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discurso (25), 1995: 69-95 Terapia e Vida Comum Plinio Junqueira Smith* Resumo: O artigo traga, em primeiro lugar, uma disting’o entre dois tipos de ceticismo, 0 terapéutico, ‘em que a cura do dogmatism 6 a idéia motriz, ¢ 0 fenomenista, cuja preocupagio central ¢ a descrigdo da vida comum. Em seguida, examinam-se as nogdes de terapia ¢ de vida comum, na tentativa de depurar ou aperfeigoar o ceticismo, chegando-se 4 conclusao de que a terapia cética mais coerente deve restringir-se ao proprio caso e de que a descrigo da vida mais conforme & atitude cética confina-s¢ 4 experiéncia pessoal. Por fim, formula-se uma posigio cética, na qual predominam os aspectos terapéutico e autobiogrifico. Palavras-chave: ceticismo — fenémeno — terapia — vida comum “Um verdadeiro cético sera desconfiado de suas dividas filoséficas, bem como de sua convicgao filos6fica.” Hume, A Treatise of Human Nature. 1. Nada mais util do que tragar uma distingao historicamente inade- quada. Sua utilidade reside na nitida separagao de tendéncias diferentes que uma outra andlise poderia nao dissociar. Distingamos, pois, sem mais demo- ra, entre o ceticismo terapéutico e 0 ceticismo fenomenista, mais ou menos como Hume distinguia entre o ceticismo excessivo e 0 ceticismo mitigado. Em que consiste a diferenga? Em linhas gerais, 0 cético terapéutico preocu- * Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Parana. 70 Smith, P.J., diseursa (25), 1995: 69-95 pa-se em curar o dogmiatico de seu dogmatismo, em gesto bastante altrufsta, pois resulta de sua filantropia. Tendo aleangado a tranqiiilidade, ele deseja que outros homens, iguais a ele, alcancem esse estado da alma tio agrada- vel. Nesse sentido, oferece uma série de técnicas ¢ de argumentos que, se devidamente examinados, conduzirao, por meio da Suspensao, o seu interlo- cutor ao mesmo reconfortante estado, O cético terapéutico é, portanto, aquele que ressalta o fim meramente critico ou negativo da atividade filosfica: a sua tarefa seria a de combater e desiruir as filosofias dogmaticas, por sua vez, procura descrever nossa vida co- mum sem jamais ultrapassar os limites da experiéncia, isto é, sem jamais incorrer no erro de dogmatizar. Essa descrigao obedece Aquilo que se ofere- ce A nossa observagao € constitui seja uma espécie de ciéncia empirica bas- tante geral, seja um conjunto mais ou menos sistematico de observacées e andlises de nosso esquema conceitual ou linguagem. Percebe-se claramente que 0 ceticismo fenomenista se preocupa menos com a destruigio das teses dogmiaticas do que com a construgao néo-dogmatica de um saber fenoménico. A descrigao da vida comum, de nosso esquema conceitual ¢ a elaboragao de uma nogao de ciéncia, por exemplo, seriam tarefas presentes no horizonte do cético fenomenista, Mais interessante do que meramente criticar 4 exausta empreendimentos filos6ficos é produzir descricées ou hipéteses aceitaveis a respeito de um tema filos6fico tradicional. Evidentemente, trata-se de uma distin¢ao analitica, que nos permite identificar duas tendéncias do ceticismo, embora seja mpossivel separar ra- dicalmente esses dois tipos que descrevi brevemente. De fato, todo ceticis- mo comporta um elemento terapéutico ¢ um elemento fenomenista; no entanto, alguns céticos enfatizam o aspecto terapéutico, enquanto outros enfatizam 0 aspecto descritivo. Aceitando essa distingiio, poderiamos pro- ceder a uma classificagdo dos céticos, igualmente inadequada do ponto de vista histérico. O time dos céticos terapéuticos teria a seguinte escalacdo: Pirro, Arcesilau, Sexto Empirico e Wittgenstein: 0 time dos céticos smith, P.J., diseurso (25), 1995; 69-95 71 fenomenistas jogaria com a seguinte formagio: Carnéades, Enesidemo, Montaigne, Hume e Quine. No Brasil, Porchat jogaria paciéncia no time dos céticos fenomenistas. Utilizando essa distingao para interpretar a evolugdo do pensamento de Porchat, pode-se dizer o seguinte: em seu primeiro texto, “O Conflito das Filosofias”, Porchat defendeu uma postura basicamente cética terapéutica, em que sua grande luta era derrotar 0 /égos, esse grande senhor. A seguir, ele abandonou o ceticismo em favor de um realismo de senso comum e, agora, a0 assumir novamente a postura cética, Porchat aproxima-se do ceti- cismo fenomenista, mas com um vicio que o uso freqgiiente do cachimbo costuma deixar: a nogdo de homem comum presente no seu ceticismo talvez seja uma heranga do seu realismo de senso comum anterior. E uma questo em aberto saber se a nogdo de homem comum é concilidvel com um ceticis- mo conseqiiente. De qualquer maneira, a légica do desenvolvimento de suas posturas € ainda a da recusa do [dgos: sempre que Porchat julga ver um resquicio de [éges em seu pensamento, ele trata de expurgd-lo e constréi uma nova posiciio. Nada mais natural, enti, que seu pensamento desembo- casse no ceticismo. E, é necess4rio acrescentar, nao em virtude de uma in- consisténcia que o faz balangar entre dogmatismo e ceticismo; 0 que mostra que se pode acertar nas previsdes, sem acertar na identificagdo das causas. Mas seu pensamento deveria dar mais um passo adiante ¢ retornar ao ceti- cismo terapéutico que o anima. € precisamente aquilo que resta quando se praticou a suspensao do juizo a Tespeito das teorias dogmiaticas. Nesse sentido, 0 ceticismo terapéutico tem uma precedéncia ldgica sobre o ceticismo fenomenista e é por ele que vamos Comecar nossa investigagao. sso é evidente a p: 72 Smith, P.J., diseurse (25), 1995: 69.95 distingao fundamental do pirronismo, que retomamos mais acima, entre 0 fenémeno ¢ o que se diz sobre 0 fenoméno. Todo 0 empenho do cético terapéutico consiste em suspender 0 jufzo sobre o Idges acerca do fendme- no. Sua habilidade é precisamente a de saber argumentar dos dois lados de uma questdo para equilibré-los em termos de persuasfo. Ora, argumentar aqui € discursar e o termo empregado por Sexto Empfrico ¢ /6gos. Também Wittgenstein se refere 4 luta contra o enfeitigamento da linguagem. Se to- marmos [égos em seu sentido primeiro e mais geral, como discurso, entdo se pode dizer que a filosofia de Wittgenstein também é uma luta contra 0 logos tradicional que predominou ao longo de toda a historia da filosofia ou, se se preferir, contra a razio dogmiatica. A nogao de [égos aparece como contraposta a de fenémeno nos textos pirrdnicos. Poder-se-ia, talvez, pensar com Stough e, sustentando que os fendmenos se reduzem is impressdes sensiveis, interpretar 0 dominio do égos como 0 dominio do inteligivel. Mas Burnyeat sustentou persuasiva- mente que, por “fendmenos”, os pirrdnicos nao entendiam apenas as impres- sdes sensiveis, mas também as representagées inteligiveis. Uma outra definigao de ldgos se faz necessdria. Poder-se-ia, entdo, com apoio nas ana- lises de Williams, opor aquilo que € préximo ¢ est4 presente em nossas vi- | das, e que nao pode ser posto em diivida se visamos a tranqililidade da alma € a agdo no mundo (o “fendmeno”), aquilo que esta distante e nao diz dire- tamente respeito 4 nossa vida (0 “Idgo. em principio, segundo essa vi- sao, 0 pirrénico deveria duvidar de tudo, mas a pratica imporia limites imprecisos ¢ varidveis a dtivida cética. Ess; terpretag4o, contudo, torna o pirronismo um pensamento estranho, se nfo sem sentido; pois o que signifi- ca dizer que 0 cético nao pode duvidar dessa escrivaninha, mas, se alguém o pressionar argumentativamente, ele ter que suspender 0 juizo a seu respei- to, ainda que a contragosto? Podemos recorrer a Wittgenstein e opor o discurso filos6fico (particu- lar) ao discurso comum (de todos): 0 Idgos teria a mesma extensio que 0 discurso filoséfico, enquanto o discurso comum faria parte do mundo prati- co, que est imune a diivida pirrénica. Nesse mundo pritico, as condigdes comuns de uso garantem a significatividade das palavras, ao passo que, no seu uso filoséfico, as palavras careceriam de significado, sobretudo devido a smith, P-J., diseurso (25), 1995; 69-95 73 uma generalizagao indevida de um significado particular que se pretende impor a todos os demais usos da palavra. O ldgos €, nesse sentido, se quiser- mos dar uma defini¢do bastante geral e imprecisa, a articulagao discursiva de palavras, frases e argumentos que visa estabelecer acerca daquilo que aparece 0 que deve ser tomado como real ¢ o que nao deve ser tomado como real, isto é, visa a elaboraciio de uma teoria supracientifica que modificaria nossa Visao de mundo ¢ seria verdadeira. Pode-se formular a mesma idéia de outra maneira: 0 [dges é o discurso que pretende dar sentido absoluto aquilo que aparece para nés. “Dar senti- do” significa aqui explicar nossa experiéncia, articular um discurso que re- vele para nés como devemos interpretar as vivéncias que temos. Nessa pretensio, estd embutida também uma outra, a de que ha um tnico tipo de discurso que esclarece e resolve os problemas apresentados pela filosofia. Trés aspectos parecem-me fundamentais para entender a nogao de légas: 1) exclusividade: 0 discurso filoséfico exclui os demais discursos, pois um sen- tido absoluto é um s6 e néo admite varios tipos de discursos ao mesmo tempo; 2) universalidade: o discurso filos6fico que revela o sentido verda- deiro de nossas vivéncias revela o mesmo sentido para todos os homens; isto é, nao se trata de revelar um sentido particular, de validade restrita no tempo € no espago, para uma determinada cultura, mas se trata de revelar o sentido global da experiéncia comum de todos os homens; 3) necessidade: o discur- 80 filoséfico impde-se com necessidade — suas premissas so inquestiondveis suas dedugées, as mais rigorosas possiveis; quem quer que examine racio- nalmente e com isengao seus argumentos vera que suas proposigdes se enca- deiam da forma mais coesa possivel. E preciso matizar, a partir dessa compreensdo do discurso filos6fico, o contraste presente na elegante distingdo de Strawson entre uma metafisica Tevisiondria e uma metafisica descritiva. Strawson entende que hd duas ma- heiras de ser metafisico: por um lado, pode-se pretender alterar nossa visao de mundo a partir de uma reformulagdo mais ou menos geral de nossos con- Ceitos, como pretenderam, por exemplo, Descartes ou Berkeley; mas pode- Se também apenas descrever nossa visio de mundo ao articular explicitamente a estrutura conceitual de que dispomos habitualmente, como fizeram, aos olhos de Strawson, Aristételes ¢ Kant. Ora, parece-me nao ser uma compre- 74 Smith, P.J., disewrso (25), 1995: 69-95 ensao adequada de Aristételes, em que pese ao seu extremo realismo ¢ bom senso, nem de Kant, por mais que este nfo pretendesse mo ‘aro pensa- mento comum e as ciéncias, mas apenas legitimar nossos conhecimentos ja estabelecidos e, sobretudo, desfazer as ilusdes naturais da razdo, Ambos pretendiam dar um sentido absoluto e insuspeitado as nossas experiéncias, isto é, dar um sentido que ninguém até eles teria percebido. Para isso, elabo- raram um discurso bastante sofisticado em que nossas experiéncias deve- tiam ser vistas sob um novo angulo, em que, como um prisma analisa a luz ¢ nos mostra as diversas cores contidas na luz branca, analisam nossa experi- encia e revelam elementos com os quais sequer sonhdvamos. A diferenga do prisma, no vemos com os olhos, mas com 0 intelecto, e nem todos véem as mesmas cores. Pouco importa se Arist6teles, Kant ou Strawson tém uma pretensdo mais modesta do que a maioria dos outros filésofos; se, ao invés de transformar nossa visio de mundo, eles pretendem apenas descrever aquela que jd temos. Importa que, ao descreverem nossa visdo de mundo, eles re- correm a categorias que nao fazem parte de nossa visio de mundo ou dio a elas um emprego diferente daquele que elas usualmente tém, Em outras pa- lavras, uma metafisica descritiva, embora nao pretenda alterar nosso esque- ma conceitual, atribui a ele um sentido que antes era oculto. E, em tltima andlise, uma tal alteragao de sentido de nossa visio do mundo equivale a alterar a nossa visdo do mundo, Evidentemente, deve-se fazer uma distingdo de graus nessa alteragiio de sentido que € comum a todos os empreendimentos metafisicos. Strawson, certamente, € dos que menos altera nossa visio de mundo e Aristételes pa- tece preservar boa parte dela. Mas, a meu ver, Kant é tao revisionario quan- to Berkeley, se nfo mais, se lembrarmos que Berkeley sempre pretendeu ser um advogado do senso comum... Dever-se-ia, ent&o, analisar caso a caso o quanto ha de “metafisico” em cada filosofia, no sentido de ver até onde elas distorcem nossas experigncias ¢ até onde elas podem ser incorporadas num discurso fenomenista sobre a vida comum. O que 0 cético terapéutico pretende é recusar todas essas alteragdes de sentido que as metafisicas propéem através de seus dogmas, isto 6, de suas teses ou hipéteses filoséficas. Com essa finalidade, os pirrénicos elabo- raram os Modos de Enesidemo e de Agripa; também com essa finalidade, Smith, PJ., discurso (25), 1995: 69-95 75 Wittgenstein propés a terapia como a atividade filoséfica por exceléncia. Limitar a filosofia 4 terapia tem a vantagem de nao dar margem a um discur- so que, ainda que fenomenista, possa porventura incidir em elementos dog- miaticos. Na medida em que nos limitamos a recusar outras doutrinas filosdficas, ndo ha por que temer cair em dogmatismo. Sem teses, 0 risco de permanecer preso ao /dgos filoséfico parece nao passar de um mero medo subjetivo. O cético terapéutico é, assim, 4 sua maneira, um defensor do ho- mem comum: recusando todas as alteragées de sentido que os filésofos pro- poem de nossa experiéncia, o cético terapéutico preserva-a. E seu zelo é tal, que ele se arrisca a sequer elaborar um discurso fenomenista sobre 0 cardter mais geral de nossa experiéncia. Um dos aspectos do ceticismo terapéutico é 0 de que 0 objeto de ana- lise, terapia e cura é o discurso alheio, a metafisica do outro. O cético terapéutico entende que o dogmatico incorre em um erro discursivo: ao for- gar um uso da linguagem sobre outros usos, ao nao ver os discursos que se podem aduzir com igual forga dos dois lados de uma questao, cle é levado a sua teoria metafisica. Nos dois casos, diagnostica-se uma parcialidade do dogmiatico ao erigir sua teoria, julga-se que este nao investigou a questao com racionalidade e isengao. A solugao é propor-lhe um exame completo da questo, seja mostrando-lhe os diversos usos de uma palavra, seja os outros argumentos de igual forg¢a em sentido contrario aos de sua tese. Nessas duas praticas do ceticismo terapéutico, portanto, parece estar presente a idéia de que uma andlise mais racional e isenta da quest&o evitaria o dogmatismo. Haveria, assim, uma espécie de resultado racional unico para todos os ho- mens: a desisténcia de todo teorizar. A partir desse aspecto da terapia, alguém poderia levantar uma objegao. ao ceticismo terapéutico, pois este parece preservar aquelas caracteristicas definidoras do discurso filoséfico, uma vez que supde haver um tinico tipo de discurso racional que estabelece um resultado Ginico para todos os homens. Tudo se passa como se 0 cético terapéutico nao se tivesse libertado daquelas trés caracterfsticas: ele quer excluir 0 dogmatismo, impondo-se como tinica alternativa filoséfica vidvel; ele quer ser a conseqiiéncia Iégica do uso da reta raza@o; e quer impor-se a todos os homens. 86 que com uma diferenga: em vez de levar 4 verdade, 0 exereicio pleno da razao nos levaria 4 suspensio. 76 Smith, PJ., discurso (25), 1995; 69-95 do juizo. Evidentemente, trata-se de um fim bem mais modesto do que aquele pretendido por todo dogmatismo, mas ainda assim pode-se talvez ver af uma arrogancia de natureza similar A arrogancia de ter descoberto a verdade: a arrogancia de ter encontrado © caminho mais racional e que todos os homens que quiserem ser inteiramente racionais deveriam trilhar. E justa essa objecao? Entende 0 cético terapéutico que ha apenas um nico bom uso da racionalidade, aquele que nos conduz ao ceticismo? Pres- supe a terapia uma espécie de légos ou raziio universal? Ha varios argu- mentos que se poderiam invocar para mostrar a injustiga que se comete contra © ceticismo terapéutico, A melhor maneira de responder a essa objegao é examinar sucessivamente cada uma das caracteristicas do discurso filoséfi- co e ver em que medida o discurso cético terapéutico é tributdrio delas. Comecemos, pois, pela exclusividade. Parece-me um equivoco alinhar 0 discurso cético terapéutico ao lado dos demais discursos filoséficos. Nao se trata de um discurso que exclui outros discursos de mesma espécie, mas é melhor dizer que se trata de uma prdtica filos6fica que exclui todos os dis- cursos filos6ficos. Por ser uma pritica dialética, o cético terapéutico usa as armas do adversdrio para refutd-lo, isto é, faz voltar contra o dogmiatico o seu préprio tipo de discurso, o que da a ilusdo de que as caracterfsticas do discurso filos6fico também Ihe pertencem. Mas é preciso notar que aqui nao se oferece uma posi¢ao filoséfica, porque nao hd teses a serem propostas, mas apenas a recusa das alternativas filoséficas que estao diante de nds. A exclusio terapéutica dos discursos filoséficos nao é assimildvel A exclusiio dos demais discursos por um discurso particular. O que € curioso, nesse tipo de objecdo, é que se tenta encontrar um “terceiro excluido” para a alternativa “ou vocé aceita um dogma (e torna-se um dogmiatico) ou vocé nao aceita os dogmas (e torna-se um cético)” e, dessa maneira, transformar o ceticismo em uma posigio filoséfica particu- lar como as demais. Em vez de aceitar um dogma, o cético aceitaria, por assim dizer, um nio-dogma; ¢ isso, por sua vez, consistiriaem algo andlogo a aceitagiio de um dogma. Assim, poder-se-ia incluir 0 ceticismo na mesma classe em que os fildsofos estéo incluidos e substituir aquela alternativa por algo como essa outra: “Ou vocé aceita algo, seja um dogma ou um nio- dogma, ou vocé nao aceita nem nao aceita um dogma”. Essa maneira de Smith, PJ., discurso (25), 1995; 69-95 7 recusar 0 ceticismo € uma tendéncia comum. Mas € evidente que essa tercei- ra posicao ou é ininteligivel ou é exatamente a mesma que a cética, porém confusamente expressa. Pois, de um lado, que posigao pode ser essa que nem aceita, nem nao aceita dogmas? E, de outro, se isso significar somente uma recusa de todas as posig6es filoséficas, incluindo o dogmatismo negati- vo, nado estarfamos voltando, sem o saber, 4 posigdo cética corretamente entendida? Poder-se-ia dizer que 0 ceticismo aceita as questées filos6ficas, recu- sando apenas suas respostas, enquanto se poderia recusar as proprias ques- tdes como desprovidas de sentido. Aquela terceira posi¢do consistiria, assim, em uma recusa mais radical da filosofia: enquanto 0 cético ainda coloca as mesmas questées da filosofia, apenas silenciando quanto as possiveis res- postas, alguém poderia nao aceitar nem o dogmatismo, nem 0 ceticismo, porque ndo aceita a raiz comum dessas duas posigGes, a saber, 0 pressupos- to de que as questoes filoséficas tém sentido. Observemos, entretanto, que essa posigiio nao é incompativel com 0 ceticismo™, pois este nao diz que as questées filoséficas tém sentido, mas somente que ele nao aceita o dogma- tismo, como se vera a seguir. Observemos também que a exclusao dos discursos filoséficos por um outro discurso filoséfico € definitiva, porque todos eles sao vistos, a partir dessa perspectiva supostamente verdadeira que se instaura, como falsos. Ora, tal ndo é o caso da exclusao cética: 0 cético apenas julga que nio foi capaz de descobrir a verdade e continua a investigd-la; ou seja, nenhum discurso é definitivamente condenado como falso. Além disso, para ser falso, um dis- curso tem que ter primeiro sentido e é sobre esse ponto que 0 cético terapéutico insiste: cle nao consegue apreender o sentido dos conceitos ¢ das proposigées dos dogmaticos ou, 0 que € o mesma, os dogmaticos nao conseguem dar sentido ao seu discurso. E nao se pode aceitar aquilo que nao se consegue entender. Um discurso dogmiatico exclui o outro porque, julgando entendé-lo, declara-o falso a partir de sua propria verdade; o dis- curso cético (se quisermos chamar assim a pratica cética) exclui os discur- sos dogmaticos porque nado foi capaz de apreender seu sentido, nem sua verdade (caso concedéssemos significatividade a eles), ab: Smith, P.J., discurso (25), 1995: 69-95 De qualquer forma, alguém poderia insistir, ha a pretens&o universal de dissuadir. Pode-se reconhecer trangililamente que o cético terapéutico nao tem a pretensao de persuadir o interlocutor de uma tese, porque ele ndo prop6e teses, mas, ao fim e ao cabo, seja persuadindo ou dissuadindo, man- tém-se aqui a validade universal de uma proposta pratica: todos deveriam suspender 0 juizo, se procedessem conforme manda a razio. Passemos, entao, 4 universalidade. Antes de mais nada, cabe lembrar que Sexto Empirico descreve 0 cético como um homem dotado de uma ha- bilidade especial, o que parece implicar que nem todos poderdo tornar-se céticos. Cabe lembrar também o cardter pontual e nao sistematico do questionamento pirrénico, bem como da terapia wittgensteiniana: jamais cles pretendem dissolver de uma vez por todas os problemas filosdficos; ou me- lhor, eles jamais pretendem aniquilar todos os dogmas de uma s6 vez; pre- tensdo essa bastante inadequada 4 modéstia habitual dos céticos terapéuticos, O cético terapéutico propée argumentos com diferentes forgas contra diferentes filésofos dogmaticos: conforme a inteligéncia de cada um, diz Sexto, ¢ conforme o grau de seu dogmatismo, precisaremos de terapias mais ou menos fortes. De outro lado, cada problema filos6fico suscita diferentes ordenagées de nossas observagoes lingiiisticas, até que por fim consigamos clarear a dificuldade que nos impde determinada teoria. Nesse processo de esclarecimento, € preciso atentar para aquilo que o dogmiatico gostaria de dizer, mas nao pode, o que implica uma atengao particular a cada dogmiati- co. Assim, deve-se interpretar o cético terapéutico como propondo argu- mentos que, em tiltima andlise, nao podem ser generalizados. Nesse sentido, a argumentagao terapéutica é eminentemente ad hominem e jamais postula uma racionalidade universal que se devesse impor a todos os homens. Acres- cente-se a esse ponto o carater dialético da argumentagGo terapéutica, o que sugere que 0 cético terapéutico faz voltar contra cada dogmatico as armas que 0 préprio dogmatico emprega: é um discurso filos6fico particular que se volta contra si mesmo. Assim, com base nesse argumento, que esclarece parte da natureza da terapia cética, pode-se recusar a atribuigao de universalidade a terapia e, portanto, que a idéia de terapia seja um elemento de dogmatismo inerente ao ceticismo terapéutico, Apenas uma m4 compreensao de como se realiza a ‘Smith, P-J., discurso (25), 1995; 69-95 79 terapia permite uma afirmagao como a de que o ceticismo terapéutico incide naquele vicio tradicional, a saber, o da universalidade de um tinico tipo de discurso. A terapia cética é, efetivamente, uma terapia multipla, que se diri- ge a cada dogmatico em particular e em fungao dos aspectos proprios de sua doutrina, O que é decisivo para rejeitar a pressuposigao de uma tinica tera- pia, ou um tinico tipo de terapia, para todos os homens, Essa resposta, embora inteiramente satisfatéria, a meu ver, pode nao parecer assim a olhos alheios. Pois a objegao dizia que a suspensao do juizo, aser alcangada por meio da terapia, deve ser praticada por todos os homens, enquanto a resposta diz somente que ha varios tipos de terapia, nado um nico tipo. Ora, parece evidente que nao se respondeu 4 objegao, uma vez que nao se acusava o cético de oferecer um Gnico remédio universal, mas sim de ter remédios para todas as doengas. Entretanto, percebe-se que a resposta € inteiramente satisfatéria quando se vé que o pluralismo das tera- pias é uma forma de reconhecer que nao se podem prever todas as doengas do entendimento, e que nao dispomos de remédios para todas elas. A plurali- dade das terapias esta associada 4 possibilidade de novos dogmatismos ¢ ao reconhecimento das profundas diferengas que vigoram entre eles. Nada garan- te, a priori, que as terapias céticas sejam eficazes contra todas as formas de dogmatismo, também porque muitas delas nado foram ainda sequer inventadas. Um outro aspecto, entretanto, ainda poderia incomodar o critico do ceticismo terapéutico. Ainda que admitamos que toda terapia é particular, testa que o cético terapéutico fala de um exame completo da questao em oposi¢&o a um exame parcial e precipitado. Nao estar4 af uma contradig¢io no discurso pirrénico? Ao mesmo tempo em que reconhece a natureza pon- tual de sua argumentagao ad hominem, ele postula a completude de sua investigagao das questées filos6ficas e, assim, que a terapia é necessariamente eficiente. Pelo menos para as doencas conhecidas, o remédio é infalivel. Essa Postulagao parece ser, se nao um dogmatismo, pelo menos um resquicio de dogmatismo, pois pressupde que a razdo é capaz de dar o veredicto final a respeito de uma questio. Permanece intocada a idéia de que um exame com- pleto leva necessariamente 4 suspensao ou, em outras palavras, que hd um légos ou uma razdo necessaria ao qual os homens se devem submeter. 380 Smith, P.J., discurso (25), 1995: 69-95 Chegamos, assim, as respostas 4 terceira caracteristica do discurso fi- los6fico, a necessidade de suas proposicées. Também aqui se pode ver uma injustiga dessa objegao. Naturalmente, 0 cético terapéutico deixa em aberto a possibilidade de novos argumentos no considerados virem a estabelecer um dogmatismo, definindo sua investigacdo como uma investigagao perma- nente e aberta. E assim a atribuigao ao cético terapéutico de um exame com- pleto de uma questo revela-se inadequada, Se era essa a objegao ao ceticismo terapéutico, entio essa insatisfagdo pode ser removida coma simples obser- vancia de que o cético terapéutico jamais considera seu exame terminado: uma recaida no dogmatismo é sempre possivel. A satide é um estado preca- rio que s6 inspira cuidados... Além disso, 0 cético terapéutico reconhece que o seu discurso & ape- nas a narrativa de sua experiéncia filos6fica; sua intengdo de curar o dogma- tico néo implica a pressuposigao de um caminho tinico a ser seguido: nao ha um método em filosofia, mas métodos; nao hd um modo, mas modos que nos conduzem A suspensio. Tudo o que o cético terapéutico oferece é 0 caminho que ele préprio trilhou, que o dogmatico pode ou nao tomar como modelo, para chegar a suspensio e tranqililidade. Nao haa pretensao de que esse caminho, uma vez que tenhamos enveredado por ele, conduza de modo seguro ao seu destino final. Se por esse caminho nao der certo, tentemos por outro, € por mais outro... Esse ponto se mostra ainda mais claramente de outra maneira: nfo ha, propriamente falando, argumentos céticos, mas apenas argumentos dogmé- ticos que o cético dispde de certa mancira para que eles, conflitando uns com Os outros, se neutralizem e se anulem mutuamente. Resulta daf a sus- pensado e, em seguida, a tranqiiilidade. Essa relagdo entre argumentos conflitantes e suspensio do juizo nao é uma relacfio necessdria, nem uma inferéncia légica, mas é uma vivéncia do cético. Também a tranqiiilidade segue a suspensao, diz Sexto, como a sombra acompanha o corpo. A histé- ria do pintor Apeles, lembrada também por Sexto, ndo tem outra finalidade sendo a de ressaltar a contingéncia ¢ o acaso dessa relaciio, Ora, nada garan- te, do ponto de vista cético, que 0 interlocutor passard pela mesma experi- €ncia ou que, ao ver o conflito das opinides e argumentos, ele suspenda o juizo e alcance a tranqiiilidade. Para se assegurar que nao ha relagfio neces- ‘Smith, P.J., discurso (25), 1995: 69-95 81 sdria entre o conflito das filosofias e a suspensio do jufzo, basta lembrar aquelas filosofias que integram a historia da filosofia dentro de seu prdprio sistema, como fazem Aristételes, Hegel e Heidegger, por exemplo. E para se assegurar de que nao hd relagio necesséria entre a suspensio do juizoe a tranqiiilidade, basta lembrar a metéfora empregada por Descartes, no come- go da Segunda Meditagéo, ou Hume, ao se confrontar com a divida cética radical: em ambos 0s casos, segue-se 0 desespero. Nao ha logos no ceticismo terapéutico, mas apenas vivéncias e experi- éncias. Assim, parece que 0 cético terapéutico recusa um tinico modelo de racionalidade ou de um campo racional comum em que nossas discussGes se moveriam, Nao ha, pressuposto pela terapia cética, um /égos universal divi- no, nem um /dgos humano genérico, nem sequer um /dgos necessariamente compartilhado entre dois homens, E preciso notar, de outro lado, o caminho pelo qual as sucessivas res- postas nos conduziram: ao esclarecermos a natureza da terapia e ao afastar- mos os mal-entendidos contidos na obje¢io, fomos paulatinamente expurgando todo e qualquer elemento de generalidade ¢ enfatizando a particu- laridade de cada terapia: nfo hd argumentos validos para todos os dogmati- cos, os argumentos dependem da teoria a ser tratada, nada garante que uma revisdo futura da questao nao altere o seu resultado, os argumentos siio objetos de experiéncias pessoais de cada um. Tudo se passa como se a tera- pia, para ser uma nogiio coerente com o préprio ceticismo, devesse ir abrin- do mao da inteng&o de cura do dogmédtico. Ou melhor: foi abandonando qualquer pretensao de dissuadir definitivamente 0 interlocutor e aceitando 0 fato de que cabe a esse decidir o destino de suas préprias crengas que a nocao de terapia resistiu & objegdo. Por fim, tudo o que 0 cético terapéutico pode fazer é dizer: “Foi isso que, até agora, se passou comigo; é poss{vel que algo semelhante se passe com vocé; ¢ vocé, interlocutor, fica inteiramente & vontade para fazer o que vocé quiser com o meu discurso”. Ou entao: “Tudo que posso fazer”, dird 0 cético terapéutico wittgensteiniano, “é descre- ver meu jogo de linguagem; talvez, vocé se reconhega nesse jogo descrito; caso contrario, nao estaremos compartilhando o mesmo jogo de linguagem”. Se as respostas 4 objecio sao validas, como me parecem ser, entaéo nao € necessario abandonar a terapia, embora talvez seja melhor reduzir o seu 82 Smith, PJ., discurso (25), 1995: 69-95 escopo. O cético terapéutico conseqiiente deixa de ser o amante da humani- dade. De um lado, ele nao dispde de instrumentos eficazes para garantir o sucesso de sua terapia, uma vez que nada, no seu modo de entender a argu- mentacdo filoséfica, obriga o interlocutor a se submeter 4 mesma experién- cia intelectual; e, de outro lado, é fato notério que os interlocutores nao passaram por essa mesma experiéncia intelectual, como mostra o mimero excessivamente pequeno de fildsofos que se reconheceram como céticos em compara¢ao com aqueles que examinaram as obras céticas. Se minha finali- dade € a tranqjiilidade da alma, ent&o parece-me uma temeridade sair por ai brandindo argumentos que provavelmente serao, para as vistas alheias, pre- carios. Pretender curar o outro, nessas circunstancias, é perder a tranqiii dade € inquietar-se com tarefa ingrata. O melhor é voltar as costas para a tentativa de persuadir ou dissuadir 0 interlocutor. A nogao de terapia mais coerente com a tranqililidade, parece-me, é aquela que é auto-reflexiva: eu me curo; quanto aos demais... O ceticismo terapéutice é uma atividade, e nio uma doutrina. Nesse sentido, ndo cabe nele criticar uma doutrina qualquer (como poderia ser eventualmente 0 caso do ceticismo fenoménico) ou procurar ver uma tese filoséfica implicita ou pressuposta. Nao ha contradigao na nogao de terapia, mesmo quando se pretende curar toda a humanidade. Ainda assim, parece- me mais adequado a finalidade do ceticismo terapéutico que ela deve ser restrita somente ao meu caso pessoal. A atividade cética terapéutica carac- teriza-se sobretudo por uma atitude critica diante do dogmatismo e das te- ses filos6ficas. Essa atitude critica parece-me inteiramente aceitével ¢, sc posso recomendar alguma coisa, recomendavel. Mas 0 que estou propondo aqui € uma critica a aritude do cético terapéutico tradicional, na medida em que ele pretende estender suas reflexdes ao dogmatico e dissuadi-lo de to- dos os seus dogmas. Nao porque seja impossfvel fazer do dogmatico um cético (qualquer exemplo mostraria essa possibilidade; e ha muitos porque essa atitude causaria mais perturbagGes ao cético do que satisfacio. E dessa maneira, parece-me, que o verdadeiro cético desconfia de suas diivi- das. O que pretendo corrigir, de dentro do ceticismo terapéutico, é sua ati- tude diante do dogmitico, e nao suas linhas gerais, com as quais concordo inteiramente. Smith, PJ., discurso (25), 1995: 69-95 83 3. Eu gostaria de examinar brevemente 0 outro tipo de ceticismo que descrevi mais acima, 0 ceticismo fenomenista, De um modo geral, o que o cético fenomenista pretende fazer é uma descrigao da nossa vida comum. Termos como “experiéncia comum”, “linguagem comum”, “homem comum”, “fenémeno comum” etc. s4o recorrentes em seus textos. Eu gostaria de exa- minar esse tipo de ceticismo partindo da investigagao da possivel validade da seguinte objegdo: “Se tudo o que vocé diz € apenas a manifestagdo do que aparece para vocé, como vocé pretende transpor sua subjetividade em diregdo a uma intersubjetividade? Eis uma passagem ilegitima que vocé faz”. A tesposta, evidente, é a de que, nessa visao subjetiva do cético fenomenista, esta incluida a existéncia de uma visio comum do mundo. Nada impede ao cético que ele seja capaz de reconhecer um acordo em muitos pontos entre muitos homens. Nao ha nenhuma incoeréncia nessa idéia. A passagem do subjetivo para o intersubjetivo nao precisa ser legitimada por uma inferéncia, nao se faz necessdria nenhuma argumentagao nesse sentido: seria, inclusive, contraditério do ponto de vista cético (mesmo fenomenista) que se pudesse legitimar ou fundamentar uma visio comum do mundo. Bas- ta que o cético fenomenista descreva a sua propria experiéncia como sendo aquela de uma imersao no mundo dos homens, como sendo a de viver num mundo em que os homens tém muita coisa (talvez o essencial) em comum. Apenas quem nao abandonou as exigéncias da razado dogmatica pede uma Prova, ou algo que o valha, que nos conduza do nosso suposto solipsismo para um mundo povoado de homens. Assim como 0 cético fenomenista nio prova a existéncia do mundo, mas simplesmente reconhece crer nela, assim também ele nado prova a existéncia de outras pessoas, embora creia firme- mente nela. Ao contrério do que a objegao sugere, o retorno ao fendmeno, apéds abandonar o discurso filoséfico, nao tem o cardter de um retorno ao particu- lar em oposigao ao universal; ao subjetivo em oposigao ao intersubjetivo ou objetivo. Antes pelo contrario. Do ponto de vista do cético fenomenista, cada filésofo dogmatico projeta um mundo particular que se opde ao mundo comum dos homens que nao se fazem filésofos; esse mundo comum, nds ja © encontramos pronto e acabado: somos todos educados e treinados a ver as coisas de maneira semelhante; mas a filosofia desconfia dessa educagio e Smith, P.J., discurso (25), 1995: 69-95 prope uma nova maneira de interpretar o mundo, Ora, retornar ao fenéme- no é, desse ponto de vista, retornar A vida ordindria dos homens comuns. Assim, a pergunta contida na objecio sequer faz sentido para 0 cético fenomenista, visto que este jamais se subtraiu do mundo comum dos ho- mens. Desde sempre, a sua subjetividade faz parte de um mundo intersubje- tivo ou objetivo. Se a passagem do dominio subjetivo para o intersubjetivo nao é con- traditéria nem problemitica para 0 cético fenomenista, cabe ainda perguntar sobre a razao pela qual ele se reconhece dessa maneira, isto é, a razio pela qual o mundo que experiencia 6 experienciado como um mundo comum. Parece-me inteiramente razodvel dizer que, apds suspender 0 juizo e renun- ciar as construgGes conceituais particulares dos filésofos, reconhecemo-nos no mundo, no mesmo mundo, como homens que vivem sua vida de modo semelhante a outros homens. Parece-me exagerado, ou mesmo uma loucura, por outro lado, dizer que cada homem vive em um mundo diferente ou que a vida de cada um se configura como uma vida privada e inacessivel a outros homens. Assim, o abandono da filosofia dogmatica significa certamente a volta a vida pratica, a imersao no mundo e 0 reconhecimento da, por assim dizer, dimensao natural do homem, Resta examinar, no entanto, se devemos ir além e falar de um “mundo comwm”, de uma “vida comum”, de um “ho- mem comum’ etc., com o sentido que o cético fenomenista empresta a essas expressoes. Por que ele se reconhece como um sujeito igual aos outros? Por que ele julga de maneira tao segura conhecer os outros e identificar-se com eles? O que estou sugerindo é discutir sua descrigéo do mundo e nenhuma sugestio poderia ser mais bem-vinda ao cético fenomenista do que essa, pois o que ele quer é que oferegamos objegdes fenomenistas ds suas descri- goes ¢ oferecamos outras descrigdes fenomenistas para que cle faca suas objecdes. Tudo, obviamente, no espirito de ajustarmos nossas descrigdes ¢ chegarmos a uma descrigaéo comum do mundo. O dominio dos fenémenos comporta, a seu ver, a divergéncia, mas comporta também, em principio, a solucdo dessas divergéncias (¢ essa seria uma das diferencas entre o conflito no dominio fenoménico e o conflito das filosofias). A minha visio de mundo é diferente: ela ndo reconhece tanta unidade no mundo quanta o cética fenomenista reconhece. Nao pretendo, contudo, convencer ninguém de que Smith, P.J., diseurse (25), 1995: 69-95, 85 ela é uma descrigao melhor do que a dos outros; exponho-a somente com a intencdo de aperfeigoa-la. Consideragées de varias ordens levaram-me a questionar a nogio de homem comum. Primeiramente, porque ela tem, em que pese as possiveis intengdes em contrario, uma conotagao a-histérica e creio que um relativismo histérico-cultural é bastante saudavel a esse respeito. A nogdo de homem comum est4, naturalmente, vinculada de modo estreito, embora nao neces- sdrio, 4 de senso comum e de uma visio comum do mundo. E parece-me uma conseqiiéncia necesséria da relativizagao do senso comum, quando nfo mais 0 promovemos em uma posigao filos6fica realista, quando nao mais o ancoramos em uma realidade absoluta, a de que 0 conceito de “homem co- mum” se torna inoperante. Enquanto se julga que had um niicleo duro no senso comum e que constitui uma suposta visio comum do mundo, a no¢do de “homem comum” tem uma funcao bem especffica, a de contrapor ao filé- sofo idealista e delirante um homem sensato e visceralmente ligado a reali- dade. Reencontrando dentro de si esse homem comum, por momentos eclipsado pela sedugdo de certas filosofias, o filésofo da visio comum do mundo poderia ter novamente acesso A realidade. Esse niicleo duro refere- se a algo a-histérico, a algo que nio pode variar no tempo ou no espago (variagdo que se admite para outras crengas do senso comum). Sabemos que um dogma s6 adquire significado a partir de seu contexto filos6fico, isto é, dos argumentos aduzidos a seu favor e do sistema de teses € opinides em que se insere. Se nao h4 um realismo absoluto a ser defendido, nem verdades eternas a serem reencontradas, que fungao poderd desempenhar agora esse “homem comum’’? Quem é esse “homem comum” que atravessa épocas € lugares? Se ele néio é a garantia de um realismo e de verdades, ele nao € ninguém. Mesmo em nosso mundo contemporaneo, se nao quisermos ir além de nossa época ¢ nosso lugar, temos uma diversidade tao grande de pessoas ¢ crengas que nao me parece possivel falar de um homem comum. Uns aeredi- tam em Deus, outros nao; uns acreditam em astrologia, buizios, tarot etc., outros nao; uns créem que o homem jamais foi A Lua, outros sim; os codigos morais s40 os mais variados possiveis: uns ndo tém respeito as leis, outros tém: cada grupo social tem regras ¢ praticas extremamente diferentes de 86 Smith, P.J., diseurse (25), 1995: 69-95 outros grupos sociais. A impressdo que eu tenho é a de que fago parte, em cada um dos tépicos acima mencionados, de uma minoria. Minha vida nao é nada comum:“ uma minoria nao cré em Deus, em supersti¢des, tem um eddigo moral mais livre, pode dedicar-se aos estudos ¢ adquirir cultura, via- jacom freqiiéncia, dispde de tempo para lazer, trabalha naquilo de que gosta etc. Creio que meus habitos ¢ minhas crengas nao sio de modo nenhum comuns (¢ creio que isso poderia ser dito de todos os céticos, s¢ ao afirmar isso nao me estou contradizendo) Ademais, quem seria esse homem comum com o qual eu me identifica- tia? Seria alguém como 0 contribuinte médio? Ou seria a Forma do Homem? Um homem comum nao pode ser sendo uma abstragado ou uma média esta- tistica. Que habitos e crengas teria esse homem comum? Devemos atribuir a ele as supersti¢Ges do senso comum? Devemos atribuir-Ihe a desonestidade de boa parte dos homens (embora talvez nao da maioria)? Dirfamos, talvez, que todo homem cré na existéncia do mundo ¢ na existéncia de estados men- lais; que todo homem, ao somar 2 + 2, tira 4 (exceto, obviamente, alguns comerciantes...); que todo homem emprega a linguagem de maneira mais ou menos semelhante; que todo homem reage de maneira parecida a algumas coisas (quando pequenos, choram ao ter dores; depois, dizem “eu tenho dores”). Toda a questao é saber se isso faz uma vida comum, se aceitar uma linguagem comum e ter um comportamento natural primitivo que em alguns casos € desenvolvido em comportamento mais sofisticado de maneira seme- Ihante constitui uma vida comum®. Em suma, aquilo que parece seguro afir- mar a respeito de boa parte dos homens é to genérico e sem importancia (“Existe uma drvore”, “7 +5 = 12” etc.), que nao parece justificado falar de uma “vida comum”, Digamos que em nosso meio mais proximo, amigos, colegas e conhe- cidos, temos todos uma vida mais ou menos comum. O que quer dizer isso? O sentido usual da expressdo “vida comum” € 0 de “uma vida sem brilho”, sem feitos que destaquem uma determinada pessoa das demais. Mas nao é, certamente, dessa maneira que o cético fenomenista costuma empregar essa expressao. Além disso, essa definigdo é meramente negativa e, por “homem comum”, entende-se alguma coisa de positivo, referindo-se a um conjunto de atividades ¢ crengas mais ou menos estabelecidas e generalizadas. No Smith, PJ., diseurse (25), 1995: 69-95 87 entanto, pode-se questionar essa nogado entendida precisamente assim. Pois, quanto mais conhego meus amigos, tanto mais reconhego nossas diferengas: cada um é de um jeito ¢ tem suas idiossincrasias. Como ja foi notado, “de perto, ninguém é normal” e, para manter a amizade, um certo grau de dis- tanciamento ou de cegueira é sempre necessario. Minhas opinides divergem das dos meus amigos ¢ colegas, sejam elas politicas, morais ou futebol; cas; € quanto as minhas atividades, essas sio as mais diversas possiveis ¢ pratico cada uma delas com diferentes pessoas, nunca todas com todos. Tal- vez apenas num casamento feliz se pudesse usar adequadamente a expressao “vida comum”, mas a expresso mais adequada seria “vida em comum”; e ela se confina a duas pessoas, nao aos homens. Mas de um outro ponto de vista ainda a nogao de vida comum ou homem comum me desagrada. Falar de um “homem comum” € pretender conhecer aquilo que ndo conhecemos. Com freqiiéncia, eu no sei sequer 0 que eu mesmo penso a respeito de algo; o que dizer dos outros? Mesmo entre meus amigos e parentes, ignoro muitas coisas que eles pensam ou acham €, nao raro, interpreto equivocadamente o que me dizem. Com certa fre- qiiéncia também, eles tomam atitudes que me desnorteiam e que jamais pen- sei que pudessem tomar, o que me leva a perguntar-me até que ponto conhe¢o de fato meus amigos. Se me objetarem que nao devo fazer muitas previsdes ou criar expectativas sobre o seu comportamento, que nio devo surpreen- der-me com alguns de seus atos ¢ que, por isso, a surpresa com relagio aos seus atos nao pode testemunhar contra o conhecimento que tenho deles, responderei que, ao nao esperar demasiado e ao nao prever seu comporta- mento, ja estou reconhecendo implicitamente que n&o os conhe¢o suficien- temente. Se tenho ditvidas j4 nesse 4mbito, muitas outras se acrescentam quando nos referimos 4 nossa sociedade como um todo. O que sei eu dos grupos religiosos de periferia? O que sei eu dos meninos abandonados nas ruas? O que sei eu de trabalhadores honestos, mas que levam uma vida com- pletamente afastada da minha? O que sei cu da vida da minha faxineira, exceto que ela cuida bem da minha cachorra Vica quando eu viajo? Como avaliar a relagdo de suas vidas com a minha? Ha um ditado que diz que quando viaja- mos por um més, achamos que conhecemos o lugar que visitamos; se fica- Mos por um ano, julgamos que conhecemos alguma coisa; se permanecemos 88 Smith, P.J., diseurse (25), 1995: 69-95 por varios anos, admitimos que nfo conhecemos nada. E assim que eu me sinto com relago aos homens em geral: tio pouco conhego a seu respeito, que prefiro dizer que nada conhego, ouso menos ainda fazer uma descrigao fenoménica genérica. Alguns amigos j4 notaram minha aversao (edipiana, dizem) a hist6ria: sou completamente leigo sobre 0 que se passou em outras épocas. Mas a ignorancia sobre um suposto “homem comum” nao é um privilégio meu, pois 0 que sabemos de outras épocas parece ndo apontar na sua direc’io. No campo da antropologia, os problemas relativos 4 nogao de “homem comum” talvez sejam maiores, pois aqui a diversidade parece aumentar ainda mais e © projeto de encontrar, por exemplo, uma estrutura universal do parentesco nao mais obtém assentimento. A antropologia é, hoje, essencialmente relati- vista. O que seria mais universal, se algo o fosse, do que o amor da mac pelos filhos? Mas ha sociedades onde esse amor inexiste; ¢ ha indios que matam, apés 0 nascimento, um dos filhos gémeos. Essa argumentacdo, convém ressaltar, tal como a que desenvolvi a res- peito da noco de terapia, nao visa apontar uma contradi¢io entre ceticismo ¢ vida comum, mas apenas externa a minha opiniao, que, espero, seja mais conforme a atitude cética. Primeiramente, mais conforme A modéstia, resul- tante do reconhecimento de nossa ignorancia, de nao se pronunciar sobre todos os homens ¢ falar de um “homem comum” e de uma “vida comum”, Se € tao conhecer as coisas mais distantes, talvez seja melhor comegar com © que estd mais perto: néds mesmos. Em vez de descrever uma vida comum abstrata, genérica ¢ de pouca monta, talvez seja mais interessante descrever algo que nos é presente e a respeito do qual possamos diminuir nossa ignorancia. Em segundo lugar, mais conforme & atitude critica diante de nossas idéias. Tendo sido associada a certas formas de dogmatismo, po- demos incorporar a nogao de homem comum de modo tranqiiilo a uma des- crigdo fenomenista? Nao nos parece possivel pensar essa nogZio sem alguma coloragao dogmatica ou sem ligagdo com um realismo de senso comum, ou com uma teoria da abstragdo, ou ainda com uma Forma do Homem. E separd- la dessas suas conotagdes dogmaticas ndo acaba por despi-la de todo inte- resse filos6fico? Um verdadeiro cético deve desconfiar de suas conviegdes filosficas. Smith, P.J., discurso (25), 1995: 69-95 89 Nao estou, obviamente, sugerindo que abandonemos as pesquisas his- toricas e antropolégicas sobre o homem, mas somente que nio permaneca- mos nesses niveis de generalidade que pretende o fildsofo, Quando a filosofia € dogmitica, ela pode dar “recheio” a essas abstrag6es ¢ tornd-las muito interessantes; quando desistimos dessas construgées da imaginagao, por outro lado, e nos voltamos para a experiéncia, entdo sio os detalhes e o particular que prendem a atengio e cativam 0 nosso gosto, fato esse que ndo impede a ciéncia de buscar e formular leis gerais. O que parece ocorrer é que, quando lidamos com questdes filoséficas sem elaborar sofisticadas ficgGes, a gene- ralizagiio chega a tal ponto que ficamos repetindo algumas obviedades sem muito propésito, exceto talvez o de assegurar-nos, contra algumas formas de dogmatismo, dessas mesmas obviedades. Lembrar banalidades em filoso- fia s6 tem interesse, a meu Ver, em contextos terapéuticos. Devemos, entiio, abandonar a filosofia e tornarmo-nos cientistas, s¢ quisermos obter conheci- mentos gerais. Podemos fazer como Hume e tornarmo-nos historiadores ou, como Sexto, médicos. Assim como a terapia teve que se restringir ao meu caso pessoal, para se adequar melhor & atitude cética, assim também a descrigdo fenoménica deverd restringir-se ao meu préprio caso. Tenho a impressao de que a idéia de uma terapia geral, que pode ser aplicada a todos os outros homens, anda de maos dadas com a idéia de um homem genérico, que se identifica com todos os outros homens. E a restrigao da primeira idéia deveria acarretar uma restrigdo na segunda, uma vez que se depura a atitude cética. 4. Eu gostaria de apresentar, a partir dessas consideragSes, uma teformulagao do ceticismo, ou antes, sua depuragdo, A concepgio de ceti- cismo que emerge se da nos seguintes moldes. Toda a minha argumentagao nao vale senado para mim mesmo e pouco me importa a reagdo do interlocu- tor do ponto de vista de sua crenga pessoal. Nao pretendo realizar nenhuma terapia senfio no meu caso pessoal. Meus olhos esto voltados apenas para meus proprios pensamentos, ¢ meu narcisismo vai ao ponto de pedir ao in- terlocutor que também os seus olhos me ajudem nesse exame de mim mes- mo. Por que nao poderia ele dispensar um pouco do seu tempo comigo? Uma filosofia que quer abandonar 0 [égos (como € 0 caso do ceticismo) 90 Smith, PJ., diseurso (25), 1995: 69-95 deve abandonar de maneira radical todo e qualquer indicio de um “eu geral”, isto é, de um “eu” abstrato que seria um modelo de racionalidade a ser tado pelos outros homens. Se proponho 0 meu itinerario como um itiner: modelo ou ideal, é porque entendo haver uma espécie de razao universal que deveria guiar todos os homens, na medida em que eles so seres racionais, Por isso mesmo, nao proponho nada. Uma tal filosofia deve mergulhar intei- ramente no “eu particular”. A meu ver, em filosofia, nao nos resta sendo conhecermos a nds mes- mos, embora, naturalmente, nao seja qualquer conhecimento sobre nés que sera pertinente. Assim, somente aqueles conhecimentos de nossas idéias que dizem respeito as questées tradicionais da filosofia haverao de constituir nosso ceticismo fenomenista. E, a esse respeito, nao tenho nenhuma opinidio formada, Nesse sentido, a tnica atividade filos6fica interessante que me parece acessivel, excetuando-se uma conduta cética na vida pratica, é a de descrever meu itinerdrio filos6fico, isto é, minha prépria terapia, Dessa ma- neira, 0 ceticismo fenoménico € absorvido no ceticismo terapéutico, ao qual confiro, portanto, primazia. Isso, a meu ver, néo deve interromper o didlogo filoséfico, mas apenas transformar o papel que o interlocutor desempenha na discussdo: menos al- guém a ser persuadido de uma tese ou alguém que abandonard seu dogma- tismo em virtude da argumentagao cética, o interlocutor ser aquele que ajudaré o cético a desenvolver melhor suas préprias idéias, Essa postura é mais conforme & modéstia que é peculiar ao cético terapéutico: o interlocu- tor néo é alguém a ser corrigido diante da racionalidade superior do cético, mas alguém que podera contribuir para que o cético nao seja vitima de al- gum dogmatismo inadvertido. Se um cético terapéutico, como eu, expde suas reflexdes, € apenas para que meus amigos fildsofos me ajudem a tornar meu raciocinio mais rico, profundo e coerente. A idéia pode parecer parado- xal, mas 0 cético terapéutico coerente nao escreve ou apresenta uma fala para convencer 0 interlocutor, mas para que 0 interlocutor o ajude na elabo- ragdo de seus pensamentos: é 0 interlocutor que ird eventualmente eurar-me de meu dogmatismo (ou ceticismo). Os argumentos que ora exponho nao querem persuadir nem dissuadir; eles estao ai para serem corrigidos por quem quiser corrigi-los. Smith, PJ., discurso (25), 1995: 69-95 91 Nao me parece seguir-se de meu ceticismo, como poderia parecer & primeira vista, o irracionalismo. Pois, em primeiro lugar, negar a razao seria tao dogmatico quanto afirmé-la. E, em segundo lugar, nao estou evitando o debate argumentativo com os outros, nem o exercicio da andlise dos pontos envolvidos em uma questao; muito ao contrario, estou abrindo a possibilida- de de um debate estritamente racional, onde nao ha rigorosamente nenhuma intengao de persuasdo ou dissuasao, onde nao ha partidos e credos prévios a serem impostos, onde nao ha doutrinamentos. Se alguma discussio puder ser chamada de racional, sera aquela em que os argumentos sao esgrimidos sem a camisa-de-forga dos dogmas, em que a forma e 0 contetido do debate nado se submetem a uma verdade prévia ao desenvolvimento dos argumen- tos. Nao se trata de rejeitar a critica ou defender a sua impossibilidade, mas simplesmente de compreendé-la de outro modo; a critica ndo visa emendar o outro, mas fazer avangar a nossa clareza sobre determinada questio. Esse mergulhar em si mesmo nao tem nenhuma conotagiio romantica, como a valorizacdo da subjetividade, da originalidade, da espontancidade etc. Esse voltar para si mesmo significa apenas que, ao filosofar, eu quero dar ordem, clareza e desenvolvimento as minhas idéias. Minhas idéias sao minhas na medida em que sou eu que as adoto e as elaboro; elas sio minhas também, porque, parece, cada um traz em si mesmo uma espécie de tendén- cia natural para pensar dessa ou daquela maneira. Mas elas nao sao apenas minhas, porque todo esse processo de desenvolvé-las, ordend-las e empres- tar-Ihes clareza é mediado por um aprendizado ¢ pela discussio incessante com outros homens. Esse “eu” que sou nao € algo oculto a ser descoberto ou revelado por uma filosofia, mas é um entrecruzamento de muitas coisas que se distinguem de mim mesmo. Esse retorno a si mesmo, por outro lado, nao tem nenhuma semelhan- cacom 0 solipsismo. O “eu” do solipsismo é uma mente fechada em si mes- mae que sé tem acesgo As suas préprias percepgdes ou modificagdes, nunca &um objeto externo. A existéncia do préprio corpo é posta entre parénteses junto com a de todos os corpos fisicos por meio de uma suposta dtivida universal. As minhas idéias, no entanto, so indubitaveis e nao posso jamais ignorar © que se passa em minha consciéncia, a introspecgo sendo uma Maneira absolutamente segura de autoconhecimento. Ora, nada mais distan- 92 Smith, P.J., discurso (25), 1995: 69-95 te do que se afirma aqui. O meu “eu” nao designa uma mente, mas uma pessoa indissociavelmente ligada a um corpo. Além disso, 0 que me parece realmente problemiatico & a existéncia da mente, nao a dos corpos; e essa evidéncia propiciada pela autocontemplagao da mente esta para além de minhas capacidades. Se, ao vermos as estrelas, nao é provavel que nossa consciéncia va passear pelo céu para contempla-las, como dizia Malebranche, também no é provavel que as estrelas venham parar em nossa consciéncia. Quando percebo alguma coisa sensivel, minha consciéncia esta ld no objeto, e nao se volta sobre si mesma. A sensacio nao é mero modo ou ato do pensamento, mas um ato que envolve meu corpo € a apreensdo de um obje- to, E saber quais sio as minhas idgias nao & tarefa facil que uma simples introspecgdo poderia resolver. Para conhecer minhas préprias idéias, pare- cem-me necessdrios 0 aprendizado de idéias alheias e a discussao freqtiente com outras pessoas. Escrever, dar uma conferéncia e discutir filosofia tem, portanto, uma dupla fungao. Por um lado serve para dar continuidade ao desenvolvimento de minhas idéias por meio desse imbricamento visceral com outros homens e, por outro, é um testemunho de minha trajetéria: é uma espécie de auto- biografia ¢ auto-andlise. A recusa do “eu geral” significa aqui que essa auto- biografia é exclusivamente minha, que, ao escrever um texto, niio me situo num ponto privilegiado para ensinar aos outros uma verdade. Ao contrario de Santo Agostinho ou Descartes, cujas confissdes ¢ meditagdes revelam. claramente que o “eu” é uma dissimulagao de uma razao universal, de um ideal a ser imitado pelos outros, meus relatos pessoais sio a exposigio de minhas idiossincrasias que ninguém precisa imitar. Minha situagao é inteira- mente precdria e € por isso, para fortificar-me intelectualmente, que preciso da discussao com outros homens. Se se pretende fazer uma autobiografia, entao é preciso realizd-la de modo integral ¢ completo: ela diz respeito a mim mesmo, ¢ nao a um ser abstrato ou genérico. Ela nao esconde um sujeito impessoal ou universal e deve desconfiar, na medida de suas forgas, de todas as possfveis intron sdes sub-repticias de universalidade. Nao tenho uma verdade a impor a nin- guém, nem uma doutrina. Nao pretendo persuadir nem dissuadir ninguém; quando muito, quero persuadir-me a mim mesmo de minhas idéias ou dissu- smith, P.J., diseurse (25), 1995: 69-95 93 adir-me de outras que me parecem inaceitdveis. E isso nao significa sendo desenvolver lenta ¢ cuidadosamente idéias confusas, por meio de corregdes sucessivas, em idéias claras, que eu reconhega como minhas ou como pro- duto da minha reflexdio. Meus raciocinios, se tém algum valor, nao 0 terao no sentido tradicional, e pouco me importa se os filésofos “profissionais” de hoje nao julgarem meu texto relevante para suas questGes “de especialista” ¢ “téenicas”, Nao convém esquecer que a filosofia sempre se pautou por um esforgo de universalidade diferente das sékhnai. A filosofia é um género par- ticular de literatura e um estilo de vida, contribuindo para a formagao do ser humano que sou. Retomo aqui aquela velha idéia socratica, a de que a filosofia nos deve tornar melhores. Uma das contribuigGes da filosofia para o desenvolvimen- to, no s6 de minhas idéias, mas também de minha personalidade, ajudando- mea viver melhor e mais modestamente. Tenho uma satisfagao imensa quando julgo que algumas idéias minhas estéo bem escritas e argumentadas, e 0 processo de ir ajeitando-as a meu modo agrada-me sobremaneira. Nao nego que aeventual simpatia, admiragao ou aprovagao alheia aumentem meu con- tentamento; mas trata-se de um acréscimo, de um subproduto. Meu ceticis- mo fenomenista limita-se a tentar desenvolver algumas idéias para mim mesmo, sem nenhuma outra intengfo. Mas esse ceticismo fenomenista acha- se, como ja disse, submetido ao ceticismo terapéutico: tentar desenvolver minhas idéias é uma maneira de rever e criticar incessantemente meus pensa- Mentos € tomar consciéncia de que nada sei. Em outras palavras, corrigir- me a mim mesmo sucessivamente e ser corrigido pelos outros é aprender meus préprios limites e meus préprios defeitos, ao mesmo tempo em que vou conformando meus pensamentos a uma forma mais consistente ¢ agr: davel. Ha pessoas que gostam de pensadores obscuros e de linguajar difici Nao € 0 meu caso, embora houvesse um tempo em que o nao entender nada de um livro ou de um filme, por exemplo, instigavam o meu cérebro ¢ cativa- vam o meu gosto. Hoje, inclino-me pela clareza, que, uma vez alcangada, tecompensa plenamente os esforgos em sua diregio. Talvez seja neces: acrescentar, para evitar mal-entendidos, que, se a filosofia tem uma finalida- de pratica, nao sera resultante de uma aplicagdo imediata do que afirmo aqui: se sé tenho olhos para mim mesmo, nao se seguiré o egoismo. De um 94 Smith, P.J., diseurso (25), 1995: 69-95 modo geral, segue-se do reconhecimento de minha finitude e de minhas limi tagdes, uma vida mais humana e mais conforme a mim mesmo, sem esperar demasiadas coisas de mim e dos outros. O ceticismo é uma forma de humanismo. Se, como Teeteto, nao aprendi nada, pelo menos espero ter-me tornado melhor, seja no sentido de eventualmente ter idéias melhores, seja no de ser mais modesto, mais moderado comigo ¢ mais tolerante com meus amigos e colegas. Abstract: In this article, a distinction between two kinds of skepticism is made: the first kin called therapeutic skepticism because its emphasis is on the cure of dogmatism; the other one is called phenomenistic skepticism because it provides a description of our common life. It is then argued, in order to purify or improve the skeptical position, that it is more appropriate to the atti- tude of the skeptic if therapy is restricted to one’s own case and if description is limited to his own life. Finally, a form of skepticism is presented, in which therapeutic and autobiographical aspects prevail. Key-words: skepticism ~ phenomenon — therapy — common life Smith, P.J., diseurso (25), 1995; 69-95 95 Notas (1) Ao longo da elaboracao desse artigo, percebi as semelhangas dessa objegao com as que Roberto Bolzani Filho enderegou aa ceticismo em coléquios anterio- res a este. Provavelmente, essas minhas consideragées tém arigem inconsciente nas suas objegdes. Enquanto Bolzani Filho as usa para atacar 0 ceticismo, eu entendo estar depurando-o. (2) E o que nao é incompativel com o ceticismo pode ser incorporado em uma perspectiva cética. (3) Estou chamando a atencdo para somente um dos aspectos da compreensdo que os céticos tém de sua argumentagdo. Entendé-la como una experiéncia pes- soal nao implica o abandono de um rigor argumentative ¢ da discussdo com interlocutores, como espero deixar claro mais adiante. Nao se trata, obviamente, de refugiar-se na “experiéncia pessoal” para aceitar qualquer argumentagao e evitar objegdes. (4) Foi Roberto Bolzani Filho quem chamou a minha ateng@o para esse ponto. (5) Em artigo anterior, aproximei Wittgenstein dos céticos pirrénicos e de Hume, sugerindo que se poderia ver no seu pensamento, embora de maneira implicita, a idéia de uma “vida comum”. Luiz Henrique Lopes das Santos chamou-me a aten- ¢do para o equivoco de atribuir a Wittgenstein essa idéia de vida comum. Demo- rei para dar-lhe razao; embora eu ainda julgue correto caracterizar a filosofia de Wittgenstein como cética. (6) Evidentemente, isso tudo soa muito parecido com Montaigne e reconhego que Parte dessas idéias surgiram enquanto eu estudava recentemente os Ensaios, Tam- bém Montaigne propunha o estudo de si mesmo, a vecusa dos modelos e dos ide- ais em favor da descrigéo do homem real e a rejeigdo de um ponto privilegiado a partir do qual o discurso filosdfico pudesse iniciar. Esses e autras elementos que exponho aqui jd estavam presentes em Montaigne. Discuto alguns aspectos da relacao entre o pensamento de Montaigne e o pirronismo em artigo intitulado “A Contribuigdo de Montaigne para o Ceticisme”.

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