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‘eia é um método terapéutico, compreendido jlogia Junguiana, que desperta grande interesse s a) Bates décadas. Na caixa de areia séo montados s coners senvol oi com figuras, por meio dos quais se realiza 0 ~ processo de projecdo das mais profundas camadas do jente, permitindo, ao mesmo tempo, a cura € 0 vimento da alma. K trabalho profundamente de alternativas vivenciais. Ruth Ammann, fapeuta experimentada, explica 9 método com trés séries de cenérios, usand ~ noC.G. Jung Institut de Zurique, ituando-o na cosmovisdo junguiana. Ao lado da entacdo tedrica, com 15 fotos em branco e preto, © funcionamento do método|com a apresenta- 32 fotos em cores, Jeitor experimentar praticamente o funciona- ymétodo. = UTH AMMANN, nescida em 1934, fo! discipula de Dora ‘Kalff, a criadora do método, Mae de trés filhos, desde 1979 ratica 0 Jogo de Arcia. # terapeuta supervisora e docente que ci desenvolve Titulo do original alemao Heilende Bilder der Seele Tradugao Dra, Marion Serpa Revisto Giselle Welter 10 Stomioio ida por Dr. Léon Bonaventure, Dra. Maria Elci Colegio AMOR E.PSIQ\ Spaccaquerche, Pe. Ivo Storniolo ‘Dados Internacionais de Catalogago na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ‘Ammann, Ruth, 1994 ~ ‘Aterapia do Jogo de Areia — imagens que curam a alma e desenvolvam a personalidade / Ruth Amman; tradugo de Marion Serpal. So Paulo: Paulus, 2002. — (Amor e psique) Titulo original: Hellende bilder der seele ISBN 85-349-1857-0 1. Jago de areia ~ Uso terapautico ~ Estudo de casos |. Titulo. Il. Série. cop-616.8917 or-a216 ise : Medicina 616.8917 Medicina : 616.8817 ‘© PAULUS ~ 2002 ua Francisco Cruz, 229 -091 Sao Pauio (Brasil) 5084-3066 www paulus.com.br editoriat@ paulus.com.br ISBN 85-249-1857-0 ISBN 3-466-34219-8 (ed. original) INTRODUCAO A COLECGAO AMOR E PSIQUE Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, 0 homem descobriu novos caminhos que o levam para a sua interioridade: o seu préprio espago interior torna-se um lugar novo de experiéncia. Os viajantes destes cami- nhos nos revelam que somente 0 amor é capaz de gerar a alma, mas também o amor precisa de alma. A: lugar de buscar causas, explicagdes psicopatolégicas as nossas feridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como cla é. Deste modo é que poderemos reconhecer que estas feri- das e estes sofrimentos nasceram de uma falta de amor. Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade e a realizagao de nossa totalidade. Assim a nossa propria vida carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa unidade primeira. Finalmente, nao é 0 espiritual que aparece primei- ro, mas 0 psiquico, e depois o espiritual. a partir do olhar do imo espiritual interior que a alma toma seu sen- tido, o que significa que a psicologia pode de novo esten- der a mao para a teologia. Esta perspectiva psicolgica nova é fruto do esforgo para libertar a alma da dominagao da psicopatologia, do espirito analitico e do psicologismo, para que volte a si 5 mesma, a sua propria originalidade. Ela nasceu de refle- PREFACIO A EDICAO BRASILEIRA xdes durante a pratica psicoterdpica, ¢ est comecando a renovar 0 modelo ¢ a finalidade da psicoterapia. E uma nova visdo do homem na sua existéncia cotidiana, do seu ‘tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo dimen- ses diferentes de nossa existéncia para podermos reen- contrar a nossa alma. Ela poder alimentar todos aque- les que sao sensiveis & necessidade de inserir mais alma em todas as atividades humanas. ‘A finalidade da presente colecdo é precisamente res- tituir a alma a si mesma e “ver aparecer uma geragao de sacerdotes capazes de entender novamente a linguagem A técnica do Jogo de Areia vem preencher uma lacu- da alma”, como C. G. Jung 0 desejava. na dentro da psicologia analitica. A maior parte dos mé- todos terapéuticos dentro dessa abordagem exige do pa- ciente certo nivel de capacidade intelectual e de abstragio, tal como 0 método de associagao ou a técnica de imagina- cao ativa. Pacientes que tém dificuldade de sonhar, imaginar ou de sair do plano conereto por vezes queixam-se do que consideram ser “uma barreira” ou “deficiéncia” que, segundo eles, pode vir a prejudicar seu desenvolvimen- to terapéutico. Por outro lado, verificamos que pacien- tes com certas patologias, principalmente aquelas de expressdo nao-verbal, como as doengas organicas, ou aquelas que se originam num substrato mais primal da psique, beneficiam-se rapidamente de técnicas nao-ver- | bais. Entretanto, mesmo essas (pintura e modelagem, | por exemplo), por exigirem certa técnica, podem inibir 9/'-t,,. 5 paciente menos habilidoso e até mesmo aumentar sua 77 angustia. O Jogo de Areia, pelo contrério, por nao solici is} og tar nenhum esforgo especial, é altamente atraente para’ a maioria dos pacientes e vem se revelando cada vez mais uma técnica de extrema eficdcia tanto quanto ao tempo de duracdo quanto A qualidade do tratamento psicote- rapico. Léon Bonaventure 7 Lentamente, a comprova¢ao dessa pratica vem cons- truindo uma material cientifico precioso. B é nessa pers- pectiva que esse livro se insere. Ruth Ammann é uma das mais renomadas pesqui- sadoras e professoras dessa técnica, Ela é membro da SGFAP (Sociedade Suiga de Psicologia Analitica, filia- da a International Associacion for Analytical Psycholo- gy), membro da Associagao Suica de Psicoterapeutas ¢ da ISST (Sociedade Internacional de Terapia de Jogo de Areia). Formada originalmente em Arquitetura, Ruth tra- balhou nessa profisséio por 18 anos, construindo casas, escolas, bancos condominios. Em 1972 entrou no C. G. Jung Institute em Zurique onde se formou como analista junguiana. Sua tese de formatura sobre um caso de uma menina trabalhado com Jogo de Areia foi o resultado de vérios anos de treinamento com Dora Kalf, a criadora dessa técnica. Desde entao (1979), tem trabalhado em seu consultério, no Instituto C. G. Jung de Zurique, como pro- fessora e dado seminérios e treinamento em varios pai- ses. No Instituto de Zurique tem lecionado sobre: Funda- mentos da Psicologia Junguiana, Psicologia dos Sonhos, Psicologia dos Mitos e Contos de Fadas, Interpretacao de Desenhos, Jogo de Areia, Psicodindmica, e sobre a apli- cago clinica desses contetidos. Ruth também interessa- se pelas questdes do feminino e uma de suas palestras prediletas 6 sobre a linhagem feminina, uma homena- gem que faz a sua mae, & filha e a neta. Seu interesse pela arquitetura volta a partir de 1998, mais intensamente, ao unir psicologia com arqui- tetura, na sua pesquisa: “O significado do espaco e 0 ambiente construido em fungao do desenvolvimento psi- col6gico das pessoas”. Essa pesquisa levou-a a fotogra- far todos os lugares onde Jung viveu e trabalhou. Esse ‘material esta reunido numa série de diapositivos cha- 8 mada “Paisagens, casas ¢ salas onde C. G. Jung traba- Thou e viveu”. Uma amostra que, depois de ter sido estreada com muito sucesso no Congreso de Psicologia ‘Analitica em Zurique, tem sido apresentada em varias partes do mundo. Ruth Ammann é uma das conferencistas mais solici- tadas nos tiltimos anos. Convites internacionais a tem levado a dar palestras em varios pafses, participando do treinamento de intimeros analistas. Entre os paises por onde anda mais freqiientemente, temos: Inglaterra, Es- tados Unidos, Canada, Italia, Alemanha, Suiga, Dina- marca, e agora Brasil. Certamente esse livro seré um guia para todos aque- les que quiserem aprender nao s6 a técnica, mas também como um analista se desenvolve, se aprofunda e apreen- de seu paciente. A profundidade como os casos so des- critos, 0 detalhamento das imagens e 0 raciocinio elfnico levam-nos a participar do caso como se lé estivéssemos. Esse texto serve também para 0 leigo ou paciente que pode, por meio dos casos descritos, se identificar com 0 proceso, aprender mais sobre si mesmo ¢ até se motivar para iniciar seu proceso. Certamente, motivar é a pala- vra correta. Esse 6 um livro altamente motivador, nao s6 pola sua seriedade, como pela empatia e amor que Ruth demonstra ao longo de seu escrito. Té-lo agora em portu- gués, com a excelente e cuidadosa tradugao ¢ revisdo téc- nica das analistas Marion Serpa e Gisela Welter é um privilégio. Como o leitor vera, a autora pratica 0 que ele se pro- poe: une a compreensdo racional, técnica, tedrica e cient fica com a atitude humanista e empatica ~ unido im- prescindivel na formagao de todo bom psicoterapeuta. Guiados pela voz da autora, passeamos por imagens cria- tivas, sofridas e profundas. Aprendemos com ela os cami- nhos da interpretagdo, do estar junto e das relagdes transferenciais. Um avango na ciéncia e um roteiro para PREFACIO as complexidades da alma. Profa. Dra. Denise Gimenez Ramos ‘Vice-presidente da Internacional Associacion for Analytical Psychology Coordenadora do Programa de Pés-Graduagao em Psicologia Clinica da PUCSP. O Jogo de Areia 6 um método baseado na criagao pra- tica e criativa na caixa de areia. Quem brinca na caixa de areia, seja adulto seja crianga, cria varias imagens tri- dimensionais na areia, envolvendo-se nesse proceso com corpo, alma e espirito. ‘Gragas ao método “mao na massa” do Jogo de Areia, as dimensées espiritual e psicolégica nao sao apenas cons- teladas na pessoa, mas ao mesmo tempo lhes é conferida uma forma concreta através das maos da pessoa, Isso tem grande efeito curativo, principalmente em pessoas muito intelectualizadas. Por esse motivo, pessoas bloqueadas psicologicamente ou que nao estao em contato com sua forca imaginativa acham esse aspecto do Jogo de Areia particularmente terapéutico. O trabalho com as maos na >. caixa de areia mobiliza as energias criativas, fazendocom | %_ que fluam novamente] 2 O método terapéutico do Jogo de Areia foi desenvol- vido por Dora Kalff a partir do “Jogo do mundo” de Margareth Lowenfeldt, como também do “Teste do mun- do” de Charlotte Buhler ou o assim chamado “Método de Erica”, utilizado no diagnéstico psiquidtrico infantil na Suécia ha mais de 40 anos. Dora Kalff reconheceu que as séries de cenarios, elaboradas por criangas ou adultos, representam a confrontagao continua e pratiea com o in- 11 10 consciente, compardvel A série de sonhos ou a imagina- ¢do ativa que ocorrem no processo analitico. E evidente que o trabalho na caixa de areia desencadeia um proces- so psiquico holistico que leva cura e ao desenvolvimen- “to da personalidade. . 3¥ Neste método, desde 0 inicio me impressionou de maneira extraordinaria 0 fato deste método prover as bases para a interagéio entre corpo e mente, matéria e © espirito. O Jogo de Areia cria um campo comum no qual 0 _espirito e o corpo podem se influenciar mutuamente. Na forma de andlise classica verbal nao conhecemos esse tipo de interjogo direto entre psique e matéria, ao menos n&o {nessa forma. + Por essa razo, acredito que a anilise classica dos sonhos e o Jogo de Areia esto relacionados. Blas repre- sentam duas abordagens terapéuticas equivalentes, que nos permitem melhor adaptagao as necessidades psicolé- gicas do analisando. Ambos os métodos se baseiam na ‘psicologia de C. G. Jung. Dora Kalff também construiu 0 Jogo de Areia sobre esse fundamento. No seu capitulo “Confronto com o inconsciente” no livro “Memérias, so- nhos, reflexdes”, Jung descreve suas préprias experién- cias com o Jogo de Areia: ‘\ Os sonhos de entao me impressionavam muito, mas ndo me ajudavam a superar o sentimento de perplexida- de que se apoderava de mim. Pelo contrario, eu vivia como que sob dom{nio de uma pressio interna. As vezes ela era tao forte que cheguei a supor que havia em mim al- guma perturbacéo psiquica. Duas vezes passei revista toda a minha vida em todos os seus pormenores, deten- do-me particularmente nas lembrangas da infancia, pen- sando encontrar em meu passado alguma coisa que pu- desse ser a causa de uma possivel perturbagdo. Mas esta inspecdo foi infrutifera e tive de confessar a mim mesmo minha ignorancia. Pensei entdo: “Ignoro tudo a tal ponto 12 Jung: que simplesmente farei 0 que me ocorrer”. Abandonei- me assim, conscientemente, ao impulso do inconsciente. A primeira coisa que se produziu foi o aparecimento de uma lembranga da infincia, talvez dos meus dez ou doze anos. Nessa época eu me entregara apaixonadamen- te a brinquedos de construcdo. Lembrei-me com clareza que edificara casinhas e castelos, com portais ¢ abéba- das, usando garrafas como suportes. Pouco mais tarde, utilizei pedras naturais e terra argilosa como argamas- sa. Durante longos anos essas construgées mal haviam fascinado. Para minha surpresa, essa lembranga emer- giu acompanhada de certa emogdo. “Ah, ah! disse a mim mesmo, aqui hé vida! O garoto anda por perto e possui uma vida criativa que me falta. ‘Mas como chegar a ela?” Parecia-me impossfvel que 0 homem adulto transpusesse a distancia entre o presente e meu décimo primeiro ano de vida. Se quisesse, entre- tanto, restabelecer o contato com essa época de minha vida, s6 me restava voltar a ela acolhendo outra vez a crianga que entdo se entregava aos brinquedos infantis. Esse momento marcou um ponto crucial no meu des- tino. S6 me abandonei a tais brincadeiras depois de repulsdes infinitas, com sentimento de extrema resigna- go e experimentando a dolorosa humilhagao de nao po- der fazer outra coisa sendo brinear. Pus-me, entio, a co- lecionar pedras, trazendo-as da beira do lago ou de dentro da Agua; depois comecei a construir casinhas, um caste- Jo, uma cidade. Nesta época porém faltava a igreja; co- mecei ento uma construcao quadrada, encimada por um tambor hexagonal e por uma cipula de base quadrada. Ora, uma igreja comporta também um altar. Mas algo em mim relutava em edificé-lo. Preocupado em saber como resolveria este proble- ma, passeava um dia, como de costume, ao longo do lago e recolhia pedras por entre o cascalho da margem. De 13 repente, deparei com uma pedra vermelha, uma espécie de piramide de quatro lados, de uns quatro centimetros de altura. Era uma lasca de pedra que, de tanto ter sido rolada na agua pelas vagas, acabara por tomar essa for- ma, puro produto do acaso. Assim que a vi, soube que encontrara meu altar! Coloquei-a no meio, sob a cépula, e enquanto fazia isto me lembrei do falo subterraneo do meu sonho de infancia. Esta conexao despertou em mim um sentimento de satisfagao. ‘Todos os dias depois do almogo, se o tempo permitia, entregava-me ao brinquedo de construgao. Mal termina- daa refeigao, “brincava” até 0 momento em que os doen- tes comecavam a chegar; & tarde, se meu trabalho tives- se terminado a tempo, voltava as construgdes. Com isso meus pensamentos se tornavam claros e conseguia apre- ender de modo mais preciso fantasias das quais até en- tao tivera apenas vago pressentimento. Naturalmente, cogitava acerca da significagao de meus jogos e perguntava a mim mesmo: “Para falar a verdade, o que fazes? Constrdis uma pequena colénia e 0 fazes como se fosse um rito”. Eu nao sabia o que respon- der, mas tinha a certeza intima de trilhar 0 caminho que levava ao meu mito. A construgao representava apenas 0 infcio. Ela desencadeava toda uma seqiiéncia de fantas- mas que mais tarde anotei meticulosamente. Situagdes desse tipo repetiram-se em minha vida. Sempre que me sentia bloqueado, em pertodos poste- riores, pintava ou esculpia uma pedra: tratava-se sem- pre de um rite d’entrée que trazia pensamentos e tra~ balhos. Do meu meu ponto de vista deveriamos incluir cada vez mais o corpo e o mundo imaginativo ndo-racional na psicoterapia, porque essas dimenstes estdo adquirindo maior importancia e, portanto, devem continuar assim. Enquanto o valor do pensamento légico foi enfatizado 14 durante muito tempo, também se negou a importncia de outros valores. Os analistas junguianos compartilham essa visdo, mas freqtientemente ela nao é posta em préti- ca de modo suficiente. + Existe outra razao pela qual precisamos de método: terapéuticos complementares A nossa pratica analitic: usual. Em nossos consultérios vemos cada vez mais cli entes que sofrem claramente de disturbios nareisicos 0 distirbios enraizados na primeira infancia. Freqiiente- mente referem-se como disttirbios na relagdo primal, ou Urbeziehung, para usar o termo original de Neumann. Muitos distiirbios desse tipo podem ter sido causados pela énfase excessiva no lado racional (com seu foco voltado para o desempenho) em nosso tempo de escola e de de- senvolvimento de carreira. Como corolério, nossa vida sentimental, juntamente com nossas pulsdes instintivas naturais, foi pouco apoiada ou até atrofiada. Esse fend- meno pode ser observado hoje especialmente entre maes, muitas das quais tém grande dificuldade em amar o filho enquanto ele ainda esta no titero e na fase posterior de crescimento. Hoje em dia, muitas mies perderam a ca- pacidade de dedicar-se aos filhos, para que eles possam experienciar relacdo intima e amorosa com elas. Faltam a crianga o calor e 0 aconchego de que precisa, especial- mente no primeiro perfodo de vida. Nao quero, no entanto, apontar ou acusar mies e pais, pois também eles podem viver em inseguranga e sem amor numa sociedade como a nossa, que negligencia a compaixao e o desenvolvimento de uma comunidade de valores compartilhados. + O Jogo de Areia, portanto, ¢ especialmente adequa- do aos adultos e criangas que sofrem de distarbios da pri- meira infancia, pois leva a pessoa de maneira nao-verbal de volta as camadas mais profundas da psique da pri-| meéira infancia~ ~~~ ~~ a y\ { \ o wh No meu trabalho analitico ugo_simultaneamente andllise verbal e o Jogo de Areia. Mas também pode acon- tecer que um analisando percorra primeiro um processo na areia e mais tarde, apés a elaboragao analitica dos cenérios, continue com a andlise dos sonhos. Outra pos- sibilidade é 0 analisando trabalhar alternadamente com a andlise verbal e o Jogo de Areia. Pode criar num cené- rio momentos especialmente importantes do seu proces- so, ou abordar na areia temas ou passagens especialmente dificeis e especificos. O método do Jogo de Areia tocou-me de forma espe- cial desde o primeiro contato. Uma razao dessa minha atragdo esta no fato de gostar de imagens e formas tridimensionais. Isto sempre esteve perto do coragao, es- pecialmente por gostar de usar as maos. Outra razéo da minha preferéncia pode estar no fato de ter experiencia- do, desde cedo, 0 modo como alguém pode usar os senti- dos de modo diferenciado, sem palavras. Quando era criancinha observava meu avo em sua clinica médica com- portar-se exatamente dessa maneira. Certa experiéncia me marcou especialmente: meu avd, que era pediatra, também tinha consultério em casa, onde ocasionalmente recebia pacientes. Quando menina, observei uma vez pelo buraco da fechadura o modo como examinava um bebé. Inspecionou a crianga atentamente de todos os lados, to- cando-a, auscultando-a e testando-a. Para minha gran- de surpresa, entdo usou o nariz para cheirar a crianga. Mais tarde Ihe perguntei o que havia feito. Respondeu: “Criancas pequenas nao conseguem dizer onde déi. En- to tenho que usar todos os sentidos para descobrir do qué a crianca adoeceu”. Este pequeno epis6dio foi essencial para mim e du- rante meu estudo de psicologia pensei freqiientemente no meu avd, Nao sé experienciei nele alguém capaz de observagdo cuidadosa, mas também como pessoa com vat 16 grande respeito pela natureza e confianca profunda e re- ligiosa na natureza a nossa volta e dentro de nés. ‘Na psicoterapia, tanto adultos como criangas encon- tram dentro de si “a crianga pequena”, que nao consegue dizer “onde doi”. Nesse instante temos de usar nosso po- der de observacao e, figurativamente, usar todos os sen- tidos para descobrir o sofrimento recdndito da pessoa. + Em 1989 foi langado pela editora Késel, de Muni- que, meu livro “Imagens curativas da alma. O Jogo de Areia —o caminho criativo do desenvolvimento da per- sonalidade”, Naquela época 0 Jogo de Areia ainda era método utilizado por relativamente poucos terapeutas Somente em 1985 Dora Kalff fundou, juntamente com um miicleo de terapeutas de Jogo de Areia, a Sociedade ‘Internacional de Jogo de Areia, ISST. Ainda niio existia ima Sociedade suiga ou alema. Também no Instituto C. 'G: Jung de Zurique o Jogo de Areia era pouco ensinado. Asituagéio mudou nitidamente nos tiltimos doze anos. A sociedade internacional ISST cresceu, tornando-se co- munidade relativamente grande de terapeutas do Jogo de Areia, devendo porém ser mencionado que ela incluia nao somente analistas junguianos, e sim muitos tera- peutas de outras linhas, e que no Instituto C. G. Jung de Zurique, como na maioria dos institutes internacionais, 0 Jogo de Areia foi reconhecido ¢ integrado ao curriculo como complementagio valiosa da andlise verbal. Ha varias razées pelas quais gostaria de familiari- zar os psicoterapeutas, em particular os junguianos, com © método terapéutico do Jogo de Areia: primeiro, pela possibilidade de incluir o corpo, téo negligenciado na and- lise ou terapia. Através do trabalho manual criativo na caixa de areia 6 ativado e posto em movimento néo s6 0 corpo do analisando, mas também freqiientemente 0 es- tado fisico do analisando se torna nitidamente visivel através dos cendrios, 0 que nao acontece na mesma me- 17 ) dida na andlise dos sonhos. O analista também se movi- { “‘menta mais no espago do consultério com esse método, 0 \ que contribui bastante para o seu estado fisico. + Além do mais, podemos observar no Jogo de Areia a postura de parceria terapéutica que de qualquer manei- ra jé fundamenta 0 entendimento terapéutico junguiano. A base do método do Jogo de Areia repousa na confianga ” em relagao as possibilidades curadoras no ser humano e no conhecimento delas pelo analisando. Na primeira fase criativa da terapia, a atividade se concentra totalmente no analisando; o analista permanece atento, mas reser- vado. Nessa fase nada é avaliado ou interpretado, o que é enorme alfvio para pessoas com sofrimentos psiquicos. ‘Terapeutas do Jogo de Areia so psicoterapeutas que, em fungiio do setting especifico do Jogo de Areia, se apresen- tam primeiramente como seres humanos. > E, last but not least, considero que é valioso e didati- co poder acompanhar a dindmica dos processos psiquicos mediante séries de imagens tridimensionais. Nao saberia dizer onde seria possivel fazer melhor observacao direta o <@ da impressionante e acertada.capacidade de auto-regu- s lagdo ede autocura da psique humana, compreendendo- ga depois através da recuperagao das imagens, sendo no so dogo de Areia. Por razées de discriggo e porque ultrapassaria a ex- tensao deste livro, ndo me é possivel apresentar e inter- pretar processos de Jogo de Areia inteiros. Por isso nas descrigdes de casos chamarei a atencao para os pontos especialmente importantes e t{picos para a compreensao do processo do Jogo de Areia. A grande vantagem 6 0 fato de que os cenérios podem ser fotografados, tornando os processos psiquicos visualmente acessiveis para 0 leitor. ~Mesmo assim é dificil fazer com que os processos psiqui- cos sejam inteligiveis e compreenstveis para quem est de fora, pois 6 aqui que se pode justamente dizer que ape- 18 nas aquele que jé vivenciou algo similar pode realmente compreender. 4 + Saliento que, na Psicologia Analitica, a psicologia de| C. G. Jung, chamamos as pessoas que vém a0 nosso co1 sultério de analisandos. Isso significa, no sentido ori nal, que fazem uma andlise verbal. Mas utilizo essa ex- pressdo para todos os adultos no meu consultério. Quando \ 2, digo “analisando” e ndo “analisanda” nao ha nada de \ discriminatério nisso. Para mim a denominagdo “o anali- Ie sando” € neutra, aplicdvel a homens e mulheres quando ! . nGo se tratar de pessoa especifica. Por outro lado, ndo digo “analista de Jogo de Areia”, apesar de eu ser analis- ta junguiana, mas “terapeuta de Jogo de Areia”, pois faz mais jus & realidade de que ha também terapeutas de Jogo de Areia que chegaram a esse método através de outra formagao bésica. A cditora e eu concordamos que seria correto tornar esse livro inteligivel também para os leitores que ndo dis- poem de grande conhecimento especializado. Procuro es- crever de maneira clara e direta. Os termos técnicos que nao pude contornar estio explicados no glossario no fim do livro. Aprendi o método terapéutico do Jogo de Areia com Dora M. Kalffem Zollikon, primeiramente como experiéncia prépria, depois como sua assistente por meio do trabalho terapéutico do Jogo de Areia com pacientes. Devo muito a Dora Kalff, pois ela nao s6 me introduziu nesse método excepcionalmente valioso, mas também me transmitiu muito conhecimento basico em relacao ao desenrolar de processos psiquicos e A postura terapéutica do analista. ‘Neste momento agradego ao padre Ivo Storniolo e & Paulus Editora por publicar meu livro em portugués no Brasil. Com isso a Paulus Editora colabora para que esse valioso método do Jogo de Areia seja difundido na Améri- ca do Sul. 19 Agradego especialmente a Marion Serpa pela sua iniciativa de traduzir o livro para o portugués. Marion Serpa fez, traducdo cuidadosa, competente e carinhosa que podera auxiliar todos os que desejam conhecer 0 método do Jogo de Areia. Sou muito grata também a Giselle Welter, que fez a revisdo da tradugio. Aqui também agradego especialmente a Eva, Maria ¢ Elisabeth, assim como a todos os analisandos que me deram permissao de usar os diapositivos de seus cené- ios, sem os quais 0 livro nao exi 20 1 INTRODUGAO AO METODO DO JOGO DE AREIA A terapia classica junguiana é a andlise dos sonhos. Nela acontece uma discriminagdo entre o estado cons- ciente eo inconsciente do homem, que se manifesta prin- cipalmente nos sonhos, mas também em visoes, imagi- nagées ou imagens pintadas. Tais manifestagdes do inconsciente procuram ser esclarecidas pelo analista em conversas com o analisando. Dessa maneira ele o ajuda a ter acesso as partes de sua personalidade e aos conteti- dos do Inconsciente Coletivo, até entao desconhecidos. ‘Também os fenémenos de transferéncia e contratrans- feréncia, que resultam dessa colaboragao intensa entre analista e analisando, sao trabalhados. A andlise junguia- na é sempre processo que toca e exige de ambas as partes. + Aanélise realiza-se principalmente no didlogo entre analista e analisando, pois é forma verbal da terapia. Esta ito que a personalidade do analista pode influenciar © decorrer da anélise de determinada maneira, por meio da forga e do poder da palavra, O analisando pode usar suas potencialidades verbais de forma positiva, e tam- bém fazer mau uso delas, a fim de esconder seu verdadei- roser. Alinguagem verbal é uma possibilidade de expres. sdo humana, ligada prineipalmente A consciéncia racional. Pela maneira como a pessoa fala conosco podemos entender sua atitude mental, sua estrutura de pensamen- 21 Vi fag Pa I 2 S 9 » i to. Para a maioria das pessoas é muito mais dificil ex- pressar sentimentos por meio da verbalizago, a nao ser que tenham talento especial para isso. Aalegria e o sofrimento, assim como o medo, a raiva ou o amor tomam conta da pessoa inteira, do corpo todo. Muitas vezes 0 corpo reage até algum tempo antes de nos tornarmos conscientes de que uma emogdo tomou conta de nés, 0 que ela é e como foi ativada. A pessoa pode, por exemplo, ficar rigida e paralisada de medo — seu corpo fica rigido, frio, sem vida. Quem observa pereebe logo que a pessoa esta com medo«'Iodavia, a propria pessoa nado tem palavras para descrever sua situagdo, néo consegue oO ‘expressar verbalmente o que fez surgir seu medo, pois os) motivos lhe s&o inconscientes. No entanto, talvez suas (9 maos possam dar forma ao “inconsciente” por meio de y 4 , uma imagem e, assim, torné-lo visivel. Ne Quanto mais profundamente as emogées e os senti- mentos esto escondidos dentro de nés, tanto mais pro- fundamente nossas lembrangas estao mergulhadas no inconsciente, ou quanto mais distante da consciéncia se |. encontra uma parte da personalidade, tanto menos pala- vras encontramos para descrevé-la. Nao temos palavras, | mas temos outras possibilidades de expressdo. Podemos ?? dancar, contar, pintar e representar eriativamente o que nos toca. Podemos estabelecer conexdes com outras pes- > soas nao somente por meio da linguagem verbal, mas tam- bém por meio do corpo, especialmente das maos. As méos formam uma ponte entre nosso mundo interno e externo. Com_as mos podemos fazer carinho e bater, podemos_ ,trabalhar, construir, transformar e criar. As mags sao | mediadoras entre espirito e matéria, entre imaginagao™ interna e criagdo concreta. Pela agdo das méos as ener- gias existentes se tornam visfveis. O método terapéutico do Jogo de Areia se baseia no principio de que, através da criagdo com as maos, as for- 22 ina Maos como mediadoras entre espirito e matéria. Fig. 1: as que atuam nas profundezas da alma se tornam visi- veis e reconheciveis, e que através das maos o interior 0 exterior, o espfrito e a matéria se unem. No Jogo de Areia 7 predomina a ago; fala-se pouco, principalmente nao de/ocq modo imediato ou de maneira racional e interpretativa. > Dentro da moldura protetora da caixa de areia, que tem ./_ 0 tamanho aproximado de 50 x 70 em, o analisando cria oe; seu mundo particular, com areia seca ou molhada e mui- tas pequenas figuras que estao a sua disposicao, da ma- neira como ele est constelado internamente neste mo- mento. Cria seu microcosmo pessoal (fig. 2). As figuras representam as forcas que nele atuam. « O analista comporta-se como observador. Faz um esquema da imagem na areia e tira uma fotografia no final. Pede que 0 analisando conte 0 que Ihe vem a men- te, o que mexeu com ele ou o abalou durante o processo. Observa cuidadosamente a imagem com 0 analisando, talvez registre o que est vendo, mas, no momento, nao faz interpretagées. O importante 6 que, depois da sessao 23 i « Fig. ‘rocosmo, imagem na areia de uma senhora de 42 anos. de terapia, 0 analisandg carregue dentro de si o seu mun- do, o seu microcosmo. Af ele atua emocionalmente até o préximo encontro, quando novamente cria uma imagem. A imagem na areia sera desfeita pelo analista depois da sesso, pois ndo deve permanecer no mundo externo. No seria correto interpretar a imagem logo apés sua construgao, pois hé o perigo de se fixar intelectualmente e interromper as correntes emocionais e sentimentais. 0 analisando diz entao: “Sim, é isso af. Essa é a minha situa- cdo!” Todavia, ela ainda néo 0 é; ela ainda seré algo novo. Asimagens singulares representam somente estagdes num longo processo de mudangas psiquicas, que de modo ne- nhum deve ser atrapalhado ou bloqueado. A arte do ana- ista consiste em reconhecer 0 que acontece nessa fase da terapia, 0 que se passa com o analisando, em proteger e apoiar o processo, em interferir na emergéncia, mas prin- cipalmente em comentar apenas 0 suficiente a fim de que 24 o proceso do analisando possa se desenvolver. Expressando isso com uma imagem: o analista cuida que 0 fogo sob 0 caldeirao, onde o processo animico do analisando est sen- do cozido, nao apague, mas também para que néio cozinhe demais, e 0 contetido do caldeirdo se queime ou estrague. Quero acrescentar que uma postura similar do ana- lista também é adequada na terapia verbal. Também nela_ se pode interpretar o suficiente para que o analisando nao se sinta atropelado, mas sim apoiado e estimulado em seu proceso. Quanto a interpretagao, parece-me que existem di- versas possibilidades no Jogo de Arcia, Elas dependem do tipo de procedimento terapéutico. Segundo minha ex- periéncia, existem dois tipos de processos fundamental- mente distintos: 0 proceso curativo € o processo de trans: /y, formagdo da viséo pessoal do mundo. O processo curativo atua em pacientes que sofrem de disturbios ou feridas psiquicas, que se formaram jé antes do nascimento ou na primeira infancia. Sofrem do chamado distirbio da relagdo primal, que os impossi ta de crescer com saudével confianga no mundo e no seu préprio processo de vida. Nesses casos 0 proceso tera- péutico leva as camadas vivenciais profundas da primei- ra infancia, nao acessiveis ao consciente e a verbalizagao. ‘A energia psiquica retorna ao nticleo saudavel da alma. Essas imagens e forcas da totalidade imperturbada sao revitalizadas e passam a atuar novamente através do Jo- go de Areia, levando a formagao de uma base sadia, sobre a qual a reconstrugdo da personalidade € possivel (veja capitulo 7).1 ‘No processo curativo o analisando vivencia fortemen- te a mudanga em seu ser. Uma interpretagio imediata 1e Kinderanalyse anhand von Sandbildern. Tese de Ammann, Ruth, tut, Zurique, 1979. sma no C. G. Jung: 25 ou posterior seria desnecessdria ou perturbadora. Isso 6 valido para criangas e para adultos que no conseguem ou ndo querem tomar consciéncia do seu processo. Em outros casos, principalmente 0 de estudiosos que preci- sam se submeter a andllise didatica, acho que é impor- tante olhar, trabalhar e interpretar os slides da série de imagens apés 0 término do proceso transformador, isto 6, quando é alcangado novo nivel de desenvolvimento, da mesma maneira como fariamos com uma série de sonhos. Além do mais, tive a experiéncia impressionante de que muitos analisandos sao capazes de interpretar suas ima- gens apés 0 término de seu processo, que pode durar meses. Vivenciaram as forcas curativas resultantes da sua criagdo e tal experiéncia provoca crescimento inter- no e amadurecimento. O proceso transformador acontece de maneira dife- rente. Aqui se trata de pessoas que em principio tém base de vida saudavel e Bu estavel, mas cuja visio de mundo é estreita e unilateral demais, ou se tornou doentia, Elas sentem que algo dentro delas nao est em ordem, so irre- quietas, desanimadas ou até depressivas ou doentes. Al- gumas sentem claramente (talvez a partir de seus sonhos) que se realiza transformagao ou que sera necessario am- pliacao da consciéncia, e entram conscientemente no pro- cesso, sem serem levadas pelo seu sofrimento inconsciente. Fazem parte dos processos de transformagao 0 con- fronto com a sombra (ver fig. 3), processos de transfor- magio na drea do feminino (veja capitulo 8), 0 encontro com 0 Si-mesmo como imagem divina, entre outros. Es- sas transformagies psiquicas, que mudam profundamente a viséo de mundo da pessoa pressupdem consciéncia do Eu saudavel e autovalorizagao, formando degraus no pro- cesso de Individuagao do ser humano, Em tais casos o analisando se confrontaré com cada um de seus cenarios de maneira mais intensa, desta- 26 Imagem na areia de uma senhora de 40 anos. A Fig. direita, o mundo claro, plano e intelectual. A vida insipi- da se dirige através da ponte para a esquerda, numa re- gido tumultuada, ocupada por um mundo cheio de som- bras monstruosas. cando seu significado e tomando consciéncia dele. De- pois o analista também pode apresentar com mais énfase sua visio do cenario e cuidadosamente formular inter- pretagdes. Contudo, mesmo assim é necessario cuidado, pois ndo podemos esquecer que a visa do mundo ultra- passada precisa em primeiro lugar ser dissolvida e aban- donada, para que uma nova visdo possa ser formulada. O analista, através de sua longa experiéncia, freqiien- temente jé tem nogao dessa nova visdo, mas jamais de- veria atrapalhar solugao diferente e inesperada, langan- do mao de interpretagéo imprudente. Apés a conclusiio do processo parece-me também muito importante nes- ses casos trabalhar cuidadosamente os slides desses ce- nérios. eet, ee te oy Resumindo, no Jogo de Areia processo de transfor- magdo integral, que inclui psique e corpo, desenvolve-se através da construgao criativa com as mos, de modo prin- cipalmente néo-verbal, e somente apés sua conclusio seré interpretado verbalmente, conforme os conceitos da psi- \cologia analitica. Por isso, no meu entender, néo classifi- aria 0 método do Jogo de Areia como basicamente nao- \verbal.? Mas, como ja foi dito, no decorrer dessa terapia~ ha fases claramente distintas. Primeiro verifica-se a fase néo-verbal e nao-interpretativa de construgio criativa, - \ quando o analista assume postura protetora, continente,* néo-verbal e compreensiva. Ele se concentra totalmente no processo de seu analisando, transmitindo-lhe sua con- fianga no proceso autocurativo da psique através daqui- Jo que ele, analista, 6, e nao através daquilo que fala. Tais perfodos silenciosos numa sesso de terapia, onde nada se conversa, so extremamente belos e valiosos. Nao 6 osiléncio do constrangimento, mas o siléncio consciente. Analista e analisando dedicam-se juntos ao mundo inte- rior do analisando e, nesse momento, estao muito proxi- mos um do outro. Na fase seguinte, a elaboracao analitica dos slides { dos cendrios, o analista assume o lugar de parceiro de | diseussdio, que ajuda o analisando a réconhecer, ordenar © intérpretar, tudo com o objetivo de ligar a mensagem das imagens com a experiéneia do analisando. Poderiamos chamar essas duas posturas terapéuti- cas do analista como materna e paterna, ou matriarcal e patriarcal. Kathrin Aspersdistingue uma postura tera- ‘péutica especificamente materna e outra, especificamen- te paterna.’ Eu, de minha parte, nao gostaria de denomi- \s one” 2Weiri, Estelle, Images ofthe éelf. Boston, MA: Sigo Press 1983. *Asper, Kathrin, Verlassonheit und Selbstentfremdung. A.8.0. Insb. Kp. “Therapeutische Haltung”™. 28 nar a diferenca desse modo, pois com isso hé referéncia a papéis sexuais especificos. Como analista nao me sinto nem maternal nem paternal, mas sempre como mulher. No entanto, minha atitude em relagao ao analisando e seu processo adquire peso diferente. Durante a fase cria- tiva atuam em mim forgas instintivas e fisicas, baseadas numa percepgao sensorial sutil, mas também na sensa- 40 corporal e na intuigdo, proporcionando a ligagdo empatica e emocional com o analisando, Isso nao se d4 inconscientemente, mas através da dedicagao consciente a essa atitude mais receptiva que compreende o ser hu- mano como um todo. No processo de elaboragao analitica que segue, emprega-se mais as forgas discriminadoras e ordenadoras, a razéo e também o sentimento como fun- go subjetiva avaliadora. Podemos esclarecer melhor essas duas posturas di- versas através das diferentes fungdes dos dois hemisfé- rios cerebrais.* O hemisfério direito (que atua sobre o lado esquerdo do corpo) trabalha com imagens globais e nao- verbais, e desempenha papel importante na elaboragéio de informagées emocionais. Parece-me importante acres- centar o fato de que a imagem corporal esta alojada no lado direito do eérebro.® O hemisfério esquerdo (que atua sobre o lado direito do corpo) € orientado verbalmente e ligado ao pensamento 6gico e objetivo, Ele trabalha racional e analiticamente. ‘Assim, penso que nas diferentes posturas terapéuti- cas as vezes domina mais a fungdo do hemisfério direito e outras vezes mais a fungao do esquerdo. Nenhuma de- las € melhor ou pior, pois resultam de atitudes diferen- tes, relacionadas as diferentes exigéncias do processo 4Becles, John C., Das Gehirn des Menschen. Munique: Piper 1984. Achterberg, Jeanne, Die heilende Kraft der imagination. Munique: Schere 1987, Insb. Kp. “Wissenschaft und Imagination”. 29 et oe terapéutico. Nos processos que visam a transformagdo da visio de mundo, as duas atitudes serao necessérios de for- ma mais ou menos concomitante e de maneira equilibrada. ‘Neste momento menciono que 0 uso equilibrado dos dois hemisférios nao s6 beneficia o analisando, como tam- bém é essencial para a satide mental, psiquica e fisica do analista, Fiz a experiéncia de que fico muito menos can- sada ou esgotada nos dias em que se alternam terapias com Jogo de Areia e anélises oniricas classicas, do que nos dias em que uma anélise verbal segue a outra. Esta é uma das razées pelas quais veria com bons olhos se 0 método do Jogo de Areia fosse levado em maior conside- ragdo entre os analistas junguianos. Desse modo, na ana- lise verbal seriam usadas ndo s6 imagens esporadicamen- te pintadas, mas também se disporia de método proprio para processos que exigem tratamento em nivel ndo-ver- bal, imagético-criativo e emocional. Se nos pusermos no ponto de vista do analisando e observarmos rapidamente os dois acessos terapéuticos e sua reagdo, veremos o seguinte: na primeira fase, a cria- tiva, ele é afastado da consciéncia critica e racional. O pensamento intelectual que nao se tefere & realidade e segundo o qual muitas pessoas foram educadas e ao qual estao entregues em sentido negativo ndo sera solicitado x ‘x no Jogo de Areia, mas evitado através do método em si. ( Serao ativadas a forca imaginativa e imagética e a fun- ‘Gao da realidade, no caso os sentidos, principalmente 0 tato, sentido tao importante para o ser humano. Com a ativagdo das emogdes e dos sentimentos, a fora imagi- nativa e o contato com a realidade se unem para compor a imagem do cenério. Explicarei melhor a combinagéo sutil entre imaginagao, matéria e emogao no‘capitulo (quarto, sobre a imaginacao. - "— Na segunda fase, na elaboragao analitica dos cené- rios, serd ativada a capacidade de observacao do anali- 30 sando. Ele deve gravar cada figura na sua posicao e inter- relagdo, elaborando entao essas informagées por meio do sentimento e do pensamento, ao mesmo tempo. Esse tipo de pensamento ndo estd fora da realidade nem sofre in- fluéncia da opiniao dos outros, mas esta relacionado com o que ha de verdadeiro na imagem e com o que o anali- sando de fato vivenciou enquanto a elaborou. ‘Aexperiéncia mostra que o Jogo de Areia mobiliza 0 analisando em todos os niveis do seu ser, confrontando-o ~* com seus lados conscionte e inconsciente e,aomesmotem- , dos sentidos, principalmente a observagdo exata da rea- lidade, pois 0 mundo externo e conereto tem enorme re- (5) percussao sobre o mundo interno, ps{quicoXHstamos > acostumados a pensar que o mundo interno, animico ¢ | fr espiritual se expressa, podendo-se dizer que se encarna| 8 no mundo externo, mas o inverso também ¢ valido. O meio. Gry, \ ambiente criado pelo homem e pela natureza repereute| 1 f jaa alma. E troca constante entre dentro e fora, entre psi que e meio ambiente.® Por exemplo, a observacdo cuidadosa do mundo ve- getal, de sua esséncia e de seu crescimento, propicia 0 re- Ammann, Ruth, Traumbild Haus. Olten/Freiburg Br: Walter 1987. Insb. Kp. 1: "Die Weehselvirgung zwischen Mensch und Haus". conhecimento de ordem e legitimidade, seguranga e orien- tagdo. O conhecimento profundo e instintivo sobre o mun- do vegetal no decorrer da mudanga das estagées do ano sobre o morrer e renascer da natureza também traz para o homem seguranga em relagao a sua propria vida vegetativa. Ele, por exemplo, se torna consciente de que © crescimento do “vir-a-ser” requer tempo, paz e prote- 40. Nao importa se o “vir-a-ser” se trata de trabalho cria- tivo ou da renovagao da visao de mundo, talvez de uma andlise ou de uma gravidez; para aqueles que estao fa- miliarizados com a esséncia do crescimento nao haveré espaco para impaciéncia ou pressio. Eles se dedicardo ao “yir-a-ser” com paciéncia e atengao. Todavia, seré que justamente o saber e a observacao das leis da natureza ‘so deficientes hoje em dia? Quantas mulheres esperam uma crianga endo podem ou no querem dar psiquica e fisicamente a ela 0 espaco tranqiiilo e saudavel que ela requer para 0 seu desenvolvimento? Conforme dissemos, muitas pessoas que procuram nossa ajuda sofrem do chamado distiirbio das relagées pri- mrias, isto é, distirbio na relagao entre mae e filho desde tempo da gravidez. No entanto, a mae, ou sua substitu ta, representa no primeiro periodo da vida da crianga o contato mais significativo com 0 mundo — ela é o mundo para a crianga. Como pode ela transmitir ao filho seguran- cae confianga no mundo e na sua vida, se ela prépria ndo A tecnologia? Sou de opinido que nao é suficiente amar 0 filho, nutri-lo e protegé-lo. A boa mae ou o bom pai deve familiarizar o filho com a esséncia da “mae natureza”, externa e internamente. Principalmente a confianga na prépria alma e no proprio corpo, 0 conhecimento acerca da satide e a doenca e sobre a respeito da sexualidade a crianca jamais aprenderd na escola: esse conhecimento 6 transmitido através do modelo dos pais no dia-a-dia. Esse desprezo ou até desdém diante dos processos evidentes e nao espetaculares da natureza também se estende de maneira prejudicial para o corpo humano. O corpo se torna o irmao menosprezado do privilegiado es- pirito. Claro, no me refiro ao corpo como pega de exposi- do para modelagem ¢ beleza fisieas, mas ao corpo como parte da nossa totalidade, que est ligado ao mundo ma- terial conereto e sujeito As suas leis de desenvolvimento e decadéncia. = Pode-se dizer que corpo é menosprezado, mas tam- bém se pode dizer que o espirito é desligado das condigies humanas e materiais de maneira nociva. Podemos obser- var essas fantasias soltas ou vos espirituais de formas di- ferentes, por exemplo, no éxtase da droga ou do alcool, na teorizagao sem pé nem cabega, no ensimesmar-se em de- vaneios ou também em certas praticas psicolégicas que visam A inflagdo da personalidade. Na maioria dos casos podemos supor que as pessoas afetadas tentam escapar de suas condigées de vida insatisfatérias, Por tais moti- tem relacdo boa e confidvel em sua prépria natureza? . Parece-me que a desinformagao e o desinteresse pe- «| tos processos da natureza, aos quais também pertencem iy oe Perse = >| o-caminho do sol, da lua e a posigao das estrelas, podem | ser negatives para a confianga basica do ser humano em sua vida neste mundo, Nao parece 6bvio que o jovem ob- Vos nao podemos negligenciar o corpo como parte material °%, “da totalidade de nossa personaligade, nem o ambiente con-a*,,_ creto, no tratamento terapéutico, caso contrario haveré oé., perigo de ciséo entre o mundo abstrato, espiritual, ¢ 0 < mundo material. Pois, como j4 foi dito, hd troca constante @ __ serve e conheca primeiramente seu corpo, seu meio am- biente mais préximo, o reino vegetal e animal de sua ter- ra natal, antes de se dedicar ao conhecimento abstrato ¢ 34 entre o mundo espiritual e o mundo material. A negligén- cia de um produz caréncia no outro e a dedicagao cuidado- sa a um produz 0 enriquecimento do outro. 35 Acima me referi ao caminho do sol e a posicéo das estrelas. Apraz-me esclarecer, com pequeno exemplo, quéo importantes eles so, nao apenas em determina dos contos de fada, quando o heréi ou a herofna procu- ram ajuda e orientagdo no sol, na lua e nas estrelas. Certo menino de nove anos, que veio fazer terapia comi- go, entre outras coisas sofria de grandes medos, pois te- mia se perder na cidade grande, onde tenho o meu consul- t6rio, e nao encontrar de novo o caminho para casa. Naturalmente, seus medos expressavam também, mas nao s6, sentir-se perdido internamente. Desenhei para ele na areia um mapa aproximado da cidade. Depois colocamos uma rosa dos ventos com os quatro pontos cardeais. Ele entendeu que sua casa estava a leste do meu consultério. Mas como poderia saber onde € 0 les- te? Observamos e falamos sobre as caracteristicas das quatro estagdes do ano e o caminho do sol durante um dia, e relacionamos as mudangas de estagées. Rapida- mente o menino apreendeu onde se encontrava o sul e, partir disso, onde ficava o leste. E a noite, quando 0 sol nao brilha? Ele observou e apreendeu isso com seu pai, passando a saber que sempre ha determinada estrela que mostra onde fica o norte. Essa experiéneia com o sol e as estrelas Ihe proporcionou grande alivio e crescente seguranga para sua pequena personalidade dentro des- te mundo tao grande. O exemplo talvez parega insignificante. Contudo, quantos adultos sabem em que direcao se encontra a ja- nela da sua sala? Quais plantas, aves ¢ insetos habitam seu jardim? E quantos conhecem o jardim da sua alma? ‘Um cendrio de areia também é uma espécie de jar- dim aw alma, onde o dentro € o fora se encontram. Nele > Pua pessoa po v ‘i entre mundo interno e mundo externo, dentro de um es- x ‘pago protegido. y x 36 ee de observar e apreender a reciprocidade 4, Fig. 4: Jardim da alma. Cenario de uma senhora de 42 anos. Para enfatizar novamente a extraordindria importan- cia da natureza para a alma, gostaria de citar Laurens van der Post, escritor e conhecedor da natureza interna e externa: Ocxame da historia da Europa, da civilizagdo, das quais se originam a maioria de nossos valores, mostra que, com o tempo, surgiu uma ciséo catastrofica na cultura huma- na. Quanto mais racionais nos tornamos, tanto mais per demos 0 contato com a.confianca basica, o “ser conhecido” ea sensacdo de pertinéncia. Essa cisdo evocou a perda de sentido em nosso coragao e em nosso esptrito. E continua: Uma fonte de grandes desentendimentos em nosso mundo moderno consiste na fantasia de que tudo dentro de nds seja subjetivo e que o mundo verdadeiro e objetivo se en- contra fora de nds. Isto é tao absurdo quanto falso_Ngs Yemos um mundo incomensuravelmente objetivo dentro de nds, Esse 60 mundo com 0 qual recentemente os psicdlogos 37 estdo se ocupando cada vez mais. Eles jé constataram que a cisdo, o estado psiquico quase esquizofrénico da humani- dade de hoje, remonta é rejeicao, negligéncia e exploracao desse mundo interno, dessa formidavel selva natural, obje- tiva e maravilhosa dentro de nbs, 0 jardim da nossa alma. Carl Gustav Jung, talvez 0 tinico verdadeiramente gran- de homem que jé conheci, me contou como descobriu, ain- da crianea, para seu grande desgosto, que existem dois estados de consciéncia no mundo: um que ele chamou de consciéneia natural, ou do campo, e outro, consciéneia da cidade. Esta lhe pareceu, como me parece hoje, cada dia ‘menos real, assustador e como um pesadelo, ¢ seu desejo de retornar para a consciéneia natural ou do campo tor- | now-se cada vez maior e urgente. “Quanto mais me fami- |, Hiarizet com a vida assustadora das cidades, maior setornou minha conviceao de que aquilo que conheci como realidade nao era realidade, e sim distoreao e degeneracao do espiri- to humano que se fez passar pela ‘realidade’. Senti sauda- des dessa realidade que, conforme me pareceu, faltava ou | se perdeu. Queria ver realizada a visio do mundo como campo entre rios e florestas, com homens e animais, pe- quenas aldeias banhadas pelo sol, com nuvens pasando, noites claras e escuras — um mundo no qual podem ocor- rer coisas maravilhosas, incertas ¢ imprevisiveis. E 0 mun- do da natureza que nos cireunda seria a paisagem aberta, néo apenas um lugar no mapa, mas 0 mundo de Deus, ordenado por ele e repleto de significado secreto." Laurens van der Post descreve dessa forma os efei- y tosquea negligéncia da natureza externa e interna tém para a alma do ser humano. Também nos pensamentos de Jung, citados por Van der Post, aparece a saudade da .0,)eonseiéncia natural e o significado que Jung da & nature- za, ordenada por Deus e repleta de sentido. A introducao ao Jogo de Areia, do meu ponto de vis- ta, ndo seria completa sem mencionar o paralelismo acen- tuado do Jogo de Areia com a alquimia. Uma vez que pos- *Van der Post, Laurens: “Die Wildnis im Garten der Seele”, in: Sphins- ‘Magazin, H. 32 junhojjulho 1986. 38 so relacionar essa duas areas, intriga-me o fato de que, nos dois métodos, existe ligacdo importante entre a reali- zagao material e concreta com o trabalho teérico e psico- logico do proceso. Na/alquimia denominava-se a rea- ago concreta de “operatio” e 0 trabalho te6rico de “theoria”. Os dois se uniam no “opus”, a obra alquimica. Na alquimia, como também no Jogo de Areia, a imagina-L),, 40 desempenha papel importante, resultando da inter- relacdo de componentes materiais, fisicos e psiquicos. “Yz,__ Em suas Memérias,® Jung descreve no seu trabalho,,. . com os textos alquimicos como pereebeu uma estranha “® concordancia entre a psicologia analitica e a alquimia. Descobriu que a experiéncia dos alquimistas coincidia com as suas préprias, e que o mundo dos alquimistas em cer- to sentido era seu proprio mundo. Com isso encontrou a contrapartida histérica para sua psicologia do incons- ciente, conferindo-lhe dessa forma um fundamento his- t6rico. A possibilidade de comparacao com a alquimia, bem como a continuidade de volta até as correntes religiosas do gnosticismo, por ocasido do nascimento de Cristo, de- ram-lhe substéncia. Ocupando-se dos textos antigos, Jung encontrou lugar para tudo: 0 mundo pictérico da imagi- nagio, 0 material vivencial que ele coletou a partir da sua pratica e as conclusdes que disso tirou — tudo isso ‘comegou a se ordenar com sentido. Em outro lugar importante® Jung escreve que a al- quimia adiantou o trabalho para a psicologia do incons- ciente, e o fez de maneira significativa. De um lado, dei- xando involuntariamente a compilacao de seu simbolismo como valioso material ilustrativo para a moderna inter- Jung, C.G., Erinnerungen, Traume, Gedanken. Zurique’Stutigart: Rascher 1962, p. 208. Jung, C. G., “Mysterium Coniunetionis”, i Freiburg Br: Walter 1971, p. $36. (trad. brasileira: O.C. de C. G. Jung, Petropolis: Vozes 1990, Vol. 14/2, § 404.) 39 pretagio dos sonhos; de outro, indicando através de esfor- 0s voluntarios e sintéticos certos processos simbélicos que encontramos de novo em sonhos de nossos analisandos. Jung escreve ainda que o proceso das polaridades alqui- micas pode representar o caminho de Individuagao de cada individuo, mas com a diferenga de que jamais uma tinica pessoa alcangou a plenitude e extensdo do simbolismo alquimico. A vantagem do ultimo reside no fato de que foi construido através dos séculos, enquanto 0 caso indivi- dual dispde apenas da experiéncia e da possibilidade de representaco limitadas pela eurta duragdo de uma vida. Assim como 0 simbolismo alquimico é extremamen- te valioso para a amplificagéio do material onirico, é tam- bém de grande ajuda na interpretacao dos cendrios de areia, Da mesma forma também podemos ver paralelos entre diferentes ctapas alquimicas e os processos de trans- formagao psiquicos, de modo especifico a Individuacao com o trabalho na areia. Processos psiquicos transcorrem sem- pre segundo padrées parecidos e universais e, por essa razéio, encontramos na estrutura basica processos e sim- bolos que se parecem, tanto na andlise dos sonhos e no Jogo de Areia, quanto na alquimia, embora se expressem por meios e formas diferentes. Parece-me importante voltar a obra alquimica, pois nela encontramos as ligacdes mais importantes com o Jogo de Areia, Jung escreve, em “Psicologia ¢ Alquimia”, a res- peito da obra alquimica: ~ ;_ A base da alquimia é a obra (opus). Esta consta de uma parte pratica, a “operatio” (operagao) propriamente dita, ‘que podemos conceber como experimento com corpos qut- micos... A obscuridade profunda que encobre os procedi- ‘mentos quimicos provém do fato de o alquimista interes- sar-se, por um lado, pelo aspecto quimico de seu trabalho e, por outro, pela descoberta de uma nomenclatura que ut 2a para designar as transformagées animicas que realmen- teo fascinam... A “amplificatio” é recomendada sempre que 40 se trate de vivéncia obscura, cuja vaga insinuagdo deva ser multiplicada e ampliada através de contexto psicolé- gico a fim de tornar-se compreensivel. Por isso na psicolo- ‘gia complexa aplicamos a “amplificatio” na interpretagao dos sonhos. O sonho é uma insinuacdo demasiado vaga para oentendimento, devendo portanto ser enriquecido com ‘o material associativo e analdgico e reforcado até tornar-se inteligivel. Essa “amplificatio” constitui a segunda parte do “opus”, concebida como “theoria” pelo alquimista." A figura 5 mostra de maneira clara os dois lados que cooperam na obra alquimica. A direita pode-se ver um Fig. 5: Exposigao histérica da obra alquimica. A direita, 0 homem pratico que trabalha (“operatio”); & esquerda, abade, monge e leigo que discutem (“theoria”); no meio, 0 vaso alquimico. 1 Jung, C. G,*Psychologio und Alchemie”, in: Gs.W. falter 1973, p. 33285 (0.C. de C. G. Jung, Petrépolis: Vozes 1991, Vo. 12, 41 homem atuando de maneira pratica num laboratério, re- presentando a “operatio”, a realizaco pratica. A esquer- da encontram-se trés homens discutindo, um abade, um monge e um leigo, representando a “theoria”, o lado ted- rico da obra. No meio, no centro do acontecimento, sobre 0 fogao, esta o tripé com o vaso alquimico, no qual aconte- ce a transformacdo lenta da substancia. Parece-me que texto e figura expressam de maneira clara a relagao entre alquimia e Jogo de Areia. No Jogo de Areia também se unem a “operatio”, o trabalho prético na caixa de areia, e a “theoria” a elaboragdo teérica do acontecimento. Em sentido figurado devemos imaginar a caixa de areia como 0 vaso alquimico no qual se realiza a transformagdo da substancia psfquica. E o espago prote- gido, um tipo de titero, titero materno, onde seré possivel transformagdo completa e renascimento. Essa renovacao se configura através do poder curativo e transformador da imaginagao. 42 2 AEXECUCAO PRATICA \stxt2xten yy Na introdugio disse que no Jogo de Areia o trabalho 6 pratico, Por essa razdo, no centro da sala de Jogo de Areia encontra-se uma caixa de areia, com a superficie de cerca 57 x 72 cm na altura de uma mesa. Tal medida corresponde ao campo de visao de uma pessoa que se en- contra de pé diante da caixa. A caixa tem aproximada- mente 7 cm de profundidade e 6 preenchida com_areia fina. Isso permite um trabalho em altura e profundida- de. O fundo da caixa 6 pintado de azul, para que, quando se desejar, possa despertar a idéia de 4gua. A areia tam- bém@pode'naturalmente ser misturada com agua de ver- dade, para tornd-la mais maledvel ou para criar um pan- tano, por exemplo. Como a areia nao seca de uma hora para outra, é aconselhavel ter duas caixas, para que a areia seca também esteja sempre disponivel. ‘Ao lado, o analisando tem grande quantidade de pe- quenas figuras & sua disposicao: pessoas de diferentes épocas e em diferentes fungdes, animais, Arvores, plan- tas, casas e aparelhos correspondentes, construgées sa- gradas e simbolos religiosos, pontes, carros e muito mais, mas também pedras, madeira, bolas de vidroe pedrinhas coloridas de vidro, conchas e matéria-prima de todo tipo para a fabricagdo propria de tudo aquilo que nao est4 disponivel. Nunca ser possfvel encontrar todas as figu- 43 O analisando cria na areia exatamente o que na hora se constela nele de forma espontnea. Esta inteiramen- * te livre para fazer ou deixar de fazer 0 que quiser; 0 ana- lista nao Ihe dé nenhum tipo de instrugao. Ele pode usar figuras, se isso lhe parecer necessario, porém muitas ve- zes os adultos trabalham de maneira plastica com a ras desejadas, mas é justamente isso que estimula o ana- lisando & criagdo prépria, O importante nao é tanto o niimero de figuras disponiveis mas o seu contetido sim- bélico, Deve-se cuidar para que nao sé estejam presentes objetos claros, simpaticos e belos, mas também objetos repulsivos, escuros, maus e assustadores. Importantes também sao figuras simbélicas de outras culturas, para a areia. representagiio do que é “diferente” e estranho na psique. . ‘Alguns terapeutas criticam a forma retangular da caixa. Eles acham que deveria ser quadrada ou redonda, pois essas formas estimulariam a concentragéo e cen- tragdio psiquica. Ao meu ver isso seria totalmente errado: Basta pensar nos efeitos diferentes que emanam de um espaco quadrado, redondo ou retangular. Através da de- sigualdade de suas medidas, o espago retangular provo- ca tensdo, inquietagao, vontade de ‘se movimentar, de andar para frente, JA o espaco quadrado ou redondo traz equilibria, paz e concentragao no meio. Poderiamos eom- pararo processo analitico com a procura permanente pelo centro dentro de um espago descentralizado. As vezes a pessoa esté demasiado a direita, As vezes demasiado & esquerda ou oscila entre alto ou baixo demais (0 que pode ser visto na caixa retangular, quando o analisando tra- balha claramente para cima ou para os lados), até por fim encontrar 0 seu centro, seu circulo pessoal no retan- . gulo da caixa de areia. Aqui gostaria de refletir um pouco sobre Seas da caixa de areia, No inicio da sesso, 0 analisand-encon- tra a caixa neutra, somente preenchida com areia, leve- mente alisada, Todos sabemos que as manifestagdes de vida precisam de espago para se desenvolver, Todavia, espagos vazios também permitem que a vida surja, pois Tevam a pessoa a preencher 0 espaco com vida7, . ede Ba opi ‘ . - . Ammann, Ruth, Traumbild Haus. A2.0, Insb. Kp. “Lelsensrdume — Fig. 6: Caixa de areia no recinto. Lebenstraume” 45 Fig. 7: Figuras. ‘Tomemos alguns exemplos simples. Colocamos uma folha de papel em branco diante de uma crianga e alguns lapis de cor — normalmente ela comecaria a desenhar sem hesitar. Ou damos a erianga uma caixa de areia e algumas figuras — ela rapidamente comecaré a brincar na areia. Cria montanhas e vales, lagos ¢ florestas, cons- tr6i ruas e casas, coloca homens e animais dentro, até que 0 espago vazio esteja preenchido com vida. Sempre 46 partindo da premissa de que a crianga pode simplesmen- te brincar e nao ser forcada a apresentar um desempe- nho através da representagdo, também a caixa de areia intocada ser rapidamente preenchida com imagens vi- vas do mundo interno da crianga. Essas imagens exis- tem, querem fluir para fora, precisam de espago para isso. Por isso, criangas com dificuldades psiquicas sio quase que magicamente atrafdas pela caixa de arcia na sala de // terapia. Subentende-se que nao s6 as criangas, mas também ),_ os adultos precisam de espagos vazios de toda espécie, , ““ para poder deixar Muir sua fantasia e criar suas imagens" ” internas-A estreiteza @ a saturacao de novos espacos vi- tais, que nao permitem mudangas ou reconstrugées, sao inimigas da fantasia e do processo vital. Isto nao vale“@2. somente para o mundo externo, mas, em sentido figura- do, também para os espagos vitais da alma. As cabecas estéo saturadas de conhecimento e informagdes de toda espécie, os ouvidos com o barulho da rua, do radio e dos ruidos internos, os coragdes repletos de emogées e senti- mentos represados. D 4 Neos ¥y worn’ Por esse motivo é bem compreensivel que os adultod* também se sintam espontaneamente atrafdos pela areia“y intocada, onde tudo ainda é posstvel, principalmente por- que podem se dedicar a criagdio de imagens, livres e sem obrigagio de resultados. Mas nao podemos esquecer que as pessoas que procuram ajuda num consultério de psi- coterapia geralmente nao conseguem criar de forma des- preocupada. Freqtientemente tém medo da caixa de areia intocada ou da folha em branco, pois do vazio poderiam vir ao seu encontro figuras sombrias, demonfacas ou as- sustadoras. Em casos de pessoas com disturbios narcisistas, as fantasias de grandiosidade ameacam crescer infinitamen- te, rompendo os limites do que seria razodvel e realizavel 47 4, 79% 7 para elas. Por esse motivo a caixa de areia 6 | Ls determinado espaco, que lhe propicia grandeza humana- “mente abrangivel com a vista e que evita o transborda- mento da fantasia. ‘Mas em todos os casos pode-se constatar que a caixa de areia exerce grande poder de atragdo sobre criancas e adultos, pois eles tém necessidade humana profunda de dar forma e representar 0 seu mundo. Também sentem que esse fazer 6 criativo, Ihes faz. bem e tem propriedades curativas. Mas a maioria tem, ao menos no comego, mui- to medo disso. ~ A caixa de areia como recipiente, no qual ocorre a transformacao anti hermeticum, 0 vaso hermé he f 10 dos alquimistas. J vaso, a \, “cratera, é prinefpio feminine e significa originalmente um recipiente preenchido com espirito, enviado a terra pelo Fig. 8: Da areia emerge um espantalho. 48 ‘a, pode ser comparado ao vas. verso" deus da criagdo, para que aqueles que almejassem alcan- car a consciéncia superior pudessem nele ser batizados. Era um tipo de titero de renovagio e de renascimento espiritual. No entanto, essa imersdo em algo estranho assusta e desperta medo no homem. O analisando s6 consegue ultrapassar esse medo e entregar-se com confianga ao proceso terapéutico den- y/ tro do que Dora Kalff chama de “espago livre e protegi- do”. Referindo-se a crianga em terapia, Dora escreve: ~ Este espago livre na situagao terapéutica ocorre quando 0 terapeuta consegue aceitar a crianca plenamente, de tal maneira que também ele participa internamente de tudo o ‘que acontece, com a mesma intensidade que a prépria crian- a. Quando ela percebe que néo esté sozinha em seu apuro e também nos momentos felizes, sente-se entao livre e pro- tegida para se manifestar. Tal relacéo de confianca é muito importante, pois pode eventualmente reconstruir a situagdo da primeira fase, @ da unidade mée-filho. Com isso se estabelece a situagdo de serenidade que contém ao mesmo tempo todas as forgas necessdrias para o desenvolvimento da personalidade, em seu germe intelectual e espiritual. E tarefa do terapeuta reconhecer essas forcas e protegé-las em seu desenvolvimento, como o guardiao de um bem va- lioso. Como “guardiao’, representa para a crianga 0 espa- ¢0 ea liberdade e, ao mesmo tempo, os limites.” Lee. o Parece-me que essa bela transcricdo do significado abrangente e importante do “espaco livre e protegido” corresponde em sua esséncia também A postura tera- péutica que o analista assume diante de seu analisando adulto. Gostaria aqui de frisar novamente que o forma- to da caixa de areia, abrangendo a superficie do campo de visio, é uma boa medida humana, que limita o anali- sando, mas que também o acalma e concentra. Ao mes- "°Kalff, Dora M,, Sandspiel. A.a.0.,p. 15. 49 vy mo tempo permite que o analista reconhega e ordene os, miiltiplos elementos, confusos e contraditérios, de um cenario com um sé olhar. Prezo muito a possibilidade de minha concentragao sobre esse campo de visio, pois, com isso, de um lado resta muita energia para a assi- milagao de outras informagées, como ouvir o que 0 ana- lisando me conta sobre 0 cendrio ou sobre o dia-a-dia, sentir 0 estado fisico do analisando ou refletir sobre 0 significado do que acontece na areia, Por outro lado, em momentos importantes, disponho da possibilidade de focar toda minha energia no que ocorre na caixa de areia, pois € 14 que se encontra 0 ponto nevrlgico do processo terapéutico e da relagao entre analista e ana- lisando. ‘Todavia, por que usamos como material a areia e nao por exemplo argila? Uma analisanda disse algo muito bonito a respeito: “Pedras so matéria muito antiga. Areia Fig. 9: Cenario de um homem de 35 anos, que trabalhou de modo muito meditativo. 50 jomem de 40 anos. é matéria mofda através do tempo. ‘Tem o mesmo signifi- cado que a eternidade. Areia é matéria superada, quase liquefeita, espiritualizada”. De fato, areia em seu estado seco ¢ escorregadia, quase liquida, é leve e tem no toque com as maos algo de macio, carinhoso. Mexendo com as maos na areia seca, tornam-se visiveis formas fluidas como na agua. Aareia seca pode ser assoprada, resultando em formagées deli- cadas que comumente sé podemos ver na interagao en- tre areia e vento. Sao evocadas imagens do deserto (ver figuras 9 ¢ 10). Brincar com a areia seca é benéfico, lem- brando nao sé as brincadeiras da infancia, mas talvez também os toques carinhosos da mée ou de outra pessoa querida, que trazem sensagies de felicidade. Em outras pessoas, 0 toque da areia evoca grande tristeza, e elas choram comovidas, porque de repente se dao conta de sua necessidade de carinho, de serem acariciadas. O con- tato corporal intimo entre mie e filho tem papel muito importante ndo sé para o bem-estar e crescimento da 51 crianga na primeira infancia, mas também na vida poste- alma que se tornam visiveis. Todos os analisandos (e rior as pessoas anseiam proximidade fisica e toques ca- também o analista) os levam consigo em seu interior, rinhosos. apés a sesso. Ali clas agem a posteriori, agem sobre a a. Quando se mistura a areia com agua, ela fica cada psique e disso pode resultar uma transformagdo, que vez mais pesada e escura, adquire qualidades da terra, pode se manifestar futuramente em nova imagem. Ex- “po, fica firme e maleavel. Daf surgem paisagens ou imagens ternamente a imagem desmorona, a areia assume no- y? _ tridimensionais de toda espécie (ver figura 11). (Gostaria vamente sua forma original, isto é, ser reconduzida , 2qui de mencionar que pessoas que nao conhecem ou nao novamente a ela pelo analista apés a saida do analisan- > f querem reconhecer seu lado sombrio, muitas vezes tem do. Poder-se-ia dizer também que o analisando encon- oe dificuldades para trabalhar em trés dimensées.) As plas- tra em todas as sessdes o amorfo, a partir do qual cria ticas de areia contudo nao permanecem, elas nao ficam um pedago de mundo. Leva consigo, dentro da alma, sua SY y mais firmes e perenes depois de secar, como uma figura criagaéo de mundo, enquanto externamente ela desmo- ye de argila. Em pouco tempo a forma se desfaz, a imagem rona para o amorfo. O mundo interno, para onde leva we de areia desmorona. sua imagem, é tao importante para ele como o mundo z Justamente isso me parece muito importante: ce- externo, que conhecemos como o mundo dos objetos, que nérios de areia nao so obras de arte que devam perma- 6 realmente mais verdadeiro, pois é infinito e eterno. necer, também quando s4o momentaneamente muito Assim, a areia 6 adequada tanto como meio de repre- belos e impressionantes. Nao devem permanecer no sentagao do mundo interno (como disse minha anali- mundo externo, nao devem ser fixados. Sao imagens da . sanda, ela é “matéria mofda pela infinidade do tempo, Iembra a eternidade...”), como também como represen- tacdo do mundo externo, que se modifica sempre, se cons- tréi e se desintegra novamente. 0 mundo externo é ex- tremamente importante para a formagdo da imagem interna, mas esta age somente na psique. Para o proprio controle do proceso terapéutico e para a documentacao, o analista faz um_esbogo de cada cend- rio, anota tudo o que for importante e faz um ou mais diapositivos dele. Ao fazer isso é importante que a foto _ seja tirada a partir da posigéio do analisando, para que se possa usar corretamente 0 esquema de interpretagao es- pacial (ver p. 83). Também me parece importante obser- var a luz durante o jogo, reproduzindo-a na fotografia : através de uma lampada fotografica, pois pode acontecer de as figuras que esto na sombra realmente estarem Fig. 11: Cenario de um homem de 38 anos. sendo pensadas pelo analisando como aspectos sombrios 52 5B e (wer fig. 36). O flash nao 6 adequado, pois com ele os jogos de sombras importantes para 0 reconhecimento das es- truturas ficam menos evidentes. Freqiientemente a es- trutura da base da areia é t4o expressiva quanto as figu- ras nela posicionadas. 54 3 POR QUE OS CENARIOS NA AREIA SAO NECESSARIOS? No capitulo anterior descrevi quais recursos mate- riais so postos a disposigao do analisando para o Jogo de Areia. Contudo, por que essas imagens sao desejéveis? Por que queremos ativar ou reativar essas imagens e si- tuagées animicas, na grande maioria inconscientes, e tor- nando-as visiveis na areia? Para compreender isso, pro- ciso primeiramente fazer alguns comentarios sobre o que chamamos de “consciente” e “inconsciente”. ‘Todo ser humano, em algum momento, sente que sua personalidade total engloba muito mais do que essa peque- na parte que ele conhece de si conscientemente. O mesmo acontece com 0 mundo inteiro e 0 universo. Quanto mais tomamos consciéncia dele, tanto mais reconhecemos quan- tondio sabemos. Assim como somos parte do cosmo enquan- toseres humanos conscientes, da mesma forma o nosso lado inconsciente estd entrelagado com o inconsciente coletivo,/ A maioria das pessoas reconhece em si, ou nos ou; - tros, varias espécies de consciéncia. Conhecemos a ons ciéncia austera, pobre de emogées, composta principal- }% mente de fatos inequivocamente apreensiveis, e que se expressa através de pensamentos légicos coerentes. Ba consciéncia racional. ‘Também conhecemos uma consciéncia mais dificil de deserever, que se expressa mais através de imagens, 55 Lovee emogées, sentimentos e intuigdes — ela nao é inequivo- camente austera, mas tem varios sentidos e é fluida. Essa espécie de consciéncia nao se direciona de modo linear e coerente, mas procura apreender contetidos através do lento e amplo entrelagamento de informagées miltiplas do mundo externo e interno, a fim de formar uma ima- gem global. Esse tipo de consciéncia pode parecer difusa e pouco clara, mas de modo nenhum precisa ser assim. O Bu de uma pessoa nesse estado de consciéncia pode ser muito trangiiilo e estavel. f, no entanto, necessdrio mui- to mais tempo, paciéncia e empatia para ouvir e captar uma pessoa que vive nessa espécie de estado de cons- ciéncia. Muitas vezes se diz que as mulheres tém conscién- cia miltipla ou difusa, ¢ que seu pensamento é ildgico. Isso pode estar certo, mas de modo nenhum deve ser ava- liado de modo negativo. Essa maneira de perceber as coi- sas de modo mais amplo e entrelacado é muito mais co- lorida, variada e abrangente. Meios-tons e semitons podem ser ouvidos, pensamentos perdidos recapitulados e idéias emergentes serem captadas. Tal consciéncia fi- gurativa, imaginativa est mais perto do inconsciente, do fundo criativo da alma e, portanto, é mais esponta- nea, movimentada e viva do que a consciéncia racional factual. Vivenciamos ainda uma conseiéncia corporal, a mais dificil de ser descrita por meio de palavras. S6 podemos tornar corretamente acessivel um determinado nivel de consciéncia por meio do seu modo proprio de expressio.A consciéncia corporal sé pode ser vivenciada e descrita com acerto através do corpo, de forma evidente na danca e mais oculta no dia-a-dia, na vivéneia e movimentagio do corpo. A consciéncia corporal também pertence a rede sutil de possibilidades de percepcdo e expresso da esfera ins- tintiva. Por exemplo, vivenciamos a consciéneia corporal 56 Compo em um relacionamento amoroso {ntimo ou na relagao pri- méria mée-e-filho, em que acontece essa troca sutil, néo verbal e nao imagética de energias corporais. Nao é a toa que a mae ou o pai carregam a crianca aconchegada no coracao ou na barriga, pois é na regido da barriga que experienciamos o centro da consciéncia corporal. Os diferentes tipos de consciéncia descritos esto totalmente desenvolvidos em algumas pessoas, ou seja, conscientemente acessiveis. Em outras estéo pré-cons- cientes, inconscientes, atrofiados, feridos, em todo caso nao totalmente acessiveis, isto 6, na grande maioria, pas- siveis de desenvolvimento, No método terapéutico do Jogo de Areia, na fase criativa primeiramente séo solicitadas e desenvolvidas a consciéneia corporal e a consciéncia imagética, imaginativa, e depois, na interpretagao das imagens, a consciéncia racional. Todavia, o que entendemos por inconsciente, muitas vezes também chamado de subconsciente? O inconscien- te ndo consiste no que esta “subconsciente”, isto 6, algo que esta abaixo da nossa consciéncia, embora o tratemos como se fosse de menos valor, algo a ser diminuido ou reprimido. O inconsciente vem ao nosso encontro de to- dos 0s lados, da matéria, cujo espirito desconhecemos, do nosso préprio corpo e da nossa psique, cuja esséncia nao sentimos nem compreendemos, da estrutura universal, cujas relagées e leis nao reconhecemos, e da alma coleti- va, cujo lado inconsciente chamamos de Inconsciente Coletivo. Como diz 0 conceito, o inconsciente é tudo aqui- Jo que nao € consciente e de cuja existéncia talvez tenha- mos apenas leve ou nenhuma nogao. Mesmo assim ele esta presente e em atividade. Quantas coisas podem no existir para uma pessoa por que lhe sao inconscientes, apesar de objetivamente existirem, ¢ ilustrado por um pequeno exemplo aconteci- do em meu consultério. Muitas vezes meus analisandos 57 Ry £ dizem: “Mas agora vocé comprou muitas figuras novas para 0 Jogo de Areia, Isto ou aquilo eu nunea vi. Isto é Na maioria das vezes preciso responder que as fi- nov ~ guras nao sao nada novas, e que estéo na prateleira ha e anos. Entdo meus analisandos se surpreendem com 0 fato de que objetos que existiam objetivamente nao estavam disponiveis para eles, pelo simples fato de que nao os viam de modo consciente. Isso mostra que uma pessoa de fato s6 consegue en- xergar o que Ihe é consciente dentro e fora de si. No en- tanto, pode-se induzir uma conscientizagao, quando os pais, professores ou terapeutas, no momento adequado, chamam a atengao para realidades externas. Como disse anteriormente, essa é a razdo pela qual a observacao acurada do cenario ¢ tao importante, pois ¢ através dela que os elementos externamente representados podem também ser psiquicamente conscientizados. O inconsciente é, portanto, um fluxo intermindvel de realidades que nao podem, ainda nao puderam ou ja- mais poderdo ser apreendidas pela nossa consciéncia. O que pertence, pertencia ou poderia pertencer & nossa per- sonalidade individual chamamos de inconsciente pes- soal. Jung chamou de Inconsciente Coletivo o que per- tence & alma da humanidade em geral. Essa camada basica da psique humana é o solo fértil, a matriz da cons- ciéncia, que nela se enraiza e dela brota. ‘As reagoes animicas do ser humano, assim como tam- bém suas atividades intelectuais, sdo influenciadas por essa base primaria e nutridas energeticamente por gru- pos de imagens com tonalidade emocional — os assim chamados complexos, que se agrupam ao redor de um ele- mento nuclear. Determinados complexos parecem ter sido através de experiéncias de vida. Muitos deles, porém, parecem ser estruturalmente inatos em cada ser huma- no, € isso se manifesta pelo fato de que eles provocam 58 emogées, sentimentos, arranjos imagéticos e relagdes se- melhantes no ser humano de épocas ¢ lugares diferentes, sem qualquer influéncia externa. Jung chama esses com- plexos genuinos de arquétipos, que funcionam como ele- mentos nucleares dinémicos na psique humana. Eles sao, entre outros, os geradores de imagens simbélicas da mes- ma espécie ou similares no espirito de povos e culturas diversos, Por causa da existéncia desses arquétipos e de seu efeito energético na psique pode-se dizer que deter- minadbs estados e processos humanos sempre se expres- sam por meio de imagens simbélicas semelhantes, seja na andlise dos sonhos, seja no jogo de areia, nos contos de fadas e nos mitos ou na alquimia. Se designarmos o inconsciente de solo fértil para a consciéncia, devemos sempre lembrar que a psique pes- soal e coletiva possuem aspectos claros e escuros, quer dizer aspectos construtivos, que favorecem a vida, e des- trutivos, hostis a vida. Os contetidos do inconsciente po- dem ser, de um lado, a causa de uma manifestagao de dissolugdo animica, observavel nas psicoses, e de outro lado podem ser fator tinico de cura, como podemos verifi- car nas terapias. Por isso, é da maior importancia o modo como 0 individuo e o coletivo lidam com os contetidos do inconsciente. ‘Muitas pessoas se fecham para as influéncias do in- consciente, talvez, por medo de nao estar a sua altura, talvez por inércia ou ignordncia, mas talvez também porque a aculturacao do ser humano requer consciéncia orientada para um objetivo racional, devendo por isso excluir certas influéncias do inconsciente. Contudo, dessa forma as for- cas curadoras e complementares, de que necessitamos para a manutengdo da satide psiquica, também so excluidas. Jung formulou a questo da seguinte maneir Precisamos dos contetidos inconscientes para complemen- tar os da consciéneia. Se a atitude consciente fosse “di- 59 sel Cerro rigida” um minimo que fosse, 0 inconsciente poderia fluir de maneira completamente espontanea... Se a fungdo consciente nao fosse dirigida, as influéncias opostas do in- consciente poderiam manifestar-se de modo desimpedido. Mas é precisamente o fato de ser dirigida que as elimina. Isto, naturalmente, nao inibe a contra-reagao que se verifi- ca, apesar de tudo. Mas sua influéncia reguladora é elimi- nada pela atencao eritica e pela vontade orientada para um determinado fim, porque a contra-reagao como tal pa- rece incompativel com a direcdo da atitude. Por isso, a psique do homem civilizado nao é mais um sistema auto- regulador.® Desta afirmagao depreende-se que, de um lado, a psi- que seria um aparelho auto-regulador, caso as influén- cias reguladoras do inconsciente pudessem agir de modo natural. Por outro lado, a civilizagéo requer uma cons- ciéncia duradoura, homogénea orientada para um objeti- vo que se contrapde com certa forca e determinagao as circunstancias que eventualmente nao sao pertinentes ou que representam influéncias do inconsciente que amea- gam a personalidade. Nao é a toa que, por muito tempo, 0 hemisfério esquerdo, ligado ao pensamento logico e obje- tivo, era visto como dominante e mais valorizado. O mun- do das representagdes imagéticas, o hemisfério direito, associado A emotividade, est4 mais préximo do inconsci- ente, é mais irracional e, portanto, ndo desejado por de- terminados processos civilizatérios. }, _Nesse sentido, a funcao do hemisfério direito nao é inferior, mas teve de ser deixada para tras em favor do “processo civilizatorio. Certas prioridades so necessé- ‘rias para o desenvolvimento do individuo, e também para a historia da humanidade, mas apenas enquanto servem 3 Jung, C. G., “Die transzendente Funktion”, in: Gs. W. Vol 8. Olten/ Freiburg iBr: Walter 1971, p. 90ss. (0.C. de C. G. Jung, Petrépolis: Vozes 1998, Vol. 8, §§ 1315s.) 60 ao desenvolvimento e nao a inibigdo. Todavia, assim que sobrevém 0 endurecimento ¢ a estagnacao, 0 “outro” lado deve novamente ser incluido. Metaforicamente falando, a humanidade pode saltar para frente numa perna s6 por algum tempo, para treiné-la, mas depois de certo tem- po precisa desenvolver a outra perna, caso contrério per- de o equilfbrio da totalidade e fica aleijada. a Peete Na psique da maioria das pessoas, muitas possibi- lidades latentes, que existem no inconsciente, nao so le- > 4,. vadas em conta pelos processos conscientes; os impulsos *> « € 0s sonhos, que sao as manifestagdes mais espontaneas 4,,~ do inconseiente, nao sao percebidos ou até sao reprimi-b_ 7” dos. Assim, a fungdo reguladora do inconsciente éem gran- de parte desligada pela consciéncia, “mas apesar disso acontece mesmo assim” — como disse Jung. Isso.guen, dizer, expressando de maneira. simplificadjaQNGGiSGSiarn conteridos nao considerados, porém importantes Dataea equilibrio psicolégico, se expressam de outra forma, tal- °% vez.como fobias, depressoes.ou distrirbios corporais. <<,“ O disturbio na auto-regulagdo da psique pode ter’4, ~” inicio muito cedo na infancia, embora as criangas dispo- nham de pouca atengio critica e vontade objetiva, e as influéncias reguladoras do inconsciente ainda podem atuar espontaneamente. Mas as criangas, pela indife- renciagao inicial entre seu mundo interno e externo, ain- da vivem em certa identificagao com seus pais, e muitas vezes nela siio mantidas. Por isso tais criangas séo per- turbadas na sua auto-regulacdo, primeiramente pela atengao critica e vontade objetiva dos seus pais, e pelos seus contetidos psiquicos nao vividos e, por causa disso, inconscientes. Mais tarde somam-se as influéncias da escola que, pela sua funcdo de aculturar a crianga, deve estimular 0 direcionamento da consciéncia; as vezes, po- rém, exige demais. Mas a possibilidade de auto-regulagio ainda seria possivel nas horas livres das criangas, caso 61 30 pudessem viver as tendéncias espontaneas de sua alma. ‘Todos sabemos como é tal situaco, pois muito freqiien- temente essas “atividades reguladoras” também sao pro- gramadas, ou seja, ndo se originam da alma individual da crianga, e sim da cabega dos adultos. Mesmo para educadores responsaveis ¢ tarefa dificil permitir que a auto-regulagao de corpo e alma aconteca. Pois 6 exatamente disso que se trata: educacdo e limites sdo necessdrios para a formagao da personalidade e para a adaptagaio ao meio ambiente; contudo, devemos deixar que aconteca aquilo que quer acontecer a partir do ni- cleo da alma da crianga. Fazer uma coisa endo permitir outra: eis a dificil tarefa! Reflitamos sobre 0 que Jung escreveu sobre o arqué- tipo da crianga: Acrianga representa 0 mais forte e inelutdvel impulso do ‘ser, isto é, 0 impulso de realizar-se a si mesmo. E a im- possibilidade de ser-de-outra-forma, equipada com todas ‘as forgas instintivas naturais, ao passo que a conscién- cia sempre se emaranha em uma suposta possibilidade de ser-de-outra-forma, O impulso ecompulsdo para a auto- realizagao ¢ lei da natureza e, por isso, tem forga invencivel, mesmo que 0 seu efeito seja no inteio insignificante e im- provével."* Jung fala aqui do arquétipo, cuja forma abrange muito mais do que a crianga humana. A “crianca” signifi- cao novo, o vir-a-ser, e também nova atitude de conscién- cia, idéia nova, nova época cultural. Por exemplo, 0 me- nino Jesus 6 um simbolo carregado com 0 méximo de energia para o que é novo, o curativo, para a formacdo de nova cultura religiosa. Jung, C. G., “Zur Psychologie des Kindarchotypus", in: Gs. W. Bd. 9/1. Olten/Freiburg iBe: Walter 1976, p. 184. (0.C. de C. G. Jung, Petropolis: Vo- ze 1988, Vol. 9/1, § 289.) 62 ‘Todavia, também na crianga humana aparece sob forma individual essa “urgéncia inevitdvel e intensa de se realizar”, da mesma maneira como mais tarde a fora do arquétipo da crianga quer ser realizada na vida de cada adulto, Mas essa energia incrivelmente forte, im- pulsionando em diregao ao desenvolvimento e a realiza- ga0 dos potenciais do ser humano, é desde muito cedo atrofiada ou soterrada. ‘Ao processo que tem por objetivo o desenvolvimento de uma personalidade individual completa e madura cha- mamos na psicologia analitica de processo de Indivi- duagao. No sentido junguiano a individuagiio nao tem nada que ver com individualidade egocéntrica. Ao con- trdrio. Leiamos 0 que Jung escreveu: [A individuagaol... énecessidade natural; e a coibigdo dela por meio de regulamentos, preponderante ou até exclusi- vamente de ordem coletiva, traria prejutzos para a ativi- dade vital do individuo. A individualidade ja é dada fisi- ca e fisiologicamente e dat decorre sua manifestagao psicolégica de modo correspondente. Pér-the sérios obsta- culos significa deformagao artificial. E dbuio que um gru- po social constituido de individuos deformados nao pode ‘ser instituigdo sauddvel e capaz de sobreviver por muito tempo, pois 86 a sociedade que consegue preservar sua co- esdo interna e seus valores coletivos, no méximo de liber- dade do individuo, tem direito @ vitalidade duradoura. Uma vez que o individuo nao ¢ ser tinico, mas pressupée também o relacionamento coletivo para sua existéncia, também o processo de individuacao néo leva ao isolamen- to, mas ao relacionamento coletivo mais intenso e mais abrangente.* E importante esclarecer o significado da Individua- do, porque muitas vezes deparamos a imagem equivoca- ‘Jung, C. G., Gs. W. Vol 6, Olten/Freiburg iBr.: Walter 1960, p. 477 sobre idividuation. (0, C. de C. G, Jung, Petr6polis: Vozes 1991, Vol 6, § 853.) 63 > da de que a psicologia junguiana estaria somente crian- do individualistas egocéntricos. Mas esse jamais pode ser 0 objetivo da personalidade madura, pois na relagao a responsabilidade para dentro anda de méos dadas com a responsabilidade para fora. Além de ser individuo, vive- mos ainda em diversas relacdes pessoais mais ou menos estreitas, como parte de um grupo ou do coletivo. ‘Voltemos para o fato de que a urgéneia para o impul- so de auto-realizagaio de todos os seres € lei da natureza. ! Muitas pessoas, e especialmente muitos pais, nfio conse- guem aceitar isso. Nao s4o capazes de aceitar o fato de 4 que de uma semente_de girassol nasce outro girassol ¢ sy no uma rosa, até quando ficam diariamente diante da plantinha, achando que ela deveria tornar-se rosa. A | crianga somente adquire confianca bésica no seu proces- so vital quando pode se tornar “girassol”, se for isso que esta dentro dela. Se a crianca-girassol tiver de tornar-se \ rosa, 6 como se os pais ou o seu meio ambiente vestissem nela uma pele estranha, sob a qual o seu préprio ser se ) atrofia ou, no pior dos casos, se sufoca, Essa pele estra- nha é feita pelas projegdes, que o meio ambiente atribui adaptar-se a essa pele estranha ou até contribuir para a formagao dela, mas a sua esséncia individual nao é per- cebida sob essa pele, e terd, portanto, poucas chances de desenvolvimento. ‘A experiéncia da terapia mostra, porém, que toda crianga tem no seu inconsciente um saber sobre o seu potencial animico e suas possibilidades de cura. O adulto também tem esse saber dentro de si, mas é 6bvio que sua “couraga” 6 muito mais intranspontvel, e que Ihe custa muito mais tempo e esforco para alcangar as profundezas do inconsciente. Contudo, quando, numa situagao anali- tica, conseguimos ativar as forcas vitais do Si-mesmo de uma pessoa, existe a possibilidade da cura e completude vl rerianga, ou melhor, joga sobre a crianga. A crianga pode 64 da personalidade. Como conceito empirico, 0 Si-mesmo engloba a unidade e a totalidade da personalidade inte- gral, consciente e inconsciente. Dele parte um efeito ordenador, centralizando a personalidade e os fenéme- nos psiquicos de maneira harménica. Mas 0 modo como essas forcas agem num individuo singular, como é forma- do o caminho do desenvolvimento pessoal de um ser hu- mano, é sabido somente pela propria pessoa, ou seja, ela consegue saber, caso se dedique de maneira responsavel a voz da sua alma. Por esse motivo partimos do principio de que o ana- lisando deve e pode encontrar, & sua maneira, as forgas curativas ou de desenvolvimento em si mesmo. Através das manifestagses do inconsciente, sonhos, fantasias, imaginagies de toda espécie, em nosso caso, nos cenérios na areia, ele procura 0 contato com seu Si-mesmo, ou, dito de maneira mais simples, com 0 “outro” lado de sua psique (e do seu corpo), que foi reprimido ou esquecido, ‘ou que nunca teve energia para adentrar a consciéncia. Na situagao analitica ele encontra 0 espaco livre e prote- gido, em que pode relaxar sua consciéncia e deixar agira fendéncia de sua alma & auto-regulagio. O analista nao pode “fazer” ou viver o processo animico pelo seu anali- sando, mas pode vivencid-lo com ele “com olhar amigo e atento”. Lop 8 42 “ae a 4 AIMAGINACGAO myics Neg > bared {No método do Jogo de Areia o analisando tem a pos- sibilidade de permitir a entrada de imagens compensat6- rias necessarias e de concretiza-las por meio da forca de sua imaginagdo: Essasimagens formam-see realizam-se mediante a configuracao e, por meio da ressondncia fisi- ca, emocional e anfmica, elas se tornam vivéncia, ima- gens vivenciadas. Segundo minha experiéncia, existem dois caminhos que levam do contetido psiquico incons- ciente ao cendrio vivenciado, e que eu gostaria de seguir s palavras “o analisando tem a possibilida- de de permitir a entrada de imagens compensatérias” com ponderagao. Com efeito, quando observo meus analisan- dos junto a caixa de areia, posso muitas vezes perceber a entrada sutil de uma corrente. No comego de uma ses- so, As vezes, a sentam-se indecisos, mergulhados em si mesmos, dizendo nao saber o que fazer com a areia. En- tao esperamos calmamentej No Jogo de Areia nao é ne- cessario “fazer” nada, mas pFocurar, na medida do possi- vel, desligar a consciéncia tensa que “quer”, sempre voltada para o fazer e o desempenhar, permanecendo-se relaxados e abertos para absorver o que ver ao nosso encontro]Isso naturalmente pressupée, como descrito an- teriorménte, atmosfera tranqiila, livre e protegida no 66 Co mats ambiente. (Também deveria estar livre do “querer” e do impeto de desempenho do analista!) ‘A partir dessa atitude receptiva parece que as maos de meus analisandos repentinamente captam a corrente, movimentando-se de modo fluente através da areia edei- Com isso, o processo de criacao comega a fluir e, aos pou- cos, procura uma forma valida) E importante para mim qué no se diga corretamen- 5 ~ te que o analisando|“faz” um cenério, e sim que da forma & imagem ou ao impulso que lhe flui do inconsciente. Concretiza a corrente na imagem que movimenta sua alma nesse momento e lugar. O tempo e o lugar da sessfio. sao determinantes para 0 acontecimento, justamente 0 que Dora Kalff chama de “espaco livre e protegido”, pois nele se constelam forcas psiquicas especiais. As criangas, por exemplo, sabem muito bem que na sua sessdo de te- rapia 0 espaco e a minha pessoa esto inteiramente A sua disposicao. Isso confere um peso especial a tudo o que se passa na sessio, favorecendo a individuagao e a autocura da crianga. — ‘A corrente que o analisando capta é alimentada pe- las forgas que agem inconscientemente dentro dele, e que, para poderem ser conscientizadas, precisam ser pi meiramente formadas e tornar-se reconheciveis. Tais energias sio absorvidas com 0 corpo, especialmente com a sensibilidade das maos. Como sabemos por inimeros exemplos, as maos so érgios muito sensfveis. Podem ab- sorver forgas e também passd-las adiante. Sao as mela, doras entre os mundos espiritual e material{No caso es- pecifico do Jogo de Areia, imagem interna espiritual 60 transformada por meio das maos em uma imagem exter- na, concreta, que ndo s6 é visivel, mas também mal, Ou a transformacao ocorre na diregao contraria. As méos captam a corrente inconsciente, torna-a visivel e palp4- 67 xando formas de rios, como as que conhecemos na agua o vel através da areia, fazendo com que uma imagem in- na seja despertada ou um acontecimento interno seja festimulado. Em todo caso, as mos representam uma shite entre a realidade anfmico-espiritual e a material. Disso resulta que pessoas incapazes de agir “com as préprias maos”, de “manipular a realidade”, nao conse- guem tornar visiveis suas forgas e imagens internas no mundo concreto e, por essa raziio, nd conseguem trans- miti-las efetivamente as outras pessoas. Embora tais pessoas tenham um mundo rico de imagens e vivéncias internas, sua transformacio e mediacdo na relacao com ‘0 mundo externo por meio das maos (ou da linguagem) encontra-se bloqueada. Como na maioria das vezes a ra- 240 para essa incapacidade de aciio é 0 medo, é de extre- ma importancia que o analisando possa praticar a capa- cidade transformadora e mediadora de suas maos no “espaco livre e protegido” da atmosfera terapéutica. Do entrelagamento da realidade interna e externa, espiritual e fisica, surge o cendrio, uma forma da imagi- nagao. Acapacidade de imaginar e a forga da imaginacao s&o algo muito especial no ser humano. Por esse motivo continuarei a aprofundar, aprofundando um pouco mais a imaginagao, tentando captar sua esséncia a partir de diferentes perspectivas. No livro “Psicologia e Alquimia”, de C. G. Jung, ha um trecho importante sobre a esséncia da imaginagao. Jung escreve sobre a natureza psiquica da obra alquimica, do “opus”, composto de “theoria”, a parte espiritual e filo- s6fica, e da “operatio”, a execucao pratica e material. Em determinado trecho ele cita 0 alquimista Ruland, que dis- se: “A imaginagao 6 o astro no ser humano, 0 corpo celestial ou supracelestial”. Jung comenta a afirmagdo de Ruland: Esta definigdo surpreendente dé enfoque particular aos processos da imaginagao ligados & “opus”: néo devemos de forma alguma encard-los como fantasmas insubs- 68 prey Uundanrty tanciais a modo de imagens da fantasia, mas como algo corpéreo dotado de um “corpus” sutil de natureza semi- xe espiritual... Assim sendo, a “imaginatio” ou ato de imagi- [nar também é atividade fisica que pode ser encaixada no ‘clo das mutagdes materiais; pode ser causa delas ou en estava numa relacao ndo 6'coin 0 inconsciente, mas dire- ‘amente com a matéria que ele esperava. transformar me- diante a imaginagdo. A curiosa expressGo “astrum” (astro) é termo de Paracelso, significando neste contexto algo de semelhante a “quintesséncia”. A “imaginatio” € pois extra- foconcentrado das forcas vivas do corpo da alma... Devi- do & mistura do fisico e do pstquico nao se pode dizer ao certo se as transformagdes decisivas no proceso alquimico devem ser procuradas no dmbito material ou no espiri- tual. Na realidade, esta questo estd malformulada. Na- quela época néo havia a alternativa ow /ou, mas um reino intermediario entre a matéria e a mente, isto é, um domi- nio antimico de corpos sutis, cuja caracter(stica era mani- festar-se tanto sob a forma espiritual, como material."* e ‘ (z pode ser por ela# causada. Deste iodo, o alquimista Essa definigdo da imaginacao como “extrato concen- trado das forcas vivas do corpo e da alma” e a nogao de um reino intermediario entre espirito e matéria como um “corpo sutil” também calha muito bem com o Jogo de Areia. Parece-me inquestionavel que esse reino interme- didrio entre psique e matéria existia nao 6 no tempo dos alquimistas, mas também hoje ainda existe. Nao poderia definir um cenério de outra maneira. Ele surgiu do espiri- to do analisando e do espirito que habita a matéria, Sim- plificando(da esséncia do analisando, da esséncia da areia e das minidturas surge um novo ¢erceiro. Nesse momen- to as partes conscientes e inconscientes se unem. f fusiio integral de psique e matéria através do corpo humano. A uniao entre consciéncia e inconsciente, corpo e espirito, alma e matéria externa provoca no ser humano uma '8 Jung, C. G,, “Psychologie und Alehemie", in: Gs. W. Vol.12, A.0.0., p. ‘32238. (0.6. de C. G. Jung, Petrépolis: Vozes 1991, Vol. 12, § 394.) 69 ves Gwernerneae do Cwupeol! la. Sua imaginagao esté relacionada com a matéria em vo Tal vivéneia toma conta do ser humano como um todo, . alto grau. Todas as outras terao dificuldade de realizar \ provocando nele, como em toda experiéncia verdadeira, sua idéia, pois a areia e as miniaturas tém vida propria. A idéia deles é alterada pelo seu encontro com a essénci y/ttma Aransformagio, um amadurecimento, que no mo- . e da matéria, desconhecida para ele. As mos dos anali-' vivéncia associada a emogées e sentimentos profundos. mento ainda ndo requer ou sequer tem palavras para ex- sandos também produzem motivos &formas na areia que pressar. ‘Todavia, como jé disse, a configuragao externa do esto muito distantes da consciéncia deles. De onde pro vém elas? Do inconsciente dos analisandos ou da areia? Sigamos 0 procedimento inverso. No comego da ses- so 0 analisando senta-se diante da caixa de areia e nao sabe o que quer fazer. De repente parece que uma corren- te toma conta do analisando, ou o analisando absorve com & Y y cenario é apenas a forma visivel nesse instante do mun- © — doconereto e, em ultima instancia, ndo é o mais impor- tante. A quintesséncia do processo na caixa de areia 6 a imagem interna, carregada de emogoes e de sentimentos a partir do proceso criativo. Com isso fica claro que a “imagem na areia” tem duplo significado: de um lado, a © corpo uma corrente totalmente disforme e comega a configuragao concreta na caixa de areia; de outro, a ima- mexer as maos. O extraordindrio é que parece que 0 cor- gem interna resultante, carregada de energia. Para 0 po tem uma espécie de consciéncia que nao esta em liga~ entendimento da interpretagao das imagens — a dupla ‘cao com o pensamento racional, e sim com 6 mundo da © visdo da imagem na areia —, é necessério ver esse duplo representacao das imagens. Nesse caso podemos dizer que Le ponto de vista de um canfso{ que enxerga por tras da ~o corpo sabe mais do que a razao e que o impulso par, @ i forma externa estatica 0 significado simbélico das forcas imaginagag vem do corpo. &, ©, | Pmovimentadas e motivaioras que continluam a atuar no Bsses movimentos fluidos na areia, ou o deixar e catsand ? plesmente escoar a areia por entre os dedos mostra que o% | Para qife os leitores nao familiarizados com o Jogo algo dentro do analisando comegou a se movimentar, que { de Areia possam ter uma idéia desse reino intermedié- sua energia comecou a fluir. Para os que chegam a sesso rio, em que elementos psiquicos e materiais se encontram depressivos ou embotados, tensos ou desvitalizados, es- e se influenciam, se permeiam ¢ se juntam, descreverei ses pequenos sinais de movimento ja significam muito. gra em pormenor de que modo surge um cenério. Esses sinais repetem-se durante varias sessées no come- J Bxistem analisandos, nos quais se forma, no decor- co do tratamento, muitas vezes como tinica expresso na rer dos dias antes de virem & sessdo de andlise ou espon- areia. Quando a tensao se dissolve, pode acontecer que taneamente no inicio da sesséo, uma imagem mais ou as formas surgidas na areia fagam emergir uma associa- menos nitida que eles querem representar na areia. Po- ‘cdo ou evocar uma imagem interna no analisando, e ele ob ler-se-ia pensar que ¢ facil configurar concretamente essa comega a dar-lhes forma. Talvez agora acontega a mesma (i representacao interna. Mas nao é bem assim. Somente coisa que no caso anterior: a areia se comporta de manei- pessoas muito familiarizadas com a esséncia da matéria ra diferente da que 0 analisando esperava, ou que as fi- if aser trabalhada, no caso a areia e as figuras, conseguem : guras dispontveis nao combinem. O analisando sente-se ter uma idéia de tal maneira que também podem realiza- forcado a modificar sua idéia de acordo com as proprie- 7 70 x dades da areia, ou entao a mudar de idéia. Quando ha desejo ou vontade de criar, ele deve aprender a adaptar sua idéia ao material disponivel, e isso significa que pre- cisa adaptar-se A realidade existente, e no impor sua idéia ao material. Impor significaria que o material seria forcado a colaborar, ou seja, seria violado. Outra forma de falta de relacao com a matéria ocorre quando 0 anali- sando, caso a areia nao se preste ao modo como ele quer, abandona sua idéia junto com a areia desobediente e as, miniaturas, como que jogando fora a crianga junto com a gua do banho. ‘A configuracdo de um cenario exige, em relagdo a matéria e as proprias capacidades, certo desenvolvimento da consciéncia, intensificado posteriormente através da observagdo cuidadosa e da compreensiio do cenério pron- toe, naturalmente, através da elaboracao interpretativa posterior com os diapositivos. ‘Um pequeno exemplo deve ilustrar a mencionada auséncia de relaco com o material: ocasionalmente os adolescentes querem construir uma alta montanha ou uma torre, sem levar em conta as propriedades da areia. Eles repetidamente a puxam para o alto e a torre ou mon- tanha ambicionada novamente desmorona. No final fi- cam enfurecidos, batem na areia e se voltam para outra idéia. Esse € um comportamento que pode ser observado com muitas variagées na situagdo terapéutica, mas tam- bém em muitas variagées na vida cotidiana. Penso, por exemplo, na mulher que quer costurar um vestido. Ela imagina um modelo e compra um tecido maravilhoso. Mas 0 tecido ja cria dificuldades no corte e, ao costurar, escor- rega debaixo da agulha. A mulher se aborrece, fica im- paciente e por fim joga fora o tecido, “porque jamais teria oportunidade mesmo de usar um vestido tao extrava- gante!” 72 Nao se procede desta maneira apenas com assuntos externos, mas, ocasionalmente, também com internos: al- guém decide que a partir de agora vai anotar seus so- nhos diariamente, para poder se confrontar com eles. Mas os sonhos nao trazem as imagens e vivéncias belas e im- pressionantes que deseja, de modo a justificar o esforgo de anoté-los. Entao joga 0 caderno de sonhos num canto, “pois se ocupar com os préprios sonhos é apenas uma contemplagao narcisista”. O mesmo acontece nas relagdes humanas: um jovem, chamemo-lo de Fritz, esta com raiva de seu colega Franz, pois este se comporta de maneira impossivel aos olhos de Fritz, Fritz, porém, nao se deu ao trabalho de se colocar no lugar de Franz, o que dar-lhe-ia a possibilidade de entender 0 comportamento de Franz, Fritz estd se com- portando tao egocentricamente e sem consideragao por Franz, como o adolescente com a areia, a costureira com © tecido e o sonhador com seus préprios sonhos. Todos culpam 0 outro, seja ele de natureza material, psiquica ou humana, ao passo que a verdadeira culpa estd em sua impossibilidade de se relacionar. ‘“Podemos, portanto, partir do principio de que aay, tuagao terapéutica espeeifica no Jogo de Areia represen- <.” taas diferentes situacdes cotidianas, e de que o analisan- _~ do aprende aqui a se relacionar de modo compreensivo e “4 cuidadoso com algo diferente, seja a areia, seja sua pr6- “,, pria vida inerior) e Este aspecto“da relagdo com 0 outro é essencial no Jogo de Areia. Em cada atividade criativa a pessaa sai de! si mesma e entra em rela¢d com auft0 ser, um ser dife= “yenite, em vertas circunstancias totalmente desconheci- do. A obra criativa surge do encontro entre dois elemen- tos e da sua ligagdo. A partir da acdo e reagao mutuas' surgem acdo recfproca, troca, entrelagamento. Surge uma nova criagéo, uma nova configuragao, que pode ser mui mais do que seus componentes iniciais. No Jogo de Areia essa nova configuracio 6 o cenario, surgido entre o anali- sando, a areia e as miniaturas. Mas a condigao para que algo novo possa surgir é fato de o analisando realmente estabelecer relagao com o desconhecido inconsciente na areia, aceitando, vivenciando e dando forma ao desafio resultante/Essa emogao durante a criagdio provoca a mu- densa) Quando o analisando leva depois a imagem inter- / na eoisign, a imagers do seu cendrio, éla est carregada ’ a5 energias que atuavam no momento dé sia cria- o/ a8 > gao:'Se considerarmos que 0 cendrio é o frito de sua ado ” ¢ “ou, em sentido figurado, “o filho” do analisando, pode- _ mos entender que esse “filho” é algo muito especial que, <)') de um lado, necessita de protegao e, de outro, algo que \gprrega uma energia de desenvolvimento muito grande. Nessa situagao o analista desempenha nao somente A a funco de parteiro, mas ele é também a testemunha desse “nascimento”, e isso 6 essencial. Justamente as pessoas psiquicamente doentes que procuram o processo \ curativo através do Jogo de Areia tém muita dificuldade de se aceitar ou até de se reconhecer. Quando o analista reconhece e aceita o cenario como parte do analisando, aceita 0 préprio analisando. Através da postura de valo- rizagao com a qual o analista se depara com o cenério ‘com 0 préprio analisando, ensina ao analisando a valori- zar 0 mundo externo e o seu proprio mundo interno. A partir do modelo do analista o analisando aprende a le- var a sério a si préprio e ao “outro”, reconhecendo o signi- ficado eo alcance de suas préprias agoes. Pode desenvol- ver uma postura verdadeiramente religiosa no decorrer da terapia, 8 medida que depara cada vez mais o mundo {terno e externo de forma cuidadosa e coerente. \_ B obvio que a “crianga”, uma nova criagao, ndo pode 4 surgir apenas do encontro entre analisando e areia, mas f do encontro entre analista e analisando, ou seja, um ser 74 x ee humano e outro ser humano. Nao penso em uma crianga de carne e osso, e sim em uma “crianga relacional” ou em um tecido relacional, surgido a partir das forgas que fluem alternadamente entre essas duas pessoas. Esse tecido relacional entre duas pessoas nao é visivel ou pal- pavel como um cenério, mas existe e é perceptivel até para tereeiros, atuando sobre o corpo e a alma dos envol- vidos. Essa condensagao das enérgias entre duas pessoas diario entre psique e riatéria, o corpo propriamente dito. Tanto na percepedo alquimica como no Jogo de Areia e na andlise verbal, a imaginagao 6, nas palavras de Jung; “extrato concentrado de forgas vivas do corpo eda alma”. | Se compreendermos, isto 6, interpretarmos mais acuradamente a esséncia da imaginaeao no trabalho terapéutico, constataremos que o seu significado se en- contra em diferentes niveis de consciéncias diferentes.‘ Um cenério muitas vezes tem mensagem imediatamente ”> reconhecivel, mas, no transcorrer dos dias e semanas, _ “2 enquantoatua a posterior), emergem relagées cada vez mais profundas e significativas do inconsciente com a on io ag consciéncia{Cada cendrio subseqiiente elabora o ante- rior, contribuindo assim para a transformagao significa fe ‘tiva das energias que visam a cura do analisando ou ao. alcance de um nivel superior de consciéncia_ xa : Resumindo, direi que no Jogo de Areia realiza-se em pequeno espago aquilo que o ser humano precisa funda- mentalmente fazer, no caso transformar, ou seja,tormar “May real a energia amorfa do seu mundo imaginério interior ‘por meio do mundo concreto, em nosso caRo a areia, e transformar novamente essa criagao conergta em ima- gem interior. Essa imagem interna agora tem forma nova, é nova criagéo, pois a idéia, inicialmente ¢morfa, foi se transformando pela forca criativa an em wi) Ww Seameduy gL considéragiio 0 mundo conereto existente. Dessa forma o analisando cria, com a forca da sua imaginagao e por meio do cenério, seu mundo pessoal, participando ao mesmo tempo da continua criacdo do mundo. ‘Ainda observarei a esséncia da imaginacao de outro ponto de vista. A concepeao de uma criacdo continua do mundo e do mundo intermedidrio da imaginagéo pode-se encontrar também na visdo de mundo celta, que me pa- rece andloga. No pensamento celta nao existe a separacdo entre espirito e matéria, Em sua concepcao 0 espirito é a maté- ria e a matéria é 0 espirito; ambos s4o apenas manifesta- oes diferentes da mesma energia. A matéria 6 em dlti- ma instancia a realizagao de um pensamento ou mesmo a realizago da imaginagao."" (Essa visdo das relagdes entre espirito e matéria é muito antiga e ao mesmo tem- po muito nova. Mesmo autores modernos como, por exem- plo, o fisico Fritjof Capra, se dedicam a ela.!® Do ponto de vista da psicologia analitica, o proprio Jung e, principal- mente, Marie-Louise von Franz, se ocuparam intensa- mente com 0 tema.) Os celtas enfatizam um estado de consciéncia de sig- nificados miltiplos, uma idéia de mutagdo constante, de criagao continua, na qual tudo no cosmo esta em movi- mento, tudo esta entrelacado, 0 mundo nao é estético, mas est sempre em movimento, em vir-a-ser, em statu nascendi, Em todo lugar existe energia em movimento, impulsionando a criacao. Em geral agarramo-nos demais suposta seguranga do mundo estatico. Tentamos pre- servar tudo 0 que j adquiriu forma, seja no mundo ex- terno, seja interno. A vida, porém, é oscilagdo, movimen- ! Markale, Jean, Die Druiden. Munique: Dianus-Tvikont 1985, Insb. Kp 4; "Die geistige Welt der Druiden”. Capra, Fritjof, Wendezeit. Munique: Scherz 1983. yon Franz, M.-L., Spiegelungen der Sele. Munique: Kose] 1988, 76 to constante. Por isso deverfamos aprender a ndo pensar e viver estaticamente, mas seguir tranqiiilamente os movimentos e mudangas da vida, participando da recria- cdo continua do mundo. Os celtas distinguem trés mundos ou trés diferentes aspectos de energia primaria: 1, O mundo branco, 0 mundo da energia anterior & formagao do absoluto, o mundo das imagens primordiais, 0 mundo dos arquétipos. Nesse mundo se encontra 0 po- tencial criativo do que ainda nao existe. Nele se encon- tram a origem e 0 modelo de tudo o que jé foi criado, e também o seu objetivo. Tempo e espago estao suspensos, a unidade esta dissociada. 2. O mundo concreto, 0 mundo das coisas, o mundo da matéria bruta, da energia que ganhou forma. 8. Entre o mundo dos arquétipos e o do mundo con- creto encontra-se o que os celtas chamam de mundo da. _dgua ou dos rios, 0 mundo da energia sutil, que esta em movimento constante, fluindo, em vir-a-ser. Nesse mun- do encontramos a paisagem da alma, na qual fora e den- tro so uma realidade tinica, a imaginagio, o “corpo su- til” dos alquimistas.”° Esse mundo intermedidrio liga 0 mundo dos arqué- tipdso mundo concreto, e pode ser representado da se guinte maneira: através da forca da imaginagdo, o ser humano pode transformar as imagens primordiais, nao representdveis em si (por se tratarem de energias amor- fas), em uma parte concreta da criagaio do mundd. Pode também abstrair sua experiéncia e vivéncia dothundo concreto através da forga da imaginagdo, e assim contri- buir para a formagio das imagens primordiais. Nesse processo de transformacdo energética via imaginagéo a "Bischf, Marco, Unsere Seele kann fliegen. Insb. Kp. “Druiden, keltisches Christentum und Geomantie”. Frauenfeld: Verlag im Waldgut 1985, 77 ae postura moralmente responsavel de cada ser humano de- sempenha papel decisivo. Por esse motivo, para os celtas nao existe o mal absoluto ou 0 bem absoluto; para eles é importante apenas a responsabilidade na acao. Um pequeno exemplo deve ilustrar isto: quando a mée de familia esta sob o dominio do aspecto negativo e destrutivo do arquétipo materno, ela pode viver essas forcas de modo inconsciente, envenenando assim toda a familia. Quando ela percebe, porém, que certas forcas maléficas agem nela, pode tentar dar-Ihes forma, tornan- do-as entdo reconheciveis. No caso do Jogo de Areia, com © passar do tempo, através da recriagao constante, terd consciéncia a respeito do modo como essas forcas negati- vas nela agem, bem como a respeito das possibilidades de evitar seus efeitos negativos sobre si e sua familia, ou talvez até transformé-las em algo positivo. A mudanga necessaria na consciéncia é decisivamente apoiada de modo significativo pela observacao dos componentes in- conscientes, que aparecem no cendrio ou também nos sonhos subseqiientes. Porém, para que ocorra uma trans- formacdo nessa mulher, duas coisas sdo decisivas: a ver- dadeira disponibilidade para confrontar-se consigo mes- ma e arresponsabilidade cuidadosa e conscienciosa diante do préprio proceso. A razao pela qual associo a visdo de mundo celta com 0 Jogo de Areia é a seguinte: nos cenarios podemos reco- nhecer especialmente bem o mundo da imaginago, que os celtas chamam de mundo das dguas ou dos rios. Atra- vés das séries de cenarios podemos acompanhar essa busca e esse fluxo de energia. Podemos ver como as ener- gias so condensadas e adquirem forma, para depois fluir em direcao a novo objetivo. De maneira especialmente bela podemos acompanhar esse fluxo de modo significa- tivamente correto das energias nos cendrios de Maria (ver fig. 32-39). 78 A concepgao celta dos trés mundos ou das trés for- mas de manifestacdo da energia também tem relagaocom 0 dogo de Areia. Podemos ver a ligagdo desses mundos, entre si no Jogo de Areia da seguinte forma: os arquéti- pos, enquanto imagens humanas primordiais e univer- | sais, atuam por meio da constelagao das trés energias sutis que fluem livremente. Ela é direcionada e conde sada por meio da forca imaginativa do homem. Essas imaginagées encontram por pouco tempo uma forma coi creta no cenario, no qual se materializam; mas depos, "sa recuperadas ‘novamente como imagem interna, ni intangivel mundo intrapsiquico das imaginagoes em mo! vimento e das que péem em movimento. O préprio cend-_ rio 6 energia concreta que tomou forma, mas a sua ima- gem interna é, por assim dizer, um estoque energético disponivel, que pode se manifestar tanto espiritual e animicamente quanto fisicamente. Assim, 0 cendrio em| si nao é 0 mais importante; é apenas um estdgio interme- didrio necessario, Decisivo é 0 processo das forgas imagi- nativas que se transformam, surgindo da ligagao repe- titiva entre o analisando e a areia, entre o consciente e 0 inconsciente. No exemplo da mae de familia pudemos ver que no infcio de uma terapia pode ser constelado um aspecto negativo de determinado arquétipo. Podemos entao per- guntar se também nao poderiam ser consteladas forgas arquetipicas negativas por parte do analista, forgas que poderiam ser prejudiciais ou destrutivas para o analisan- do. Ou podemos perguntar o que o analista poderia fazer para que forgas positivas e construtivas sejam constela- das. Sao questoes essenciais, especialmente num método terapéutico nao-verbal, no qual os canais inconscientes entre analista e analisando se encontram muito abertos. As concepgées celta e alquimica da esséncia da ima- ginagdo devem interessar os leitores que se concentram 79 mais nas questées de cosmovisao. Hé também a questo cientifica_a a. respeitod da forca da imaginacdo, Refiro-me aqui ao livro da médica Jeanne Achterberg, “O poder cu- rativo da imaginag&o” (“Die heilende Kraft der Imagina- tion”), cujo titulo original, “Imagery in Healing: Sha- manism and modern Medicine” (“Imaginagao no processo de cura: xamanismo e medicina moderna”) exprime me- Ihor os pélos entre os quais a autora procura fazer uma ligagao." Refiro-me a seguir aos conhecimentos que me pare- ‘cem importantes para a compreensao do Jogo de Arcia. Jé falei das diferentes funcdes dos dois hemisférios (ver p. 25). Gostaria de me concentrar agora no esclarecimen- to da relacao entre imagens representacionais e reagées corporais. Achterberg parte da premissa de que as imagens representacionais tém efeito direto e indireto sobre as reagées fisicas, e também sao influenciadas por clas. As imagens representacionais podem surgir com a partici- pagdo de todos os érgaos dos sentidos, mas, do mesmo modo, também podem aparecer sem estimulo externo correspondente (isto 6, ondas de luz, ondas sonoras, mo- léculas de odor). Pressupde-se que as imagens represen- tacionais fazem disparar reagdes internas que néo sao necessariamente idénticas, e sim similares aos préprios estimulos. Por exemplo, fantasias de medo ou fantasias sexuais intensas so acompanhadas de mudangas fisio- logicas dramiticas. Estados de excitagao fisiol6gica sao relacionadas a expectativa de estimulos nocivos, mensu- raveis pela freqiiéncia cardiaca, tensdio muscular e grau de resisténcia da pele (coisas, por exemplo, exploradas no assim chamado detector de mentiras e no experimen- 2 Achterherg, Jeanne, Die heilende Kraft der Imagination. A.a.0. Insb. Kp. “Wissenschaft und Imagination”. 80 to de associagao na psicologia analitica). Jeanne Achter- berg deduz dos trabalhos revoluciondrios de diversos pes- quisadores que imagens representacionais sao capazes até de controlar dreas do sistema imunolégico. sumind6, podemos afirmar 0 seguinte sobre os restiltados das pesquisas com imagens representacionais e fisiologia: 1. Hé relacdo entre imagens representacionais e es- tados fisiolégicos. 2, As imagens representacionais podem anteceder mudangas fisiolégicas ou vir depois delas, o que aponta tanto para significado causal quanto reativo. 3. As imagens representacionais podem ser pro- voeadas tanto por comportamentos conscientes, inten- cionais, quanto por processos inconscientes (estimulos elétricos do eérebro, sonhos, estados onfricos, criagdo es- pontanea como, por exemplo, de cenérios etc.). Fig. 12: Cenério de uma senhora de 42 anos, representan- do 0 titero e os ovarios em estado frutffero e “dangante”. 81 ® a raat Fig. 13: Cenério de uma senhora de 38 anos, represen- tando o titero e os ovarios entre vida e morte. 4. As imagens representacionais podem ser conside- radas como elo de ligagao hipotética entre a elaboracao consciente de informagées e as mudangas fisiol6gicas, 5. As imagens representacionais podem influenciar tanto o sistema nervoso periférico quanto o sistema ner- vpso vegetativo. z Na pratica da terapia do Jogo de Areia, em relagao g yf Bs reacbes fisiolégicas podemos observar o seguinte: a cria- sao de um cenério pode causar reagdes muito fortes no analisando, como, por exemplo, tremor, sudorese, ataques §de fraqueza, urgéncia urindria, choro; mas, também, re- 0" Jaxamento ¢ diminuigso da atividade cardiaca e respira- tOria, sensagio de felicidade e bem-estar, relaxamento do estémago, melhora generalizada da capacidade de per- } cepgaio sensorial. Por outro lado, um cendrio pode representar o esta- do dos 6rgaos do corpo, por exemplo, o estado “feliz” ou b 82 4 “triste” dos érgdos sexuais femininos (fig. 12 e 13) ou a representagao pessoal inconsciente do hemisfério esquer- do e direito (fig. 14). Na figura 15 podemos reconhecer a forma pessoal e inconsciente dos centros energéticos no corpo. Mas, para apreender exatamente o significado des- se cenario, precisamos conhecer bem a histéria de vida da analisanda, os cenarios anteriores e o comentario que a analisanda fez. a respeito dessa imagem. “As imagens corporai3, como todas as imagens em geral, so uma espécialidade do hemisfério direito do cé- rebro, que por sua vez. esté assdciado a area emocional e ao sistema nervoso vegetativo. Essas imagens so, po- rém, de natureza ndo-verbal ou pré-verbal. Para que se tornem pensamentos com sentido, precisam tornar-se acessiveis e compreensiveis para o hemisfério esquerdo. Fig. 14: Cenario de uma senhora de 45 anos. A esquerda, 0 lado introvertido e pensador; a direita, o lado extrover- tido e, entre os dois, a uniao energética. 83 Fig. 15: Cendrio de uma senhora de 45 anos. Representa- ‘so do corpo com centros energéticos visiveis, Chacras. E por esse motivo que a formulagao légica e clara das representagées imagéticas é tao dificil e demanda inten- so trabalho. Por outro lado, a verbalizagao légica ou interpretativa ‘das imagens representacionais ndo 6 necesséria, princi- palmente quando deve atuar sobre as camadas primor- diais ¢ elementares da existéncia humana, nas quais 0 7 oe my fisiolégico e 0 psicolégico ainda sfo praticamente uma coisa tinica: Isso acontece principalmente em terapias com criangas, em que a interpretacao verbal das imagens nao é necessaria ou sequer possivel. Veremos na descrigao dos cendrios de Maria (ver pp. 123-141) como tais cama- das profundas e primordiais se apresentam na existén- cia humana. Nas terapias de adultos com Jogo de Areia deixa-se | passar o tempo necessério entre a criagao dos cenérios e | sua interpretagéo verbal, para que o processo de mudan- ¢a fisico-emocional-animico possa ocorrer antes de ser interpretado intelectualmente. 85 | 5 ESQUEMA INTERPRETATIVO DO SIMBOLISMO ESPACIAL O cenario pode conter diferentes niveis de conscién- cia e, portanto, de forma concomitante, diferentes es- tados psicolégicos do ser humano. Pode ser tao ambi- guo e complicado como o mundo espiritual-animico-fisico daquele que o cria. Por esse motivo um esquema inter- pretativo geral do simbolismo espacial pode ser de grande ajuda na interpretagao dos cendrios. Montei o esquema a partir de critérios validos em geral, e da minha expe- {éncia com o método terapéutico do Jogo de Areia. Ser- vir-nos-4, portanto, como bem-vinda ajuda de orienta- ¢40. Deveriamos estar sempre dispostos a repensar os de interpretagao, adaptando-os ao ni- vel de desenvolvimento e a0 momento de vida do anali- sando. Como ha mistura das percepgies tridimensional ¢ bidimensional, temos dificuldade particular no Jogo de Areia. Da propriedade plastica da areia resulta um de- senvolvimento de baixo para cima na caixa de areia. O analisando pode trabalhar na profundidade e na altura, pode trabalhar a areia com grande plasticidade ou deixa- la praticamente intocada. Essas diferencas também de- vem ser levadas em consideragao na interpretagao. Quan- tomais plasticamente alguém trabalha, mais luz e sombra entram na sua “imagem do mundo’, e quanto mais se 86 Esquema de interpretagao do simbolismo Esquerda <}> —_Direita jo interno Religiosidade Consciéncia coletiva relagdo com o pai pessoal, escola, profissio embaixo do inconsciente de onde sempre vem. novos impulsos, podendo também submergir Eu Centro da —+I Instintos _\personalidade/ Relagao natureza (com a terra, criativa, o mar ‘mais consciente, rrelagdo pessoal relagao primordial, corporalidade Lado esquerdo: Lado inconsciente, mundo interno, intimidade, lado contemplative “observador”, lugar da regressao Lado esquerdo do corpo: ligado ao hemisfério cerebral direito, funciona de modo ndo-verbal, integral, concreto, atempor irracional, intuitivo, meio de imagens. Lado direito: Lado mais consciente, mundo externo, realidade, distancia, abertura, lado ativo atuante, diregao da progressao. Lado direito do corpo: Ligado ao hemisfério cerebral esquerdo, funciona de modo aproxima do mundo concreto e material, tanto mais sua imaginagdo encontra uma forma. Mas 0 analisando nao esté dentro da caixa de areia, e sim diante dela. Com isso vivencia a caixa de areia como uma folha de papel, na qual pinta uma imagem. Assim, a borda da caixa de areia mais préxima a ele corresponde a borda inferior da imagem e a mais dis- tante, & borda superior. Sempre fotografamos e inter- pretamos os cenarios do ponto de vista daquele que 0 criou. O centro do cenério representa sempre o motivo cen- tral. Até agora s6 encontrei mandalas, enquanto repre- sentantes de diferentes aspectos da relagio do Eu com o Si-mesmo, no meio do cenério, ja que elas ilustram a cen- tralizagao da personalidade. A respeito dos motivos nos quatro cantos, podemos dizer que representam os componentes expressivos, as condigdes contextuais da acao. Em geral fiz a experiéncia de que novos impulsos espirituais chegam a imagem a partir do canto superior esquerdo (ver figs. 19 ¢ 41). Forcas provenientes do can- to inferior esquerdo (ver figs. 18, 33 e 41) tendem a mos- trar o fluxo de energias da esfera corporal e instintiva. Forcas do mundo exterior, provenientes, por exemplo, da contratransferéncia do analista com o analisando, na maioria aparecem vindo da direita (ver figs. 25 e 35). Movimentos para a esquerda indicam regressao, reflu- xo das energias para o inconsciente, o que pode signifi- car afundar-se no inconsciente, ou entao 0 refluxo e 0 recolhimento de energias no inconsciente, objetivando nova progressao. O movimento da esquerda inferior para a direita superior mostra desenvolvimento em diregao ao mundo externo, “para a vida”. Encontra-se freqiientemente em pessoas mais jovens. 88 Encontrei muitas vezes em pessoas mais maduras 0 movimento da direita inferior para a esquerda superior, Indica desenvolvimento em direcdo ao mundo interior espiritual. 89 4 Yy 6 EVA — O PROCESSO CURATIVO DE UMA SENHORA . EM GRAVE ESTADO DE DEPRESSAO Eva 6 mulher muito bonita e inteligente, de bela fa- milia culta e tradicional. E casada e mora num pequeno vilarejo na Suica. Quando entrou pela primeira vez em contato comigo, Eva tinha quarenta anos e era mae de duas criangas em idade escolar. Depois da conclusio da escolaridade no completou um curso profissionalizante, mas enquanto casada trabalhou em varios empregos de meio-periodo. No comego da terapia trabalhava em um servigo social, que objetivamente desempenhava com su- cesso. Subjetivamente, porém, ela se sentia em geral in- suficiente em seu trabalho, na maioria das vezes desva- lorizando o proprio desempenho e desejando abandonar essa atividade. Mas sempre se deixava convencer pelos colegas e superiores, que aparentemente prezavam sua colaboragao, a continuar trabalhando. Por causa de suas depresses severas e cronicas, Eva 6 havia comecado varias terapias e andlises e se entre- gara ao trabalho terapéutico. Por diversos motivos essas terapias sempre foram interrompidas, sem terem levado a qualquer melhora significativa ou mesmo a cura. Ao contrério, devido & problematica da situagao transfe- rencial nao elaborada entre ela e seus terapeutas mascu- linos, tais terapias acrescentaram feridas profundas nos sentimentos de auto-estima de Eva como mulher. Sua 90 auto-estima ja oscilava, apesar de sua beleza fisica, sai- de e dons intelectuais, entre valorizagdo mediana de sua pessoa e édio profundo e destrutivo de si prépria, acom- panhado de macigos sentimentos de culpa. 6dio de si mesma se manifestava, de um lado, no fato de bater, arranhar e cortar 0 corpo e, de outro, no fato de querer se destruir através do abuso de dlcool e medicamentos. 0 alcool e os medicamentos serviam prin- cipalmente para encobrir e reprimir a sensagdo de estar perdida e o medo, por tras do édio de si mesma, que as vyezes assumiam tamanha propor¢do, que s6 desejava paz e redengao na dissolucdo da sua consciéncia ou na morte. Nessas ocasiées ia, de livre e espontanea vontade, para a clinica onde encontrava protegao e paz. A atmosfera re- clusa da clinica lhe fazia bem por curto perfodo, e os me- dicamentos abafavam seus estados de ansiedade e dese- jos de morte. ‘As estadas na clinica, contudo, fundamentalmente em nada mudaram os estados psiquicos de Eva; ao meu ver, isso nfo seria sequer possivel naquelas poucas se- manas, mesmo sob 0s cuidados mais efetivos. Ao menos garantiram a sobrevivéncia de Eva, o que, considerando a sua vida atual, foi uma sorte. Resumindo, pode-se dizer, que Eva sofria de grave distirbio narefsico. Pouco posso dizer sobre a juventude e as relagdes familiares de Eva, por questdes de sigilo. Ela é filha tni- ca de seus pais. A mie tinha estrutura depressiva; sua confianca em si mesma como mulher e na vida fora de tal maneira afetada por uma grave experiéncia traumética, de modo que nao péde transmitir & filha uma atitude po- sitiva em relagao a si mesma e ao mundo. Transmitiv-lhe, ao invés, sentimentos de abandono, inferioridade e medo. O pai de Eva era muito racional, orientado para 0 desempenho. Eva, em principio, tinha relagao positiva 91 g, xf ¢ com ele e, aparentemente, também ele em relagdo com ela, mas esse afeto miituo nao foi fértil para a auto-esti- ma de Eva. Seu pai nao queria nem podia ver, e muito \enos sentir, as razdes da depressao profunda e erdnica filha. Acreditava que com forga de vontade tudo pode- ria ser feito, e que uma depresso poderia ser dissolvida, ou pelo menos contida, através da forca de vontade e do trabalho. Aatitude do marido de Eva era muito parecida. Ti- nha dificuldade de entender que a “doenca” de sua espo- sa ndo era mimo, md vontade ou maldade, e sim o resul- tado de ferida profunda, na base da vida, e que sempre se abria de novo. Achava que com vontade consciente e disciplina sua mulher conseguiria manter a vida em or- dem. Nem ele nem 0 pai de Eva eram empaticos com 0 abandono profundo e os medos de Eva. Nao posso aqui me aprofundar mais nas causas dis- so. Quero apenas apontar para o fato de que o medo exis- tencial, a sensagdo de fraqueza e de abandono precisam ser reprimidos hoje em dia por um homem em posicao de lideranca, pois enfraquecem significativamente o desem- penho esperado. E facil imaginar que esses lados obscu- ros da alma séo deslocados para os membros mais “fra- cos” da familia, por exemplo, para a mulher e para a filha, devendo ser vividos por elas de modo vicdrio. A to enfatizada vontade, porém, é definida na psi- cologia analitica como “energia psiquica livre para a consciéncia”. Quem refletir sobre essa definicao entende- 4 facilmente que uma pessoa, como Eva, ndo consegue mobilizar sua vontade para empregé-la em um desempe- nho especifico, quando sofre de abandono elementar e de auto-alienagdo desse tipo. Ela precisava de toda essa ener- gia para sobreviver, pois, como adiante veremos em suas imagens, corria o risco de, por causa dessa ferida, se es- vair em sangue, ou seja, a energia vital a estava deixan- 92 do, e sua fonte interior, da qual poderiam fluir novasener- gias, ainda nao fora integrada (fig. 24). ‘A falta de compreensao por um sofrimento racional- mente incompreensivel, reprimido em algumas pessoas até o ponto de nao mais 0 sentirem, é muito comum hoje em dia. E tipico da nossa sociedade, orientada pelo de- sempenho, a concepeaio de que a alma 6 comandada ra- cionalmente e que a cura do sofrimento da alma é possi- vel quando o paciente quer. A sutileza e vulnerabilidade da alma humana sao praticamente ignoradas. Nao se con- cede o espago e o tempo que o desenvolvimento da alma necesita. As necessidades e as expressdes da alma sao na maioria das vezes reprimidas em favor do desempe- nho, desenvolvimento, progresso, estabilidade e ordem. O mundo masculino, de modo especial, encontra muitas razdes, evidentes e racionalmente comprovadas, para reprimir a esséncia da alma e classificar o sofrimento psiquico como a manifestacao de uma personalidade fra- ca e sem forca de vontade. Por esta razao o sofrimento ainda existe. Nao s6 o sofrimento pela prépria incapaci- dade de aceitar a propria vida positivamente, mas, prin- cipalmente, 0 sofrimento fundamental pela restrigao do espaco vital para as necessidades e manifestagses da alma, se tornam especialmente visiveis nas mulheres. Propositadamente chamo minha analisanda de Eva, pois © sofrimento dela é também o sofrimento de muitas ou- tras mulheres, talvez ndo na mesma proporgao, mas pela mesma razao. Eva ouviu falar de mim no contexto do Jogo de Areia. Quando veio pela primeira vez.ao meu consultério, vi dian- te de mim uma mulher pélida, tensa e profundamente triste. Seu corpo estava contraido, duro e frio, como se toda vibragao e calor tivessem se retrafdo para dentro. Ela freqiientemente assumia posigao fetal, mesmo quan- do sentada, de bracos cruzados no peito, como se quises- 93. base 4G se proteger 0 coragéio. Chorava muito e me falava de sua vida de modo desconexo. Sempre repetia que nao tinha mais esperanga de melhora e que lhe era impossivel con- fiar nas outras pessoas. J4 pela manha ingeria dlcool ¢ medicamentos para poder dormir novamente. Com isso, negligenciava a familia e seu trabalho, o que, por outro lado, provocava sentimentos de inferioridade ¢ culpa. Ela parecia um passaro semimorto, com frio, e 0 im- pulso natural seria pegé-la no colo e aquecé-la. Nao fiz isso, pois seres semicongelados devem ser aquecidos com muito cuidado. Todavia, como os analistas também sao seres humans, fiz um café para ela, sinalizando sem palavras que eu sentia como estava frio em volta do cora- do dela. O primeiro encontro com 0 analisando é muito importante para mim, pois o meu olhar ainda nao esta turvado pela informagio consciente sobre ele. Nessa ses- so também falei muito pouco. Simplesmente escutei e tentei apreender, instintiva e intuitivamente, que tipo de ser humano poderia estar escondido por trés dessa mu- her triste e congelada. Parece-me importante mencionar ainda um incidente no comeco. Como muitas vezes acontece em analisandos com severa perturbacdo de auto-estima, Eva também nunca sabia se voltaria para a proxima sesso. Nao acre- ditava em melhora, ou melhor, sua falta de confianga na vida nao Ihe permitia ter qualquer esperanca de melho- ra. Sem mencionar suas idas e vindas expliquei-Ihe que a melhora somente seria possivel, se ela se permitisse, ‘ou melhor, se permitisse ao seu inconsciente e a mim, 0 tempo necessério para desabrochar. Na segunda sessao entao sugeri que ela se comprometesse, sem muitos “se” ou “porém”, a comparecer as préximas dez sessées. Sé pude tomar essa postura decidida, porque a essa altura jé vira o seu primeiro cenario (fig. 16). Mostrou-se real- mente correta. Disse-me depois que esse fora o ponto de- 94 cisivo para o nosso longo tempo de trabalho analitico con- junto. ‘Na segunda sesso Eva chegou pélida e tensa como na primeira, mas parecia-me que néo viera de mé vonta- de. No decorrer da sesso também foi logo para a caixa de areia, Tenho no meu consultério uma caixa com areia clara e na maioria das vezes, seca, e uma segunda com areia do mar, mais escura e fina. Ela escolheu a areia mais escura, com aspecto de terra e a umedeceu com agua. Aparentemente nao tinha medo ou inibicao da qualidade terrena e corporal da areia molhada. Pelo contrario, pa- recia procurar material firme e moldavel. Hesitante, criou, is vezes interrompida por choro convulsivo, sua primei- ra imagem. 1° cenario (fig. 16) Eva parecia tao triste e tensa como pessoa inteira. Como que dissolvida e desorientada no choro, calma, de- licada e segura, dava uma forma para a areia com as méos. Com grande espanto e crescente emogao vi surgir essa imagem: ela se tornou imagem centrada e equilibrada, bela e segura imagem da ordem! Para entender por que fiquei tao profundamente tocada por esse cenario, deve- mos mais uma vez lembrar que Eva, quando me procu- rou, sofria das mais severas depressdes ha muitos anos, era dependente de diversos medicamentos e, na ocasiao, tinha pouca estrutura interna, que podia tdo-somente viver numa clinica sem esperanga de melhora. Eva criou uma colina primordial redonda, em trés niveis, dividida em quatro partes, totalmente estruturada. A colina redonda era por sua vez. rodeada por um circulo, que a protegia e mantinha como muralha. O préprio cfr- culo de protegdo estava firmemente ancorado nos cantos da caixa de areia. 95 ‘Aimagem representa uma mandala tridimensional. ‘Mandala significa em sAnscrito “cfrculo” e designa o de- senho de um circulo usado em cultos. Mandalas, enquan- to configuragées circulares, também encontram-se na natureza, nas multiplas representagoes humanas e tam- bém nas manifestagdes espontaneas da psique. Sao ex- pressées da totalidade, do universal, uma imagem do di- vino. Mandalas, as vezes divididas em quatro ou mais partes, podem ser simbolos do cosmo, do deus criador, da energia criativa onipresente, do ciclo da vida, das quatro estagdes do ciclo anual e, do ponto de vista psicolégico, da totalidade da psique, do arquétipo do Si-mesmo. (Como veremos nos cendrios de Maria, as formas circulares ocu- padas com determinadas figuras representam aspectos de determinados arquétipos que tomaram forma, mas que também sao aspectos parciais do todo, do Si-mesmo,) Jung fala do arquétipo do Si-mesmo como principio da totali- dade, da ordem e, ao mesmo tempo, como centro ordenador da psique.” ‘Também fala de mandalas que espontaneamente aparecem em sonhos e imaginagdes, como busca incons- ciente da alma por centralizagao e autocura.”* Nesse caso a mandala representa esquema de ordem que se sobre- pide ao caos psiquico, opondo-se, por meio do circulo pro- tetor que mantém unido, a tendéncia de dissolugao (que a alma também possui). ‘No cendrio de Eva a mandala era tentativa esponta- nea de sua alma de se proteger e se centrar. Avaliei essa reagao de seu inconsciente ao seu estado de desorien- tagdo como sinal favordvel para a terapia. Interpreto a ancoragem firme do anel protetor nos quatro cantos da 2 Jung, C. G., Gs. W. Vol. 6, A.2.0., p. 512 sobre Selbst. (0. C. de C. G. Jung, Petrépolis: Vozes 1991, Val. 6, § 902.) "B Jung, C. G., Gs. W. Vol.9/1, Olten/Freiburg iBr: Walter 1976, p. 281 © 4lss.(0. €. de C. G, Jung, Petropolis: Vozes 2001, Vol. $/1, §§ 627ss ¢713ss.) 96 Fig. 16: Eva, 1° cendrio. Fig. 17: Eva, 2 cendrio. Fig. 20: Eva, 5° ec Fig. 27: Eva, 12° cenario. Fig. 29: Eva, 14° cendrio. Fig. 30: Eva, 15* cenario. Fig. 31: Eva, 16° cenario. Fig. 33: Maria, 2° cenario. Fig. 35: Maria, 4° cenario. Fig. 37: Maria, 6° cenario Fig. 39: A joaninha, simbolo para Maria. caixa de areia como o fato de Eva ter procurado incons- cientemente protegdo e apoio na caixa de areia, o que, de maneira geral, corresponde ao desejo de ter um “espago livre e protegido” na situagao terapéutica. ‘Neste momento é importante fazer algumas obser- vagées fundamentais sobre o proceso terapéutico de Eva. Ela veio regularmente uma ou cluas vezes por semana se consultar comigo. Durante os primeiros vinte meses seu ou, estado era muito triste, desesperado ¢ instavel, também, pelo abuso de medicamentos e dlcool. Freqiientemente chorava nas sessdes, mas também me contava muito so- “ bre a sua vida. Nessa época ela fazia um cendrio por se- mana. Na maioria das vezes trabalhava silenciosamente na caixa e depois comentava muito pouco a esse respeito. Quase sempre estava mais calma e relaxada no final da sessdo. As vezes parecia pouco feliz com os cenarios. En- tre as sesses, nos momentos obscuros e cansados da vida, ela também me telefonava em casa. Nesses telefonemas e em suas crises de desespero ¢ luto na caixa de areia procurei sempre mostrar a ela que eu participava da sua situacdo ea levavaa sério. Mas também procurava manté- lana realidade, orienté-la no tempo e no espago, e condu- zi-la para as agées requeridas por esse momento. Co, Quando se desfazia em lagrimas nas sess6es, eu co Ce Jocava o brago no seu ombro ou segurava sua mao. Pariah. isso para, de um lado, Ihe dar calor humano e, de outro, para manté-la no aqui-e-agora. Penso que 0 contato cor-"/e poral em terapia é muito importante e util, mas o analis- ta nunca deve despertar desejos ou esperangas além das que possa ou queira realizar. Todavia, segundo o princi- pio de que coisas semelhantes causam efeitos semelhan- tes, a mao calma do analista também pode despertar tran- qililidade no analisando. Eu no procurava tocar na causa das depressées de Eva, pois ela ainda nao suportaria isso. Do mesmo modo, 97 Fig. 47: Elisabeth, 7° cenario. x evitava Cncorajé-la ou consolé-la com muitas palavras ou expressar minha alegria e admiragio por seus cendrios realmente impressionantes, Com efeito, apés cada eleva- gdo um pouco mais forte de sua auto-estima, ela depois voltava a cair ainda mais fundo na depressao. Somente podia mencionar com muito cuidado sua grande capaci- dade criativa, pois assim ela pereeberia que era mulher muito talentosa. Esse reconhecimento a inundava com tristeza e culpa, pois, na sua opinido, ndo era capaz de viver o seu talento. Depois de ter visto 0 primeiro cendrio e té-lo avalia~ do como uma tentativa de ordem e autocura na psique de Eva, achei importante, principalmente nos primeiros vin- te meses da terapia, manter Eva externamente, por as- sim dizer, em fogo brando, manté-la viva para ganhar tempo para o seu processo animico inconsciente, do qual podemos participar aqui, gragas a essas imagens. Falan- Go metaforicamente, sob a instdvel casa da alma, com risco de cair, deveria ser construido um alicerce estavel e forte, a fim de erguer sobre ele nova casa. Isto néo quer dizer que esse alicerce deva ser construido a partir de fora, pelo analista. Deveria vir de dentro, da alma in- consciente de Eva, Bu, enquanto analista, era apenas como um mestre-de-obras, que cuidava para que as ins- trugdes do mestre-de-obras interno de Eva fossem corre- tamente executadas. Somente quando existissem espacos habitaveis na casa nova é que a casa velha e fragil poderia ser demoli- da, Durante esse perfodo de construgao do alicerce, a ener- gia era apenas suficiente para manter a casa velha maii ou menos em pé, e nao para a nova construcao. Meses antes da participagao visivel de Eva nos ce- narios, estes me deram a esperanca de cura, Com 0 pro- (® gressoda terapia, minha esperanca era comprovada, pois Gis como, devagarzinho no inconsciente de Eva, eram 98 \\ % hf construidas as imagens arquetipicas necessdrias das quais, aos poucos, poderia receber forca para curar suas feridas antigas e profundas. Para mim as imagens de Eva também significavam muito, pois sem elas talvez ndo ti- vesse conseguido forca e paciéncia para suportar essa terapia excepcionalmente dificil. 0 analista nao é fonte inesgotavel. Muitas vezes tem que dar de si mais forca do que pode dispor internamente no momento. Nesse caso, alguns cenérios de meus analisandos se tornam fonte de forca para mim, assim como contemplar uma imagem ou ouvir uma musica também podem nutrir uma pessoa. Estes 16 cendrios sao uma selecdo das muitas ima- gens que Eva criou no perfodo de vinte meses. Vejo-os em retrospectiva e procuro interpreté-los de modo que sua extraordindria forca criativa e irradiagio emocional néo sejam destrufdas. Nao esquegamos que a elucidagao in- telectual das imagens, necessaria para o entendimento do significado implicito, nao se pode evitar totalmente. Mas 0 essencial 6 a vivéneia da emogao ao observar as imagens. ‘Voltemos mais uma vez & primeira imagem. O que chama a atengio sao os trés degraus da colina. Do ponto de vista do proceso subsequiente, isso poderia ser uma antecipaco da divisdo em trés partes, corpo-alma-espf- rito, ou respectivamente a terra como mundo material — o mundo sutil animico — e 0 mundo espiritual do absolu- to, arquetipico. Isso corresponde, por sua vez, a totalida- de da energia criativa em seus trés aspectos: & energia que toma forma, a energia em movimento que procura uma forma e a energia antes de assumir uma forma. ‘Vejo a cruz sobre a colina como a tentativa incons- ciente de Eva de encontrar sua propria orientagéo. Se nos imaginarmos em pé numa colina, vendo 0 horizonte ‘como um circulo infinito & nossa volta e a terra aos nos- sos pés como realidade ilimitada e desordenada, temos, 99 by +) gracas ao trajeto solar, a possibilidade de nos orientar- mos pelos quatro pontes cardeais. Encontramo-nos, en- tao, como seres humanos, no centro do mundo, no centro da cruz, cujos bracos so formados pelos quatro pontos cardeais. Dessa maneira desviamo-nos do caos desorde- nado e ilimitado e criamos a possibilidade de orientacao. ‘Também podemos observar o cenario sob outro pon- to de vista. A forma redonda da colina também lembra uma cova ou um ventre materno. Lembrando que a caixa de areia representa, como o vaso hermético dos alquimis- tas, uma espécie de titero, isto é, 0 ventre materno, no qual a substancia animica é limpa e transformada para renascer com forma nova, podemos ver a colina como lu- gar de morte e renascimento, duplamente protegido pelo circulo ¢ pela caixa de areia. 2° cenario (fig. 17) No mesmo lugar da caixa de areia, na qual estava a colina primordial na imagem anterior, Bva criou um gran- de sol, preenchendo todo o espago. Em tiltimo lugar, colo- cou no lugar do chacra frontal, também chamado de “ter- ceiro olho”, um pequeno sol, como se quisesse dizer: “O pequeno sol reconhece o grande sol”, ou “Eu, ser huma- no, reconhego a ti, Deus”. sol é fonte de luz e calor, significando para nés energia vital. “O sol traz ao dia” significa que o sol torna todas as coisas reconheciveis. Ele é o simbolo do esclare- cimento, do reconhecimento e da consciéncia. O sol nao muda sua forma. Todos os dias aparece de novo com a mesma totalidade redonda no horizonte. A olho nu sua forma nao é verdadeiramente reconhecivel, mas sempre vivenciamos 0 seu efeito em todos os lugares. Assim, ele também é simbolo do eterno, do imutavel, de Deus, mas também da esséncia dos arquétipos. Jamais apreensiveis 100 em sua totalidade, mas sempre agindo através de sua irradiagao energética. Para Platao o sol era a metafora da esséncia das idéias. As idéias, por sua vez, eram para ele o imutavel, a forma que existe por tras de todas as coisas e que fazem 0 verdadeiro ser. Assim, 0 sol simboliza ao mesmo tempo a forca na idéia, no motivo, no arquetipico bem como o efei- to que parte disso e ilumina o homem de tal maneira, a fim de que ele possa reconhecer o singular em sua rela- ao com a totalidade. Aidéia da totalidade do ser humane, abarcando cor- po, alma ¢ espfrito, chamamos na psicologia analitica de arquétipo do Si-mesmo. Do Si-mesmo — que também podemos chamar de Eu superior, englobando o conscien- te co inconsciente —, parte uma forga ordenada, que di- rrige o desenvolvimento do ser humano, contanto que essa forga possa atuar sobre a pessoa. Muitas pessoas vivem em ligagdo consciente com seu Si-mesmo. Desse modo, sua forga ordenadora se torna 0 guia no seu caminho para a individuagao. Contudo, mui- tos também mantém boa relagdo inconsciente com seu Si-mesmo, Entao ele se torna presente como um anjo da guarda que os acompanha, Outros porém, especialmente pessoas com ferimentos narcisicos antigos, como Eva, nao conseguem encontrar a ligagao com sua totalidade e com sua forga ordenadora ¢ condutora. Seu Si-mesmo parece estar na sombra. Ka- thrin Aspers escreve sobre isso em seu livro “Abandono e auto-alienagao’ Nao estando ligada @ sua esséneia primordial, a pessoa narcisisticamente ferida nao consegue olhar para dentro, devido aos contetidos obscuros ¢ destrutivos que constituem sua vida interior. Com isso a ligagao com 0 proprio Si-mesmo & sempre novamente frustrada e 0 ensombrecimento conti- nua. O objetivo da transformagao na problematica nareisica 101 da alienagao do Si-mesmo esté em criar uma relagdo amo- rosa ¢ positiva consigo mesmo e em uma atitude tolerante em relagdoa outras pessoas. Na realidade é um “trazer-d-lu2! as possibilidades até entao bloqueadas ou ensombrecidas. Lembremo-nos de todas as herotnas dos contos de faclas que, no final, se levantam da humilhagdo e escuridao em vestes luminosas, ornadas com sol, lua e estrelas...° Nessa imagem, inconsciente para a compreensdo dela, mas conhecida por suas maos, o Si-mesmo de Eva aparece na luz. E acontecimento extremamente impor- tante, ainda mais enfatizado pelo sol no “terceiro olho”, que torna o ser humano clarividente e capacita a alma a distinguir a luz divina em todas as suas formas de ex- pressdo. Um comentario antigo a respeito do terceiro olho expressa isso da seguinte maneira: ‘Aalma langa um olhar para a forma do esptrito. Um raio de luz se espalha e a escuridao desaparece; distorgoes ¢ for- mas malignas morrem e todos os fogos pequenos se apa- gam; as luzes menos claras nao sdo mais vistveis. Através da luz o olho desperta as formas de existéncia necessdrias. Aoaluno traz sabedoria. O ignorante n&o reconheceré 0 sen- tido.* Como nesse momento Eva também nao podia olhar conscientemente para dentro, suas méos criaram o seu saber inconsciente no lado externo, na areia. Nessa ses- so, a alma de Eva claramente langou, como diz. 0 texto antigo, um olhar sobre seu Si-mesmo. Um raio de luz se espalhou e a escuriddo desapareceu. Aimagem do seu Si- mesmo resplandeceu como o sol. Esse resplandecer do Si-mesmo na profundidade da alma inconsciente nao era por muito tempo visivel na vida cotidiana, mas seu efeito irradiava sobre as préximas imagens. 24 Asper, Kathrin, Verlassenheit und Selbstentfremdung. A.2.0.. p. 68. Tansey, David V, Energiekérper. Munique: Kosel 1985, p. 78, 102 3° cendrio (fig. 18) Dessa imagem irradia para nés corporeidade reuni- da, seguranga e forga da terra. A casa de terra quadrada em si um simbolo da terra e ao mesmo tempo templo para a Mae Terra. Originalmente a casa era coberta com um telhado de musgo e casea de drvore. Eu a abri para que ficassem visiveis a dona da casa, a mae escura e cténica, com seu filho. A casa esta protegida por um cfr- culo de pedrinhas azuis, representando agua, e cercada pela natureza verde. 0 mundo vegetal e a agua perten- cem Mae Terra e, ao lado e embaixo do seu santudrio, geralmente se encontra uma fonte. Da parte esquerda inferior, também do Reino da Ter- ra, uma pessoa de pele escura traz um pio. Esse pao é a dadiva da Mae Terra, e ndo expressa nessa imagem o bem conhecido “pai nosso”, mas, de forma especialmente bela, a “mae nossa”. Aqui a “mae nossa, que estas na terra” dé o pao de todos os dias, a alimentagao bésica do nosso corpo. Acima do portao da casa de terra hé novamente, como se fosse um “terceiro olho”, a imagem redonda de uma crianga. “A alma lanca um olhar sobre a forma do espiri- to”, diz o comentario sobre 0 terceiro olho. Com essa ima, gem, a alma de Eva langou um olhar sobre a imagem primordial da mae genitora, protetora e nutridora, emt suas manifestagdes: mundo vegetal, terra, agua, casa, corpo e mulher. Essa imagem completamente centrada Se irradia tranqiiilidade profunda e natural, e a sensagio ¢%_ de ser aceita, como a crianca vivencia no colo da mae am rosa ¢ uma pessoa no colo da Grande Mae Natureza. Eva no viveu suficientemente essa experiéncia basica na sua infancia, mas agora, no espago protegido da situagao ana- litica, esse potencial energético esta se constelando. Fica claro que 0 campo energético do aspecto positive do ar- quétipo materno nao se restringe apenas a mae biolégi- 103 ca, mas envolve muito mais: a terra, a natureza nutridora, a casa acolhedora e protetora, a dgua vivificante e muito mais. ‘A experiéncia ampla da boa mée terra constitui na andlise o terreno fértil para a construgéo da casa da alma. ‘Sabemos que sem base sélida nao se ergue uma casa es- tavel. 4° cenario (fig. 19) Depois do circulo do sol luminoso ¢ do quadrado de terra moldada, vemos uma imagem movimentada, fluida e cintilante. O centro forma um quarto de lua, coberto por fios brilhantes. A agua a circunda, formando um co- ragdo que sai de uma fonte conforme disse Eva. Ou seria um véu, um fluido sutil, equivalente ao material que Eva usou para criar a correnteza de agua? A senhora dessa imagem é figura feminina, eujo manto azul escuro esté salpicado de estrelas. Sua posicdo é enfatizada com con- chas e um coral branco, formando atrés dela algo pareci- do com uma coroa. Essa “rainha da noite” ou “mulher das estrelas” eu também jé havia tomado tempo atras como contraponto para a mie terra. Parecia-me que eu precisava ter uma figura para o Jogo de Areia que expressasse o principio da maternidade animico-espiritual, em oposigdo A ma- ternidade terrena, instintiva e corporal. Mas ela se tor- nou muito mais: uma figura césmica, a rainha do céu, a mulher lunar, aalma mundial, aquela que € opaca e, quan- do encoberta, a que é insondavelmente fascinante. Da mesma maneira como 0 céu de estrelas noturnas e a lua, ela pode levar o ser humano a outra esfera, para outra realidade, que tem o efeito de ampliar a consciéncia de modo inspirador, mas também pode destrut-la e dis- solvé-la. 104 ‘Alua, a fascinante, a que sempre est em movimen- toe constantemente se transforma, a fluida, movimento da gua e do véu, 0 coragio, as conchas e a mulher das estrelas, ao mesmo tempo escura e luminosa, todos esses elementos se condensam na imagem primordial da alma feminina. Ela nao é, mas flui e se transforma constante- mente. Nao possui 0 aspecto imutvel e radiante do sol nem 0 que é firmemente moldado da terra, sendo porém noturna, suave, intangivel, misteriosa e secreta. Ao mes- mo tempo que bela, também se mostra insondavel e abis- sal. Sem a claridade e luminosidade do sol e a estrutura firme da terra, poderia conter os perigos que a lua e 0 mundo aquético representam para o ser humano, como a loucura ou a dissolugao da psique, vivenciados por Eva nos periodos mais obscuros de sua depressao. ‘Eva criou essas trés imagens numa curta seqiiéncia. Elas representam os trés campos de energia arquet{picos: o espiritual, 0 corporal-material e o animico, numa rela- ¢fo de troca reciproca e que constituem a totalidade. Para Eva tiveram efeito frutifero. Nao podemos esquecer, po- rém, que eles também tém aspectos negativos: 0 sol, en-s, quanto consciéncia unilateral e superiluminada, pode , “& ressecar, queimar e distanciar a pessoa da realidade dos. corpo terreno. A terra, 0 corpo, pode manter a pessoa se sionada no peso e na imobilidade de sua forma. E 0 mun- do lunar da alma, fluido e aguado, como 0 mundo da ima- Ce ginacdo, pode fazer com que o ser humano se dilua na infinidade amorfa. sg 5° cenario (fig. 20) Essa imagem mostra novamente um centro circular, cuja ago é determinada essencialmente pelas forgas pro- venientes dos quatro cantos. No centro o sol e a lua esto frente a frente e entre eles ha um cristal. Em volta deles 105 6% dancam, no circulo interno, seis figuras femininas ¢, no circulo externo, seis figuras masculinas. Assim como a Jua est no centro & esquerda, lado do sentimento e da imaginagao segundo a simbologia espacial, também do Jado esquerdo inferior chegam energias femininas, a mulher da estrela, a mée terra e uma figura materna redonda e camponesa. Sua oferenda é um recipiente, pro- vavelmente repleto de alimentos mundanos. Estao late- ralmente acompanhadas por conchas, abertas para cima, ‘como maos receptivas que contém o alimento espiri- tual. A direita, lado associado ao pensamento légico su- perior, esté o sol. Do lado inferior (pouco visivel) forgas masculinas, uma figura do Buda, um homem sdbio € uum xamé, duas espadas que aqui néo representam bata- Jha ou guerra, mas armas do espfrito, do saber, do ho- mem civilizado. Nessa imagem estdo reunidos os opostos superiores, 4, sole lua, natureza e cultura — podemos também dizer y energia primordial feminina e tecnologia masculina, numa coniunctio oppositorum, como os alquimistas a cha- v4 fmaram. £ ‘Nao é impressionante que a dindmica surja a partir da uniao dos opostos? Quanta alegria ¢ movimento as mulheres e os homens dangantes expressam! ‘Através do jogo dos opostos na danga, surge algo novo: o cristal. O cristal corresponde a “pedra”, a lapis no pro- cesso alquimico, que simboliza a preciosidade dificil de alcangar, o Si-mesmo. Os alquimistas diziam que a lapis consiste de corpo, alma e espirito, e que é um ser vivo. ‘Ainda podemos concordar com isso, pois a lapis, ou cris- tal, 6 simbolo do ser humano interno ou superior na sua totalidade.* 25 Jung, C.G., “Studien ber alchemistische Vorstellungen’, in: Gs. W. Vol 13, Olten/Freiburg i. Br: Walter 1978, p. 113 106 6° cenario (fig. 21) Essa imagem apresenta de maneira impressionante a elevacao dos opostos unidos em nossa imagem do Deus cristao. O cristo crucificado e 0 homem estao juntos. Es- to “em tensio” entre céu e terra, entre cima e baixo, direita e esquerda, com toda a tensdo surgida da sim- bologia dos opostos, somente tolerdvel através do olhar para dentro, para o proprio nticleo do ser, ou para fora, para a imagem de Deus. Dessa perspectiva, Cristo tor- nou-se figura central orientadora para Eva, enfrentando de forma curativa o lado negativo e dissolvente na psique de Eva. Resumo Nessas seis imagens, criadas de modo ainda muito inconsciente, torna-se visivel a primeira etapa do proces- so interno de Eva. Era claramente necessdrio que pri- meiro as forgas intensas dessas imagens primordiais fos- sem consteladas, fortalecendo Eva para o confronto com seu sofrimento, o que significava um confronto com toda a sua problematica interna. O efeito dessas imagens arquet{picas também € muito forte para os observadores neutros. Para Eva deviam ser muito mais intensos. Das profundezas da sua psique inconsciente vieram-Ihe for- gas que lhe possibilitavam lidar mais conscientemente com 0 seu sofrimento psfquico. ‘A proxima imagem introduziu uma longa série de imagens comoventes, que se estendeu por quase nove meses. Todas mostram de alguma forma o sentimento de rejeigéio e de abandono de Eva, sua dor ¢ a ameaga dos medos e visées de morte. Através da criagao e repetida visualizagao da problematica, aos poucos formaram-se forcas curativas opostas. Nesse perfodo pouco se conver- 107 G/ sou, As vezes de maneira indireta, com comentarios so- bre os cendrios, Como ja disse, procurei manter Eva na vida cotidiana, de maneira calorosa, porém cuidadosa, enfatizando 0 processo na caixa de areia. Oat T° cenario (fig. 22) U™ Com a imagem curativa de Cristo diante do olho in- terno, Eva pode representar sua problematica pessoal dos opostos. ‘Num lago redondo ha um quarto de lua. Do seu lado direito, a morte e o Diabo, aranhas e vermes horriveis representam sua ameaca interna e seus medos. Esse lado obscuro lhe estava muito préximo, dominando sua vida. ‘A esquerda, podemos ver a boa Mae Terra e uma su- bida para um templo, em cujo terceiro degrau esta senta- do 0 Buda, simbolo do prinefpio espiritual positive. O motivo central no quarto de lua representa a problema- tica de Eva. Sob a cruz vemos 0 seu proprio timulo. A crianga pequena representa, segundo ela, sua prépria alma entre um anjo claro e um anjo escuro, i.e, entre as forcas do bem e as forcas do mal. Para Eva era uma imagem de luto e do maior de- sespero. Para mim era uma imagem de esperanga. Por qué? Primeiramente porque vi que a lua era crescente (N.T:: No hemisfério norte o quarto crescente aponta para 0 lado esquerdo, assim como foi representado no 7° ce- nério. No hemisfério sul, a lua no quarto crescente esta voltada para o lado direito) ¢ ia ao encontro da luz plena eda vida. Além disso, percebi que o pequeno peixe bran- co no meio e 0 pequeno barco apontam para o lado es- querdo, 0 lado positivo. O peixe, enquanto fruto do mar, 6 antigo simbolo da fertilidade e da vida. Também é uma representacao da alma — neste caso, clara, indicando o bem. 108 yo = ” No final da sessao procurei cuidadosamente mostrar a Eva que nessa imagem também havia sinais de espe- ranga. Nesse momento, porém, ela nao conseguia aceitar isso. Mesmo assim, acho que a observagao cuidadosa con- tinuou a surtir efeito. 8° cendrio (fig. 23) ra duas metades. O lado direito representa o mundo exter- no, alegre, movimentado, colorido. A esquerda, Eva se encontra como um ser miseravel, encolhido sob controle) dos deménios vermelho e verde, que ela chamou de “in- veja” e “6dio”. Da esquerda superior 6 ameagada por uma cobra, da esquerda inferior pela morte. Ambas enchem Eva de medo e pavor. Ela quer chegar ao mundo colorido, mas 0 anjo negro da morte est na fronteira e a repele. Ele disse que ela nao tem direito ao mundo feliz e colori- do, pois pertence ao reino do medo e da morte. Embora a caveira e a cobra preta sejam assustadoras, nao podemos esquecer que ambas podem ser simbolos de transforma- 80 e renascimento.”"% ‘Também apés essa sessdo chamei cuidadosamente a atengio dela para o fato de que a imagem toda era a re- presentacao de sua alma e que, portanto, esse lado ale- gre e cheio de vida também existia nela. Desta vez Eva notou minha observacao. 0 extraordindrio no Jogo de Areia é justamente 0 fato de o analisando nao poder ignorar seu préprio cend- rio, mesmo tendo-o criado de modo inconsciente. Ele co- locou os elementos positivos e negativos na areia, ele se ‘Aqui se destaca a separagao nitida da imagem em c en "Jung, C. G., Gs, W.Vol. 12.A.a.0., p.172 sobre Schlange. (0.0. de C. G. ‘Jung, Petropolis: Vozes 1991, Vol. 1, § 184.) ‘B Jung, C. G., Gs. W. Vol. 12,A.a.0,, p. 105 sobre Totenschiidel, mortificatio, nigredo. (0. C. de C. G. Jung, Petropolis: Vozes 1991, Vol. 12, § $34.) 109 reflete na caixa de areia. No entanto, “ver as imagens refletidas da propria alma” ainda nao significa reconhe- cer e entender asi proprio. Todavia, no decorrer do traba- tho analitico, mais aspectos parciais sdo gradativamente jluminados, ou seja, conscientizados, até que uma ima- gem coerente da alma se torne reconhecivel. 9° cenario (fig. 24) ‘Aqui vemos de novo uma colina redonda dentro de um circulo protetor, No centro, Eva esta deitada na ter- ra, pregada. Uma mulher se afasta dela, andando para tras, Esta Ihe enfiara o punhal na barriga, onde ha uma ferida aberta, ensangiientada, da qual jorra muito san- gue. Atras de Eva, porém, esta a rainha do céu diante de uma cruz verde, protegendo-a. Primeiro uma imagem provoca no observador um sentimento de dor, sofrimento e compaixio. Até 0 obser- vador se sente profundamente atingido no coragao e na barriga. A corrente de sangue jorrando do centro da vida feminina lembra-nos menstruagdo e aborto, ou qualquer ferida muito profunda no nucleo da alma feminina. Em sueco titero chama-se livmoder, mae da vida, uma expres- sdo pequena da esséncia do ser que “gera vida”. A ele nao $6 pertence o que engloba a relacdo com a mde, a femini- lidade, a maternidade e a natureza, mas também 0 cam- po da alma, o inconsciente criativo. Aqui, de modo espe- cial, Eva fora gravemente ferida, e a figura andando para tras representa todas as vivéncias e todas as pessoas que Ihe provocaram essas feridas. ‘Neste momento pego que os leitores e as leitoras re- flitam sobre onde e como diariamente ferimos material ou psiquicamente a esfera da mae da vida. Quando nos lembramos da primeira imagem da coli- na primordial ou do ventre materno, vemos que “a barri- 110 8 I a enor ga” agora est aberta e expde o seu sofrimento, Olhando melhor, reconhecemos, porém, um quarto de lua no cir- culo interno. E, como disse Eva, “a lua unida ao sol”. Tam- bém a presenca da rainha do céu diante da cruz verde indica que essa colina é lugar de sofrimento, mas tam- bém de cura. Essas trés imagens estdo no lugar de muitas ima- gens de sofrimento, mencionadas anteriormente, da morte animica, do medo interno e do tormento da culpa, que Eva representou durante nove meses. O timulo, a caveira e 0 anjo da morte, 0 ser crucificado e 0 sangra- mento, como se fosse de uma gigantesca menstruagao, sdo todas representagoes simbélicas do estado psicolé- gico de uma pessoa que encontrou a escuridao, o reino das sombras, e vivencia com isso a morte de sua atitu- de consciente diante da vida. Em muitas imagens nao expostas aqui, Eva se representara com 0 corpo esquar- tejado. O motivo do esquartejamento da personalida- de atual e sua decomposi¢ao s40 motivos bastante di- fundidos na mitologia, nos contos de fada e nos rituais de iniciagao.” O esquartejamento, a morte e a decomposigao da es- trutura psicolégica essencial do ser humano sio chama dos no processo alquimico de “nigredo” — escurecimento, enegrecimento ou “mortificatio” — assassinio. A nigredo significa 0 encontro do ser humano com a noite, com a escuridao pessoal ou coletiva, até entao inconscientes para ele. Com isso, o Eu, a atitude consciente vivida até entao, é abalado ou dissolvido de tal modo que pode ser compa- rado com uma morte psiquica. Depois, porém, no ponto mais profundo da escuridao, da perplexidade e do deses- pero, aparece uma nova luz na alma, assim como experien- Sobre Zerstiickelung veja 2. B. Eliade, Mircea, Schamanismus und archaische Ekstasetechnik. Frankfurt!M: Suhrkamp 1975, p. 458s, 11 pel pore wen ciamos no ciclo anual no Natal, no solsticio de inverno (N. T.: no hemisfério norte, o solsticio do inverno aconte- ce em dezembro, préximo do Natal; no hemisfério sul ele acontece no més de junho, tempo das festas juninas). Dentro e fora vivenciamos os mesmos processos (ver p. 33ss), depois da “nigredo” segue a “albedo”, o alvejamento ow alvorada, no ciclo anual na primavera, e a “rubedo”, a vermelhidao, o nascer do sol ou 0 vero. Isso significa que apés a dissolugiio, a morte psicolégica no ser huma- no, forma-se novo estado de consciéncia, nova maneira de ser, mais clara e ampliada. Do exposto se conclui que a época da “nigredo” 6 épo- ca muito dificil para analisando e analista, pois € acom- panhada de imagens, pensamentos e desejos de morte ¢ idéias de suicidio. Mas essa passagem pela escuridao nao deve ser amenizada ou evitada pelo analista, pois 0 con- fronto com a caveira, a reflexao sobre a morte e sobre a eternidade parecem ser condi¢do para uma verdadeira transformagao. Conforme diz Jung, 0 erescimento da cons- ciéncia parece ser possivel somente através da experién- cia da morte.*° Para Eva, de um lado, a época da “nigredo” signifi- cou certo alivio, pois, através da modelagem na areia, ela pode gradativamente elaborar sua problematica. De outro lado, contetidos psiquicos, até entao inconscientes para ela tornaram-se concretamente visiveis. Seus la- dos negativos, como, por exemplo, a inveja eo édio, Ihe deram muito trabalho. Mas o mais importante era que ela suportasse e aceitasse sua prépria tendéncia & escu- ridao e A dissolugao, bem como seus desejos de morte. Mesmo que as pessoas ao seu redor rejeitassem e con- %0 Sobre Todeserfahrung veja Jung, C. G., Gs.W. Vol 16. Olten/Freiburg Br: Walter 1958, p. 284s. (0. C. de C. G. Jung, Petrépolis: Vozes 1988, Vol. 16, §§ 4675s.) 112 denassem esse lado seu, ela precisava aprender a con- viver com ele, pois aparentemente ela é uma dessas pes- soas das quais a morte e a escuridao séio companheiras constantes. gy Gn otento V2 toms Le Swe ame oe 10° cendrio (fig.25) co. ye tte - Eva criou essa imagem aproximadamente quatro semanas depois. Nela temos uma caravana carregada de bens, conduzida por um guia para o centro de uma espi- ral. Embaixo, a esquerda, cereada por um circulo de pe- dras, Eva esta deitada como crianga pequena. Seu cor- dao umbilical conduz até um casal de pais, amarrados. Isso, porém, esta separado do resto do acontecimento por uma parede de vidro, e o cordao umbilical também esta rompido, Acrianga nao tem portanto qualquer ligago com 0s pais, ¢ esta abandonada e isolada. Eva via sua situa- 0 consciente dessa forma. Mas algo diferente ¢ expres- so pelo motivo central inconsciente. Acspiral como forma simbélica se parece com o labi- rinto. Nas iniciagdes, especialmente, entrar e sair de uma espiral significa morte simbélica e renascimento simb6- lico. O iniciante, por exemplo, entra no corpo da Mae Ter- ra, para lé morrer e renascer. Por isso a espiral também 6 um simbolo do titero."' Encontramos freqtientemente no Jogo de Areia a forma da espiral com entrada e saida definidas. Ela representa, portanto, os érgios sexuais femininos, podendo ser, conforme 0 caso, expressio de fecundacdo, gravidez ou parto. Nessa imagem acontece uma fecundacao na profun- didade do inconsciente por meio das forcas nutritivas. E acontecimento muito importante e esperangoso, e contras- % Sobre Spirale veja Duerr, Han Peter, Sedna. Frankfurl/M.: Suhrkamp 1984. Insb. Kp. “Die Herrin des Labyrinths", p. 142ss. 413 © 4

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