Pensando A Revolução Francesa PDF

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A Revolugéo Acabou RESUMO Este artiga discute 0 imagindria da revolugdo no campo da historiografia brasileira e internacional entre as décadas de cingitenta e setenta. Tomando como ponto de partida o cendrio politico cultural desse perfodo, analizamos a producdo historiogréfica que renovou as andlises das experiéncias histéricas da revolugdo dos perlodos moderno e contempordneo. Edgar S. de Decca* ABSTRACT ‘THE REVOLUTION ISOVER This article discusses the image of revolution in Brazilian and international historiography from the 1950's through the 1970's Taking as its point of departure the political and cultural context of these decades, the essay analizes the contributions of historians who have produced innovative analyses of the historical experiences of Revolution during the modern and contemporary periods O titulo deste trabalho é uma dupla citagdo. Para os historiadores das revolugées nda é dificil perceber que se trata de uma referéncia ao livro de Frangois Furet (Pensar a Revolucdo Francesa, Paz e Terra, 1989), sobre a historiografia da revolugao francesa. Contudo, além desta referéncia gostaria de sugerir uma outra, que est4 ligada a um filme emblemAtico para aqueles que viveram a sua juventude nos anos sessenta. Trata-se do filme de Alain Resnais, A Guerra Acabou, onde os personagens vivem um presente completamente dominado pela meméria do passado da segunda guerra. Figuras aprisionadas pelo passado, cujo presente vazio transforma-se num simulacro, destituido de todo o sentido. No desenrolar deste texto eu espero poder caminhar entre essas duas citagdes, trabalhando com as representagdes da revolugaio que foram elaboradas principalmente a partir das experiéncias politicas dos anos sessenta. Hoje, ao que parece, tudo isso acabou e seja no campo historiogréfico ou no debate politico, a revolugao ndo desperta mais um * Departamento de Hist6ria ~ Unicamp. grande interesse. Justamente porque esse imagindrio da revolugdo perdeu a sua capacidade de empolgar o debate politico, ao mesmo tempo que cle foi se desvanecendo no campo historiografico, parece-me importante, hoje, pensd-lo em algumas de suas dimensécs simbélicas. ‘Ha alguns anos atrds o historiador inglés Eric Hobsbawm publicou uma obra coletiva cxtrcmamente significativa para o estudo das formas de representacao do passado produzidas em vdrias sociedades. Este livro recebeu 0 titulo de A invengao das tradi¢ées (Paz e Terra, 1984) ¢ os varios trabalhos nele contidos buscavam aprender historicamente os momentos em que certas representagdes do passado se claboravam ¢ se sedimentavam no campo da meméria coletiva. Poderiamos aproveitar a inspiragdo deste importante livro para pensarmos aquilo que se convencionou chamar entre nés de revolugo de trinta, com dircito a aniversdrio, mas hoje em dia, sem grande pompa ou circunstincia. Seja porque ela perdeu a sua forga na memoria colctiva, soja porque foi desmontada no campo da historiografia ou mesmo porque a reflexio teérica sobre a revolugdo deixou de atrair a atengao do pensamento politico contemporaneo, No campo das invengdes das tradigées revoluciondrias devemos caminhar com cauicla, uma vez que as momérias af se confundem, se plasmam e também se refazem. Ninguém, até bem pouco tempo, poderia deixar de reconhecer a for¢a da meméria hist6rica representada nas imagens da revolugio de tinta, Esta dimensio altamente simbélica produzida pelo discurso politico do poder em seu exercicio de dominagdo, refoz a histéria a partir de suas proprias referéncias, instituindo no campo da meméria coletiva marcas profundas, que somente em anos recentes estamos podendo avaliar as suas conseqiiéncias. Contudo seriamos extremamente descuidados se considerassemos as construgdes da memoria de tinta, exclusivamente a partir das representagdes do poder politico que as elaborou nos anos trinta. No campo difuso da meméria coletiva que marcou significativamente a historiografia brasileira, ¢, principalmente o pensamento e as prdticas polfticas de nossos agentes sociais, esto presentes, tanto as imagens elaboradas pelos vencedores de trinta, como também as representagdes do pensamento politico revoluciondrio dos anos sessenta. Uma das maiores dificuldades do historiador frente a essas representagdes do passado 6, justamente, saber como se desvencilhar das malhas de uma meméria cuja trama traz consigo as marcas da dominago polflica dos anos trinta, mas ao mesmo tempo se teceu também com os fios condutores das utopias revoluciondrias dos anos sessenta, Durante um periodo consideravel, este marco histérico estabelecido: pelo exercicio de dominagZo no Brasil, recebeu uma atengiio toda especial, principalmente do pensamento marxista que até h4 pouco tempo se debateu 64 cm torno das utopias ¢ das opgbes revoluciondrias que deveriam oricntar os destinos da socicdade brasileira. Do ponto de vista da andlise histérica deveriamos analisar tanto os bencficios, como os danos teéricos causados por uma concepgio de hist6ria que, cm dltima instancia, no afa de encontrar ho passado acontecimentos identificados como revoluciondrios, acabou por reiterar ¢ refazer o campo imagético do vencedor dos anos trinta. Os fios da meméria histérica sdo muitas vezes quase invisfveis, uma vez que é proprio dessa meméria apagar os rastros de sua propria constituigao. Nesse sentido, a posicdo da historiador que procura desvendar as tramas da memoria histérica ¢ sempre incémoda c na maioria da vezes 0 seu trabalho € cncarado com desconfianga nos meios, principalmente politicos, que esto acostumados a trabalhar com rcferenciais hist6ricos estdticos ¢ com fortes doses de mitologia. Contudo essas resisténcias a quebra das tradigdes inventadas no campo da dominagdo politica, ndio so exclusivas apenas do campo politico. No pr6prio terreno da prdtica cientifica, a resisténcia A critica das tradig6cs inventadas é enorme, o que desmente o lugar comum que afirma sor a ciéncia o dominio propicio para a desmontagem das mitologias. Dentre as intimeras possibilidades de percorrer os meandros deste imagindrio revoluciondrio se podcria optar por estudos que estio cm evidéncia, principalmente na Franga, em decorrréncia do bicentenario da revolu¢iio. Destacam-se entre esses Lrabalhos a colctinca em ués volumes organizada por Pierre Nora, Les liewx de la memoire (Gallimard, 1986), onde ‘os autores fazem uma andlise exaustiva de um nimero considerdvel de simbolos da revolugdo ¢ da repiiblica francesa. Insinuando-se nos meandros da meméria histérica da revolugiio francesa, os autores ndlo s6 tecem os fias da constituigéo da hist6ria oficial, analisando os scus simbolos mais Ppermanenics, como também retiram do siléncio as memérias colctivas que no se inscreveram no amplo painel das imagens vencedoras da revolugao ¢ da repiblica, Nio resta a menor divida, que obras como esta s6 foram produzidas ap6s as criticas historiograficas 4s representagdes da revolugdo francesa, claboradas tanto por aqucles que venccram a luta politica revoluciondria, como pela historiografia marxista que produziu um niimero consideravel de modelos intcrpretativos a partir das imagens construfdas pelos vencedorcs, em pleno exercicio da dominagdo politica. Na estcira desta critica historiografica, situa-se, ccrtamente, os trabalhos de Frangois Furet, que além de desmontarem o imaginario da revolugdo francesa claborado no calor das lutas polfticas do final do século 18, também denunciam os compromissos das versdes ¢ interpretagdes do marxismo com o discurso revoluciondrio dos vencedores. 65 Essas novas perspectivas abertas pela historiografia da revoluc4o no teriam sido vidveis antes que tivesse ocor um esfriamento dos debates sobre a revolugdo, seja no campo da politica, seja no campo da pratica cientifica. Num certo sentido, foi a partir da década de setenta, quando essas paixdes revoluciondrias sofreram um sério abalo, que as criticas aos modelos de interpretacio marxista da revolugdo ¢ as representagdes da meméria histérica passaram a ser os alvos preferidos da critica historiografica. Trabalhos recentes sobre a meméria histérica das revolugdes, como a coletinea organizada por Pierre Nora, j4 niio possuem o impeto critico das obras que debateram dirctamente com as tradigdes interpretativas do marxismo. Ao contrério dos trabalhos de Frangois Furet, esses novos autores nao tém mais pela frente a forga de uma historiografia revoluciondria que redimensionou os modelos de interpretacfio histérica, principalmente a partir dos anos sessenta. Existe, atualmente, no 4mbito da historiografia brasileira uma tendéncia a se deixar influenciar por essas novas perspectivas criticas 4 meméria histérica, elaborada no calor dos acontecimentos e marcada pelas representagbes dos vencedores. Um exemplo bibliogrifico recente é 0 livro de José Murilo de Carvalho, A Formagdo das Almas (Cia. das Letras, 1990), que trabalha com o imagindrio institufdo pelo regime republicano, ¢ que procura desvendar os meandros de uma mem6ria histérica que teria sido fundamental para a consolidagdo das instituigdes ¢ das novas politicas republicanas. Sem divida alguma, trabalho como esses s6 se tornaram possiveis no Brasil, pelo fato de que outros autores chegaram a enfrentar, em tempos nio tanto propicios, as quest6es sempre muito delicadas da meméria histérica’, Do ponto de vista da critica historiogrdfica sempre se considerou mais. delicada a andlise dos modelos interpretativos da revolugao elaborados no campo da teoria marxista, do que, propriamente, a desmontagem da meméria hist6rica dessas revolugdes construfdas no decorrer do exercicio de dominacao. Os autores que levaram adiante este trabalho, sejam eles, Frangois Furet na Franga, E, P, Thompson na Inglaterra ou alguns deles entre ndés, sempre enfrentaram as maiores resisténcias quanto as suas pesquisas, no interior do préprio terreno marxista. Isso porque estes trabalhos acabavam por explicitar os compromissos implicitos que os IDentre esses trabalhos destacam-se os de Alcir Lenharo A Sacralicagéo da politica, Papiras, 1980, Carlos Alberto Vizentini, A teia do fato, tese de domorado, USP, Kazumi Monakata, Algumas cenas brasileiras, tese de mestrado e 0 de minha autoria, 1930 « O siléncio dos vencidos, Brasiliense, 1981, além das criticas de Marilena Chaui ao Pensamento autoritério brasileiro contidas no livro /deologia e mobilizagéo popular, Cedee, 1978. 66 modelos marxistas de interpretago guardavam com a prépria meméria hist6rica das revolugSes. Hoje, com 0 esfriamento do debate sobre a revolugdo, tanto na polftica, como na historiografia, esses enfrentamentos tedricos, talvez, aparecam sem as suas devidas dimensdes e proporgdes, No entanto, no momento em que foram tavados, exigiu-se dos autores as credenciais politicas ¢ os seus compromissos tcéricos, uma vez que ninguém impunemente péde entrar nesses debates, sem antes mostrar as suas cartas de jogo. ‘No que diz respeito & historiografia referente 4 revolugao de trinta, no € possivel isol4-la do campo de debate sobre a revolugao que esteve em curso, principalmente, a partir dos anos sessenta. Durante esse periodo, os maiores impactos no interior do debate revoluciondrio foram propiciados pelas projegSes imagéticas origindrias da revolugdo cubana, Num espectro marxista dominado pelos modelos interpretativos calgados na ortodoxia dos PCs, a revolugio cubana acabou por exigir uma reinterpretagdo tedrica das possibilidades revoluciondrias em paises entio denominados terceiro- mundistas, Estas novas referéncias da revolugao abateram de forma decisiva os tradicionais modelos marxistas da revolugo burguesa ¢ foram colocadas em jogo novas perspectivas ¢ outras formas de acdo politica, ‘Neste novo campo imagético da revolugdo, os mitos da nova esquerda deixaram de ser as figuras cldssicas da hist6ria dos PCs, para serem substitufdas pelas figuras romAnticas da guerrilha de Che Guevara ¢ Fidel Castro. Além disso, foram alvo de critica, também, as instituigdcs partid4rias da esquerda tradicional, por serem incapazes de canalizar uma energia renovada de revolucio. Os préprios atores classicos da tcoria marxista, como a classe operdria, foram vistos com certa desconfianga pelos teéricos desta nova revolugao. Como bem apreendeu Eric Hobsbawm em um livro famoso da década de sessenta, Os Rebeldes Primitivos (Zahar, 1978), estava chegada a hora ¢ a vez. dos rebeldes primitivos, que sairiam das entranhas da historia para revolucionar toda a ordem estabelecida. No campo da historiografia marxista, e porque ndo dizer, em todos debates politicos da nova esquerda, o que estava em jogo era a compreensdo da dindmica entre a revolta ¢ a revolugao, isto 6, em que medida a teoria revolucionaria poderia se plasmar com a aco espontinca dos rcbeldes primitivos. Evidentemente, no cabe nos limites de um artigo analisar os meandros desta importante vertente historiografica, que trabalhou de mancira original as relagées entre as revoltas ¢ as revolugdes cm intimeros perfodos da hist6ria. Bastaria lembrar apenas os trabalhos de Eric Hobsbawm, Os rebeldes primitivos, Os bandidos (Forense, 1975), Capitéo Swing, em co- autoria com George Rudé (Forense), os de George Rudé, The crowd in history, (Oxford, 1959) ¢ Ideologia e protesto popular (Zahar, 1982), além 67 de, evidentemente, os importantes trabalhos de Mauricio Vinhas de Queiroz, Messianismo e conflito social (Rio de Janciro, 1966) ¢ de Maria Isaura P, de Queiroz, Os cangaceiros — les bandits de I'honneur brésiliens (Paris, 1969) e Reforme et révolution dans les societés tradicionalles: histoire et ethnologie des mouvements messianiques (Paris, 1968). De maneira exemplar esses autores, a0 longo dos anos sessenta, apreenderam 0 “espirito da época", & seus trabalhos constituem, até hoje, a mais decisiva contribuigdo da historiografia e das ciéncias sociais para a andlise da dinamica da revolta c da revolugdo, bem como do imagindrio social e politico resultante desta combinatéria. Aqueles anos foram, sem diivida, anos revoluciondrios ¢ esta tendéncia iria se pronunciar ainda mais com os sucessos da gucrra de guerrilha no Vietnd e com as revoltas estudantis na China — que foram reconhecidas como uma verdadeira revolugdo cultural - liderada por Mao Tsé-tung. As imagens de uma onda revoluciondria que envolvia os rebeldes primitivos da Bolivia ¢ do Sudeste Asidtico, bem como as massas estudantis do Brasil, dos Estados Unidos e da Europa, povoaram a imaginacdo das ciéncias humanas ¢ da historiografia e de todos os debates politicos. Do ideal romantico das guerrilhas de Che Guevara, ds manifestagdes estudantis de maio de 68, lidcradas na Franca, por Daniel Cohcn-Bendit, 0 mesmo imagindrio da revolta ¢ da revolugo serviu para oricntar as novas referéncias te6ricas que estavam se anunciando no campo do marxismo. As revises na historiografia da revolugdo foram profundas ¢ provavelmente foram os historiadores ingleses os primeiros a criticar a memGria hist6rica que havia legado ao siléncio as intrincadas relagdes histéricas entre a revolta ¢ a revoluc4o. Alguns trabalhos s4o até hoje embleméticos e dentre eles nao se poderia deixar de mencionar a revis4o radical realizada por Cristhopher Hill no campo da historiografia da revolucio inglesa. Em um de seus livros mais importantes, O mundo de ponta-cabeca (Cia, das Letras, 1987), 0 autor, profundamente influenciado pelo radicalismo dos movimentos estudantis da Europa e dos Estados Unidos ¢ ao mesmo tempo, sensivel as proposigdes de uma nova politica revoluciondria enunciada por Herbert Marcuse, realiza uma andlise monumental das tradigées do radicalismo inglés e de suas implicagdes politicas no contexto revoluciondrio da Inglaterra dos meados do século 17. Aqui no Brasil em meio &s agitagdes estudantis em oposi¢dio ao regime militar implantado em 1964, os debates tedricos dentro dus universidades ou no interior das organizagSes politicas, giravam em torno das novas perspectivas da revolugdo ¢ obras como a de Caio Prado Jiinior, A revolucdo brasileira (Brasiliense, 1966), scrviram de referéncia para semindrios 68 ocorridos na Faculdade de Filosofia da USP?, Este repensar os caminhos da revoluc2o brasileira teve uma ruptura fundamental apés 0 golpe da 1964. Se até entao os modelos interpretativos da revolucdo brasilcira depositavam fortes esperancas na politica reformista do governo Jodo Goulart, apds o golpe estas ilusécs cairam por terra, ¢ as imagens projetadas pela simbiose da revolta ¢ da revolugao ganharam terreno, ndo s6 no Brasil, mas praticamente cm todos os palses da América Latina, Foram anos de ascensdo das teorias revolucionérias inspiradas na guerra de gucrrithas, que, projetadas através dos atorcs, politics de incgavel reconhecimento piiblico, como Che Guevara ¢ Regis Debret, também se anunciavam vitoriosas nos longinquos campos do Vicind, nos combates travados contra 0 mais poderoso exército do mundo. Ainda que resultados amargos tenham sido impostos tiqucles que depositavam as suas expectativas nesse imagindrio da revolugdo, a sua forga de atraciio, principalment juventude estudantil; permaneceu muito grande, até pelo menos 0 it anos seicnta. Dentre as perdas mais significutivas em torno do imagindrio da Tevolucdo, a maior delas foi a morte de Guevara na Bolivia, 0 que de uma mancira sintomatica abriu caminho para as primeiras criticas a teoria da revolucdo inspirada nos ideais das revolias camponcsas, principalmente, da América Latina, Neste conturbado terreno onde se misturaram opgcs politicas ¢ formulagdes tedricas a respeito dos rumos da revolucdo, um outro tema de Brande destaque no campo das ciéncias humanas foi o do militarismo, Em um continente praticamente varrido pelos golpes militares a questio revoluciondria se colocou desde as opgdes da luta armada contra esses Tegimes, até as expectativas de adeso dos militares as causas da revolucao, como foram os casos, por exemplo, das experiéncias de Alvarado no Peru ¢ de Torres na Bolivia, As inimeras teses produzidas no campo das ciéncias sociais sobre o papel dos militares em socicdades periféricas do capitalismo, demonstfam de que mancira o imagindrio da revolugao procurou dar conta do Papel desses atores politicos na histéria da América Latina. Dentre as tradigdes inventadas pelo imagindrio revoluciondrio dos anos Sessenta aparece de forma incontestavel as construcées teGricas claboradas a partir da meméria hist6rica da revolugdo de trinta. Ao lado da reconhecida forga das imagens e das instituigdes polfticas elaboradas pela meméria hist6rica, que acabaram produzindo forte tradigdo no pensamento politico brasileiro, encontramos na segunda metade dos anos sessenta uma vasta 2Durante a tomada do prédio da Faculdade de Filosofia Citncias & Letras, na Rua Maria Antonia, em 1968, pelos estudantes, inimeros semingrios foram realizados tendo como tema os rumos da revolugio no Brasil. Dentre essas atividades destacam-se inclusive os debates sobre a revolugio de trinta. 0 produgio intelectual onde a polarizacao entre revolugio e militarismo orientou o campo das interpretagdes da revolucao de trinta. Os anos finais da década de sessenta ainda trouxeram novos problemas para o pensamento revoluciondrio no Brasil. Apds as intensas manifestagdes estudantis do ano de 1968, que iriam culminar no tarmentoso congresso da Unido Nacional dos Estudantes, em Ibitina, o regime militar desencadeia uma escalada repressiva, cujos resultados foram a perseguigao de estudantes, professores e militantes politicos da esquerda revoluciondria além da promulgacdio do ato institucional n° 5. A partir deste novo quadro politico as. polarizagdes entre militarismo e revolugdo tornaram-se ainda mais explicitas, ¢ as opg6es 2 Inta armada ¢ uma concepgdo revoluciondria baseada em conceitos militares da guerra ¢ da insurreigfo tornaram-se lugar comum entre os debates da esquerda. Embora os campos da revolucio e do militarismo pudessem aparecer polarizados, no que diz respeito aos posicionamentos politicos ¢ ideolégicos, isto nfo significon uma completa dissocia¢’o desses temas. Nas interpretagbes elaboradas sobre a revolugao de trinta, indimeras andlises fundiram a partir da meméria hist6rica do vencedor o campo da revolugao e do militarismo. Dentre as tradigdes inventadas em meio aos impasses politicos da esquerda no Brasil, depois de 1968, poderfamos destacar a invengdo do tenentismo, tema recorrente em toda a historiografia da revolugao de trinta, que expressa em todos os seus contornos as relagbes entre revolugo e militarismo. Em torno deste tema gravitaram, praticamente, todas as interpretag6es. que tomaram a meméria histérica dos vencedores como um fato histérico ¢ no como uma das vers6es possfveis do processo histotico, Dentre os indmeros problemas criados por este campo de interpretagdes, que fundiu a partir da mem@ria histérica, as quest6es da revolug4o com o militarismo no Brasil, est4 a idéia de que esses dois temas em vez de se oporem, podem confluir ¢ se plasmar em algumas situagOes hist6ricas. Além disso, existe 0 problema das tradig6es inventadas em tomo deste bindmio militarismo ¢ revolugao. Sem se aperceber do jogo da meméria histérica do vencedor na elaboragao do tenentismo, essas interpretagdes perdem de vista a mancira como © discurso do poder se apropriou da linguagem revolucionéria, tomando para si o dircito de anunciar o lugar da revolucdo na hist6ria, definindo os inimigos do regime e ao mesmo tempo fazendo do Estado 0 tinico representante logttimo dos ideais nacionais. Inventar o tenentismo durante a década de trinta tornou-se a estratégia mais apropriada para descaracterizar 0 campo de propostas politicas que pregavam a luta revoluciondria, conseguindo-se com isso desautorizar os agentes sociais que ndo se afinavam com o discurso da revolugo produzido 70 pelo poder estatal. Assim como a revolugio de trinta foi tomada como um fato hist6rico que cindiu o tempo histérico, o tenentismo também foi clevado a categoria de fato, perdendo-se a dimensio deste tema no interior de uma luta politica onde o discurso do poder de estado necessitava derrotar outras opgées da revolugao no Brasil. Com a invengio do tcnentismo, 0 poder politico dos anos trinta criou no imagindrio politico, a idéia de que o debate sobre a revolucao no periodo circunscreveu-se as hostes itares, € a historiografia dos anos pés-68 absorveu sem uma critica cuidadosa as representag6es da memiria hist6rica do poder estatal, que monopolizou o discurso da revolugdo para assegurar para si os destinos da histéria nacional. Além desta construgo imagindria da revolugdo em simbiose com o militarismo, as interpretagdes historiogrficas que estamos analisando, foram prédigas também na aplicago de modelos marxistas ao tentar explicar 0 "fato hist6rico" revolugao de trinta. Utilizando-se de um ampla gama de consideragdes de Marx e de outros teéricos sobre o problema da revolugao, os intérpretes de trinta oferecem-nos um prato nem sempre digest{vel, dada a variedade de modelos utilizados. Para aqueles que preferem os textos de um Marx romantico envolvido nas lutas revoluciondrias de 1848, que varreram varios paises europeus, podemos ler 0 autor nas entrelinhas de obras que interpretaram a revolugio de trinta como um golpe bonapartista. No campo imagético criado por essas interpretagdes, Vargas aparece travestido de Luiz Bonaparte ¢ a fantasmagoria do 18 de Brumédrio, passa a povoar o imagindrio da historiografia brasileira. O nosso ditador traja as vestes de revolucOes passadas e a fantasmagoria produzida nos embates politicos da Franga de 1848, criticada magistralmente por Marx em 18 de Brumdrio, vem se abrigar no campo historiogréfico das interpretagdes da revolugdo de trinta. Ao que tudo indica, essa corrente interpretativa soube absorver de Marx 0 seu modelo de bonapartismo, mas fez ouvidos moucos as suas criticas historiografia burguesa que explicou 0 golpe politico de Luiz Bonaparte a partir da fantasmagoria da antiga Tevolucdo francesa. Para uma outra corrente interpretativa de trinta, o marxismo chega através da simbiose do estruturalismo francés com os escritos politicos do teérico italiano Antonio Gramsci, No inicio dos anos setenta ganha Tepercussao intemacional a obra de Nicos Poulantzas, Fascismo e Ditadura, onde o autor, filiado as correntes do estruturalismo, aproxima-se dos escritos de Gramsci ¢ realiza uma andlise abrangente dos regimes autoritdrios no campo da teoria politica, Desta e de outras obras de Poulantzas sido extraidos um conjunto de conceitos novos para a interpretagdo da revolugao de trinta ¢ enquanto as correntes historiograficas mais afinadas aos escritos 7 originais do Marx procuravam explicar 0 fato histérico a partir dos modelos da revolugo burguesa, os adeptos do cstruturalismo gramsciano de Poulantzas analisaram trinta a luz da tcoria politica sobre os regimes autoritérios. Assim, conceitos como crise de hegemonia, vazio de poder ou estado de compromisso passaram a participar do campo imagindrio de tinta, ¢ ninguém se Iembrou de perguntar a respeito dos compromissos do estado na produgio da meméria histérica, como momento decisivo do seu exercicio de dominagao. Antes de continuarmos a leitura deste variado menu, seria conveniente fazermos um paréntescs. Levando-se em considerago que os modelos marxistas de explicagiio do fato histérico esto difusos num nimero bastante grande de obras produzidas por historiadores ¢ cientistas sociais, desde o final dos anos sessenta até hoje, no scria possivel citar todos esses trabalhos. Evidentemente, alguns deles serviram e ainda servem de balizas para interpretagdes que insistem cm tomar a revolugio de trinta como um fato hist6rico carente de um modelo tedrico que o explique. Fechando o parénteses ¢ reabrindo o cardépio, voltamos aos clissicos do marxismo para cncontrar um outro modelo interpretativo para a explicagao de trinta. Desta vez, nosso encontro é com Lénin c seus escritos produzidos no periodo em que o teérico marxista precisava analisar os rumos da revolugdo, em 1905, na Russia. Suas preocupag6es cram as de saber se 0 proletariado seria capaz de realizar, mediante uma alianca de classe, 0 programa da revolugéo burguesa, imprimindo nova dindmica ao desenvolvimento do capitalismo na Riissia, ou sc a revolucao seria realizada sem a classe operdria, através de uma alianca conservadora entre os grandes proprictarios rurais ¢ a burguesia urbana, Para esta andlise da conjuntura politica de 1905, na Rissia, Lénin clabora o conceito de revolugado pelo alto de tipo prussiano, que jé havia sido enunciado por Engels em sua andlise da revolugao burguesa na Alemanha. Por meio deste modclo teérico, a revolugdo de trinta foi explicada como um fato hist6rico em sua forma marxista de revolugio-burguesa-pelo-alto-de-tipo-prussiana, com direito a junkers ¢ a tudo 0 mais que a imaginago tedrica pode permitir. Talvez seja convenionte pararmos por aqui, pois hd o risco de tomarmos esta refeigdo completamente indigesta. Ninguém entre nés tem divida de que a histéria trabalha com conceitos ¢ muitas vezcs os modclos sdo utilizados para se testar hipdteses de trabalho. Os acontecimentos hist6ricos sdo singulares, mas a sua trama encerra um enredo que os modelos ¢ os conceitos ajudam em muito para a constituigao de hipdteses ¢ explicagdes regionais. Apenas nesse scntido, podemos falar de uma historiografia da revolugdo, onde uma variedade considerdvel de conccitos & tcorias procuram desvendar a trama dos eventos, que se autodenominaram ou n foram explicados a posteriori pelo historiador como revoluciondrios. O problema, entretanto, é de outra natureza e precisa scr discutido no campo da propria relagao entre 0 sujeito do conhecimento ¢ o objeto que ele pretende construir por meio de sua reflexdo. No caso das andlises da revolucdo de trinta, © que ocorre € uma identificagao entre 0 sujcito € o objeto, que Pprocuramos de forma bastante sucinta analisar. Do nosso ponto de vista esta identidade se deu ao longo dos anos sessenta e avancou por boa parte dos anos sctenta, porque, no campo das opgdes politicas da intelectualidade brasileira a revolugaio sempre esteve na ordem do dia. ‘As mudangas obscrvadas neste campo historiogréfico tomaram-se visiveis j4 na scgunda metade dos anos sctenta, quando a questio revoluciondria passou a ser revista no Brasil e outras perspectivas se abriram no campo da politica. A légica da identidade entre 0 sujeito € 0 objeto no que diz respcito a revoluco brasileira comecou a se desfazer ¢ 0 campo dessa meméria e desse imagindrio tomnou-se por demais evidente em todos os seus contornos. Neste universo de grandes frustragdes ¢ de perdas irrepardiveis comecou a sc vislumbrar os contornos de uma historiografia, a qual me incluo, que iniciou o trabalho de desmontagem de um imagindrio que dominou as nossas mentes por quase duas décadas. Nesse sentido, cu ndo posso me situar fora de uma geraco que apostou e acreditou na vitalidade da rebelitio ¢ da revolugdo. Contudo, 1930 - O siléncio dos vencidos, aconteceu jA em plena ressaca revoluciondria, onde estas utopias estavam desfeitas © no queriamos nos transformar nos personagens do filme de Alain Resnais, A Guerra acabou, irremediavelmente presos & meméria de uma revolugo que jA havia terminado. As dimensées histéricas do insucesso politico, titulo original de minha tese de doutorado, qua acabou se transformando no livro, 1930 - O siléncio dos vencidos, talvez expresse com maior fidelidade os impasses de uma geragdo, que viveu a derrota dos ideais revoluciondrios dos anos sessenta. As cnergias ainda pulsantes no final dos anos setenta, serviram para iniciar um trabalho dificil dc desmontagem da meméria histérica da revolugo, ¢ nesta reavaliagdo, o imagindrio que se constituiu como revolug4o de trinta néo poderia ficar de fora. Na historiografia dos anos oitenta, a revolugdo passou por uma profunda revis3o e as questes pertinentes ao contexto dos anos sessenta perderam a sua forga de atragdo. Daquele imagindrio que cmpolgou setores significativos das socicdadcs cm escala mundial, talvez os ideais da revolta e da rebelido ainda permanegam vivos. A presenga deste imagindrio, pelo menos em termos de nossa experiéncia politica, provavelmente, deve-se ao fato de que viemos a descobrir que cm matéria de cidadania os mais amplos BA) setores da sociedade brasileira sfio os rebeldes primitivos de que falaram Hobsbawm ¢ Edward Thompson. Na critica 4 memoria hist6rica da revolugdo descobriu-se a questo da democracia e ao mesmo tempo, a historiografia que floresceu a partir desses novos referenciais, reivindicou no terreno da histéria 0s direitos politicos da cidadania para os rebeldes primitivos, que se viram privados de todo ¢ qualquer direito de participagao politica. Entretanto, os caminhos destas tendéncias historiogréficas que redescobriram a dimensdo da democracia ¢ da cidadania fazem parte de um outro estudo que estamos desenvolvendo, Esperamos poder voltar ao assunto, brevemente, Por enquanto, podemos dizer apenas que a revolugao dos anos sessenta, ‘enquanto um elemento norteador de nosso imaginario, acabou. 74

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