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s Relagses ermnacionais Joo Pontes Nogueira uals aide euenavie a6 lngo dots Ose sc) engendr (prods un epg, eu ig "ela! ‘ria ov exit conn dent dagace epg” ear efboe, The Production of Space, 199. A questo do spo prema ns muses da dsigtica cada ds elses iver te eee Ino se deren atade pute, b heen do eso come paige dominant nseigbesmrmieas™ ‘Anet Dril, Of Sokal Spaces, 1885. © Espago como Problema Boa parte dos debates sobre as transformacées nas relagdes internacio- nais contempordineas envolve argumentos sobre redefinigdes no espago. Questiona-se, por exemplo, 0 lugarda politica diante da globalizaciodo capital, do colapso de estados, da menor releviincia de fronteiras, da fragmentacao de identidades, do enfraquecimento de projetos nacionais, da eriagio de espagos virtuais etc. O espago, contudo, é uma categoria ‘que, raramente, 6 objeto de problematizagao pela teoria des relagSes ‘CONTEXTOINTERNACIONAL Rede nc, ol, 2,12, jue 2000, py. 387429 387 Joo Pontes Nogueira internacionais, apesar de a diseiplina ocupar-se, em granvle parte, cle processos de produgiio e reprodugio do espago politico mundial. Na verdade, 0 “intemecional”, entendido enquanto esfera onde se dio as relagdes entre estados soberanos, 36 pdde ser constitutdo na medida em que o espago politico modemo se dividiu em unidades terttoriais sepa radas ¢ independents, Por cutto lado, vétias contribuigies recentes nas cigncias sociais vem reafiemando a importancia da dimensio espacial para entender a dindmica do capitalismo tardio, a constituigdo de subje- tividades © a formagao de identidades politicas? 0 objetivo deste trabalho é levantar algumas questBes sobre o impacto de mudangas nos modos de representacdo e produgo do espago sobre a ‘maneira de pensar as relag6es internacionais esugerir algumas reflexes sobre 0 papel da teoria das relagtes intemacionais na configuragio do ‘espago internacional (ou global), Em particular, procuro argumentar que, diante da auséncia de reflexio te6rica sobre o espaco intemacional nas teorias convencionais, a teoria critica apresentou as primeiras © mais, relevantes contribuigdes para esse debate na frea, apontando para pos- sibilidades originais de incorporago do tema da globalizago nas pes- quisas de Relagdes Intemacionais. Nas dltimas duas décadas, nota-se um esforco de varias correntes de pensamento na drea para refletir sobre processos que estariam tornando mais dificil sitwar as relagies interna fronteiras do espago politico so menos claras. O principio da soberania as préticas associadas a ela vem softendo constantes interrogagdes ea desterritorializago de uma série de processos econdmicos e sociais vm redefinindo as funges ¢ anatureza do estado. Esses processos, por outro lado, vém colocando em questio as diferenciagbes te6ricas entre 0 doméstico ¢ 0 intemacional, e entre hierarquia e anarquia, que permiti- ram situar o lugar da vida politica na esfera delimitada da comunidade politica nacional, também, teorizaro internacional comoum ambito de ‘conflito ¢ eventual cooperaciio entre estados onde a politica se reduzia.& acomodacao de interesses definidos em termos de poder. mnais em contextos ande as 388 ‘Conteibuigao da Teoria Critica A constituigdo de uma economia politica global esta progressivamente politizando o internacional, © que se vem refletindo nos trabalhos de te6ricos que procuram cada vez mais formular modelos de governanga adequados ao que alguns véem como uma comunidade global emergente ‘ou mesmo uma sociedade civil global. Se tais modelos de governanca ¢slobal ou intemacional sero democriticos € ainda motivo de grande controvérsia. F interessante, contudo, notar que o fazer teérico em relagées intemacionais passa a tratar de problemas semelhantes aos da teoria politica (como a democracia e a construgiio de instituigées), dada a disjungao entre representagdes do espaco ainda vinculadas®s fronteiras das comunidades politicas nacionais ¢ as préticas espaciais em transfor- ago na economia politica global. Questées que dizem respeito as fronteiras do espago politico e A construcdo de instituigdes politicas, identidades e atores coletivos no espago intemacional adquiriram maior significado ¢ relevaincia nos debates sobre a politica mundial depois da Guerra Fria, Nesse sentido, a teoria internacional vé-se diante de proble- mas que 0 cnone tradicional se recusava a enfrentar, € que eram circunscritos ao dominio da teoria politica. A teoria internacional no século XX assumin atarefa de daruma resposta a0 problema do lugar ¢ da qualidade da vida politica na modernidade. Por esta razdo, tem se caracterizado por ser uma “teoria espacial”, pois sti fundadaem sua vapavidadk Ue definit, delimitare isolar dois espacos, qualitativamente diferentes, 0 nacional co intemacional (Walker, 1993). © argumento desenvolvido aqui € que as atuais transformagées na dimensio espacial das relagdes socizis vém suscitando esforgos para reformular a maneita como pensamos a politica mundial. Se, por um lado, encontramos inmimeras tentativas de reafirmar a pertinéncia do realismo ao constatar a permanéncia da I6gica estadocéntrica e minimni- ar o impacto das mudangas correntes, por outro, encontramos a recupe- rago e redefini¢ao de teorias que dio conta da maior relevancia das relagdes transnacionais, sem descartar 0 papel do estado; um renovado interesse por teorias geopoliticas como ferramentas adequadas para 389 Jolie Pontes Nogueira ‘entender a dindmicac us forgas que esitio moldando a ordem mundial do P6s-Guerra Fria; e um crescimento e desenvolvimento de abordagens criticas altemativas da politica mundial a partir de uma variedade de perspectivas. 5 debates © controvérsias que animaram a érex nos thimos dez anos trouxeram um pluralismo teérico ausente durante 0s anos dominados pelo que Ashley corretamente denominow de ‘pobreza do neo-realismo” (Ash= ley, 1986). Mas, ainda assim, os problemas teéricose conceituais colocados pela introdugo do espago como questo relevante receberam escassa tengo. A maior parte dos escritos sobre as mudangas espaciais na politica ‘mundial contemporanea ver de geégrafos, filésofos, especialistas em economia politica, da literatura sobre globalizao e dos estudos culturais. Por outro lado, temos presenciado o aumento de estudos que procuram ‘compreender e responder as tensies € contradigées entre terrtorilidade © snherania no fim deste século, tanto do ponto de vieta de peequicadores realistas que procuram relativizara importancia da soberania como prinet- pioregulador do sistema internacional (Krasner, 1999), como de neoliberais que veer na proliferagdo de regimes de instituigées intemacionais o sinal de uma ordem pés-hegem@nica onde a soberania est mais relacionada & negociagao da interdependéncia do que a preservagio da autonomia estatal (Keohane, 1995), € de cosmopolitas que véem a erescente ins- titucionalizagio das relagdes internacionais como proceso de construgio ‘de uma governanga global bascada em regras tniversais ¢ no respeito aos direitos humanos Held, 1995), Qualquer que sejaa perspectiva das teorias ‘convencionais das relagées internacionais, um eixo comum as une em sua reocupagiio com a configuracdo do sistema intemacional depois do fim da bipotaridade: a necessidade de lidar com o desafio tedrico colocado por tendéncias © percepgdes que parecem minar as categorias centrais do pensamento intemacional, como estado”, “soberania”, “territorialidade” & a “anarquia”, ‘Superada a perplexidade inicial provocada pelo fim inesperado da Guer- ra Fria ¢ pela proliferacao e difusdo de discursos sobre a globalizagio, 390 Contribuigao da Teoria Critica. as teorias convencionais parecem ter readquirido a seguranga necessatia, para reafirmar a permanéncia dos pilares conceituais que sustentam esse campo do saber ¢ mantém firmes as fronteiras — epistemolégicas € politicas — que the do coeréncia. E isto foi conseguido, em parte, em vvirtude das dificuldades de incorporar as questoes trazidas pelas teorias da globslizagio ao debate sobre politica intemacional. Tas dificuldades originain-se tanto nas indefinigoes e inconsisténcias tio caracteristicas, dos discursos sobre a globalizagio, quanto na auséncia de um debate mais profundo sobre o lugar do espago na teoria das telagSes intemacio- (0s problemas, conmudo, permanecem, como atesta a continuidade dos debates sobre 0 estado, a soberania ¢ a territorialidade na literatura recente, Rob Walker expressou bem a natureza do problema: nai “Como, exatamente, espera-se que os estados, com suas territoralidades fixes, respondam a economias, cecaologias ¢ culturas que esto cada vez mais obce- ccadas pela velocidade © pela temporalidade do que pela distincia e pela ter- ritorialidade & uma questio que forca a capaciéade da imaginagao potftica moderna para além de seus limites cuidadosamente estabelecidos.” (1995a:30) [A partir dos anos 80 as teorias criticas comegaram a investigar a relagio centre priticas espaciais € projetos politicos, ¢ a avaliar 0 contetido ‘normativo das teorias convencionais apartirdas representacdes espaciais contidas em suas concepgées de order mundial e de economia global. Da mesma forme, passaram a indagat em que medida a demcratizagio 4a politica mundial poderia ser articulada a partir de préticas espaciais aliernativas que, por exemplo, propuisessem uma relago menos hierar ‘quizada entre os espagos global ¢ local. Autores comprometides com a critica As teorias convencionais argumentavam, com base em contri- buigdes de pensadores como Foucault e Jamison, que, no contexto de ‘uma crescente relevaneia de novas préticas espaciais na transformagiio 4o capitalismo mundial, uma “teoria espacial” como as relagdes inter- nacionais adquire um lugar estratégico para repensar 0 espago politico Em outras palavras, a teoria internacional nfo poderia mais se limitar a0 estudo de uma categoria de fendmenos situados em tm ambito ontol6- ‘zica e epistemologicamente diferenciado — o sistema de estados andt- 301 Joie Pontes Nogueira ‘uico, Inondo significava que a rea de estudos de Relagies Internacionais tivesse perdido sua especificidade. Mas, como autores como Walker, Sha- piro e Brown afirmam, o desiocamento ontol6gico proposto por teorias enfticas e p6s-positivistas introduziu uma nova gama de questWes antes estranhas as teorias convencionais, tais como cultura, identidade, ética, soberania, espacialidade edemocracia, dentre outras (Walker, 1991;Brown, 1995; Shapiro © Alker, 1996). Consegilentemente, talvez devéssemos conceber a teoria intemacional também como uma disciplina que estuda Aluxos, redes e articulagées entre atores politicos engajados na producto de tum espago global, © no apenas como um campo de saber que estuca relagdes de poder entre estados em um sistema govemado pela légica da anarquia. Se, como prope Henri Lefebvre, a producto do espago & 0 rago mareante do desenvolvimento tardio do capitalismo, bem como 0 meio estratégico de exercicio do poder, umateoria critica das telagdesintemacio- nais deveria incorporar a dimensdo espacial em sua critica a desigualdade ‘cconémica, & opresstio politica, a exclusdu suvial e 8 ulienagao culnural que ccaracterizam a politica mundial hoje. O debate sobre o lugar do conceito de espago na teoria intemacionel quer, portanto, contribuir para a tarefa de ropensar o fazer teGrico em nossa disciplina, A Teoria Internacional como Teoria Espacial ‘Quando examinadas mais de perto, as teorias de relagdes internacionais revelam muito sobre a importincia do espago na concepgio de uma esfera internacional diferenciada, seja através das representagdes e me- taforas presentes em seu discurso, seja através da Kégica que contrapie © intemo a0 externo, ou mesmo pela reificago da territorialidade. Na verdade, as teorias interacionais sustentam-se em suposigdes acerca do ‘espago raramente admitidas — a exce¢o sendo, é claro, a geopolitica, Ao introduzir a categoria de espagoem sua reflexiio, ateoria critica pode desvendar as representagdes espacisis presentes nas teorias convencio- 392 Contribuigie da Teoria Critica. aise anclisar sues implicagéos para carter das relagGes internacionais por elas descritas. Nesse sentido, a contribuigao mais importante dos autores discutidos a seguir esta na possibilidade de identificarmas © aspecto normative daquelas teorias através da andlise da concepeao de espago. Porque 0 espaco & um aspecto crucial de nossa existéncia, de nosso “estar-nio-mundo” (Dreyfus, 1991), da constituigo de nossas identidades individaais e coletivas; porque é um produto e uma condligae da vida em sociedade, € justo afirmar que uma critica da ontologia espacial da teoria internacional pode ser a0 menos t&o relevante quanto as que focalizam outros importantes “dados” do contexto intemacionel, como a anarquia ou o estado, Em seu tratado sobre o tema, Henri Lefebvre demonstra que o espaco ndo € uma categoria neutrae passiva, ‘ou um pano de fundo para 0 desenrolar das relagdes sociais, e que as priticas e representagdes espaciais que possibilitaram a constituigo do estado territorial soberano eram as mesmas engajadas na produto do ‘espaco da acumulacao: “Nem Marx ¢ Engels, nom Hegel perceberam com clareza a violéncia no nticleo do processo de acumulagdo [..]¢, ssim, seu papel na produgio de um espago politico-econdmico. Este espago foi, claro, o nascexiouro e o bere0 do estado ‘moderno. Foi aqui, no espago da acumulagio, que a ‘vocagio totalitéria’ do cstado tomou forma, sua tendéncia para considerara vidae aexisténcia politica superiores aoutras préticas‘sociais'e ‘culturais',e20 mesmo tempo.concentran- do toda a existencia politica em si mesmo, e com base nisso proclamando © principio da reherania—a principio, na verdade, desi pripria soerania. Foi gui que 0 estado foi constiufda como uma ‘entidade’ real © imaginéria, abstrata-concreta, que nfo reconhecia Timites a no ser aqueles resultantes de relagdes de forga (zelagSes com seus componentes internos e com seus comge- neres — invariavelmente rivais e adversaros viruusis).” (Lefebvre, 1991:279) Para Lefebvre, portanto, a relagdo entre os processos histéricos que constituem as estruturas politicas ¢ econdmicas do mundo moderno toma-se mais clara a partir da compreensao da producto do espago abstrato, o lugar por exceléncia da realizagio da territorialidade soberana € da acumulagdo. O espago abstrato & a condigdo necesséria para uma delimitagio clara de fronteiras cuja fungdo primordial é “enclausurar” 393 Jodo Pontes Nogueira as relagies sociais. Em outras palavras, para Lefebvre, oespage abstrite € um espaco “vazio”, “neutro”, que pode ser preenchido, dominado, medido e fechado, ou seja, submetido & razao técnica (instrumental) que std na base do projeto da modemidade. A abstracio esconde, contudo, a violéncia que a produz. A estabilidade de um espago social dependeré da articulagdo entre priticas e representagées espaciais em determinados Perfodos histéricos. Essa atticulag3o esté constantemente exposta a disjungdes, conflitos e contradigBes que caracterizam a producao do espago, fazendo com que @ coeréncia homogeneidade do espaco abstrato fique sempre sujeita & contestacao. Como sugeri acima, 0 que o debate sobre a globalizagao levanta é que 8 desafios a politica democratica, hoje, estio ligados a possibilidade de se redefiniro locus de sua realizagao, Seé verdade que aperda das nocdes de espaco e tempo que orientaram a experiéncia da modemnidade é uma das caracteristicas da globalizagiio, pode-se compreender melhor porque tantos conflitos na politica mundial contemporanea se manifestam em. termos de “crises de identidade” coletiva, uma vez que a definigtio de tais identidades depende da resposta a questo do lugar onde podem reali- za0-se enquanto projeto social e politico. A globalizago é entendida aqui, essencialmente, como um processo de expansiio do espago abstrato emescala mundial. A nogio de expansio pode parecer estranha quando relacionada ao espago, uma vez que a percepsiio predominante acerca do capago nas ciéncias exatas representa-o como algo fixo e imovel, um recepticulo de matéria cuja forma se mantém constante para possibilitar ‘© movimento produzido pelas forgas dindmicas da fisica, No ambito das iéneias sociais 0 espago é visto, basicamente, como pano de fundo dos processos sociais, ou mero subproduto de forgas que o definem, moldam c instumentalizam de acordo com suas necessidades materiais © debate sobre a globalizagio se enriquece se considerarmos que © espago é produrido por forcas sociais ehistGricas e ascume diferentes significados de aconéo com as priticas espaciais dominantes em uma ormagao social. Nesse sentido, a primeira conseqiiéncia dessa aborda- 394. CComtribuigae da Teoria Critica. gem edrica € rejcitar ancutralidede do espago em relagio aos processos historicos e sociais, Priticas espaciais estao sempre articuladas com modos de produgio e formas de dominagao politica. Lefebvre, por ‘exemplo, argumenta que 0 surgimento do eapitalismo foi acompanbado por mudangas revolucionétias na concepcéo do espago no contexto da Revoluco Cientifica, que permitiram pensé-Lo, primeiro enquanto algo absoluto, uma “coisa em si mesma”, para posteriormente afirmar sua abstrago em telagio A natureza e &s relagdes sociais. A produczo do espaco abstrato € crucial na geografia histérica do cupitalismo, bem como no processo de formagiio do estado territorial soberano, uma vez ‘que toma possivel pensar 0 espago enquanto algo quantificdvel, cient ficamente mensurdvel, passfvel de divisdo, homogeneizaco e fragmen- tagdo, e, portanto, dominago?. Para Lefebvre, o desenvolvimento do capitalismo, progressivamente, substitui a produgio de “coisas no es- ago” pela produgao do espago. finesse sentido que se pode entender a globalizagiio como produgo de um espaco abstrato em escala mundial tna medida om que a realizagio de valor na economia global se dester- ritorializa. Em outras palavras, a globalizagdo representa um salto qua- Iitative no predominio do espago abstrato na reprodugio das relagbes sociais, e, portanto, na mercantilizagdo da vida social. Lefebvre argu ‘wenta que o eapitalismo chegou a um estdgio no qual sua sobrevivéncia depende da resolugdo de contradigdes através da produedo de espaco. A nogio de espago produzido quer transmitir a idéia de que 0 espago desempenha um papel ative na materializagio de um determinado pro- jeto social. Ao falar do papel da geografia na consolidagao do poder do estado, Foucault apontava como 0 espaco foi desvalorizado pelas cién- cias sociais em favor do estudo de processos hist6ricos, uma ver. que as transformagGes sociais eram entendidas enquanto mudanges que acon- teciam emescala temporal. Para Lefebvre, transformagées sociais neces- sitam de transformagSes no espago. Ao problematizar 0 espago, torna-se possivel investigar como ele ¢ instrumentalizado pelo poder e se torna um meio de dominagdo. Porque oespago abstratoé concebidocome algo 395 Joo Pontes Nogueira em si mesmo, destacado de processes histéricos e relagbes socials que 0 produzem (e porele so reproduzidos), opera-se uma ilusiio de coeréncia que oculta diferengas e conflitos. Tal coeréneia ¢ obtida por intermédio de estratégias de homogeneizagio que se tornam cruciais para a centra- lizagao e institucionalizagzio do estado. E importante notar, contudo, que © espago abstrato nao tem nada de “abstrato”, e que, apesar de apresen- tar-se como homogéneo, ndo é homogéneo: “Como um produte da violdneia © da gucirs, {o espago abstat} & poitica: stuido pelo estado, é institucional. A primeira vist, parece homogenco, e, de fato, serve Aqucas forges que fazem tibula rasa do que quer que Bae con $1 camino, do que quer que os amcace — em resin ds diferengas, Eesas forgas parecer esmagar tudo & sua frente, com o espaco desempeihanda funsdo de uma nveladore, um trstorouum tanque. A nogao de homegensidade instrumenial do cspaso, contd, ¢ ilusdria — ainda que decrig6es empfiias reforcem essa ilesio — porque assume, de forma acitica, o instrumental como um dado” (Lefebvre, 1991:285). A cstratégia dominante na produc do espago abstrato & a homogenei- zacZo. Como Lefebvre sugere na citagdo acima, tal estratégia envolve 0 emprego de violéncia no “achatamento” das diferengas e se manifesta na fragmentagio, separagio e divisio daqueles espagos onde tais dife- rengas insistem em se manifestar. Assim, 0 espago abstrato “coloniza” ‘outros espagos, separando-os e subordinando-os « um poder centraliza- do. A criagio de tais espagos particulares, partidos e domesticados, dessa “homogencidade feila us expecificidades”, se di, segundo Letebvre, através da territorializagao. Encontramos aqi so teérica que nos permite articular globelizagao e territorialidade em lum quadro analitico cujo eixo principal a produgéio do espago. Em outras palavras, podemos indagar acerca do impacto da globalizagio sobre as préticas espaciais que caracterizam as relagées intemacionais, na época modema, © que a abordagem proposta aqui sugere é que a globalizagdo expressa um conjunto de estratégias visando a produeao de lum espago social global, constituldo inicialmente por uma economia ‘mundial que se forma enquanto um espago sem territério ou um espago ‘que ocupa uma diversidade de territérios (Drainville, 1995:56). Tais portanto, uma formula 396 ‘Contribuigao da Teoria Critica... ‘outratégias tornam.se progressivamente mais complexas c se articulam em redes que facilitam a circulagio de informagao, cultura, tecnologia ‘cuja caracteristica € operar em espagos no tettitoriais. Na ética lefeb- vriana, tal movimento representa a expansao do espago abstrato em escala mundial, produzindo o que Harvey aponta como uma perda de “sentido de lugar", uma intensificacdo da fragmentagio © dest ritorializagiio dos espagos politicos, gerando crises de identidade, a0 mesmo tempo que as forgas do mercado aprofundam ahomogeneizacéo. Por intermédio do conceito de espaco abstrato, Lefebvre tentou identifi- car a“afinidade” entre a produgo do espaco de dominacao politica e do espago de troca e de acumulagdo. Em que medida esta reflexsio sobre 0 espago pode contribuir para uma teoria critica da politica mundial? Como afirmei anteriormente, a introdugao da problematica do espago parece particularmente apropriada no momento em que transformagoes zo cendirio intemacional desafiam as suposigées das teorias convencio- nis sobre a configuracdo dos espagos politicos contemporaneos. Os limites dessas teorias podem ser explicados a partir da erosiio das bases conceituais, politicas e institucionais de suas representagoes do espago internacional pelas forgas e estratégias que constituem a globalizacdo. ‘Sem entrar na discussio sobre a natureza, significado hist6rico e rigor conceitual da globalizagio, 0 termo serve a0 propésito especifico de apontar para um processo de transformagiio do espao politico moderno. Uma vez que a globalizacio pode ser entendida como um processo de produgdo de um espaco global, alguns autores no campo das relagbes internacionais sugeriram, durante os atios 90, que esse processo coloca em questio o principio da territorialidade soberana, as fronteiras entre 0 nacional € o intemacional, ¢ a centralidade do estado como ator. Nas palavras de Jarvis € Paolini, “Os padidcs, movimentos ¢ a prépria construgie de capago politico mundial tomnaram-seambiguos. A intensificagdo do quetem sidochamado ‘globalizagao" nos estd forgando a reconsiderar © pressuposto central da modernidade — a construgio do espace e do processo politico pelo estado-nagio.” (1995:3-4) 397 Jolie Pontes Nogueira Para Lefebvre nenhuma transformacdo social se completa sem madan- 28 no espago. O espaco é produto da ago social, incorpora as condigéies ideolégicas materiais e histéricas do contexto em que é constituido, e, or outro lado, estabelece os limites e cria as possibilidades para o desenvolvimento de relagdes sociais. As teorias convencionais de re- ages interacionais assumem, como disse antes, que espago é um cendrio fixo © imutavel onde fendmenos sociais se desenrolam. Em ‘outras palavras, essas teorias tomam 0 conceito modemo de espago (0 ‘espage newtoniano ¢ cartesiano) como um dado ontol6gico. As teorias internacionais sfo discursos sobre 0 espago que ignoram a politica do ‘espago, mesmo desempenhando um papel ativo na sua formagio. Na seco seguinte discutiei contribuigdes recentes no campo das relagtes intemacionais que analisam as suposigdes espaciais das teorias conven- ccionais de um ponto de vista critico. Estou particularmente interessado ‘emavaliar se tas eriticas forecem uma perspectiva interessantedo papel as teorias convencionais na articulagéio de uma visao da politica mun- dial que é estadocéntrica, hierérquica e comprometida com a expansio do capitalismo global, Estou também interessadoem considerar a conti- buicdo da teoria critica para a compreenséo das transformagées na politica mundial no contexto da globalizagao. Para tanto, concentrarei minha atengio nas criticas As representagdes espaciais das teorias ‘convencionais assim comonaandlise doimpacto das mudangasespaciais sobre a nossa compreensiio das relagSes intemacionais. Para efeitos de ieagBo, discutirei o trabalho de cada autor separaluimente A Teoria Critica e © Espaco Internacional Em 1987, Richard Ashley publicou um ensaio chamado “A Geopolitica do Espaco Geopolitico” no qual apresentava alumas idéias pera a formulago de uma teorla crftica das relagées intemacionais, Este ensaio € particularmente interessante porque nele Ashley retoma sua critica da teoria intemacional — iniciada com seu artigo de 1986 —atacando duas, 398 Contribulgéo da Teoria Critica. nogées importantes que sustentam a Idgica espacial das teorias neo- realistas: 0 seu estadocentrismo ¢ a diferenciagio entre os imbitos doméstico ¢ intemacional (Ashley, 1987). Ali Ashley aprofunda sua critica ao neo-realismo incorporando uma preocupacio maior com problemética do espago. Trata-se de um ensaio que marca seu dis- tanciamento progressivo da critica marxista tia diregdo do pés-moder- nismo, como a sua adogao de uma abordagem genealogica demonstra. Ashley afirma que a concepefo realista da politica internacional como um ambiente anarquico que nega a constituigo da comunidade politica 6 insatisfat6ria. Dois aspectos da sua critica merecem ser enfatizados aqui: a andlise das priticas que se encontram por tris da emergéncia histérica do espaco internacional realista; a articulagao dessas praticas com a hegemonia do capitalismo global. No que se refere a0 primeiro, Ashley jé havia demonstrado em seu conhecido ensaio de 1986 como a histéria € suprimida da visio neo-realista da politica mundial através da reificagto do estado como comatner de capacidades, ¢ da vuncepyau Jo sistema internacional como uma estrutura definida pela posi¢ao das unidades em um esquema de equilibrio de poder. J4 ent, portanto, Ashley considera, ainda que implicitamente, as epresentagdes espaciais do neo-realismo como cruciais para sua interpretagio s-hist6rica das relagées intemacionais. O segundo aspecto de sua critica ao es- tadlocentrismo refere-se ao individualismo implicito na consideragao do estado como a sinica unidade através da qual interesses soviais podem ser expressos na esfera internacional. Ashley afirma que 0 modelo estadocéntrico no permite a consideracao de “conceitos coletivos glo- bais” tais como “relagdes de classe transnacionais”, constituindo um obstéculo para a expresso de interesses coletivos em termos universais| sob a forma, por exemplo, de um novo internacionalismo de esquerda. Sua critica ao estruturalismo neo-realista, contudo, ¢ dirigida contra a nog de que o sistema intemacional é produzido por unidades preexis- tentes — uma critica também contida nos escritos mais recentes de autores construtivistas sobre 0 problema “agente/estrutura”. A esta no- do, Ashley contrapée 0 conceito de sistema mundo como “um todo J0ie Pontes Nogueira autdnomo e absolute”, propesto por Wallerstein (1996). problema aqui € que enquanto ele rejeita o neo-realismo estadocéntrico porque no considera as dimensdes globais do desenvolvimento histérico do capit lismo, Ashley defende uma visio do espago internacional que mesmo ‘do sendo fragmentada pelo principio da territorialidade soberana, tam bém apresenta o earéter “absoluto” que podle ser encontrado nas repre- sentagées espaciais realistas, Nas teorias realistas o sistema 6 reificado, ‘como Ruggie observa, porque ndo hé uma teoria sobre sua génese, ‘penasa constategdo de que € um resultado da interagdo de unidades que, de alguna forma, estavama 1é “desde 0 inicio” (Ruggie, 1986). Para Ashley, a autonomia do sistema internacional neo-tealista depende de um estadocentrismo teoricamente equivocado e ideologicamente orien- tado para legitimarahegemoniadas grandes poténcias. Elese baseia “em. ‘uma abstracdo: o ponto de vista do estado-como-ator individual” ¢, por isso, nto gera uma “perspectiva objetiva” sobre o conjunto daestrutura? Apesar de o texto de Ashley ser por vezes pouco claro, até mesmo obscuro, seria possivel inferir dele o argumento de que a estrutura neo-realista se assemelha a um espaco abstrato produzido da perspectiva soberana do estado, Ashley, porém, ndio considera as estruturas interna cionais como espagos produzidos. Influenciado pelo estruturalismo de Wallerstein, cle concebe o sistema internacional como um todo objetivo € aut6nomo que precede a constituigdo dos estados. O estado soberano, em sua vis que produz “o espago sociopolitico no qual a soberania pode florescer como conceito modemo da identidade e liberdade politica intemacio- nais.” (Ashley, 1986:273) nfo provi n sistema intemacional, mae sim a coteutura Para Ashley, © neo-realismo despolitiza as relagées internacionais, reduzindo-as a “um mero célculo de instrumentos de controle”, ou seja, A quantificagdo de capacidades ¢ identificag3o de posicionamentos. A politica, para cle, 6 pode tomar-se arte novamente no contexto de “uma esfera pitblice mundial da vida global modema”, representada pelo regime da balanga de poder do realismo cldssico. Mesmo que dominada 400 ContribuigSo da Teoria Critica. pela hegemonta do capital que 0 realismo clissive legitima ae ignorar processos econémicos, essa esfera publica é vista coro uma arena em que possibilidades estruturais alternativas podem surgir ¢ desafiar a hegemonia do capital global. A concepeio da balanga de poder do realismo clissico abre possibilidades para o potencial criativo da politi- ca. Ao considerar o estadista reafista como um “intelectual organico” do “regime” da balanga de poder, Ashley esté sugerindo que uma esfera il poder ser concebida como um espago politico onde sujeitos coletivos disputam a hegemonia de seus projetos. Sua interpre- taciio do realismo clissico tenta fazer justiga & abertura dessa tradigio para a ago politica, para a arte do estadista e para as possibilidades de mudanga negadas pelo determinismo estrutural, Em outras palavras, 0 regime da balanga de poder e a “hegemonia global moderna’ que ele encama, so produzidos através da.agao dessa intelligentsia mundial cua tarefa é ditigir estratézias politicas ¢ legitimar — ideologicamente —0 controle do “bloco de poder” dominante sobre o sistema como um todo. piiblien mun: © que Ashley propée, portanto, é um deslocamento do modelo es- tadocéntrico para uma abordagem focalizada na “esfera péblica da sociedade mundial”, baseada em uma forte ctitica da diferenciagio analitica entte as esferas doméstica e internacional caracterfstica do realismo. A emergéncia do neo-realismo, por outro lado, teria ameagado 1a “eficdcia do regime da balanga de poder”, colecando em evidéacia 9 tensiio entre a crenga do estadista realista na autonomia da politica ¢ as condig6es econdmicas que sustentam 0 préprio regime, Essa tensio se traduz na capacidade declinante do estadista de implementar estratépias ¢ politicas, produzindo, conseqtientemente, uma crise de legitimagto, ‘uma “perda de controle politico” do regime que se contrapde & domina- ‘io progressiva da légice econdmicanas relagdes intemacionais. Ashley ‘quer nos convencer que a politica € to possivel intemacionalmente ‘quanto nos estados nacionais, © que ndo precisa ser reduzida pela racio- nalidade utilitaristae pelo determinismo estruturalista, Paratanto, firma ‘uma concepgiio do espago internacional como uma esfera pablica global 401 Joo Pontes Nogueira ‘constitufda pelo regime da balanga de poder. Trata~se, na verdade, de um estruturalismo cuja unidade de anélise € 0 sistema como um todo, ¢ nao © estado unitirio, e que The permite pensar o espaco internacional no como residuo dos processos de territorializagio, mas antescomo produto de priticas cujo horizonte estratégico & mundial (oa global), Nesse sentido, a esfera intemacional é concebida como meio e produto da dindmica do capitalismo, cujas préticas espaciais combinam feagmenta- $80 (tervitorializaczo estatal) e homogeneizagio (espago abstrato da vvalorizagio) na construgtio da hegemonia, Apesar de enfatizar adependéncia do realismo da diferenciagao espacial para reivindicar a especificidade do intemacional diante do doméstico, Ashley nao aponta para o quadro conceitual a partir do qual tal diferen- iagdo € produzida. Ainda assim, 0 eixo de sua critica esté em sua afirmagdo de uma comunidade internacional descrita com uma abun~ daincia de metéforas espaciais: é um local prodhziclo por conflitos por ™anentes; um lugar onde poder ¢ dominagio so normais; um campo de aco ocupado por sujeitos especificos ete. Mesmo que Ashiley no apsie seus argumentos em uma problematizacio do conceito de espago, cle claramente indica que a comunidade internacional particular resultante das priticas e estratégias realistas constitui um espaco que 6 produto do conflito, ¢ um meio de dominago, aproximando-se do conceito de spaco abstrato de Lefebvre, O fato dos realistas apresentarem a politica internacional “conre un expago além das margens da comunidade” é importante por duas raz6es: primeiro, a idéia de comunidade politica é reduzida a um equivalente da sociedade doméstica; ¢ segunde, como resultado do fechamento da comunidade dentro do estado nacional, “o espago da politica internacional € assinalado como a esfera onde a realizago da comunidade precisa ser adiada.” (Ashley, 1987:415) Para Ashley, esse “movimento duplo” define uma esfera autonoma de onde aspirages universalistas sti exclu‘das pelas préticas dominantes a politica de poder. Torna-se claro, entao, que diferentemente da analo- gia do estado de natureza hobbesiano, 0 intemacional € uma construgio 402 CContribuigéo da Teoria Critica. de certos processos c prticas histéricos relacionados com o surgimento do estado soberano como forma dominante de onganizacdodo espaco politico. Esse “movimento duplo”, além disso, assegura o siléncio acerca da his- {oricidade das fronteirase, conseqiientemente, dos processos sociais que as produzem, © discurso do realismo, em suma, é crucial para a constitu dessa “esfera pUblica da vida global modema”, cuja principal qualidade & dliferenciar os espagos politicos domstico ¢ intemacional Nesta discussdo do trabalho de Ashley quero enfatizar dois pontos referidos anteriorment analise das representagdes espaciais das teo- rias de relagGes intemacionais revela aspectos interessantes de seu com- prometimento com priticas de dominago ¢ com a hegemonia de re- lagdes de produedo cay istas; € a introdugdo do problema do espago na literatura recente representa um paso importante na reformulaco da, disciplina no contexto atual, Enfase considerivel foi dada ao es tabelecimento de uma esfera internacional autnoma como o elemento fa da politica mundial. Os argumentos de Ashley justificam a insisténcie nessa abordagem como forma de entender a teoria intemacional como, fundamentalmente, uma principal da representagio espacial reali “teoria espacial”, Da mesma forma, autor sustenta que a teoria realista desempenha um papel crucial na produgio de um espaco capitalista global, ao argumentar que a acumulagii e a troca no plano internacional nao tertam sido possivels sem “a a¢do competente e habilidosa dos sujeitos da comunidade politica realista” (Ashley, 1987:424). A cons- ‘ituigio do sistema capitalista mundial dependia da demarcagio conco- Imitante de fronteiras dentro das quais a reproduc&o social poderia ter lugar sob a autoridade legitima do estado, e da delimitagao de umaesfera ‘onde a universalizagio da forma mercadoria poderia ocorrer fora dos limites espaciais, politicos, culturais e sociais impostos pelo estado. Por ‘um lado, produgio de um espaco social nacional; por outro, produgio de um espago abstrato global. , provavelmente, isto que Ashley considera “aesferapiblica global” do apitalismo que o realismo ajuda constituir através de priticas espaciais especificas: 403 Joao Pontes Nogueira “[.] a wuiunidade da polfica de poder realtsta pode ser entendida come uma ‘espécie de ‘paradigma multivalente’ que diferencia o espaco politico global em uma pluralidade de subespagos ‘idiomiticos’ especificos ¢ que, a0 faz2-10, dé lugar auma esfera piblica global rica em variagbes, de acordo com os requisitos dda procugao global controluda privadamente.” (dei:425) A questo é se as mudancas atuais na organizacéo espacial do capitalis- ‘mo minararn 0 “consenso realista” a ponto de que disciplinar o espago global através da politica de poder nifo & mais posstvel. Para Ashley, existem movimentos que podem abrir espacos alternativos para a cons- lituigdo de sujeitos altemativos e, talvez, de realidades alternatives. Mas le nao explora suficientemente as condigdes em que tais movimentos ‘podem surgir, 0 que torn sua afirmago muito mais um desejo do que a conclusio de uma anilise informada, Seria preciso ir mais além na investigago das contradigbes do espago global para situar 0s locais em ue projetos alternativos estariam sendo formulados. Ainda assim, 0 trabalho de Ashley representa uma contribuigdo importante para a critica as representagdes e préticas espaciais do realismo como eixos centrais de seu edificio te6rice e, principaimente, representa um esforco pioneiro na introdugdo da categoria de espago como uma varidvel que precisa ser explicada. Mais do que qualquer outro teérico de sua geragao, Rob Walker tem refletido sobre as suposigdes espacisis da teoria intemacional e suas implicagées politicas ¢ normativas. Seu principal objetivo tem sido desconsiruiro princfpio maemo da soberania e formular uma eritica do caréter da politica tal como ela 6 constituida dentro das fronteiras do estado territorial. Para Walker, as suposigdes ontolégicas que permitem ‘que a teoria internacional diferencie entre “dentro” ¢ “fora” no 86 ‘constrangem a possibilidade de aco politica e transformagio social no plano internacional, como também impéera limites substancizis ao de- senvolvimento de formas mais democriticas de organizacio politica nas comunidades politicas nacionais. Sua contribuigao pode ser considerada ‘primeira tentativa de refletir de maneira mais profunda e sistemiética sobre 0 espaco na teoria das relages internacionais. Em Inside/Outside: 404. ‘Conteibuigio da Teoria Critica International Relations as Political Theory, seu trabalho mais impor tante, Walker anuncia sua intengdo de: “{..]oforecer uma leitura das teorias medemas de elagdes intemacionais como ‘um discurso que reifica, sistematicamente, uma ontologia espacial his- toricamente espeeffice, uma delimitagio aguda do aqui edo acolé, um discurso ‘que tantoexpressaquantoreafirmaa presenga eaaustnciada vidapolitica dentro « fora do estado moderno como o Gnico terreno em que as necessidades ‘estruturais podem ser eompreendidas e novas esferas de liberdade e de histéria podem ser reveladus.” (1993:ix) Walker quer reduzir 0 fosso entre teoria intemacional e teoria politica, argumentando que € preciso recorrer a ambas para compreender 0 cestabelecimento do estado moderno como forma dominante de organi- zagao espacial da vida politica modema, As teorias de relagdes interna cionais precisam ser estudadas, portanto, juntamente com as teorias modemas sobre a fundagao do estado, tais como o contratualismo de Hobbes © Rousscau, 0 realismo de Maquiavel ou © eosmopolitismo republicano de Kant. Walker, de certa forma, rejeita 0 status © a es- pecificidade das relagdes intemmacionais como uma ciéneia do “intema- cional” ¢, conseqiientemente, reeita a autonomia de umaesfera politica internacional diferenciada, Ele o faz, justamente, através da critica as suposigdes que permitem separar 0 “dentro” do “fora”, pois é através da diferenciagdo espacial que as teorias de relagdes internacionais afirmam onde a vida politica pode ou ndo ocorrer. Blas expressam, em outras palavras, “os limites da politica moderna” A critica de Walker as teorias de relagdes internacionais esclarcce trés ontos importantes. Em primeiro lugar, sua investigagao revelao proces- so histérico e intelectual através do qual tais teorias organizam o espaco internacional; em segundo, sua andlise aponta para seu caréter normati- ‘vo, mais especificamente para seu papel na definigo de “onde a vida politica deve estar’; e, finalmente, seu foco sobre o espago esclarece as operagdes conceituais que tormam a politica internacional resistente & mudanga (temporalidade), em contraposigo a esfera doméstica onde o tempo € domesticado, mas nio anulado, em ume historicidade linear. 405 Joi Pontes Nogueira Nesse sentido, enquanto discurso sobre limites no espago (Frontsiras), as teorias internacionais também s#o discursos sobre limites no tempo ‘Walker, 19952). O espaco, para Walker, tem um papel fundamentalmente cconservador na politica moderna, uma vez que limita as possibilidades de «emaneipagao porque constrange as forgas de ransformagio (0 espagoanula © tempo) (ver, também, Harvey, 1990). Enquanto isto pode ser de fato verdadeiro quanto as priticas espaciais dominantes das sociedades capitalists moemas, tal interpretagao indica uma problematizagio insufi- ciente do conceit de espago que pode, por exemplo, sugerir que toda forma de espacializagio se opte & temporalidade e, de alguma maneira,reifica as Telagdes sociais (sendo, portanto, conservadora). E de certa forma paradoxal ‘que um te6rico que se apdia em uma perspectiva foucaultiana tenha uma visto tonegativa sobre o espago, ura vez que Foucault claramente crticou a depreciacdo historicista do espago como algo fixo, neutro e morto, em ccontraposigao ao suposto dinamismo vital do tempo. Essa nogo do espago pode ser percebida em alguns pontos da descons- truco de Walker do conceito de soberania, A soberania 60 prinefpio que legitima alocalizago da politica na esfera do estado territorial eexpressa a diferenciagio entre “dentro” ¢ “fora”. Para Walker, a8 teorias de relagGes internacionais articulam e reivindicago do estado moderno por soberania e racionalizam as préticas empregadas para impor 0 que ele chama de “politica de contencdo espacial”. Nesse sentido. a soberania é condigio para a territorializagio da autoridade politica nas fronteiras do estado. Ela legitima a centralizagio do poder pelo estado e 0 controle do tertitério como forma de “fixer a temporalidade dentro de categorias espaciais,” (Walker, 1993:4) Somente na esfera da soberania, universa- lidade e particularidade podem ser reconciliadas, a hist6ria progredir ¢ identidades constiturem-se. Fora do estado reina a anarquiae abarbirie. A concepgaio de estado das teorias internacionais tem sido, es- sencialmente, espacial, territorial, zeografica, e tem levado & reificagio do estado como unidade politica indiferenciada internacionalmente, assim como & identificagio do tertitério sob seu controle com a sua 406 Contribuigio da Teorla Crtiea.. oxistGneia enquanto organizagio social, © estado tem sido concebido, portanto, como um receptéculo (espacial) da sociedade. Em uma das poucas passagens dedicadas & discuss da categoria de cspago propriamente dita, Walker afirma que o estado soberano surge no contexto da Europa pés-renascentista quando 0 conceito newtoniano de cespago absoluto, combinado com os postulados da geometria euclidiana € as inovagées na cartografia, foi operacionalizado para conferit a0 terit6rio sob controle estatal um sentido de “inviotabitidade e de deli- mitaglo clara”. A homogeneidade do espaco era um postulado central das estratégias de construgo do estado. E porque a teoria internacional produziu uma concepsao espacial do estado, ela é “em prinefpio, incapaz de sustentar uma anilise plausivel de transformagées hist6ricas em qualquer contexto” (idem:126). As teorias de relagbes internacionais estariam, portanto, desprovidas de instrumentos conceituais para compreender, ou explicar, os conflitos responsaveis por mudancas so- ciais mesmo equelas que parecem ter impactos consideraveisno plano intemacional. Tudo o que podem fazer, mesmo quando movidas por um interesse na mudanga, € olhar para deslocamentos oa organizagio es- pacial do sistema internacional do ponto de vista de sua unidade basica, © estado. Os debates sobre a transnacionalizacdo, sobre 0 declinio do estado, sobre a governanga global etc. sio tentativas limitadas de pensar espagos alternativos porque no transcendem as categorias que infor- ‘mam a comprecnsio medemado espace internacional como interestatal Walker aponta para as consequiéncias de uma visto essencialmente espacial do estado para qualquer estratégia de mudanga. Seu ceticismo dirige-se para aquelas perspectivas que limitam sua concepgo de mu- danga a alguma variagao na escala da configuracio espacial do estado, {ais como o neoliberalismo ou 0 cosmopolitismo neokantiano. A pritica democritica contemporanea, diz. Walker, ovorre em “condigbes espago- temporais” que limitam seu potencial de maneira dramitica: {ou} parece haver ums contradic — ou talvez apenas umia incongruéncia — ‘entre estruturas de poder que parecem ser cada vez. mais intemacionslizadas, slobalizadas, © cm alguns casos universalizadas, e processos de participago, 407 Joke Pontes Nogueira representagio, accountability ¢ legitimacdo que permanecem enraizados: nes aparelhos institucionais dos estados.” (idens:154) A preocupagdo de Walker com a transformagao da democracia em um ‘modelo de administracao da integraco & economia politica global en- contra eco nos debates atuais sobre os desafios da politica democritica diante da globalizagio®. O que se pode perceber nesses debates & a tentative de pensar a comunidade potitica além dos limites espaciais ‘estabelecidos pela tradicao modema. Nesse sentido, as indispenséveis inovagdes na prética da democracia parecem estar articuladas com a possibilidade de produzir espagos politicos alternativos. Como a litera- tura sobre “sociedade civil global” vem demonstrando, trata-se de uma questio que, dificitmente, escapa de formulagdes ut6picas fortemente influenciadas por um cosmopolitismo liberal ingénuo, ou da resignagio de posigdes que combinam uma aceitagao da inevitabilidade da globali- zag com apermanéncia do estado-nagdo como ator central das relagdes ntemacionais. Na verdade, 0 estado, tanto quanto o capital, esté enga~ jado na produgdo de um espago social global que requer a dester- ritorializagdo da autoridade para se constituir. Ora, se a terrtorialidade Eumatributo essencial do estado moderno, o espago global apresenta-se, desde jé, atravessado por contradigdes que desestabilizam os préprios agentes de sua produgo. Nesse contexto, a teoria internacional surge, frequentemente, como discurso da “ordem espacial” da modernidade, 20 defender a domesticagao das conflitos social ritorializagao ou confinamento no terreno fixo do estado, ¢ ao continuar a afirmar o internacional como uma esfera dominada por relagtes de forca. Essa “ordem espacial” regulada pelos prinefpios da soberania eda tervitorialidade, diz Walker, &constantemente desafiada por “economia, tecnologias e culturas muito mais obcecadas pela velocidade ¢ pela temporalidade do que pela distancia ou pela territorialidade” © por conflitos sociais locais articulados a processos globais que prescindem ‘da mediagdo do estado. Tais movimentos tendem a mudar suas priticas ¢¢ procurar por espagos altemativos de participagio e ago, a “explorar possibilidades espago-temporais nao contempladas pelos cartografos da 408 Contribuigie da Teoria Critica. contengao ou pelos flhos do famtasma de Hegel” (Idem:322). A andlise de Walker coincide com a de David Harvey em sua interpretagiio do momento atual como o de uma aceleragao radical da “compressio do espago-tempo” (Harvey 1990). fia velocidade, o movimento, a circula- 0, 0 tempo em suma, que anulam as formas dominantes do espago, tomando quase marginal, ou secundaria, a “dialética da distancia”. As questdes do espaco, das praticas e representacdes articuladas na produ- fo de uma esfera global de acumulacio, reprodugo e dominagio de relages e processos sociais, acabam, porém, de certa forma ausentes do esforgo de Walker em formular uma teoria ertica da politica mundial Ashley e Walker parecem compartilhar a mesma preocupaco sobre a relagio entre a organizagtio do espago e a natureza da politica. Em seus esforcos tedricos eles questionam as implicagées de fixar ¢ comunidade politica em um certo lugar, de declarar a sua auséncia na esfera interna- ional, bem como as conseqiiéncias normativas dessa ligica espacial. Eles também focalizam sua atengio no papel da teoria das relagdes internacionais—essaciéncia peculiar que se ocupa de “nao-lugares” — na reprodugdo de uma ordem de coisas que limita as aspiragbes de liberdade ¢ legitima relagdes sociais de produc. Ambos procuram por “outros lugares” onde a politica — a politica mundial — possa ser criativae espontinea, ¢ abrir novas alternativas que eles acreditam estio ‘ausentes nas visdes de mundo construfdas com base nos dualismos do aqui € do acolé, dentro e fora, estado de anarquia, e assim por diante. ‘Sem ceder a qualquer tentagdo idealista eles ainda tentam refletir sobre ‘uma politica global e sobre a possibilidade de uma sociedade mundial E.uma tarefa dificil enfrentar estas questdes dentro do quadro conceitual das representagées espaciais modernas, e em varios pontos do trabalho esses autores, podemos perceber o esforco de romper com acamise-de- forga da tervitorialidade soberana, 20 mesmo tempo que evitam as faldcias do cosmopolitismo liberal. Qual € 0 lugar da agZo politica nos tempos atuais? Ashley e Walker consideram esta pergunta com seriedade hha sua investigagdo sobre as priticas que situam 0 espago politico 409 Joie Pontes Nogueira modemno no estado territorial. Ao fezé-Io trouxeram a teoria intemacto- nal para mais perto dos problemas politicos cotidianos ¢ mostraram a relevincia dos esforgos de reformulacio tentados nos titimos dez anos. s desafios de repensar 0 espago politico no mundo globalizado tém ‘envolvido outros autores na rea de relegdes intermacionais. Ruggie 6, provavelmente, o mais proeminente deles, c seu ensaio sobre a emergen- cia do prinefpio da erritorialidade moderna pode ser considerado um dos ‘ais interessantes da literatura de relagdes intemacionais que trata do problema do espago. O ensaio de 1993, “Para Além da Tervitorialidade”, fornece uma andlise do estabelecimento e do papel da territorialidade no sistemadeestados moderno, Ruggie sustenta, inicialmente, que vivemos hoje “em um mundo que esté por ser refeito", indicando que o sistema internacional esta mudando como resultado de deslocamentos na confi guragdo territorial do espago politico que earacterizam as relagdes inter nnacionais desde 0 surgimento de estados centralizados (Ruggic, 1993) Um dos papel do estado na regulagiio de atividades econdmicasem seus préprios mercados. Ruggie € claro na sua rejeicso da reafirmagio pelos neo- tealistas da permanéncia e constancie da centralidade do estado nos assuntos intemacionais, assim como da desconsideragio do impacto de processos globais sobre a capacidade do estado de definir seus interesses de maneira autSnoma e orieatar suas ag6ee de acordo com eles. Para Ruggie, nfo apenas a internacionalizagio dos mercados financeiros inais mais relevantes desses deslocamentos 6 0 declinio do produziu o que parece ser “umaesfera extranacional”, mas pode-sedizer que a dinamica do capitalismo global esté moldando “formas p6s-mo- demas de configuragto do espaco politico” (idemt:144). O deslocamento de certas fungdes e processos do controle do estado niio indica que este ‘V6 desaparecer ou ser substitufdo por alguma outra forma institucional mais eficiente. Ao contrério, & pouco provavel que o estada desaparega ‘no futuro préximo, o mais provavel é que ocorraumamudanga na relagio entre politica e espago, e, conseqiientemente, no significado ena impor- tancia da territorialidade nas relagies internacionais. 410 ‘Contribuigio da Teoria Critica. Os argumentos defendidos por Ruggie demonstram uma preocupago «em discutir 0 conceito de espaco, bem como em pensar espacos alterna ‘ivos na potitica mundial. Seu principal alvo € combater a suposigfo neo-tealista de que os estados tém historicamente sido as unidades centrais da politica internacional e que asua funga0.e forma praticamente no variam na hist6ria, e se variassem, quaisquer difere seriam relevantes para as hipoteses bisicas da politica de poder. Ele quer demonstrar que sistemas de autoridade sfio organizados de formas di {intas em diferentes estégios hist6ricos, particularmente no modo como definem oescopo eo alcance da suaautoridade. A principal caracterfstica do estado modemo & constituir 0 seu poder ¢ a sua autoridade em uma base territorial. Em outras palavras, a autoridade legitima e, portanto, a soberania, implica 0 controle sobre um territério bem definido, em contraposicdo ao sistema feudal de autoridade baseado nas relagdes senhor/vassalo, sem fronteitas definidas e fontes muitas vezes sobrepos- tas de controle politica e legal. “Sua base era o feudo, que era um amélgama da propriedade condicional e da ‘eutoridade privada, A propricdade era condicional na medida em que trazia ‘consigo obrigagGes sociais explicitas. Ea autoridade era privada tendo em vista que 0s direitos de jurisdigéo e administragdo sobre os habitantes de um feudo pertenciam a pessoa do governante. Além disso, © conceito predominante de usufruto significava que a existoncia de miliplos ttulos da mesma propriedade de terra cra algo normal. Conseqtientemente, o sistema medieval de autoridade era um todo fragmentado de instincias incompletas e subrepostas de governo.” (idem:142) Ruggie analisa o surgimento dessa concepsfio de autoridade politica no contexto de mudancas sociais e epistémicas que ocorrem durante a Renascenga, dando énfase particular importancia crescente dascidades das feiras comerciais como fatores que enfraquecem a autoridade feudal, bem como a aparicdo da perspectiva como forma de visualizar a realidade a partir de um ponto fixo: “O espago politico veio a serdefinido como ele aparecia a partir de um ponto fixo € Unico. © conceito de soberania, entio, era simplesmente a contrapartida doutrindria da apli- an Jolie Pontes Nogueira cago de formas de perspectiva baseadas em um ponto fixe, a orgenize- ao espacial da politica” (idem: 159). Esse periodo de transigo produziu incerteza e confustio especialmente Porque nfio havia clareza sobre onde a autoridade poltticaestaria situada, O estado moderno soberano foi a solugiio institucional que prevaleceu 20 final de um longo processo que levou 8 fixagio ¢ & centralizagio da autotidade territorial. Uina das principais implicagdes disso foi a repre- sentagao do espaco internacional come fragmentado em entidades sobe- ranas — estados — com direitos exclusives aos tertitérios sob seu controle, Em que medida isso nos ajuda a repensar a politica mundial contempo- Finea? Para comecat, a andlise de Ruggie mostra os estados como invengdes modernas, como respostas politicas e institucionais a mudan- ‘¢as na configuracio do espaco na transigdio do feudalismo para o capita lismo. Também indica que perfodos hist6ricos distintos dever ser consi- derados segundo modos de diferenciagao entre sistemas de autoridade, ena modemidade essa diferenciagdio ocorre espacialmente, por meio da tervitorialidade. Além disso, ele sugere, claramente, uma analogia com atransigao hist6rica atual (do p6s-Guerta Fria) ¢, como resultado, aponta para a necessidade de redefinir nossas epistemologias sociais ou, mais especificamente, de reformular as teorias de relagées internacionais a paatir de wins perspectiva aliernativa. “A (ransformaggo [do medieval para 9 modemo] —e, presumivelmente, qualquer mudanga anéloga que possa estar ocorrendo hoje — requer uma postura epistemol6gica que & bastante diferente das teses imperativas da maior nantes nas relagdes internacionais hoje.” (ibidem) das teorias domi- Dois movimentos sio necessérios para realizar essa tarefa, © primeiro, comoacitaedo acima sugere, diz respeito a superaciodo “sononewtoniano” ‘no qual o positivismo merguthou as teorias internacionais. Pensar oespago ‘de modo diferente requer um abandono da descrigdo mecfnica das relagdes intemacionais resultante das teorias dominantes. O segundo movimento an CContribuigio da Teoria Critica. orienta-se pata a produgio de formas alternativas de organizagao es- pacial. Ruggic afirma que mesmo sistemas bascados na auitoridede territorial fixa ndo excluem arranjos espaciais diversos, como a doutrina da extraterritorialidade aplicada as representagies diplomséticas bem comprova, Este “desembrulhar” da tervitorialidade contém respostas promissores para as transformagées presentes no espago politico: “o terreno da territorialidade “desembrulhada’ € o lugar onde a rearticulagao dlo espaga polftica intemacional estaria ocorrendo hoje.” (idem:169)INB0 hi, claro, uma dnica resposta para o problema, mas antes a necessidade de ‘uma multiplicidade de perspectivas ¢ arranjos institucionais, uma plurali- dade de lugares capares de lidar com os desafios de uma economia global ‘baseada no movimento ena velocidade, uma pluralidade que é basicamente ndo territorial. Uma resposta possivel niio & simplesmente deslocar os sistemas de autoridade estatais corentes para esferas mais amplas (slobais) cou mais restritas (locais), mas produzir outras lugares onde os processos {quenéo podem realizar-se dentro do quadro de referéncia espacial doestado tertitorial possam ser submetidos anovas formas de negociagiiopolitica,em vex. serem entregues a0 crescente poder regulador do capital global. A anflise de Ruggie sobre as mudangas na concepgiio e organizago do ico durante a Renascenga fomece base solide para uma ica das tesesneo-realistas sobre arepetigao eterna da politica de poder nahist6ria dedaa presengadeconflitosentre unidades iguaisem sistemas andnquicos. Ruggie demonstra que as unidades — sejam elas estados, impérios, cidades-estado — organizaram 0 espago politico de forma diferente em outros perfodos hist6ricos e que essa diferenciagiio deter- mina a qualidade ¢ cardter da politica internacional, para nfo dizer da estrutura do proprio sistema. A ascensiio do estado territorial é um produto da modemidade e o momento definidor das relagées internacio- nais tais como n6s as conhecemos. Ruggic historieiza o que 0 neo-tea~ istérico, Curiosamente, ele o faz através de uma critica de representagdes espaciais, o que 0 coloca entre os te6ricos que enfrentaram a hegemonia do paradigmaneo-realista, trazen- lismo considera ser perene e 2 413 3080 Pontes Nogueira do 0 espago para 0 quadro analitico cujo objetivo 6 reformular a disci- plina em uma época de transformagao dos espacas politicos. Contudo, sua analogia entre a Renascenga ¢ o periodo posterior & Guerra Fria parece demasiado nitida ¢ &s vezes mesmo esquemética. f verdade que ‘em ambos 0s periodos histéricos podemos perceber mudangas na concepsio, na experiéncia e organizagio do espago politico, mas Renascenga é nica na sua conjuncao da revolugio cientifica, na emer- sgéncia de um novo modo de pradugio, na exploragiio e colonizagdo da superficie do globo pelos europeus pela primeira vez, na centralizagéo os estado absolutos, na aceleracdo da urbanizagao e nas muitas outras ‘mudangas que marcaram aquela épocacomoado nascimentodos tempos ‘modernos. Interpretar a transigo contemporanea com lentes similares sugere um certo historicismo fincar que uma abordagem critica do espago deveria evita. Por outro lado, a idéia de “desembrulhar” @ teritorialidade soa um tanto timid e talvez. mesmo simplista diante da complexidade ea violéneia que caracterizam a espacialidade do fim do século XX. Em muitas partes do mundo, estamos testemunhando alualmente um proceso acele- rado de desterritorializagioe reterritorializaco de espagos politicos dificil ce compreencer. Os novos espagos surgidos desses processos podem as- semelhar-se aos teritérios antigos, mas um olhar mais cuidadoso revela algo diferente, Poderiamessas territorialidades serem “desembrulhadas” de forma andloge ao estabelecimento da doutrina da extrateritorialidade para representagdes diplomaticas? Infelizmente, oensaio de Ruggie naotratadas uestdes mais dificeis que dizem respeito aos conflitos ¢ As contradigtes esse “novo mundo que ests por ser feito”. Para James Der Derian (1990), esse mundo em transformagiio esti se tomando uma representagio hiper-reatista daquilo que as teorias inter- nacionais dominantes acreditavam ser o mundo governado pelo “prin- efpio de realidade”, onde estados soberanos eram os pilares do sistema internacional. Em tempos p6s-modemos, Der Derian afirma que as novas priticas tecnol6gicas ampliaram o alcance dos mecanismos de vigillincia ¢ controle e a velocidade do deslocamento ¢ mobilizagio de a4 ‘Contribulgae da Teoria critic capacidades estratégicas pare a violéncia © a guerra, Estas forgas se movem em tempo real, ¢ tendem a tomar 0 espago apenas uma repre- sentago, uma abstrago, um hiperespaco. Néo podemos sequer falar da aniquilagio do espaco pelo tempo no sentido marxista, Na verdade, na “cronopolitica” e nas “cronoestratégias” da p6s-modernidade, 0 espago 6 recriado em uma esfera virtual, uma simulagdo que no tem relagzio concreta com a “tealidade”. {1} na construgio do ue esfora de significado que tem contato minima com eventos ou atores historicamente espectficos, as simulages demonstraram © poder de deslocar a ‘realidade' das relagGes internacionais que clas pretendom, representar. As simulagSes eriaram um novo espago as relagoesintemacionais ‘onde os atores agem, coisas acontecem, e as Consequéncias no tem origem a no sero ‘cyberspace’ artifical das proprias simulates.” (iders:301) ‘Assim, em contraste com a posi¢go mais moderada de Ruggie de que novos espagos podem emergir da redefinicao da territorialidade mocema, Der Detian argumenta que © novo regime de poder, baseado na vigilancia totalizante de “tecno-estratégias pandpticas”, est conduzindo 0 proceso de desaparecimento da tetorialidade modemae govemando a normalizz- 80 do novo hiperespago de simulagées em que as relagdes intemnacionais ‘agora tm lugar. Em outras palavras, a liquidago doespago pela velocidede, ‘owomovimento da “geo paraacronopolitica” ,esté tomandoss distribuigdes territoriais,¢ as fronteiras que as regulam, superficais e irelevantes,fazen- do com que “a distribuigdo do territGrio tome -se a distribuigdo do tempo.” (idem:307) O que € aterrorizante sobre o hiperespago das relagbes interna cionais € que em toda a sua abstrago ele & capaz. de exercer mais controle ¢ infligir violencia de maneira mais eficiente do que nunca. As repre sentagdes do espago, para o autor, omam-se autOnomas e mais significa tivas do ponto de vista politico e estratégico na politica global pés-mo- derma, ‘Mas nao seria isto levar a abstragiio a um extremo a partir do qual temos: dificuldade para compreender a produgio do espago com todos os seus contlitos, contradigées, préticas ¢ modos de orgenizagio? Nao seria 0 lho pandptico do espaco hiper-real to eficiente e totalizamte na sua 415 Jolie Pontes Nogusira vigilincia e controte das rolagdcs inteanacivnais que pareceria quase tao fantasmagérico quanto o espfrito absotuto de Hegel? Os espagos politi- cos esto, de fito, sendo destertitorializados, mas a irrelevancia da tertitorializagao na viséo de Der Derian também condena esses novos ‘espagos & obscuridade. André Drainville, por outro lado, oferece uma visio alternativa interessante sobre como a produgtio do espago global ‘opera sua desterritorializagiio de forma que nio apenas leva & exclusio Politica de atores sociais, mas também a legitimago de sua autonomia como espago de acumulacao através do discurso e das instituigées da democracia liberal. Drainville (1995:55) interpreta a economia mundial contemporfinea ‘como “um espago social em formagio”. Assim como Der Derian, ele também reconhece o impacto da velocidad na reconfiguragaodo espago global, tornando as territorialidades modemas menos significativas en- quanto lugares onde processes sociais e politicos podem situar.se: “A. economia mundial é um espaco sem territério, ou meltor, um espago ccupando uma diversidade de temritérios, & um ‘espago-velocidade” (espace-vitesse) criado da integragdo global da produgio e do movimen- ‘odo dinheiro especulativo na atmosfera de cassino da economia mun- ial.” (idem:56) © espago global, portanto, aspira a tornar-se um espaco autOnomo de ‘scumulagio destacado dos constrangimentos do aparetho regulador do estado e da accountability das instituigdes democraticas. Ele se percebe como uma forga organizadora acima dos estados, capaz de administrar ‘economia mundial eficientemente através da garantia de operacio sem ‘obsticulos das Forgas de mercado. Contudo, em uma sbordagem seme- Ihante a de Lefebvre, Drainville afirma que enquanto 0s atores operando noespaco global empregam estratégias de homogeneizagao para livré-lo dos particularismos ¢ contradigées das sociedades nacionais, ele est longe de ser homogéneo. Sua coeréncia como um espago mundi depende “no da eliminagdo das especificidades, masda sua organizacao — do ordenamento das diferengas” (idem:59). Em outras palavras, a a6 Contribuigae da intezracdo da economia mundial depende da reproducio da contenco territorial da vida social e da cidadani politica dentro das fronteiras dos estados. A nica “cidadania” global, segundo Drainville, é reivindicada pelo capital. Em um mundo no qual a politica est sendo dester- ritorializada, isso implica a exclusio dos cidadaos “confinados” na “aemadilha territorial” da participagio nos processos politicos que esca- pam do controle do estado: “Quanto & diferenciagao espacial, ela se bascia no confinamento ¢ no ostracismo de cidadios nos tertitérios nacionais. Na era da nova ordem mundial, nao ha cidalaos da economia mundial, s6 cidados nacionais na economia mundial.” (idem:60) A pattir desta perspectiva, portanto, a economia mundial aspira a cons- tituit-se como espago social global dominado pela l6gica da acumulagao, sustentado ideologicamente pelo poder residual de legitimacio do es- tado-nago, ao mesmo tempo que desvaloriza os espagos em que priticas politicas alternatives poderiam se desenvolver, carecterizando-as como ‘marginais ou particularistas. O que ¢ interessante na visdo de Drainville €a sua critica a internalizagdo pela esquerda do discurso da nova ordem mundial. Economistas € te6ricos eriticos das relagdes intemacionais parecem ter assimilado a crenga na hegemoni transnacional do capital global, conferindo-Ihe a iniciativa e a propria cidadania que reivindica. Oautorencarao foco na espacialidade da economia mundial como “uma recuperagdio politica de uma longa tradigao antiautoritaria do marxismno” que tem expresso “om um intemnacionalismo de resisténcia renovado” (idem:7). O ensaio de Drainville representa mais um caso de como uma critica da “recusa do espago” pela teoria das relagdes intemacionais pode produzir perspectivas interessantes sobre as relagGes entre estado-nagio e o capi tal global na politica mundial contempornea. Novamente, podemos ver como a problematizagao do espago pode nos ajudar a superar as duali- dades das teorias intemacionais e, talvez, contemplar @ produelo de cespagos alternativos para uma politica emancipatéria. O que a aborda- gem proposta pelo autor sugere & que a globalizecdo expressa um ay Jodo Pontes Noguel conjunto de estratégias visando a produgio de ui espaco social global, constituido inicialmente por uma economia mundial que se forma en- ‘quanto um espaco sem territério, ou, um espago que ocupa uma diversi- dade de territérios (idem:56). Tais estratégias tomam-se progres- sivamente mais complexas e se articulam em redes que facilitam a circulagio de informagao, cultura, tecnologia cuja caracteristica 6 operar em espagos nil territoriais. Na dtica de Lefebvre, tal movimento repre- senta @ expansio do espago abstrato em escala mundial, produzindo 0 que Harvey chama de uma perda de “sentido de lugar”, uma intensifica- ‘lo da fragmentagio ¢ desterritorializagao dos espagos politicos, geran- do crises de identidade, 2o mesmo tempo que as forgas do mercado aprofundam a homogeneizagio. As mudangas nas préticas espaciais contemporaneas, por outro lado, debilitam estruturas de poder centrali- zadas constituidas a partir de sua fixago no territ6rio— estados nacio- nais, Ao mesmo tempo, colocam em questi a capacidade do estado de organizar 0 espaco, regular 0s fluxos (ecandmico-finaneeiros, informa- cionais, politico-culturais etc.) que o atravessam ¢ controlar as tedes por onde circulam, Nesse sentido, a “eficécia” do estado enquanto instancia de centralizagao de poder e autoridade em um espago territorial, passa.a depender de sua capacidade de adaptar-se a dinmicas de dester- itorializagio e reterritorializaedo que caracterizam a globalizagio — adotando, porexemplo, estratégias de integrago regional. Ainda assim, esse movimento evidencia uma mudanga no papel da tervtorialidade no mundo contemporfineo, Suas fungdes assumem um caréter muito mais disciplinar ¢ repressive do que propriamente constitutivo de um espago politico que permite o desenvolvimento de instituigoes de poder legiti- ‘madas pela participagdo da cidadania — a promessa do estado liberal modemo, Em outras palavras, a articulagao entre territorialidade e as estruturas de lealdade e identidade que sustentam a legitimago do poder perde forga diante do deslocamento de priticas espaciais historicamente dirigidas para a orgenizago de espaco nacional, pars v plano global. A produgo de um espago global (abstrato) implica, portanto, um déticit de cidadania, ou, dito de outra forma, uma redefinigio da cidadania a8 ontribuigio da Teoria Critica. ‘enquanto participagso na economia politica global, © que implica confinamento de cidadios “nacionais” no interior de estados cujos recursos se destinam catla vez mais a assegurar o funcionamento efi- ciente de uma economia global da qual eles so apenas “acionistas Iminoritétios” (idem:60). A Teoria Internacional e a Produgao de Espacos Alternatives na Politica Mundial A hist6ria da produgao e da dominago do espago politico global ainda ilo esta completa, como sugere Ashley. O que se quis salientar neste trabalho é que as teorias de relagées internacionais vem desempenhando ‘um papel central nessa historia ¢ que se trata de um processo continuo através do qual relagdes sociais de produgfo e formas de dominacéo politica séo reproduzidas no capitalismo contemporineo. Outro ponto iniportante é que, contrariamente &s nodes herdadas da revolugio cien- \ifica € transmitidas pelas cincias sociais, 0 espago nio é neutro ou passive, Como lembra Lefebvre, a histéria da produgio do espago politico global é violenta. As préticas espaciais das forcas que 0 produc Ziram deixaram um longo rastro de destruigo, conquista, dominagio e repress. Nus tempus aluais, « celebragto de uma nova ordem mundial bbaseada no aleance global do mercado e da democracia liberal tem sido, de alguma forma, obscurecida pelo colapso de estados, pelo res- surgimento do genocidio, pela multiplicagao de guerras eivis, conflitos

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