao cinematografica), compreendemos que essas obras vivem ainda por causa das lei- turas que necessariamente transformam os jovens. E essa re- acao sensivel que assinala a apropriagéo da obra pelo aluno. Nesse caso se produz um fendmeno préprio da leitura literaria: a alteracao da obra pelo leitor e a alteragao do leitor pela obra. O leitor se expde ao ler, se desapropria de si mesmo para se con- frontar com a alteridade e descobrir, in fine, a alteridade que esta nele. Entretanto, para que ocorram esses fenémenos, é preciso que os alunos tenham acesso As obras integrais. fi ilusdrio es- perar viver essa experiéncia na escola a partir unicamente da leitura de um fragmento. E por isso que a atividade de leitura em sala de aula em geral é frustrante quando feita a partir de trechos selecionados. Ao lado do tempo de estudo, a leitura in- tegral efetuada na esfera privada 6 a tinica capaz de modificar a relacdo dos alunos de ensino médio com 0 texto. A pratica da leitura cursiva, que se pode discutir na sala, oferece possibili- dades de renovagiio do ensino da literatura. O professor, sujeito leitor O papel do professor nao é mais transmitir uma interpreta- cao produzida fora de si, institucionalizada. As obras criticas, os livros do professor, 0s paradiddticos propdem um pensamento pronto, um ensino pré-fabricado. Quando se trata de classicos, os discursos prontos séo muitos e formam uma matéria que 6 preciso conhecer e observar com distanciamento critico. 0 professor 6 um sujeito leitor que tem sua propria leitura do texto. E também um profissional que precisa vislumbrar, em fungdo de diferentes parametros (idade dos alunos, expectati- vas institucionais), que leitura do texto podera ser elaborada na aula. Sua ética profissional o impede de expor sem mediagio sua propria leitura: 6 preciso efetuar acomodagées (no sentido op- tico e fotografico do termo) e antecipar as dificuldades dos alu- nos. preciso também renunciar a algumas singularidades de sua leitura pessoal. De todo modo, diante de um ptblico mais velho, no se exclui a possibilidade de compartilhar sua leitura, sem, contudo, impé-la. De todo modo, o entretenimento e a compreensao e a in- terpretagao do texto esperados em classe resultam de uma ne- gociagdo que se espera suficientemente liberal, capaz de admi- tir variagées que nao alterem o nticleo semantico do texto, de modo a deixar aberta a polissemia. O professor do ensino fundamental I busca primeiro, me- diante questdes abertas, compilar a leitura dos alunos, identifi- car zonas de incompreensdo ou de dificuldades, para submeté- - -las ao debate interpretativo. Ele também pode guiar a atengdo Para o texto e fazer com que os alunos levantem hipdteses e cheguem a interpretag6es aceitaveis ou satisfatorias. O processo é parecido no ensino fundamental II: 0 profes- sor coleta hipdteses de leitura, claboragdes semanticas lacuna- res, insuficientes, as vezes erréneas, a partir das quais suscita a reflexao dos alunos e sua reflexibilidade. Desse modo, ele an- ora 0 processo interpretativo na leitura subjetiva dos alunos. nN OS Aspectos metodolégicos do ensino da literatura é = w 6 Resta encarar a questdo do como se busca instaurar 0 alu- no sujeito leitor. Com relacdo a teoria das instancias leitoras de Michel Picard (1986), é preciso admitir que o lido se exprime em classe, que 0 leiturante, instancia da secundaridade, nao aparece imediatamente no discurso dos alunos, aparece mais durante as trocas, onde se estabelecem o(s) texto(s) da classe. Ha, pois, lugar para os afetos, para a axiologia (que permane- ceu censurada por muito tempo) nas intervengdes dos alunos. Dessa liberdade resultam interagdes mais ricas na classe, mais argutas: alguns alunos se arriscam a aventura interpretativa. E claro que avulta a questao do erro de leitura e de seu tratamen- to: longe de ser estigmatizada, a proposigao do aluno deve ser acolhida para dar lugar a investigagies. Estabelecida a consta- tacao do erro, este pode se tornar um espago de formagao se o aluno é solicitado a descrever 0 movimento da leitura que o provocou. Assim, a reflexio se faz sobre 0 ato léxico e n&o mais sobre o texto propriamente dito, a fim de construir as compe- téncias de leitor. Em face de zonas de opacidade e de incerteza dos textos resistentes, 6 aconselhavel nao tentar evitar os erros dos alunos, pois os frutos que eles tiram de sua experiéncia — boa ou ma — de confronto com a dificuldade sao imprescin- diveis. Os gestos profissionais requeridos pelo ensino da litera- tura supdem a sagacidade do professor, que 6 adquirida com a experiéncia. Ele deve avaliar as dificuldades e seu tratamento: previsdo, supressdo, regulagao, intervengao se distribuem em fungao dos textos e das situacdes. Por fim, o confronto com textos resistentes (principalmente os de nossa modernidade) permite desenvolver uma competén- cia que 6 aceitar a persisténcia de zonas de sombra no texto, aceitar a abertura da obra — que finalmente autoriza um inves- ento pessoal do leitor (fora do controle ou do consentimento do professor ou da turma). Renunciar a transparéncia do texto, itir o desconforto da incerteza 6 ganhar em maturidade. Michel Meyer, em seu ensaio Questions de rhétorique (1993: 143-4) [“Questies de retérica”], denuncia as simplificagées fa- ceis e transforma a complexidade num valor: E preciso se recusar terminantemente a abolir a problemati- ca anulando-a por arremedos de respostas, com as quais os homens gostam de satisfazer quando precisa se apoiarem ilusSes que acabam muitas vezes em exclusdes. Para concluir Depois do coléquio “Sujeitos leitores e ensino da literatura”, ; Scorrido em Rennes em 2002, 0 conhecimento e o reconheci- mento do sujeito leitor progrediram muito. A teorizacao das instAncias de leitura de Michel Picard foi difundida nos cursos de formagao de professores; a tipologia das posturas de leitura dos alunos amplamente estabelecida por Dominique Bucheton (1999) permite uma observagao mais fina das relagdes dos alunos com o texto estabelecido durante o ato de leitura; enfim, mais recentemente, a teorizacgéo de Gérard Langlade (2006) sobre a atividade ficcionalizante do leitor ofere- ce um olhar novo sobre as nossas maneiras de ler, sobre nossos movimentos de pensamento no interior do ato de leitura. w As pesquisas atuais em didatica da literatura, fundadas no ~ estudo muito preciso de transcrigdes de curso, mostram que 6 @ atencao dada ao aluno, enquanto sujeito, a sua fala e a seu Pensamento construido na e pela escrita que favorece seu in- vestimento na leitura. A importancia do clima estabelecido no “nterior da comunidade interpretativa (a classe, 0 professor) é enfatizada: um contexto onde reinam a confianga, 0 respeito e @escuta mutuos é propicio ao encontro com os textos literdrios —e é mesmo determinante. Permite (ao mesmo tempo em que = fruto dele) o ensino de “atitudes” que constituem, segundo Aspectos metodalagicos do ensino da literatura Annie Rouxel w i) Jean-Claude Chabanne (2009), um “terceiro saber”. Disponibili- dade ao texto ¢ desejo de literatura sao fendmenos construidos, decorrentes tanto dos dominios cognitivos quanto afetivos. As pesquisas atuais em literatura e em antropologia cultural* se interessam pelas emocoes e pelos lagos que elas tecem com a cognic¢éo, E é sobre a emocao e a intelecc&o que se constroem a relac&o estética e a literatura. Pela leitura sensivel da lite- ratura, 0 sujeito leitor se constréi e constréi sua humanidade. Na abordagem didatica da literatura enquanto arte, 0 campo das emogées 6 ainda pouco explorado e constitui inegavelmente uma via para pesquisas futuras. Referéncias BaupELor, C., CARTIER, M. & DETREZ, C. E¢ pourtant ils lisent.. Paris: Seuil, 1999. Bucueton, D. Les postures du lecteur. In: DEMOUGIN, P. & Masso J.-F. (org.). Lecture privée et lecture scolaire. La question de la littérature @ U’école. CRDP de Grenoble, 1999. Catvino, I. Pourquoi lire les classiques? Paris: Seuil, 1996. [Ed. br.: Por que ler os classicos? (edigado de bolso). Trad.: N. Moulin. Saéo Paulo: Companhia das Letras, 2007.] CHABANNE, J.-C. Enseigner des attitudes? Une notion omniprésente mais problématique pour la littérature et les disciplines culturelles et artis- tiques. In: DuBors-Marcom, D. (org.). Francais/littérature, socle com- mun: quelle culture pour les éleves, quelle professionnalité pour les enseignants? Lyon: INRP, 2009. Lire, interpréter, actualiser: pourquoi les études littéraires? 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