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José Jobson de Andrade Arruda (Departamento de Histéria da USP) Foi no século XVII, na Inglaterra, que se deu a primeira Revo- fugio burguesa da Histéria da Civilizagio Ocidental, Em 1640 teve inicio a Revolugéo Puritana. Em 1688 ocorreu a Revolugdo Gloriosa. Ambas, contudo, fazem parte do mesmo processo revoluciondrio, 0 que nos Ievou a optar pela denominacao de Revolugao Inglesa ¢ niio Revolucées Inglesas, considerando-se que a verdadeira revolucdo se deu no transcurso da Reyo- lugdo Puritana entre 1640 ¢ 1649 © que a Revolucdo Gloriosa de 1688 foi apenas seu complemento natural, Desde entio, variados enfoques tém resultado em diferentes vises da Revolugao. (1) 1. A Tradi¢ao Whig e Tory Os préprios contempordneos aperceberam-se da sua ocorréncia, mas deram-lIhe um tratamento essencialmente politico ¢ constitucional, vendo na Historia um camino para a sabedoria politica. No século XVIII a hist6~ tia da Revolugdo Inglesa é realizada na perspectiva dos partidos Whig e 1. De uma forma mais getal a Revolugéo Inglesa foi estudada, em termos histo- riogréficos, por H, R. Hale, The Evolution of British Historiography, London, Macmillan, 1967; C. H. George, “Puritanism ss history and historiography". Past ‘and Present 12 41, 1968; F. Stern (editor) The Varieties of History from Voltaire to the Present, 2nd edition, London, Macmillan, 1970...De uma forma mais espect- fica vale a pena ressaltar 0 estudo conciso mas substancial de R,C. Richardson, The Debate of the English Revolution, London, Methuen, 1977, Revista Brasileira de Hist6ria nt Tory, profundamente envolvida nas suas rivalidades e contendas politicas. Para a tradicao liberal, a luta politica foi conduzida pelo Parlamento contra 0 absolutismo mondrquico em defesa das liberdades indivi- duais, contra 0 governo tirdnico que impunha aprisionamento sem julga- mentos prévios, cobrava impostos nao autorizados, aboletava soldados sem consentimento, atentava contra a propriedade individual e as sagradas insti- tuigdes parlamentares. Por outro lado, para a tradicio conservadora, a Revolugio foi conduzida pela classe de capitalistas ambiciosos, represen- tados no Parlamento, contra o Rei que procurava defender as camadas populares, evitando, por exemplo, o avanco sobre as terras comuns, na medida em que impedia os cercamentos (enclosures). Os liberais, portanto, salientam o carter progressista da Revolucio, identificando o interesse burgués com o interesse nacional, como se seus interesses correspondessem aos interesses do conjunto da sociedade. En- quanto isso, os conservadores negam 0 sentido progressista da Revolugio enfatizando seu aspecto classista. Negligenciam o sentido politico do apoio ‘monérquico &s massas camponesas, resultado iminente da politica de equi- librio social que flu‘a do conflito de classes, pedra angular de sustentagéo social da monarquia absolutista e, portanto, completamente privada de seu possivel sentido altrufsta, De uma maneira geral, estas linhas de interpretaco pontificaram du- rante todo 0 século XIX. Macaulay (2) enfatizou o glorioso acontecimento representado pela luta do Parlamento contra Carlos I em prol da liberdade politica ¢ religiosa do povo inglés; significou 0 primeiro confronto entre a liberdade e a tirania real, primeiro combate em favor do iluminismo e do liberalismo, confronto capaz de colocar a Inglaterra no caminho da mo- narquia parlamentar e das liberdades civis. Gardiner (3), apesar de seu apego A cronologia e A tentativa de resgatar a hist6ria da Revolugéo do seu envolvimento politico e trazé-la para o santuério da academia, nio conseguiu subtrair-se 4 tradigdo liberal, destacando 0 aspecto politico do conflito envolvendo as instituigdes politicas e religiosas, Trevelyan (4), j4 no decurso do século XX, dé continuidade & tradicGo historiografica do século XIX, entendendo a Revolugo em termos constitucionais, esvaziada 2, T, B. Macaulay. The History of England from the accession of James II. London, 1849. 3... R. Gardiner. The first two Stuart and the Puritan Revolution. London, 1876. . 4:_G. M. Trevelyan. The English Revolution 1688-89. London, Butler & Tan- ner, 1938, 12 Revista Brasileira de Histéria dos seus aspectos econdmicos ¢ até mesmo sociais, resumindo-se numa luta de partidos, 2. A Dimensdo Social A renovagio das perspectivas no século XX tem inicio numa linhagem de historiadores que remontam a Richard Tawney. Para ele a histéria nao era simplesmente um amontoado de informagdes “mortas”; era, acima de tudo, uma forma de compreensio do passado e um guia para a aco poli- tica, Profundamente marcado pelo socialismo cristio, Tawney desenvolveu um interesse especial pelos séculos XVI e XVII, nos quais via um perfodo crucial para a emergéncia do capitalismo e para a mudanga de relaciona- mento entre poder econdmico e o poder politico. A Revolucio adquiriu entao uma dimensao social mais ampla. Formulou a hipétese do descom- asso entre a realidade econémica e a estrutura politica para explicar a guerra civil. Demonstrou a dos pequenos produtores camponeses, arrasados pela expansio do capitalismo no campo, cuja forga foi intensi- ficada pela distribuigdo das terras mondsticas no século XVI. (5) Salien- tou o declinio relative da aristocracia num perfodo de depressdio monetéria e de ascensio de uma nova classe, a gentry, enriquecida pelas novas opor- tunidades emergentes com a economia de mercado. (6) Dos trabalhos de Tawney nasceram duas vertentes explicativas. Lawrence Stone passou a destacar o papel da aristocracia. Para ele, ainda que a crise somente possa ser entendida a luz das mudancas sociais econdmicas, o que deve ser explicado, em primeiro lugar, nfio é uma crise dentro da sociedade, mas uma crise dentro do regime politico, isto 6 a alienagio de amplos setores da nobreza em relacdo as instituicdes politicas religiosas vigentes. As perdas da aristocracia nfo se deram apenas no nivel do poder militar, mas também na posse de terras e de prestigio social. Durante o reinado de Elizabete os rendimentos reais da nobreza declina- ram tdo bruscamente que, no século XVII, acima de tudo, eles estavam em posig&io desvantajosa quando comparados A grande gentry. Foi 0 declinio do poder da aristocracia, argumentava Stone, que em diltima instincia possi- bilitou 0 colapso do governo de Carlos I, em 1640, desde que o seu resul- 5. R. H, Tawney. The agrarian problem in the sixteenth century. London, 1912. . 6. RH. Tawney. “The rise of the gentry, 1558-1640". In: Essays in Economic History, E. M, Carus Wilson (ed.). London, Butler & Tanner, 1966. Revista Brasileira de Historia 123 tado mais imediato foi o isolamento da monarquia numa posicao perigosa, exposta & sanha dos seus inimigos mais ferrenhos. (7) Numa linha antag6nica de abordagem, H.R. Trevor-Roper salientow © papel da gentry, especialmente a mere gentry, que indistintamente apa- Fece em seu texto como small gentry ¢ declining gentry, pelo que foi seve~ ramente criticado pot Hexter ¢ Hill. Segundo Trevor-Roper, foi esta classe constituida por homens em situacdo financeira precéria, num momento em que suas rendas eram drenadas pela inflaco, que tiveram o papel decisivo na queda da monarquia, ¢ nao a crise da aristocracia como postulava Stone. (8) Explodiu entdo um violento debate, nem sempre cortés, com declaragdes acerbas © miituas acusagées entre os defensores da crise da aristocracia e da emergéncia da gentry, polémica esta a qual néo escapou © proprio Tawney. Paralelamente, uma nova corrente interpretativa, com base no mate- rialismo dialético, vinha se pondo. A crise do movimento socialista inglés nos anos 30, dividido em corrente marxista e social democrata, estimulou as publicagdes mais intelectualizadas do Left Book Club. A publicagdo de A people's History of England de A.L. Morton (9) constituiu-se na pi meira grande interpretacdo marxista da histéria inglesa, transformando-se na melhor introdugdo ao assunto para o piblico menos especializado, Seguem-se os trabalhos de Cristopher Hill, indubitavelmente, pela quantidade e pela qualidade, o melhor historiador marxista sobre @ pri- meira metade do século XVII. Seu primeiro estudo deste tema, “Soviet Interpretation on the English Interregnum” (10), resume as posigdes de historiadores soviéticos sobre 0 conflito de classes no século XVII inglés, envolvendo a aristocracia fundidria e o clero proprietirio — escudados pelo poder agririo da coroa —, de um lado e a burguesia progressista e a gentry, do outro. Em 1940, na comemoragio dos 300 anos da Revolucdo Inglesa, C. Hill escreveu o pequeno, mas ainda hoje fundamental, estudo sobre 0 tema The English Revolution 1640. Nele, a Revoluc&o inglesa é entendida como 7. L. Stone. The Crisis of the Aristocracy 1558-1643. Oxford, Oxford Uni- versity Press, 1967. 8. H.R. TrevorRoper. “The Gentry 1540-1640". Economic History Review, ‘Supplement 1, 1953. 9. A. L. Morton. A people’s history of England, London, Left Book Club, 195 10. C. Hill. “Soviet interpretation of the British interregaum”. Economic His- tory Review, VII, pp. 159-167, 1938, 124 Revista Brasileira de Histéria uma luta de classes, Fora revoluciondria e progressista, a0 mesmo tempo que a destruigéo da monarquia significara a abolicio dos entraves a0 de- senvolvimento do pais ¢ a constituicfo de uma estrutura social e politica mais avangada. C. Hill insistia que: “A Reyolugdo Inglesa de_ 1640-60, foi um grande movimento social como a Revolugéo Francesa de 1789. O poder do Estado protetor da velha ordem essencialmente feudal foi violentamente destrufdo e 0 poder passou para as miios de uma nova classe, ¢ assim o livre desenvolvimento do capitalismo tornouse possivel. A Guerra Civil foi uma luta de classes, na qual 0 despo- tismo de Carlos I foi defendido pelas forgas reacionérias da Igreja e terrate- nentes reacionérios, O Perlamento atacou o Rei porque péde apelar para o apoio entusidstico das classes comerciantes ¢ industriais do campo e da cidade, (5 yeomen e a gentry progressista, e as amplas masses da populaso, onde quer que fossem capazes de entender, pela livre discussio, que a uta era imi- mente”. (11) Os trabalhos seguintes de C. Hill sobre a temética do século XVII tornaram-se cada vez menos dogméticos, menos preocupados em realizar ‘comparacées com o presente, plenos de férmulas hauridas na tradigao da uta politica atual sem, no entanto, perder de vista seu profundo contetido social, (12) Avulta, neste contexto, o surgimento da revista Past and Present, em 1952, em torno da qual se agruparam intelectuais de porte, tais como C. Hill, R. Hilton, M. Dobb e Eric Hobsbawm e, principalmente, a ruptura com o stalinismo soviético, que provocou o éxodo de intelectuais do partido, entre os quais E. P. Thompson e C. Hill. © resultado prético desta ruptura foi o caminhar de C. Hill na busca de uma definigio mais adequada do puritanismo no século XVII, de forma a precisar mais corretamente o significado da Revolugio Purita- na. (13) No passo seguinte concentrou-se na temética radical inserida no contexto da revolugo, buscando detectar, especialmente, o cardter ideo- 11, C. Hill, The English Revolution 1640. London, Lawrence & Wishart, 1940, P. 6. 12, Teis tendéncias j@ repontam na coletdnea de artigos Puritanism and Revolu- thon: studies in the interpretation of the English Revolution of the Seventeenth Cen- tury. New York, Schoken Books, 1958, bem como na sintese The Century of Re- volution 1603-1714. New York, The Northern Library, 1961. 15, A questio da Igreja de uma forma mais ampla havia sido captada por C. Hill no seu texto Economic Problems of the Church. Oxford, Clarendon Press, 1956. ‘A questéo do puritanismo foi verticalizada em Society and Puritanism, London, Secker & Warburg, 1964. Numa linha semelhante de interpretagdo,.W. Haller, Liberty and Reformation in the Puritain Revolution. Columbia University Press, 1967. Revista Brasileira de Hist6ria 125 l6gico desses movimentos encetados pelos niveladores, escavadores, ranters € outros. (14) Nesta caminhada, de quem parte das estruturas de base, econémicas € sociais, atingiu mais recentemente o que se pode chamar a mais nova de suas fases, por certo no a tltima. Referimo-nos andlise do movimento cultural envolvido no processo da Revolucio, procurando suas determinagdes proprias. (15) Sobre a dimensto propriamente politica do Estado Absolutista inglés, Hill nfo fez incursées mais detidas e espe- cificas, tal como G. E, Aylmer, por exemplo. (16) Contudo, suas resenhas mais recentes, surgidas em Past and Present, demonstram sua preocupacio com o tema. (17) Um tema vital para o devido equacionamento da Revolugdo inglesa nas suas determinagées mais gerais, no quadro do crescimento da economia ‘mundial durante 0 século XVII, é a relagio entre a denominada “crise geral do século” e a eclosiio da onda revoluciondria que tem seu ponto culminante na Inglaterra, locus privilegiado de anélise na medida em que a tenstio social vira conflito aberto e tem repercussées profundas na rees- truturagao do Estado. O debate em torno deste tema é dos mais vivos e 0 proprio Hill toma posigdo a respeito do assunto na coletinea de artigos sobre a questéo organizada por T. Aston. (18) Esta polémica, contudo, para que possa avancar, exige uma anélise mais detida da estrutura eco- 14. Sobre este tema torowse indispensivel o texto The World Turned Upside Down. Middlesex, Penguin Books, 1975. A temética radical no contexto da Revolu- io. Inglesa, especisimente © cariter ideolégico do movimento, foi estudada por G. Rudé, Ideology and Popular Protest, New York, Pantheon Books, 1980. Pare 0 mo- yimento global da sociedade B. Manning, “The nobles, the people and the Constitu- tion”, Past and Present, 9, abril de 1956 ¢ The English People and the English Re. volution 1640-49. London, Heinemann, 1976. 45. Cf. Intelectual Origins of the English Revolution e, sobretudo, 0 recente Milton and the English Revolution, New York, Penguin Books, 1977. As principais repercussGes culturais do movimento em Some Intelectual Consequences of the En- lish Revolution. London, 1980. 16. G. E. Aylmer, The King's Servants © The State's Servant, ambos editedos por Routledge, Londres, 1974 © 1975, respectivamente. 17. Referimomnos resenha de C. Hill sobre o livro de J. Fletcher, The Outbreak of the English Civil War. London, 1981, publicada em Past and Present, n2 98, February, 1985, pp. 155-158, 18. T. Aston (org.). Crisis in Europe 1560-1660. London, Routledge & Kegan Paul, 1965, que contém ainda artigos de Eric Hobsbawm, H.R. TrevorRoper, Ro- and’ Mousnier, J. H. Elliot outros, Para uma posigéo que confronta as teses de Eric Hobsbewm, vejase A. D. Lublinskaya. La Cri del Siglo XVII y la Sociedad del Absolutismo, ‘Trad. esp. Barcelona, Editorial. Critica, 1979. 126 Revista Brasieis némica da Inglaterra no século XVII, estudos monogréficos sobre os di- versos componentes deste conjunto econémico.(19) Enquanto no plano da pesquisa local e regional, numerosos historia dores passaram a testar as interpretagdes mais gerais propostas pelos grandes intérpretes do século XVII — Tawney, Stone, Trevor-Roper, Hill —, dando origem a trabalhos de vulto, entre os quais se destacam as Pesquisas sobre as comunidades sociais locais e seu elevado grau de inde- pendéncia, especialmente da gentry, caracterizada por seu espirito comu- nitétio nos trabalhos de A. Everitt (20), alguns criticos mordazes, mas inconsistentes em suas demonstragdes, como J.H. Hexter, procuravam desacreditar 0 método de C. Hill, acusando-o de elaborar pesquisas segundo hipéteses preconcebidas. (21) Perez Zagorin negou o sentido revolucio- nério dos movimentos politicos do século XVII, emprestando-the um carter essencialmente conservador, insistindo que a Revolucdo Inglesa foi © resultado de divisdes dentro da propria elite politica que correspondia & divisfio entre a Corte e o Pais. (22) Nestes termos, nfo seria um con- flito verticalizado que dividiu a aristocracia, a gentry e as oligarquias de mercadores das cidades, No limite, passou-se a considerar que 0 préprio conceito de Revolucdo, aplicével aos movimentos sociais © politicos do século XVII, seria plenamente discutivel, sendo indispensével examinar 0 significado do termo para o homem do século XVII. Vernon Snow (23) insistiu no uso predominantemente cientifico do termo na época, afirmando que 0s criticos politicos foram os iiltimos a adoti-lo. Hobbes, por exemplo, néo utilizou 0 termo no seu sentido politico, preferindo as expressdes “revolta”, “rebelifo” ou “subversio”. Locke aplicara o termo para desig- nar um ciclo politico completo incluindo uma restauracdo. Tais objecdes, porém, no invalidam a existéncia efetiva de uma revolucio, pois os agen- tes do processo hist6rico néo tém que ter, necessariamente, uma clara 19. Lembramos de passagem 0s textos de A. Friis, Alderman Cockayne’s Pro- ject and the Cloth Trade. Copenhague, Levin and Munksgaard, 1927; Barry Supple, Commercial Crisis and change in England, 1600-1642, Cambridge, Cambridge Uni. versity Press, 1959. E, mais recentemente, J. O. Appleby, Economic Thought and Ideology in Seventeenth Century England. Princeton, Princeton University Press, 1980. 20. .A, Everitt. The cominunity of Kent and the great rebellion, 1640-1660. Lei- cester, Leicester Univ, Press, 1966 e The local community and the great rebellion. London, Historical Associations, 1969, 21. J. A. Hexter. Reapraisals in History, Chicago, University of Chicago Press, 1979. 22: P. Zagorin. The Court and the Country. London, Routledge & Kegan Paul, 1969. °23. V. Snow. “The concept of revolution in seventeenth century England”, Historical Journal, vol. 5, pp. 159-174, 1962. = Revista’ Brasileira de Historia a7 consciéncia de que suas agdes possam resultar numa transformagdo pro- funda da sociedade, para que elas se realizem. Reciprocamente, é necessério entender que comentadores politicos como Locke e Hobbes ndo usam a ‘expresso revolugdo, preferindo outras denominagdes, por se inserirem ‘num especial contexto social, que apenas via a desordenago da sociedade ¢ nfo a sua transformago, o que explicita a propria ideologia conservadora. 3. A Ampliacdo das Perspectivas Uma visio diferente da Revolugio Inglesa foi proporcionada pelo desenvolvimento de estudos na fronteira entre a hist6ria e a sociologia. A tipologia dos movimentos revolucionérios criada por Chalmers John- son (24), serviu de base as interpretacdes de L. Stone. Extremamente influenciado por Max Weber, Michael Walzer, no seu livro The Revolution ‘of the Saints. A Study in the origins of radical politics, inovou as interpre- ‘tages sobre o puritanismo inglés, apresentando-o como uma espécie de resposta teolégico-politica para as neuroses da sociedade do século XVI, Datidas pelas conseqiiéncias da crise populacional, pela inflaco, pelo des- cobrimento do Novo Mundo, e pela Reforma religiosa, que rompeu brus- camente com o passado. (25) Neste contexto ganham realce os trabalhos de Peter Laslett, que anunciou uma espécie de histéria sociolégica no seu livro The World we Have Lost, no qual analisa a hist6ria inglesa do século XVII a partir da ‘estrutura familiar e das relacdes sociais, resultando na nocdo de “one class society”, ou seja, a idéia de que somente a elite seria capaz de organizar a aco politica sobre o conjunto da sociedade. Simplesmente, para Laslett, a Revolugio Inglesa ndo teve lugar porque nfo hé mencGo sobre ela nos registros paroquiais ¢ a tinica mudanga que merece ser denominada revo- lucionéria é aquela que se processa na estrutura da familia e da sociedade, © que somente se deu com a industrializagio. Assim, as mudangas ocorri- das na Inglaterra entre o século XVI e XVII nfo foram revolucionérias € as interpretagdes baseadas na emergéncia de uma classe capitalista revo- lucionéria, ao invés de esclarecer, obliteram o entendimento da ruptura 24. C. Johnson. Revolutionary change, Stanford, Stanford University Press, 1981 (1.* ed. 1966). 25. M, Walzer. The Revolution of the Saints. ‘A study in the origins of radical politics. London, Weidenfeld, 1966. 128 Revista Brasileira de Histéria politica. Disto resulta a mé compreenso do século XVII, um mundo mal- entendido, o mundo que, segundo Laslett, perdemos. (26) C. Hill em Change and Continuity in Seventeenth-Century England, ctiticou duramente estas posigdes. Lembrou que Sit Lewis Namier, em pleno século XVIII, usou a expresso “minoria dirigente” como sindnimo de “nagio politica”, tendo portanto Laslett, simplesmente sucumbido A itusio da época sobre a qual escreveu. Nio ha dividas de que a minoria “vivia" por todos os outros e acreditava piamente nisto, tendo sido necessério um &rduo trabalho dos historiadores para demonstrar que @ submissio das camadas inferiores nfio era um “fato”, mas uma forma de propaganda ideolégica. (27) ‘A Revolucdo Inglesa tornou-se também um campo fértil para as com- paragées, seja no proprio contexto do século XVII, como se deu com o trabalho pioneiro de Merriman (28), de 1938, sobre as seis revolugSes contemporfineas, ou com trabathos mais recentes, a exemplo de Crane Brinton, The Anatomy of Revolution, onde estabelece uma comparagéo entre a Revolugdo Inglesa, a Revolugdo Francesa, a Revolugéo Americana € a Revolugéo Russa, procurando definir os denominadores comuns das crises revoluciondrias que se manifestam nas mudancas econémicas, ascen- sio social ¢ antagonismos de classes, presenca de grupos de intelectuais alienados, elite inepta e insegura e crise financeira do governo. (29) Nas mesmas pegadas, 0 sociGlogo Barrington Moore Jr. no livro Social Origins of Dictatorship and Democracy. Lord and Peasant in the Making of Modern World, estabeleceu um trago comparativo entre as revo- IugGes na Inglaterra ¢ na Franca, a Guerra Civil Americana e a Revolugio Chinesa no século XX. Procurou demonstrar que a atuacio da aristocracia rural ¢ dos camponeses no ambito da revolugio burguesa levam & demo- cracia capitalista; 0 aborto da revolucio burguesa conduz ao fascismo e 0 éxito da revolugfio camponesa, a0 comunismo. (30) 26. P. Laslett. The World We Have Lost. London, Methuen, 1966. 27. C. Hill, Change and continuity in SeventeenthCentury England. London, Weidenfeld, 1975, pp. 215-214. 28. R. B. Merriman. Six Contemporaneous Revolutions. Oxford, Clarendon Press, 1938, 29. C. Brinton, The Anatomy of Revolution. New York, Prentice-Hall, 1938. 30. B. Moore Jr. As origens sociais da ditadura e°da democracia. Senhores e camponeses na construgdo do mundo moderno, Trad. port. Lisboa, Cosmos, 1967. Revista Brasileira de Histéria 129 4. Revolugao Inglesa e Revolugéo Burguesa Retomando a linha de interpretagdo pontificada por C. Hill (31), ainpliamos 0 sentido hist6rico da Revolugdo Inglesa do século XVII a0 inseri-la na Era das Revolugdes Burguesas. A Revolucao Inglesa foi a pri- meira das revolugdes modernas, antecipando a Revolugio Americana e principalmente a Revolucio Francesa em precisamente 150 anos. Definiu © padréo da luta politica revolucionéria até o advento da Era das Revolu- ges Proletdrias, Nestes termos merecem demarcar 0 infcio da Era das Revolucdes Burguesas, muito mais do que a Revolucio Francesa, apesar do seu profundo cardter democrdtico e liberal. (32) Pois, a burguesia na Revolugio Francesa somente conseguiu assumir 0 poder apoiando-se amplamente no pequeno campesinato ¢ na pequena burguesia e, ocasional- mente, nos trabalhadores das manufaturas. Nessa perspectiva poder-se-ia dizer que se trata de uma revolugdo burguesa fracassada, pois a burguesia detém a hegemonia dentro do Estado na dependéncia do campesinato € da pequena burguesia, O Estado francés, entendido como Estado capitalista tipico, deve-se mais aos fracassos do que aos éxitos politicos da burguesia. Ai no se verificou a transformagao capitalista da agricultura e da pequena empresa, ndo se verificou um processo acelerado de urbanizagio, o merca- do interno no se ampliou, a classe trabalhadora ndo foi dinamizada e, por- tanto, limitada a possibilidade de uma futura revolugéo proletéria, (33) Noutros termos, a parte capitalista da economia francesa erguia-se sobre a base imével do campesinato ¢ da pequena burguesia. Sua especi- ficidade esté na gestaco de uma revolugio popular que chega a ultrapas- sar, no nivel da prética politica, a classe hegemdnica — a burguesia. Essa é a sua especificidade; mas nao the permite erigir-se no tipo acabado de revolugéo burguesa, pois a revolugio mais pura é aquela que cria con- dices para a implantagio do capitalismo pleno, destravando 0 avango das 31. © posicionamento de C. Hill sobre o carter da Revolugio Inglesa avangou consideravelmente desde a publicagto de English Revolution, em 1940. Num artigo mais recente, de 1980, enfatiza o cardter burgués da revolucio no estabelecimento de ccondigSes mais favordveis para o desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra “A bourgeois revolution?”, In: Three British Revolutions: 1641, 1688, 1776. J. G. A. Pocock (ed.). Princeton, Princeton University Press, 1980, pp. 109-139, 32. J. J. A. Arruda. “A Era das RevolugGes Burguesas: 0 problema das ori- ". Andis do Museu Paulista, Sio Paulo, tomo 30, 1980/1981, pp. 135-146. 33. N. Poulantzas. Poder politico y clases sociales en el Estado capitalista, ‘Trad, esp. México, Siglo XXI, 1971. Muitas destas posigOes so compartilhadas ¢ até mesmo extremadas por E. Hobsbawm, A Era das Revolugées, Trad. port. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. . ‘gens’ 150 Revista Brasileira de Histéria forgas produtivas capitalistas ¢, destarte, acelerando cfetivamente 0 proces- so revolucionatio. Paradoxalmente, foi uma revolugiio de compromisso social entre a no- breza e a burguesia, a Revolugio Inglesa do século XVII, que climinou drasticamente o antigo modo de produgdo artesanal, suprimiu as barreiras para 0 avanco dos cercamentos das terras e completou a Revolucio Agré- ria, constituindo 0 tripé Banco da Inglaterra — Governador do Tesouro — Primeiro-Ministro, responsavel pelo avanco sobre os mercados mundiais, realizando, do ponto de vista da implantacio do capitalismo, a grande revo- lugdo burguesa da Europa. ‘A vinculagéo entre a Revolucio Inglesa ¢ a Revolugdo Industrial foi claramente anunciada por C. Hill, quando, numa exposicio radiofénica disse: “Penso que o que aconteceu no século XVII, no sentido marxista, foi uma revolugao burguesa. Nao penso que duas classes se defrontaram para 0 com- bate muito mais claramente do que elas o fizeram em qualquer outra revolu- ao. Havia membros de todas as classes em ambos os lados. Mas 0 que eu enso entender por uma revolugao burguesa no 6 uma revolugo na qual a Burguesia faz a luta — eles nunca fizeram isso em nenhuma revolugio — ras uma revolugéo cuja ocorréncia limpa o terreno para o capitalismo”. (54) Inversamente, Eric Hobsbawm, ao estudar as origens da Revolucdo Industrial na Inglaterra, nos remete ao papel agressivo da burguesia ingle~ sa, no sentido de eliminar o atraso econdmico e promover a industrializacao, somente compreensiveis no bojo da Revolucdo Inglesa do século XVII. Neste paso, pensamos que € necessério estabelecer uma imbricagdo estru- tural entre as duas RevolugGes, entendendo-as como parte do mesmo pro- cesso, to visceralmente relacionadas, que uma é condigao da outra, tornan- do-se impossivel entender a eclosio da Revolucdo Industrial sem entender as transformagGes decorrentes na estrutura da sociedade, da economia ¢ do Estado inglés, resultantes das revolugdes sociais. Reciprocamente, a revo- lucdo social do século XVII somente adquire significado histérico amplo, se analisada no contexto mais global do processo histérico ulterior por elas desencadeado, e que tem sua culmindncia na transformacio industrial do século XVIII. Assim sendo, Revolugo Inglesa ¢ Revolugio Industrial, revolugdo sécio-politica e revolugo econdmica, integram-se univocamente no mesmo proceso, dando nova feicfio ao recorte histérico tradicional des- tes dois séculos na hist6ria da Inglaterra. “34. C. Hill, “The Listener” (4 de outubro de 1975. Apud R. C. Richardson. The debate of the English Revolution. London, Methuen, 1977, p- 107 Revista Brasiletra de Histérta 1st

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