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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCACAO, TESE DE DOUTORADO Experimentacées clownescas: os palhacos ¢ a criacao de possibilidades de vida Katia Maria Kasper Este exemplar comesponde & redagfo final da Tese defendida por Katia Maria Kasper -na érea de Educagio, Sociedade, Politica e Cultura- e aprovada pela Comissio Julgadora, em Z de ie mh Orientadora: Profa. Dra. Elisa Angotti Kossovitch we er nuues Hane nasper, LuUd, Catalogacéo na Publicacdo elaborada pela biblioteca da Faculdade de EducagSo/UNICAMP ‘ibliotecdrio: Rosemary Passos - CRE-84/5751 Kasper, kétia Marla, KiS3e _ Experimentactes downescas: os palhagas e « ciago de possbiidades e vide / Kétla Marla Kasper. ~ Campinas, $P: {s.1], 2004, Orientador : Bisa Angott Kossovtch, “Tese ( que € um trabalho que me presnche, Omtem, no entanto, perdi durante horas © horas a minha montagem humana. ©) 00) use Tss0 que © Ric fala, quando tem muito piiblico néo é empecilho pro clown, ndo é empecilho. Ent#o 0 que que eu fiz? Eu tratei como um empecilho. Dar 0 foco pro outro. Porque vasi nie precisa ter um figurino caro, vocé tem gusiquer cosa, vocé pews uma caixa de papelio, poe fa cabega © usa e transforma e acredita que aquilo & o set chapéu poderoso, ai voc’ usa. E 21 acho que eu preciso colocer mais a cae pra bater, enti ex vou, apresento uma coisa, ynem que voeé falar assim: olf, aindla este, ndio esict o clown, nda ¢ isso. Acho que esté me dando coragem de mostrar mais. Estou desorganizada porque perdi o que nio Precisava? Entdo, ele me deu autoconhecimento, Me deu conhecimento do ser humano. E - me deu a possibilidade concreta de, no trabalho do teatro, de ser de igual pra igual, de 3 n&o ter melhor ou pior, ¢ sim diferente, Quer dizer, eu sou diferente da Matilia, que é diferente da Cléudia. Ninguém 6 melhor do que ninguém. © um iss seus tho como al pouco 0 medo do err medo do rigeo, Mas era vidro mesmo?! Pura, ew poderia ter aproveitado tal coise ¢ eu niio aproveito, porque o lance ainda da preocupago, do medo, da afobagao que eu ainda tenho e que... Mas eu sinto que aos poucos eu jé estou transformando isso. corpo disso, eu viro. Mas ai, o meu professor das cénicas falou assim: Ndo. Procura uma coisa mais séria, voce tem que ser mais feminina, wabalhar mais com 0 texto, ser mais mulher. N&o sei o que fazer do que vivi. Tenho medo dessa desorganizacao profunda, Outro dia eu sonhei com o Jango, um palhago, Eu estava quase caindo, ele veio, grande assim, © Jango, ele veio grande assim e... legal porque ele niio me pegou no colo que nem 0 ‘Tarzan pega a Jane, assim, sabe? ele foi me mostrando que era dificil o caminho. cena na rua... eu pu para 6 pall que eles param me ver? Eles fieam falando: Ah! Otha aqui. E ai sai, Z02, ai vira as costas, porque eu ainda no consigo, & vio. que eu.vi, Acho que é principal assim, 6.0 prazer, 6 0 se divertir e ester ali_pronto, disponivel, .generoso,-.mas--vocé -s6-consegue-isso-quando-voeé-esté-aberto, quando voc’ tem um prazer de estar ali. E © clown s6 funciona por essa via também. E claro que tem todos os elementos profimdos, como 0 corpo, 0 estado corporal, o tempo, ritmo, mas isso no consegue se voc$ no estiver disponivel e vood s6 esta disponivel quando voc tem um prazer. Entéo o prazer do clown eu vou trazer pro resto, pra minha vida e pro meu trabalho. Jogo com prazer, sendo, no tem jogo, sendo fica burocrético. ar suite muito, © meu pai, que é falecido ha tr do era pequeno, fez um circo em casa, I funda que eu tenho com.,, ex dese nas tias no Rio de Janeito..0 meu pai 2 © pathago. Aproveitar o impulso, mas ao mesmo tempo nio se perder nesse impulso; observar 0 espago, mas ao mesmo tempo nfo ter ansiedade nem Preocupagio, € 0 clown se relacionando. Come Mas. mas seré? © clown, eu acho que ele tem um tempo de maturagio, assim, de envolvimento do ator com aquilo que vai além do funcionou agora ou néo vivendo 0 Como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de 4 E eu quando olhei pra im mesma, eu descobri que eu mentia que vivia. Porque viver no 6 s6 viver dentro de si mesma, é viver com o outro, & passear, é sair com ... namorar, € descobrir as cores, ir atris do seu trabalho e enfventar os problemas. Mas é sempre com 0 outro, Do Ric é a partir de um estado corporal... Ele, as vezes ele até fala, ndo ¢ porque colocou um nariz voce néio vai, vocé vai mudar esse estado. E esse estado do corpo, dilatado, que vai trazer 0 seu clown, entiio independent de voc’ estar com 0 nariz ou ndio, Tipo, eu estou com 0 nariz, dai eu altero o meu estado. Nao. E esse estado que vocé conquistou no treinamento do energético, vores vai comegar a descobrir corporeidades ¢ essas corporeidades podem ser interessanies pro clown ou mio. Quando ¢ interessante pro clown, por isso que é interessante o olhar do Ric que esta por fora: Olha, isso ai ¢ inieressamte, vai a fundo, Voo’ viu que entrevistar 6 pagar mico também. Entio é tido compo assim, é a partir do corpo, ¢ muito forte isso no trabalho do Rie assim, é 0 corpo que vai dar o estado. E foi melhor pro meu picadeiro isso. Porque eu fui vazia, Eu fui sem pretensio de ser boa, sem pretensto de jf agradar todo mundo. Acho que uma vore © perreiti Eu sou atriz, eu nfo trabalho s6 com clown, mas eu vejo que-o clown me proporciona um estado de improvisagdo, um estado de relaso com o piiblico, de olhe no olho, de tempo, que eu posso desenvolver assim em outros lugares sem ser s6 num clown, No meu picadeiro, ev cheguei sozinha no mundo, Mas eu nto cheguei brigando com a minke solidao. Eu cheguei simplesmente com ela. E ali eu vi pessoas que me olhavam dentro do olho, de igual pra igual, como ser humano. E eu olhava pra aquelas pessoas, tinha pouca gente. Sera que ndo é uma visto moral a respeito do clown, que ele nfo pode por em cena comida quando est diante de pessoas miseréveis ¢ com fome? Seri que nfo? ss0 wn me #rouRe ass o essay que ex nunca fui de me dedicar a im pra mim me dedicar. No tenho muita oralidade. Quer dizer, eu acho isso. Nio tenho muita... quer dizer, precisa de mais ... ¢ mais ffeil para mim trabalhar com o siléncio. ‘A pessoa é reconhecida, tem dinheiro ¢ entra em qualquer tipo de jogo que Ihe ¢ proposto. nem mesmo sentia o grande esforco de construgko que era viver. Trouxe a beleza ¢ trouxe também a amibivaléncia do ser humano, E o principal, talvez, foi eu, trabalhando o 5 meu clown pessoal, cu, automaticamente, eu olhava pra mim mesma, mas tinha que olhar pro outro, Porque o clown é isso: ele faz com o ptiblico. Entfo a gente tem sempre que olhar, ver, como ator, ver se esta funcionando ou nfo. Ri de yoos Ou ti eom vod? B Siferente, Acko gue é um pouco dos dois. © piibliso ti de voed ¢ si com yood. Acho & voisa de eontradigao € 0 temps todo nesse trebalbo, em qualquer arte Emtéo, a metodologia do Lume trabalha com isso. Pega as diferengas de cada um. E quando alguém comega a, talvez inflar 0 ego, assim, j4 desarma. B coco mesmo, ou...? No comego, teve uma época mide « chow que eu dizia que 0 clown salvou minha vida. oe ches ‘Nao vou me concentrar na minha erianga, nfo, mas é simplesmente buscar 0 estar da crianga, é 0 prazer da crianga de estar brincando. Encontrei um iugar que pode ser leve, que pode ser. gostoso; nilo tem ambiglo, ndo tem... exigéncia, Nao tem softimento. G clown seria 0 principio da generosidade parz consi mesmo. Se permiti do, Se permitindo 0 erro, se permitindo a aleuria, que as vezes, nem af idade se permite; 2 gente no se permite, as vezes, nem rir, Voog tem gue ser verdadeito, mas eu t6 triste € meu numero ¢ assim, Como 8 que eu fago? E outra coisa, o nimero ¢ fixe. Mas, o Ric diz muito isso, que o numero & fixo, mas é diferente cada vez. Pra ele ter graca, ter freseor, vooé tem que fazer diferente a cada vez. E a mesma coisa diferente. Outra contradiga0. Entdo, é a todo o momento essas contradipbes, eu. acho. que delinem ber 0 trabalho assim, que €-a-caracteristica: Pra’ poder, a partir disso, ser generoso com o mundo. A coisa comega por vood @ ai sim vood pode icvadiar, if modo de me achar. Mas eu me exigia demais da conta. Entéo esse dia tudo isso tinha cil perder-se. E tio dificil que provavelmente arrumarei depressa um descansado em mim, Entao ali eu sentia apenas. E no sentimento era mais, era um vazio, assim, mais gostoso. Eu respirava legal, Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida, mas tenho medo do que é novo, e tenho medo de viver 0 que no entendo. Eo Ric fla que ele aparece quando a gente esta com 0 ndo saber ali. Come descobrir isso” Agora fax verde, a cor verde, A gente esta falando de estado, de uma coisa que ao tem ietagem, O clown foi um reffigio pra mim, Julgar menos Naquele momento, eu vivi aquilo no, eta como se nfo tivesse nem passado, nem futuro. Eu estava aquele momento ali, vazio, e olhando pras pessoas, Estava serena, Foi um momento de serenidade. E foi um momento também de depois de muito softimento, Se ontrou unt wore ma cena, ou estou fazende apresentagdo € um cachorro passou, eu no posse ignorar o cackorra € 6 i eu respor 0 fazer mais um teatro de quarta parede, que eu nfo me relaciono com o piiblico ia, Eu E eu fui com leveza, eu fui vs estava feliz de estar ali. Isso ¢ uma coisa que o Ric dizia muito e me fez pensar. Ele falou assim: No clown, 6 importante a diferenga. Entio, no trabalho da metodologia do Lume, 0 wa a essGncia de cada um, pegava as Ric -como assessor nosso-, ele via cada um, p ‘coisas que 0 corpo de cada um trazia, as coisas gue 0 corpo de cada um fincionava, a mio, uma posigdo, uma figure, uma voz. E, observando todos, ett vi que cada um era muito Particular. Entdo, era muito diferente. E ndo acontece que nem em outros trabalhos, que fixa, por exemplo, a melhor atriz ¢ aquela ¢ o elenco, o resto jé ... No tem uma coisa do teatro hoj em dia? “Essa aqui € a melhor atriz do grupo, Esse aqui é 0 melhor teérico, Aqui, o melhor professor.” E 0 Lume nao trabatha com isso, 0 Lume trabalha com a luz de cada um. ..assustei-me porque no sei para onde da essa entrada. E nunca antes eu me havin deixado levar, a menos que soubesse para o qué. En decidi arriscar isso. As agdes que voce vai fazer, mas aquilo é novo, tem que ser, tem que ser vivido na hora, E.o bébado fala uma bobagem lé € voc no vai ignorar. A crianga estd la filando demais, assobiando, ue vood 4 © grupo nio esta rindo, vocé tem que lidac, lidar .. nem que vocé abandone 0 4 criou ... Tem que ser na hora, Por isso que assusta. Porque é um andar no escuro. © E vocé acha que o clown foi uma ilha? ‘Agora vai acontecer alguma coisa, Talvez, para além de mudar 0 mundo, a abertura de mundos, Pensar 0 outro como abertura de mundos possiveis -como faz a leitura deleuzeana de Michel Tournier. Em Vendredi ou les limbes du Pacifique Tournier trata da aventura de Sexta-feira e Robinson. Podemos pensar o palhago/clown como uma certa politica de relagdo com a alteridade, presentificada performaticamente. O palhago s6 existe em sua relago com 0 outro -este é um dos seus tragos distintivos. Poderiamos afirmar a respeito do clown quase que 0 contrario do que Deleuze afirma a respeito do mundo do perverso: “um mundo sem outrem, logo, um mundo sem possivel.”* Outrem é o que possibilita, diz ele. O mundo do perverso s6 conhece a categoria do necessirio ¢ niio a do possivel. palhago ultrapassa 0 previsivel, 0 mediano, 0 util, o democratico, a gest4o ~por isso, ao dizermos possivel, nio se trata do possivel dito pelo democrata gerindo a maquina do Estado. E um possivel que extrapola, que ¢ criado no ultrapassamento do previsto. O palhago opera com a abertura de mundos possiveis. Outrem 6, “em primeiro lugar, uma estrutura do campo perceptivo, sem a qual este campo no seu conjunto no funcionaria como o faz.” Essa estrutura é a do possivel. “Um semblante assustado é a expressfio de um possivel mundo assustador ou de alguma coisa de assustador no mundo que ainda nao. vejo.” Assim, o possivel ndo é abstrato ¢ no designa algo que ainda nao existe, Este mundo possivel expresso existe perfeitamente, diz Deleuze, “mas no existe (atualmente) fora do que o exprime. Quando apreendo, por minha vez ¢ por conta propria, a realidade do que outrem exprimia, nfo fago nada mais do que explicar a outrem, desenvolver ¢ realizar 0 mundo possivel correspondente”® Em sua leitura de Proust, Deleuze define 0 amor, 0 citime, como a tentativa de desenvolver, de desdobrar 0 mundo possivel que permanece envolvido na amada, Outrem como estrutura, “€ a expressito de um mundo possivel, é& 0 expresso apreendido como no existindo ainda fora do que o exprime.”™ Nossa pesquisa foi sendo produzida, por sua vez, através de uma abertura para 08 encontros com clowns, o que se toma visivel ao longo da leitura desta tese, Abertura de varias formas: no modo de conduzir os encontros/entrevistas, na tentativa de deixar ? Gilles Deleuze, Légica do Sentido, p. 329, Trata-se de um apéndice chamado Miche! Tournier ¢ 0 Mundo sem Outrem. Deleuze esti se referindo nesse texto ao livro de Michel Tournier: ended ou les limbes dt Pacifique, Gallimard, 1967 > tid, p. 317. “Tid aparecer 0 modo como eles dizem, suas palavras -0 que considero bem diferente de “dar a palavra”, ou algo semelhante. Um palhago néo precisa que alguém pense em fazer isso por ele, porque um palhao provavelmente tomaria a palavra e a devolveria transformada, muda, gritada, gaguejada... Abertura também para incluir na tese algo ainda pouquissimo pesquisado © que thes interessa muito: histérias de palhagos — uma rica fonte de aprendizados. Fomos nos deparando com uma problemitica que envolve a compreensio do que constitui um clown, em sua diferenca intema, e conexdes que fizemos com a criaglio de modos de existéncia, novas possibilidades de vida, a oportunidade de pensarmos o exercicio de logicas outras e experigncias nas quais as forgas no homem aliam-se com forgas de fora de nés, levando-nos a devires que ultrapassam, certas vezes, os modos estabelecidos, o habitual, o reconhecivel, o nomedvel. Nosso trabalho é atravessado por elementos historicos ~principalmente aspectos de uma histéria que esta acontecendo em tomo dos clowns, dos palhagos, em alguns locais e momentos, na contemporaneidade. Parcial, portanto. E com lacunas temporais, Estamos ais interessados no tempo aidnico do que no cronolégico, conforme veremos no decorrer do trabalho. Este estudo é atravessado também por metodologias de ensino ¢ pesquisa em tomo dos processos de construglo de palhagos, sem, no entanto, tratar-se de uma tese a respeito de tais processos. Apresentamos apreciagdes estéticas, mas tampouco se trata de critica de arte, Habitamos, ao mesmo tempo forgosa e voluntariamente, um lugar que nfo é © do especialista, situando-nos, talvez, nas fronteiras, com uma produgao hibrida. ‘Voltemos 20 texto inicial para dizer que ele foi produzido a partir do encontro com uum grupo de pessoas que faziam ~alguns ainda fazem- assessoria com Ricardo Puccetti no Lume: Claudia, Erica, Guga, Ivens, Joana, Lila, Marilia’ Tais encontros esto aqui parcialmente registrados/sempre recriados, Para uma tese que trata de palhagos/clowns, talvez nada melhor do que, apés entrevistar palhagos que atuam profissionalmente ha muitos anos, alguns com reconhecimento intemacional, comegar com palavras dos que + A quem agradego por sua disponibilidade, nas entrevistas que realizei com cada um deles, Esse grupo foi ‘constituido por iniciativa de Erika Lenk, em fungdo de uma pesquisa de iniciagio cientifica que realizou, orientada por Suzi Frankl Sperber e, na parte pritica, por Ricardo Puccett. Para a pesquisa empirica, ela formou esse grupo. Agradego também a Ricardo Puccetti, pela generosidade ¢ pela confianga em mim Nao se trata também de um retomo aos gregos, mas de nds, hoje, de investigar nossos modos de existéncia, possibilidades de ‘vida, ou nossos processos de subjetivagao.* A ctiagio de estilos de vida, como Foucault a vé nos gregos, no é moral, Nao consistiria em regras coercitivas que julgariam nossas ages e intengées, referindo-as a valores transcendentes, como 0 certo ¢ 0 errado. Tal criagdo é ética, constituindo-se de “regras facultativas que avaliam o que fazemos, 0 que dizemos, em fungo de um modo de existéncia que isso implica. Dizemos isto, fazemos aquilo: que modo de existéncia isso implica? (...) Sdo 08 estilos de vida, sempre implicados, que nos constituem de um jeito ou de outro.”*” Para Deleuze, o estilo, em um grande escritor, é também um estilo de vida, a invengdo de um modo de existéncia. Tal criaglo esta ligada também 4 estética ¢ A politica. ‘Mas, se nfo hé um modo. de existéncia que possa ser considerado certo, se nfio se julgaré mais 2 vida em nome de valores considerados superiores, haveria a possibilidade de criar critérios que nfo fossem pré-existentes? Deleuze, falando da oposi¢ao do sistema fisico da crueldade & doutrina teolégica do juizo, no que se refere aos corpos, diz que o |juizo implica uma organizagdo dos corpos, pela qual ele atua, Nessa concepeo organizada dos drafios julga-se e se é julgado. Artaud criou um corpo intensivo, anarquista, para escapar a essa organizagao, ao juizo. Corpo atravessado por uma vitalidade nao-organica - relagdo do corpo com forgas que dele se apossam ou das quais ele se apossa. Esse também era_0 projeto de Nietzsche, diz Deleuze, “definir 0 corpo em devir, em intensidade, como poder de afetar e ser afetado, isto é, vontade de poténcia.”** Entéo, © que substituiria o juizo, para o sistema da crueldade? O combate. Deleuze distingue o “combate contra o Outro” e o “combate entre Si”. Este trata da composigao das Ibid. pp.1234. “Ibid, p. 124. © Bid, p. 126. * Gilles Delewe, Critica e clinica, p. 149, 27 forgas no combatente. Se o combate-contra pretende repelir uma forga, 0 combate-entre busca “apossar-se de uma forea para fazé-la sua. O combate-entre é 0 processo pelo qual uma forga se enriquece ao se apossar de outras forgas somando-se a elas num novo conjunto, num devir.” * Ao contrério da guerra, o combate ¢ “essa poderosa vitalidade nio-orginica que completa a forga com a forga e enriquece aquilo de que se apossa.”* Uma poténcia seria, entdo, uma combinagio singular de forgas em transformago: as dominantes transformam- se, a0 passar para dominadas e vice-versa, um “centro de metamorfoses”. E vitalmente, através do combate, que se criam modos de existéncia, O juizo nao os cria, impede a sua criag&o. Um modo de existéncia cria-se “pelas forgas que sabe captar, € vale por si mesmo, na medida em que faz existir a nova combinagdo. Talvez esteja ai 0 segredo: fazer existir, nfo julgar. Se julgar é to repugnante, néo ¢ porque tudo se equivale, ‘mas a0 contrario porque tudo © que vale sO pode fazer-se ¢ distinguir-se desafiando 0 juizo” Luiz Orlandi, em Que estamos ajudando a fazer de nés mesmos?™ contribui para pensarmos tais questées. O combate na imanéncia, sem um critério transcendente de avaliagdo de “nossas ages tedricas e priticas desencadeadas em face de problemas criados ps ou vindos a pauta”?, implica que tal avaliago ocorra “a cada tentativa”. Deleuze afirma a necessidade de avaliar cada uma delas, em sua capacidade de fugir ao controle, ou de submeter-se a ele. Afirmago que valoriza “um novo tipo de relagdo com o ‘mundo’, mundo do qual nos ‘“desapossaram’, diz ele. Em que consiste esse novo tipo de relago com © mundo? (..) ‘Acreditar no mundo significa principalmente suscitar acontecimentos, ‘mesmo pequenos, que escapem ao controle, ou engendrar novos espagos-tempos, mesmo de superficie ou volume reduzidos.”"** A seguir, Orlandi diz que 0 territério chamado mim mesmo “é um verdadeiro espago-tempo de guerra.” Guerra presente em todos os verbos frequentados por ele: tatear, Jutar, amar, etc. Por tais verbos passam muitas coisas, algumas tdo fortes que so ® id, p, 150, © Ibid. pp. 151-2. 8 Ibid. p.153. * Luiz B. L. Orlandi. Que estamos ajudando a fazer de nés mesmos? In: RAGO, M; ORLANDI, L. BL; VEIGA-NETO, A. (orgs.) Imagens de Foucault ¢ Deleuze: ressondncias nleteschianas, pp. 211-238. © Teid., p. 234, * Ibid, p. 235. Orlandi, a seguir, na mesma pagina, nos sugere que ado fixemos abstratamente a idsia de controle, Entre liberar e controlar, exstem os “mais imprevisiveis jog0s". 28 capazes de forgé-los a endurecer meu percurso por eles. A essas coisas muito fortes Deleuze dé 0 nome de “Poténcias’, com P maitisculo. Para ele, 0 ‘capitalismo’ é uma dessas Poténcias maitisculas, assim como as “religides, os Estados, a ciéncia, 0 direito, a opinigo, a televisdo’, etc. Sdo Poténcias capazes de impor determinados modos de estar nos verbos da vida. O mim mesmo nao dispde do poder de se ausentar delas, talvez nem na loucura. E que cada uma dessas Potéacias, diz Deleuze, ‘nao se contentando em ser exterior’ a mim, a nés, “também passa através de cada um de nés,’ E justamente essa passagem que, em determinadas circunstdncias, entreabre a ocasiao de um combate na imanéncia, de uma ‘guerra de guerrilha’, diz Deleuze que se intensifica nos questioramentos pontuais, nas erupgtes de estranhas aliancas entre a ‘serenidade’ e a ‘cOlera’, isto 6, entre, de um lado, as micropoténcias inovadoras do pensar, essas que se agitam em certos tretempos da filosofia, das artes, das ciéncias e, de outro lado, linhas de fuga ¢ de resisténcia que modulam agenciamentos do desejo como larvas de uma “cdlera contra a época’, contra o “intoleravel’ ¢ a favor da invenso de modos mais suaves de coexisténcia entre os entes (DELEUZE, 1990, p. 7; 1992, p. 7) * Tomar-me de tal modo, continua ele, povoado por “multid&es intensivas capazes de fluir com prudéncia por linhas de fuga, de resistir ao controle das Poténcias e de estabelecer relagdes ardilosas com o duplo incontrolavel que me atravessa.”* Orlandi diz no ver nisso um programa moral, nem uma constatagio psicolégica, mas “sinalizadores ético-politicos”, auxiliares na avaliago, “a propésito da minha participagio em cada ‘ocorréncia, 0 que estou ajudando a fazer de mim mesmo a cada instante em face da inovago que brilha num acontecimento, seja ele pequeno ou grande, Nao se trata, portanto, do trajeto curto que se acomoda entre uma ética da intimidade e uma moral da objetividade. © que pulsa nesses sinalizadores ¢ uma ético-politica da singularizagdo, na qual incontéveis fios diagonais tramam o continuo das metamorfoses.”*” A alegria e a poténcia politica do palhago: Mas o que vale? Vale 0 que afirma a vida, criando valores novos que a fagam leve ou afirmativa, Em Didlogos, encontra-se a idéia, inspirada em Espinosa, de que 0 que nos afeta de alegria aumenta nossa poténcia, nosso poder de fazer. Os devires sto afetos que podem aumentar nossa poténcia de agir e nos iransformar em alguém mais amplo (alegria), ‘ou podem nos enfraquecer, diminuir nossa poténcia e decompor nossas relagées (tristeza).** % Thid., pp. 236-7, * Ibid, p. 237. * hid. Delewze & Parnet, Didtogos, pp. 73-74. 29 Trata-se, entdo, de ampliar, de multiplicar os afetos que envolvem uma maior afirmagio, de afetar-se de alegria, de possibilitar tais encontros. °° Ao apontar a alegria como critétio para avaliar um modo de existéncia, estamos pensando em sua poténcia politica, Ela ndo esta necessariamente ligada ao riso, mas a algo que nos coloca em movimento. Em Espinosa: filosofia pratica”, vemos que, para Espinosa, ela esté ligada & ago © ao movimento. Podendo ser inclusive uma agéo que nfo é imediatamente perceptivel, como por exemplo, quando no teatro se trabalha um principio do teatro oriental: a aco na imobilidade Espinosa define a paixo triste como aquela que diminui a nossa poténcia de agir e de ser afetado e a paixdo alegre como aquela que aumenta a poténcia de agit e a poténcia de ser afetado.* Paixdes tristes seriam, por exemplo, 0 ddio, que nos toma e nos ocupa totalmente, niio permitindo que nos deixemos afetar por mais nada; a tristeza, a esperanga —pensada “nesse sentido de que vocé nfo age agora em nome de alguma coisa que vocé acredita que vai acontecer, que pode acontecer”-, 0 medo ~que “é o contrario da esperanga, mas também © medo © @ esperanga sio a mesma coisa, so que a esperanga é quando se espera que acontega alguma coisa de bom ¢ o medo é quando se espera que acontega alguma coisa de ruim. Mas nos dois casos paralisa-se no momento presente, em fungéo de alguma coisa que se acredita que vai acontecer, mas no se tem nem certeza de que aconteceré.”* Sigamos a enumeragdo das paixdes tristes em Espinosa, como apresentadas por Deleuze: Hi, efetivamente, em Espinosa, uma filosofia da ‘vida’: ela consiste precisamente em denunciar tudo 0 que nos separa da vida, todos esses valores transcendentes que se orientam contra a vida, vinculados as condigdes e as ilusdes da nossa consciéncia. A vida esta envenenada pelas categorias do Bem e do Mal, da falta e do mérito, do pecado e da remissio. O que perverte a vida & o édio, inclusive 0 édio contra si mesmo, a culpabilidade. Espinosa segue passo a passo o terrivel encadeamento das paixdes tristes: em primeiro lugar a tristeza em si, a seguir 0 6dio, a aversio, a zombaria, o temor, 0 desespero, o morsus conscientiae, a piedade, a indignagdo, a inveja, a humildade, 0 arrependimento, a abjegdo, a vergonha, 0 * Thi, pp.75-76. 2 Gilles Deleuze, Espinosa: filosofia pritica. tr. Daniel Lins e Fabien Pascal Lins, SP, Escuta. 2002. © Tbid., pp. 106-107. A argumentagio em torno da leitura deleuzeana de Espinosa foi desenvolvida a partir do ‘encontro com Cintia Vieira da Silva - estudiosa de tal leitura, que participou de dois retiros de iniciaga0 de clown do Lume, em 1992 © em 1996 e do espeticulo Mixérdia em marcha-aré menor, doutorands em filosofia. O encontro foi ainda mais produtivo, por ela ji ter um interesse nessa pesquisa e acompanhar seu desenvolvimento. © Explicagdo de Cintia, 30 pesar, 2 célera, a vinganga, a crueldade... A sua andlise é tio profinda que consegue encontrar, até na esperanga e na seguranga, 0 gréo de tristeza que basta para fazer delas sentimentos de escravos.* Deleuze remete-nos a0 Tratado politico de Espinosa, afirmando que os homens livres preferem o amor a liberdade do que a esperanca de recompensas ou a seguranga dos bens, pois “é aos escravos, no aos homens livres, que damos recompensas por boa conduta.”“, Espinosa, antes de Nietzsche, ja denuncia “as falsificagdes da vida, todos os valores em nome dos quais nés depreciamos a vida: nés nfo vivemos, mantemos apenas uma aparéncia de vida, pensamos apenas em evitar a morte e toda a nossa vida é um culto morte."*? A critica de Espinosa as paixdes tristes esta baseada, nos diz Deleuze, na teoria das afecgbes. Conforme esta teoria, um individuo ¢ um grau de poténcia, ao qual corresponde certo poder de ser afetado, Esse “poder de ser afetado é necessariamente preenchido por afecgoes.” Vejamos como Espinosa define um corpo. Ele sempre comporta particulas, As relagdes de repouso e de movimento, de velocidades e de lentidées entre particulas definem um corpo qualquer, em sua individualidade. Como um corpo afeta outros corpos, ou afetado por outros corpos, este poder de afetar e de ser afetado também define um corpo em sua individualidade. Definindo os corpos e os pensamentos como poderes de afetar e de ser afetado, muita coisa muda, diz Deleuze, Passa-se a definir um animal e um homem “no por sua forma ou por seus drgios e suas fungdes, € tampouco como sujeito”, mas “pelos afetos de que ele é capaz.”*” Nao sabemos, antecipadamente, os afetos de que somos capazes. Sera experimentando, compondo forgas, que descobriremos. Assim como n&o sabemos quais composigdes nos trardo alegria, aumentando nossa poténcia. Retomemos, entiio, 0 critério para saber se uma paixio ¢ triste ou alegre: diminui ou aumenta a poténcia de ser afetado e de agir. Deleuze, op. cit. p. & Espinosa, Tratado politico, cap. X, 8. apud Deleuze, op. cit... 32 © Deleuze, op. cit. p. 32. Bid, p.33. © Thid, p. 129. Essa apresentagao da definicfo de corpo para Espinass esté no capitulo Espinosa e nés, pp 127-135. A propésito do que pack: um corpo, essa quest2o vai perpassando quase todo nosso texio, sendo retomada explicitamente no capitulo 4 iniclagao. 31 Nao existe Bem e Mal, mas bom e mau. A Etica de Espinosa ¢ “uma tipologia dos modos de existéncia imanentes, substitui a Moral, a qual relaciona sempre a existéncia a valores transcendentes. A moral é 0 julgamento de Deus, 0 sistema de julgamento. Mas a Erica desarticula o sistema de julgamento. A oposigdo dos valores (Bem/Mal) ¢ substiida pela diferenga qualitativa dos modos de existéncia (bom/mau).”** Mas como medir 0 bom ¢ 0 mau? O bom mede-se pelo aumento da poténcia de agir (alegria, amor); 0 mau mede-se pela diminuigo de tal poténcia (tristeza, édio). Por isso 2 lute de Espinosa, sua denuncia de todas as paixdes tristes. “Tudo o que envolve a tristeza serve & tirania e a opressao. Tudo o que envolve a tristeza merece ser denunciado como mau, pois nos separa de nossa poténcia de agir: nfo s6 0 remorso e a culpabilidade, no 36 © pensamento da morte (IV, 67), mas até a esperanga, ¢ mesmo a seguranga, que significam a impoténcia (IV, 47)" Espinosa denuncia a operago do poder: separar voc’ daquilo que vocé pode, separar-nos de nossa potémcia. As paixdes tristes, como o ressentimento, a ma consciéncia, a culpa -em Espinosa: filosofia prdtica- so 0 mecanismo pelo qual o poder ‘captura nossa poténcia, sao o flanco através do qual o poder nos pega e nos toma escravos, fazendo, as vezes, até com que desejemos ser escravizados, desejemos a propria servidio. Através das paixdes tristes o poder nos paralisa, roubando nossa poténcia de agir € nossa capacidade de sermos afetados Adquirir essa posse € ser livre. Nesse sentido, essa filosofia, assim como o clown, sio marcadamente politicos. Uma vez dito isto, podemos afirmar que, nesse sentido preciso da alegria — capacidade de aumentar nossa poténcia de ser afetado e agi 0 clown é pura alegria, porque ele no pode parar o movimento de ser afetado e de agir. (Aqui € necessério salientar, novamente, que no estamos dizendo que ele no pode parar de se mexer fisicamente, As vezes suas paradas em cena sio momentos gloriosos de um clown. O movimento que ele ndio pode parar é o de ser afetado e agir.) Como nosso trabalho demonstra, para produzir um clown é preciso criar-se um corpo ¢ uma abertura para o que acontece, para o que vem de fora -para o imprevisto, 0 caso, a improvisagao, 0 piblico. O que permite uma maior abertura do palhago em relagao 20 ator que 0 faz, quando néo esti “em estado de clown”, ou atuando como clown, talvez Deleuze, op. cit. p.29 Ibid. p. 61 32 seja também sua maneira especifica de elaborar o que vem de fora, que nfo consiste, muitas ‘vezes, em transformar aquilo em conflito interior. E possivel que nés, enquanto ndo clowns, nos abatamos pelo que vem de fora, porque interiorizamos, psicologizamos, vamos criando uma série de ressentimentos, ou coisas que vamos engolindo e vao nos fazendo mal, vo nos entristecendo, Certas vezes, quando conseguimos exteriorizar, j& 0 fazemos em forma de sintomas. Talvez ndo seja unicamente 0 clown que ensina a lidar com isso. O ator Jodo Miguel disse, comentando a respeito de aprendizados que teve com seu espetaculo Bispo “0 Bispo me deu isso. Eu no vou mais comer caruru azedo de ninguém.””° Voltando ao palhago, ¢ como se ele no vivesse dramas psicolégicos, como, por exemplo, no teatro dramético com técnicas interpretativas que buscam a meméria emotiva etc. O palhago ~assim como as técnicas de atuagdo teatral desenvolvidas pelo Lame, entre las, a danga pessoal- ndo interpreta, A danca pessoal é um proceso através do qual 0 corpo do ator produz agdes que sio extremamente potentes, mas no sio interpretadas. Nao interessa 0 que elas queriam dizer quando aconteceram ~supondo que fosse possivel saber-, interessa 0 que elas dirdo ao serem colocadas em cena. Nao se faré uma andlise psicolégica dos processos ¢ dos significados de cada ago. Interessa seu potencial cénico. No caso do palhago, ele joga, atua, representa, sem interpretar. O palhago “é”. poe em movimento, que ele arrasta, que ele abre. As maneiras de produzir seus afectos, seu So os mundos que ele corpo, compreendem processos de experimentago sobre si, que prescindem da interpretagdo. Ele nao interpreta, ele faz, produz, agencia. Os agenciamentos sio produzidos pelo desejo. Este, na concepgio deleuzeana, ndo esté preso a falta, mas ¢ produtivo e atravessa todo o campo social." palhago trabalha com a exterioridade. Seus processos de subjetivago podem ser acompanhados de fora. No palhago tudo se passa em seu corpo ¢ de modo visivel para 0 piblico. Tudo é exteriorizado, ele precisa mostrar sua légica, conquistando 0 piblico, trazendo-o para jogar com ele, A abertura com a qual ele opera é de mao dupla. Ele precisa exteriorizar, Ao mesmo tempo em que se deixa penetrar, deixa as coisas entrarem, o faz *° Espeticulo inspirado na vida de Arthur Bispo do Rosério. Entrevistamos dois atores que participaram do retiro de clown do Lume em 1996 e que construiram seus espetéculos utilizando-se de uma relagdo muito delicada € especial com o piblico: Juliana Jardim (Madrugada) e Jodo Miguel (Bispo). Nao se trata de espetdculo de clown. Mas talvez seja possivel dizer que, sem conhecer o trabalto com o palhago, no teriam podido construir 0 espetaculo do mesmo modo, “acolhendo” o piblico como acolhem. " Para uma leitura da construed do conceito de desejo na filosofia de Gilles Deleuze, verificar a dissertago de mestrado de Cintia Vieira da Silva 33 para que algo saia em forma de aco fisica. Agio fisica que pode ser exagerada, ou Pequena, ou quase imperceptivel, mas ela precisa aparecer para que 0 piiblico possa perceber 0 que est acontecendo, a ago tem que ser visivel para o piblico, caso contrario, © palhago perde o seu sentido, o pliblico niio entende que jogo ele esta propondo. ‘Vamos nos valer aqui, para melhor desenvolver essa argumentagdo, das palavras de Joo Artigos, do Teatro de Andnimo, Quando se trabalha com o clown, diz ele, “o espectador precisa saber 0 que passa por dentro daquele ator”. No clown, “tudo ¢ exteriorizado, vocé precisa saber o que esté passando ali para entender essa légica.” Segundo Joo, a ago do palhago no ¢ absurda; “o absurdo é a légica que ele constréi pra poder chegar naquela ago. Como é que ele entende que, de repente, olhando pra esse gravador, que de repente esse gravador é uma barra de chocolate.” E continua: “Mas ele vai ter uma justificativa, uma razio, e ai no € razio psicoldgice, para poder chegar @ esse conclusto.” Caso 0 espeotador no enxergue isso, ele vai pensar que o palhago esta “fazendo gracinha.” Jodo ressalta, com isso, @ necessidade do piiblico entender o funcionamento do clown, 0 jogo proposto, seguir a linha desse jogo, a logica, 0 caminho, a razBo para as coisas estarem acontecendo daquele jeito. Razdo que nio é psicologica, & fisica Acompanhando as ages do palhago, o espectador consegue enxergar a partir de tais ages, a partir do corpo do palhago, aquela construgio, “Se o espectador no consegue fazer essa ponte de entender, af vira uma outra coisa, vira teatro experimental, que vocé nao precisa entender.” Para se conseguir isso, ¢ importante um treinamento corporal do ator, diz ele “Agugar a perspicécia dos sentidos, ter bons olhos para poder enxergar, bons ouvidos para poder escutar, sensibilidade da pele, ter essa abertura. De poder ter um corpo preparado para pensar em movimento. De uma maneira bem lidica também. Tudo isso para conseguir tocar 0 espectador, afetar. Pode fazer rir, pode fazer chorar, pode fazer pensar, pode fazer 0 que quiser-, a gente nao esta falando do riso especificamente como fim dessa historia, como estava antes falando do palhago-, mas a gente esta falando desse ator que afeta.” Ao pensarmos © corpo do clown, lembramo-nos da constatagio de Eduardo Viveiros de Castro -inspirada na leitura deleuzeana de Leibniz: “O ponto de vista esté em um corpo, diz Leibniz,””- referindo-se ao perspectivismo amerindio: a diferenca esté no ™ Deleuze, A dobra: Leibniz e 0 barroco, p. 26. O fundamento do perspectivismo, para Leibniz, seria o ponto de vista, “Serd sujeito aquele que se instalar no ponto de vista.” p. 39, 34 corpo. Para a tradigio ocidental, o espitito é 0 grande diferenciador, nos sobrepondo aos animais e a matéria, “o que singulariza cada humano individual diante de seus semelhantes””, para os amerindios, o corpo é grande diferenciador. O corpo aqui no se restringe ao organismo, mas nos remete ao corpo conforme pensado por Deleuze. Corpo como feixe de afecgdes -eis Espinosa de volta também-, conjunto de afecgdes ou capacidades singularizantes, “o que ele come, como se move, como se conmmica, ande vive, se gregério ou solitrio.. A morfologia corporal é um signo poderoso dessas diferencas de afecgdo, embora possa ser enganadora, pois uma figura de humano, por exemplo, pode estar ocultando uma afeccio-jaguar. O que estou chamando de corpo, Portanto, no é sinénimo de fsiologia distntiva ou de anatomia caracteristica; é um Conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habirus, Entre a subjetividade formal das almas © a materialidade substancial dos organismos, ha esse plano central que € © corpo como feixe de afecgGes e capacidades, e que é a origem das perspectivas. Longe do essencialismo espiritual do relativismo, 0 perspectivismo é um maneirismo corporal.”™* Ao tratarmos da iniciagao, procuraremos ir delimitando uma conceituagdo de corpo, aqui apenas iniciada, para que possamos compreender as questGes que abordamos. Pensando no corpo do clown, o vemos também como diferenciador, com seus afectos, ritmos ¢ capacidades, que esto muito além de uma forma. Portanto, também nos ni nos. referimos, para apontar sua. singularidade, aos conflitos entendidos como psicologicos, ou da alma. Nao estamos pensando em termos desses pares de opostos, de dicotomias, como a que separa corpo ¢ alma. Tudo se passa no corpo, tudo é exteriorizado, a0 mesmo tempo no estando preso a uma forma, Nada de crises psicoldgicas, mas contflitos corporais, afectos. © palhago nfo se deixa capturar pelos afectos tristes. Talvez seja isso que, em primeiro lugar, 0 faga um libertario, fora da ordem, livre. Ele é ativo, alegre. Conforme afirmou Cintia Vieira da Silva’, pode acontecer alguma coisa com ele, levando-o a um momento de tristeza, “mas ele no se deixa afetar totalmente por aquilo, porque sendo ele morre ali. A tristeza no clown é muito répida. Embora muitas vezes tenha um tom, um qualquer coisa que, ao assistirmos consideramos meio melancélico, mas 0 funcionamento dele ¢ isso, ele é alegria no sentido de ser ago.” Agdo aqui se opde a reago ¢ & impoténcia e nfo a aparente imobilidade. > Eduardo Viveiros de Castro, A inconstancia da alma selvagem, p. 382. Thi, p. 380. ** Ver nota 17. 35 © palhago possibilita que nos conectemos de novo com a nossa poténcia. Como vimos, uma das operagdes do poder é separar-nos daquilo que podemos, através das paixdes tristes. Sentimos culpa, medo, vergonha perante as nossas forgas vitais, como a sexualidade, @ alegria de modo geral. O palhago, por sua vez, opera com a alegria, A Paixo alegre € um caminho em diregio a atividade, que consiste em se tomar posse de sua prépria poténcia, em aio deixar que nossa poténcia seja capturada por paixdes tristes e pelos poderes estabelecidos. Alegria € 0 que sente o proprio artista ao atuar como clown, diz Renato Ferracini. Alegria de estar “conseguindo fazer aquilo, vocé esta estabelecendo um jogo, uma alegria muito grande. A mesma alegria que vooé sente quando vocé poe uma miisica que voce gosta muito, comega a dangar e todo mundo comega a dangar junto com vocé, numa festa. Essa alegria que voc comera a dangar ¢ todo mundo danga junto...” A alegria de contagiar. O clown de Gabriela Diamant,” Bulissoca, nos remete diretamente a ligagio entre liberdade e alegria. Ao ser perguntada, no encontro que tivemos, a respeito do que o clown Ihe trouxe, disse ter encontrado nele “caminhos profundos de autodescoberta. (...) Quando a gente se sente livre, a gente se sente alegre, esse ¢ o ponto da Bulissoca. Ela se sente livre, ‘entdo ela se sente alegre, ¢ ela ¢ muito alegre. E € essa alegria que transforma. E eu me sinto assim, hoje em dia, a Gabriela, Quando eu me sinto livre eu jé me sinto alegre, automaticamente, Nao existe vocé se sentir preso ¢ se sentir alegre; se sentir alegre e presa, 80 mesmo tempo; ndo existe vocé se sentir livre ¢ se sentir triste.” Ligdio espinosistal “A liberdade traz a alegria. E o clown, ele é uma libertago, Muito profiunda, porque no existe nada que pode mais aprisionar a gente do que a gente mesmo. Se vooé é aprisionado numa pri ‘muito mais triste, Entdo, 0 clown é a libertagiio da sua propria prisio. Entdo é muito feliz, muito feliz.” Para evitar um improvavel, mas possivel mal-entendido, precisamos, talvez, , voce est sendo aprisionado por alguém, é triste. Mas vooé se auto-aprisionar, é explicar que as paixées alegres e © aumento da nossa poténcia de agir, de afetar e ser afetado, provocado por elas, no tem, necessariamente, a ver com fazer graga, com ser ameno ou divertido, no sentido corriqueiro desta palavra, Em 6 de dezembro de 2003, 0 ™ Bla iniciou-se como clown no Lume ~em 1995, no primeiro encontro conduzido por Ricardo ¢ Simioni anterior a0 que observamos-, depois estudou com Phillipe Gaulier, com Pierre Byland e fez urm workshop om Slava -que nio costuma trabalhar com workshops-, no festival de Edinburg. na Esoécia, em 24/09/1996 FFui até Gabricla, para que me falasse um pouco a respeito desse contato com Slava 36 palhago Clerouak””, no Cabaré do Semente, criou um verdadeiro embate com uma senhora do piiblico, que reclamou porque ele dissera um palavrio, Ele estava com um instrument, fazia sua Ultima participagéo da noite ¢ iria cantar para 0 piblico, quando parece-me que falou algo ¢ imediatamente brincou, dizendo que nao era elegante dizer em publico “palavras chulas”. Foi entiio que esta senhora entrou no jogo. Clerouak levantou-se imediatamente, interrompendo o que fazia -num jogo em que parecia inicialmente enfurecido-, ¢ defendeu seu direito de falar 0 que quisesse, contra qualquer censor. “Tem algum censor, algum militar presente?!”. Dentro do jogo do palhago, disse, ainda: “Vou falar um palavrdo: Buceta!” E complementou: “Bem arregagada!” Alguém ainda advertiu- o: “Tem crianga presente!” Ao que ele respondeu que as criangas eram inocentes, para elas no tem nem bem, nem mal, Depois continuou sua ligdo: “Palhago nfo é s6 para falar de alegria e divertir criangas, minha senhora!” Nao era este 0 jogo do palhago, mas quando a senhora propés ~ pretendendo definir como o palhago deveria atuar-, Clerouak entrou imediatamente no jogo, procurando leva-lo as ultimas consequéncias. Infelizmente a nossa escrita no consegue capturar 0 tom do palhago jogando com a senhora ¢ 0 resto do pubblico, para evidenciar que foi muito engragado e, nesse caso, o palavrio nio tinha nada de gratuito; a0 contritio, foi pedido pela senhora quando esta pretenden colocar-se na posigdio de impedi-lo de ser dito, Nao era esta, certamente, a tinica maneira de jogar o jogo da senhora, mas foi uma saida muito engragada e, ao mesmo tempo, criou uma surpresa na platéia, pelo inesperado de sua atitude ~saltando da serenidade de quem se preparava para tocar e cantar, para um furioso matreiro, Tudo o que Clerouak fez maravilhosamente nesta noite, primeiro como mestre de ceriménias, depois improvisando com Esio Magalhies ~que também tem grande habilidade na improvisagdo-, e depois, ainda, tendo como parceira momentinea esta senhora -dizendo que seu palhago era filho de deus e do diabo, que seu palhaco também era buffio e, mais do que discursando, fazendo, efetivamente, com incrivel humor, suas provocagdes, sem se preocupar em agradar a todos do piiblico, mas ao mesmo tempo preocupando-se em ter 0 piblico do seu lado, mantendo o jogo ~ tem a ver com as Clerouak, junto com Alessandro Azevedo -0 Charles, palhago apresentador, ou mestre de ceriménias, do Sareu do Charles, cuja trajet6ria encontra-se no capitulo Como se faz um clovn- ¢, posteriormente, Paulo Federal, criou 0s Charles. Participou, em 1980 e 1981, do grupo punk Garotos Podres. Atualmente Clerouak pesquisa manifestagées do palhaco na cultura popular, como o bumba-meu-boi e o cavalo marinho, os Mateus ¢ dedica-se também 4 misica étnice. Em 2003, gravou 0 CD Miisica do IV mundo. Compartilhames com Clerouak @ admiracdo pelo misico Itamar Assumpeo. 37 paixdes alegres € com sua poténcia politica. Posteriormente, conversando com Clerouak, ele afirmou que, para o palhaco, no tem nem bem nem mal, mas tem justiga Essa poténcia politica do clown parece atuslizar-se, na contemporaneidade, em certas ages politicas.* Deixemos um pouco de lado a figura do clown, apreendendo apenas © seu modo de operar, pensando na poténcia critica dessa politica especifica do exercicio da alteridade, exercida por ele ~consistindo, como vimos, na capacidade de agir, sem guardar ressentimentos, sem culpas, sem se deixar aprisionar pelas paixdes tristes, sem se vitimizar, mantendo-se ligado @ sua poténcia, Pensamos em algumas manifestagdes politioas - entre elas os movimentos sociais que vém ocorrendo, principalmente na Europa, chamados de “anti-globalizagdo”., nas quais os participantes muitas vezes agem escapando da atitude de vitima ressentida, que grita palavras de ordem raivosas, passando para uma atitude performati que se aproxima do clown. Tais performances emprestariam do clown @ capacidade de improvisagdo, de atuar abrangendo o imprevisto, o que acontece no ‘momento €, certas vezes, o humor na critica, presente seja nos aderegos dos manifestantes, seja nos modos como parodiam certos personagens politicos. Existem mesmo ativistas que se utilizam explicitamente do clown, como, por exemplo, 0 “Clandestine Insurgent Rebel Clown Army”, que langou um “comunicado” em novembro de 2003, em Londres.” Projeto ligado a John Jordan, que, anteriormente, jé apontava o “Carnival Against Capital” como uma tatica na resisténcia contra o capitalismo global.” Essa Enfase em um fazer que escapa ao reativo, que atua de maneira performatica, situacional, pode apontar para outros modos de atuacSo social, que escapam também das esferas institucionais, do controle de um partido, ou grupo politico articulado nos antigos moldes. Conforme sugeriu o assessor cientifico da FAPESP. 2 Maiores detalhes, verificar Indymedia UK, 9/11/2003 [online], ® John Jordan and Jennifer Whitney. Resisiance is the secret of joy. New Internationalist n° 338/ september 2001. fontine] 38 O mar carmesim as vezes como 0 fogo ¢ os poentes gloriasos e as figuetras nos Jardins da Alameda sim e as ruazinhos esquisitas e casas rosas e azuis e amarelas e ‘05 jasmins e gerdnios e cactos e Gibraltar eu mocinha onde eu era uma Fior da montanha sim quando ex punha a rosa em minha cabeleira como as garotas andaluzas costumavam eu devo usar uma vermelha sim e como ele me beijou contra a muralha mourisca e eu pensel ido bem a ele como a outro e entdo eu pedi a ele com meus olhos para pedir de novo sim e entdo ele me pediu quereria ex sia dizer sim minha flor da montanha e primeiro eu pus os meus bragos em torno dele e eu pucei ele pra baixo pra mim para ele poder sentir meus peitos todos perfume sim 0 corapéo dele batia como louco e sim eu disse sim eu quero Sims* Capturemos este texto-poema, poupando-o de interpretagdes, deixando pulsar apenas o Sim, a sua afirmagio vital. Em certas circunstancias pode ser dificil falar no, ‘mas, em outras, falar sim requer novos habitos, outro investimento no mundo, ov -por que nio?-, de novo, a abertura de mundos. Dizendo sim, operamos com produc, trabalhamos na positividade, na criago Tais questées, talvez, marquem a originalidade da leitura deleuzeana de Nietzsche. Uma vez perdida a unidade pré-socratica entre vida e pensamento, na qual os modos de vida inspirariam maneiras de pensar e os modos de pensar criariam maneiras de viver - “a vida activa 0 pensamento ¢ 0 pensamento, por seu lado, afirma a vida™*- era fatal que ela “s6 se desenvolvesse na histéria se degenerando, voltando-se contra si, deixando-se prender sua mascara.” (Mascara de sacerdote que o filésofo veste, pois, pensando na filosofia como uma forga -e a lei das forgas 6 que surgem cobertas com a mascara das forgas pré-existentes- foi preciso que o filésofo adquirisse o porte das forgas precedentes, vestindo tal mascara.) “Em vez da unidade de uma vida activa e de um pensamento afirmativo, vemos 0 pensamento dar-se por tarefa julgar a vida, de the opor valores pretensamente superiores, de a medir com esses valores e de a limitar, a condenar. Ao ‘mesmo tempo que o pensamento se tora assim negativo, vemos a vida depreciar-se, deixar de ser activa, reduzir-se as suas formas mais fracas, a formas doentias s6 compativeis com 8 valores ditos superiores”™ A reagdo triunfa sobre a vida ativa e a negagdo triunfa sobre © Esaraido de Ulysses, de Joyce. Tr. br. de Anténio Houaiss, Circulo do Livro, 1975; apud Octavio Paz, 4 dupla chama, p. 34. Nas paginas finais de Ulysses, Molly fala sem parar, num “grande Sim a vida”, um Sim de aceitagio, de afirmagdo vital © Gilles Deleuze, Nietzsche, p. 18. © Tid * Ibid. pp. 18-19. 39 © pensamento afirmativo, O filésofo deixard de criticar os valores estabelecidos -os valores superiores 4 vida ¢ © principio de que eles dependem- ¢ de oriar novos valores. Assim, passa de fildsofo legislador a fildsofo submisso, 0 “conservador dos valores admitidos”. “A filosofia j4 no passa do recenseamento de todas as razées que o homem se dé para obedecer.”* Somos levados a pensar de que nos serve dizer que se tem amor a verdade, se tal verdade néo faz mal a ninguém. Se ela “aparece como uma criatura simploria, que gosta de seu bem-estar, que dé sempre a todos os poderes estabelecidos @ certeza de que no causaré nunca a ninguém o menor embarago porque ela no passa, apesar de tudo, de ser a ciéncia pura.”** A vida passa a ser avaliada pelo fildsofo conforme a sua capacidade de carregar fardos: os valores superiores. Ocorre, assim, a unio do carregador e do carregado, da vida reativa ¢ depreciada, do pensamento negativo e depreciador.*” O carregador € oposto 20 ctiador, pois criar “é aligeirar-se, é descarregar a vida, inventar novas possibilidades de vida, O criador é legislador-dangarino.** Vemos esbogar-se a grande importancia da leveza para Nietzsche. Conforme a leitura deleuzeana de Nietzsche, existem dois tipos de afirmagdo negagao. Ha um tipo de afirmagao, que é 0 sim de quem aceita os valores vigentes, de seus defensores, que seria uma negacao da vida; mais uma submissio, do que uma afirmagao Propriamente, Nao é esse sim que queremos dizer, pois ele no cria. Este sim, que no queremos, seria quase que um subproduto da negagdo; nele, a negago vem antes, é primeira Mas existe um outro tipo de afirmagdo, no qual as forgas ativas afirmam e afirmam a sua propria diferenga. Neste, a afirmagao é primeira” Na afirmagdo criadora, o negativo subsiste “como 0 modo de ser daquele que afirma, como a agressividade propria & afirmagao, como o claro anunciador e o trovdo que se segue ao afirmado ~ como a critica total que acompanha a criagéo. Zaratustra, deste modo, ¢ a afirmagdo pura, mas que precisamente leva a negago ao seu grau supremo, fazendo dela uma acco, uma instincia a0 servigo daquele que afirma ¢ que cria. O Sim de Zaratustra opde-se ao Sim do Burro, como criar se opde a0 carregar. 0 Nao de Zaratustra opde-se 20 Néo do nillismo, como a 40 agressividade se opde ao ressentimento. A transmutac&o significa inversio das relagdes afirmagdo-negagio.”” A negagio volta-se contra as forgas reativas, tornando-se uma aco, a servigo de uma afirmagio superior. A afirmagao ¢, entfo, “o mais alto poder da vontade”. Mas 0 que se afirma? Ao contratio do niilismo -que considera 0 devir ¢ 0 miltiplo como culpaveis, devendo o primeiro ser reabsorvido no Ser e o segundo reabsorvido no Uno-, a primeira figura da transmutago torna o miltiplo € o devir objetos de afirmago. Afirmando 0 miltiplo, surge a alegria como “‘inico mébil” para filosofer. “A valorizagio dos sentimentos negativos ou das paixdes tristes ¢ a mistificagéio na qual o niilismo funda o seu poder.”** Voltando aos palhacos como criadores de novas possibilidades de vida, modos de cexisténcia que questionam os valores estabelecidos, acreditamos que se tornou evidente que ‘© seu papel politico no se restringe a um discurso politico ou a uma tematica politica. Existem varias maneiras de se entender esse papel politico. Podemos ver o palhago como transgressor por fazer piadas com conotagdes sexuais, por brincar com partes genitais do corpo, realizar ages culturalmente consideradas obscenas, transgredindo assim padroes morais; podemos considerar 0 mais politico dos palhagos aquele que, didaticamemte, apresenta a defesa de uma bandeira politica do momento no qual atua: contra ou a favor de algo. Existe todo um campo da micropolitica no qual o palhago pode atuar. Um plano politico sutil, no qual ele pode questionar ndio um autoritarismo presente nas instituigdes como por exemplo partidos, familia, Estado, mas denunciando © pequeno fascista que habita em cada um de nés, atuando nas esferas politicas menos dbvias. © palhago pode mostrar 0 jogo que envolve disputas em tomo do exercicio cotidiano do poder nas relagdes, diretas com o outro, as pequenas trapacas, os blefes, uma infinidade de truques, de disputas, que mostram 0 nosso ridiculo, as nossas vaidades, como quando se quer sempre ter razo, as autoridades as quais se apela para sustentar 0 orgulho de quem nao sabe “engolir a bola”.”? Nestes casos, talvez, dependa mais da leitura do espectador, do modo como este apreende ou néo tais dimensdes politicas. Talvez seja mais ficil apreendermos o politico afi onde escapa da nossa responsabilidade, do nosso dominio, nas esferas macroscépicas © Thid., p. 28, * Tid. p. 29. Deleuze nos diz que Lucrécio ¢ Espinosa jé concebiam “a filosofia como o poder de afirmar, como a luta prética contra as mistficagGes, como a expulslo do negative.” Engolir a bola é um termo usado no meio dos palhagos que significa deixar-se penetrar ou afetar por algo, aceitar o que acontece para depois reagir. 41 Muitas vezes somos capazes de denunciar um ato autoritario de uma autoridade publica ¢ reproduzi-lo nas nossas relagdes interpessoais sem sequer nos darmos conta. Seja em que dimensao politica for, os palhagos atuario de modo proprio, sem a imobilidade do ressentimento, oriando modos afirmativos de aco, Houve mesmo pelo menos dois comediantes, ou clowns da contemporaneidade, que se candidataram as eleigdes em seus respectivos paises, em 1981: Michel Colucci, 0 conhecido cémico francés Coluche”, que concorreu a presidéncia da repiblica — inesquecivel imagem de candidato com rosto pintado de branco e nariz vermelho- ¢, na Africa do Sul, Pieter-Dirk Uys. Em Le clown travesti: le cas de Pieter-Dirk Uys", Anne Fuchs apresenta este ‘iltimo como “dramaturgo e clown da sétira politica sul-afticana”. Como Coluche, ele trabalha com a dimensio do clown ristico ou cabega dura, mas reiine outros dois aspectos © disfarce, que vai além da mimica e a dé-rision, ou desconstrugo do riso.®* Filho de mae judia alema e de pai sul-afficano, nasceu em 1945, no Cap e, em 1973 comesou a trabalhar em teatro como ator, diretor ¢ autor, “atuando em mais de SO pegas no primeiro teatro sul- africano n&o-racista, 0 Space Theatre du Cap.” Sua campanha as eleigdes legislativas, Contra o ministro do interior, Pik Botha, foi transformada por Pieter-Dirk Uys no espetaculo ‘Adapt or Dye (Adapte-se ou Morra) - frase tirada do discurso de Botha-, @ primeira de suas performances na qual critica, sozinho em cena, o regime do apartheid Nos anos 1985-1986 apresentou o espetaculo Beyond the Rubicon (Além do Rubicon), povoado de toda espécie de personagens representativos dos conflitos existentes naquele momento, na Africa do Sul: os apoiadores do apartheid, aproveitando-se dos privilégios de que dispunham, racistas primérios, cuja cultura se reduzia a trés elementos: cerveja, rugby € policia. O personagem mais tipico era o que se apresentava dizendo: “Sou uum sul-afficano branco.” Orgulhoso de seus antepassados, sua cultura e amor pela patria, ele votou 2 favor da segregagio racial e considerava os negros como babuinos. Para ele, 0 apartheid © protegia dos comunistas, homossexuais e dos negros. Ao mesmo tempo, apoiava-se na Biblia, * Coluche lancou um apclo piblico, em 1985, criando os Restos du Coeur- Restaurantes do Coragdo-, para alimentar os miseréveis na Franga. Tornaram-se uma rede nacional, funcionando com trabalho voluntario. 3 Anne Fuchs, Le clown travesti: le cas de Picter-Dirk Uys, In: Vigouroux-Frey (org), op. cit. pp. 85-92 * Tid, p. 85, * ibid. 42 Conforme Anne Fuchs, esta intervengo do “Branquinho”, embora répida, era rica em signos: reconhecia-se imediatamente 0 clotpool (0 rstico, 0 cabega dura), na sua maneira de falar, gramaticalmente incorreta ¢ repleta de Fodam-se todos. Mais tipica ainda era sua postura: “a barriga para frente, as costas curvadas e o andar incerto.””’ Era um béer (descendente de holandés) ou um “pobre”, branco, anglofénico? Os dois se confundiam na época, diz Fuchs. Primeiro elemento desta cultura priméria, a caneca de cerveja explicava a feitira tanto da barriga arredondada saliente quanto do rosto hilirio e também dos. seus comentérios racistas e retrégrados. O rugby, “emblematico de certo machismo do branco sul-afficano que acompanha a maneira com a qual se trata os homens negros freqientemente humilhados e feridos na sua virilidade pelos brancos.”** Caracterizado por signos de luta agressiva: pelos tigres nas camisetas, pelo chapéu cuja camuflagem remete ao exército. Para 0 sul-afticano da época, 0 exército era quem combatia os negros. Uma outra variaglo deste tipo de “clown de cabega dura” eriada por Pieter-Dirk Uys ocorre quando ele transforma-se em cena, em uma espécie de tia velha africana, que leva o delirio racista até o ponto de imaginar toda a Africa do Sul lavada com Omo, “que lava mais brance que o branco.” Beyond the Rubicon termina com a criagéo de trés personagens femininos, dois ctiados por ele ¢ 0 terceiro ¢ Margaret Thatcher. Esta transformagio ocorre rapidamente, através da mudanga de peruca, de brincos e de echarpe, que “reforga a imagem da mulher em situago de poder.” A respeito de suas metamorfoses em personagens femininos, ele diz que antigamente “os clowns tinham os cabelos verdes ¢ 0 nariz laranja porque o mundo onde eles viviam era relativamente normal.” Mas agora ¢ 0 mundo que tem os cabelos verdes ¢ 0 nariz laranja, 0 clown deve ser verdadeiro. Evita Bezuidenhout, uma das personagens que criou, é verdadeira, diz ele. Se ela fosse simplesmente uma drag queen nao teria nenhum impacto.’ Evita é uma espécie de alter-ego de Pieter-Dirk, seu clown. © Thid, p. 86. * Ibid, ® Ibid, p. 88. ‘*Thid, p. 88. Citado do livro de Pieter-Dirk Uys, No One’s Died laughing, p. 64 43 Pieter-Dirk Uys, segundo Anne Fuchs, incita, além do tiso, “uma reflexo séria sobre os aspectos clownescos da situagao real," Pesquisando a respeito de suas atividades atuais, na Aftica do Sul, vimos que se trata também de um fantistico ativista na luta contra a Aids. Em 2003, langou o livro Elections & Erections.’ Se Leo Bassi criou 0 espetéculo 12 de setembro, tratando, entre outras coisas, da postura imperialista de Bush, o palhago argentino radicado na Espanha, Loco Brusca, utilizou-se de uma tética de guerrilha cibemética, conseguindo comunicar-se, inclusive conosco, via correio eletrénico, enviando uma mensagem na qual conclamava o Hjército de Ja Risa, contra o “fascismo democritico” de Bush. Foi se articulando, através de quem se dispés a responder o e-mail, uma rede que organizou grandes manifestagdes na Espanha, em 2002, contra a guerra do Iraque. Manifestagdes do Hjéreito de la Risa. Conforme temos afirmado, existe um aspecto com o qual os clowns operam que é justamente relacionado ao fazer, & experimentagio. O ativo no lugar do reativo. As dimensdes ética, politica e filoséfica estio imbricadas nesse aspecto de afirmago da vida, da ago, no lugar da reagéo, Mesmo um palhago com discurso claramente politico como Leo Bassi, talvez atinja © méximo de sua poténcia anrquica quando diz que € preciso perder-a-dignidade e entra em um devir-galinha, expondo seu corpo ~néo-malhado, nlo-sarado, um corpo comum, dé tum homem europeu de meia-idade- seminu, todo coberto de penas, Deixar de ser guiado or valores que nao afirmam a vida, mas nos aprisionam em comportamentos, corpos, atitudes, a0 medo, mediocridade, ao conformismo. © mesmo ocorre no retiro para iniciagao de clown, ou nos workshops do Lume que trabalham o palhago, quando se busca escapar 20 que foi construido movido por esse desejo de adequagio, escapar aos automatismos, quando se busca 0s_gestos em fuga, Criar vida em vez de julgé-la em nome de valores transcendentes. Experimentar e, na imanéncia, a cada vez, como disse Orlandi, avaliar. Sem a priori Uma conseqiiéncia da primazia da afirmagao 6, portanto, a énfase no que escapa, no que foge. Podemos pensar, esorever, viver, olhando primeiro, movidos mais pelo que ha de endurecido em nés, a opinio, nossos habitos, os Estados, as Poténcias com P maiisculo, 44 mencionadas anteriormemte"’, as linhas molares, que nos constituem, nos atravessam. Mas podemos afirmar a primazia do que escapa, do que foge e atuar na positividade, na criagao. Isso muda tudo. © clown costuma ser visto como o mediador, o catalisador, com 0 qual nos identificamos ¢ através do qual nos libertamos por meio de uma catarse (liberando energias por identificagio). Estamos falando do clown que nos transforma no por uma catarse, ou uma “conscientizagio” do nosso ridiculo, mas porque um bom clown nos toma, nos arrasta, nos eva numa viagem em seu mundo, nos da as mios e conduz para “viver algo com ele” (como disse Leo Bassi), nos provoca, nos faz tremer ~de rir ou de medo ou de amor ou de nojo ou de carinho ou de susto ou de ternura ou de nostalgia ou de alegria ou ... De rir e de medo ¢ de amor ¢ de nojo ¢ de carinho e de susto e de termura e de nostalgia e de alegria e Devir, contagio, ndo é identificagao com o que 0 outro faz, ¢ ir com ele, ¢ viver com ele. ‘Nao “como se fosse”, mas experimentar mesmo. No espetaculo Cravo, Lirio e Rosa, de Ricardo Puccetti e Carlos Simioni, eles viajam, inclusive, pelas idades. Na iiltima vez em que “assisti” a esse espetdculo, primeiro semestre do ano 2000, quando os clowns dangavam, com enorme leveza — a0 som da miisica judaica. 7: 40'% -, meu filhinko que eu trazia feto, com uns 8 meses, dancava com eles na minha barriga. Sensagao magica essa danca do Yuri antes de nascer, comigo, com Teotnio ¢ Carolin e mais todos os que ali estavam flutuando no grande iitero que se tomnava a sala verde do Lume naquele instante preciso. palhago nos possibilita experimentar outras légicas em ago. O encontro com um palhago tem essa poténcia transformadora porque abre esses mundos diversos, nos quais as logicas ndo so as do pensamento para o mercado, as da opinido, as do razodvel, do politicamente correto. Nao diria que ele inverte a légica, mas que cria outras, outros mundos. E mais do que © mesmo mundo de cabega para baixo. Tudo é muito chacoalhado, revirado, aberto, explodido, potencializado, conectado com poténcias as mais diversas. Falemos, muito brevemente, a respeito de uma primeira abordagem do clown pelo Lume -lembrando que varias abordagens a respeito dos palhagos aparecerio ao longo de todo este trabalho, Em A arte de ator: da técnica a represemtagéo, Burnier salienta que " Quando nos referimos a Que estamos ajudando a fazer de nés mesmas, de Luiz Orland. '°* Tocada pelo clarinetista Giora Feidman; missica klezmer, de caréterfestivo. 45 tanto os tipos caracteristicos da baixa comédia grega e romana, quanto os bufSes bobos da Idade Média, 0s personagens fixos da Commedia dell’Arte italiana, o palhago citcense, 0 clown, todos expdem a estupidez humana, questionam as regras e verdades sociais, 1° © clown nao € um personagem, mas a “ampliagZo e dilatagio” dos proprios aspectos ingénuos, puros, ridiculos, diz Burnier. Carlitos “é 0 clown de Chaplin, pessoal e 4inico, no importando se desempenha o papel de 'O Grande Ditador’, do vagabundo de 'O Garoto' ou do operario em 'Tempos Modernos’™!* © termo clown pessoal refere-se ao fato de um clown ter logicas proprias, maneiras proprias de agir, sentir, modos de existéncia, ligados ao ator que o tia. No processo de iniciago do Lume, inicia-se 0 trabalho técnico de construgdo dessas logicas. Nao uma personalidade, mas uma légica. Ser clown € uma profissio que requer grande habilidade técnica, adquirida das mais variadas maneiras, sendo a do Lume apenas uma delas, ou, como disseram Annie Fratellini e Pierre Etaix, é um officio e é também um estado de espirito. “Ser clown é ver o mundo de outro jeito”, disse Ricardo, no Encontro. “E muito mais do que uma técnica.” E lembrou-se do seu encontro com Waldemar Seyssel, © palhago Arrelia, no qual ele dizia que “o clown tem que dar”, Generosidade ¢ abertura para afetar e ser afetado, para criar vida, Nunca pronto, estando em constante devir, sempre se retirando de si mesmo, tornando-se outro e nos tomando outros. ‘Uma das principais recomendagdes de Ricardo Puccetti, durante as assessorias - realizadas apés o V Encontro, em 1997 e 1998-, para construgo do clown, era a de que o clown leva as suas ages até o fim; se vocé esti fazendo algo, deve leva-lo até o limite dessa agdo. Levar as tltimas conseqliéncias, nfo buscar uma causa, ndo buscar um Principio, no retroceder - como na ironia. Mas tomar tudo literalmente, esperando pelas conseqiiéncias, pelos efeitos. Assim diz Deleuze do humor.'” Para ele, o humor é uma forma de pensar ¢ uma forma de se relacionar com a lei, Assim como a lei toma o tirano Possivel, o humor revira a lei “pelo excesso de zelo”, pelo “aprofundamento das conseqiiéncias”, tomando-a ao pé da letra. Diante de uma regra proposta, ou de um jogo Proposto, revira-se a regra levando-a as tltimas consequéncias. Nao se questiona o que € Proposto barrando, mas se trai o jogo jogando, aplicando suas regras, levando-as a0 extremo, ao absurdo, 85 Luis Otavio Bumier, op. cit, p, 206. °°6 hid. p. 209, © Gilles Deleuze, Apresentagao de Sacher-Masoch, pp. 88-98, 46 Em uma entrevista a Revista Isto E, em Madri', a respeito do seu espetaculo 12 de setembro, Leo Bassi é questionado se “sua postura no poderia ser acusada de ser pré- terrorismo? Afinal, Bush no disse que ‘quem no esta conosco esté contra nés’?” Ele responde: “Diariamente enfrento este dilema. Acredito que nés, os palhagos, somos por natureza as pessoas mais pacificas que existem, porque a cada noite soltamos nossa agressividade ludicamente diante do piblico. Porém, se alguns tém medo do que digo, podem até dizer que fago apologia do terrorismo. Mas prefiro usar outras palavras de Bush: “Nao podemos deixar o terrorismo ditar nosse maneira de viver.” Sigo esse maxima ao pé da letra, Eu era um pouco anti-EUA antes dos atentados, e continuo sendo.” Este € um dos procedimentos, dos modos de operar (de funcionar) dos clowns, nos trabalhos de assessoria realizados por Ricardo. E levando até o limite um jogo, que ele é transformado, A metamorfose ocorre pelo proprio jogo, que leva o clown a uma saida para aquela situagdo, & transformagao da ago, a0 ser extrapolado. Esse é um dos modos de se produzir uma transformagao de fluxos, de estados, que vao passando de um a outro, numa metamorfose continua, na atuagdo do clown, Esta ¢ uma maneira muito propria, singular, de Ricardo Puccetti trabalhar o palhago. ‘0 humor é uma arte dos acontecimentos puros, nos diz Deleuze. Acontecimento que se passa em um entre-tempo, em um tempo nao pulsado, aiénico, no cronolégico.'” A arte clownesca trabalha com 0 paradoxo, a “paixio do pensamento”.'"° Sea recognigao foi sempre 0 suporte da doxa, da opiniao, 0 paradoxo € seu terror. Subverte tanto 0 bom senso como o senso comum. A recognigio deixa o pensam: 0 tranquilo, “convoca as faculdades apenas para reconhecer 0 mesmo, real ou possivel, numa operagdo de redundancia.” J4 0 paradoxo faz com que se pense o Impossivel.!* “Ao afirmar ao mesmo tempo miltiplos sentidos, varias diregdes, sua coexisténcia insuperavel, 0 paradoxo sabota a recognicao e seus postulados implicitos, a identidade do sujeito que reconhece, a permanéncia do objeto reconhecido, a mensuragao e limitagao das qualidades a ele atribuidas, e reintroduz o devir-louco que a recognigao se encarregava de proscrever.""? *95 05/08/2003. 10° eser Pal Pelbart. O tempo ndo-reconciliado, p. 61 Gilles Deleuze, Légica do Sentido, apud Peter PAl Pelbart, op. cit, p. 64. oie "2 Toid., pp. 65-6. 47 Os clowns aparecem no circo, no cinema, na rua, no teatro. Podemos apontar sua ligago com os buf¥es, bobos ¢ saltimbancos, na Idade Média e encontramos também, desde tempos mais remotos, clowns desempenhando fungies sagradas em algumas sociedades. Em La Planéte des clowns, Alfred Simon diz que, nas sociedades ditas “primitivas”, os clowns pertencem ao sagrado € esto presentes nos ritos de fertilizaglo € funerétios. Conforme o relato de D.C. Talayesya, um clown sagrado da comunidade Katana, do Novo México, o trabalho de um clown permite que se fuga piadas das pessoes, que suas més condutas sejam punidas, que se diga quase tudo, permanecendo impune, Porque sua misséo é sagrada, 1? Outro clown sagrado, indio norte-americano, explicita que © clown vem dos seres trovio e, para os indios, 6 alguém sagrado, louco, muito poderoso, ridiculo, visionario. Ser clown para ele € ser como um xama."* Para nossa pesquisa interessa-nos a ligagio do clown com o xama Mestre das metamorfoses, 0 xama intensifica ¢ aproveita a metamorfose até o fim. E o transformador maximo, ao contrario do rei, que deve permanecer sempre igual a si mesmo, estatico, tigido, como diz Elias Canetti.!"° A canadense Sue Morrison trabalha, no teatro, com o clown nessa perspectiva sagrada, mas fora do contexto religioso, Richard Pochinko, seu mestre, ap6s uma formacao tradicional de clown europeu, esteve em contato com povos indigenas norte-americanos - aprendendo sobre o clown sagrado- e criou uma metodologia propria para o clown. Sue Morrison é quem continua esse trabalho no teatro, apés a morte de Pochinko. © clown, para ela, ¢ um xama. Em margo de 1999, ela esteve no Brasil, a convite do Lume, num intereambio onde trabalhou com sua metodologia para se chegar ao clown, Voltaremos a falar de seu trabalho posteriormente. Os clowns so poderosos aliados para pensarmos na produgéo de outras Possibilidades de vida e nos processos de devir. Além disso, conforme Carlos Simioni ¢ Ricardo Puccetti disseram, no V Encontro, “a fungiio do clown ¢ levar isso [esas possibilidades] para o mundo”. N° Aliied Simon, La Planére des clowns, p. 60, Bock, Pegay & Waters, AL. The sacred. Ed. Navajo Community College Press, 1977. In: Baldwin, J (98). The essential whole earth catalog. New York, Doubleday, 1986. " Elias Canetti, Massa e poder, p. 426, 48 Qutra aliada poderosa ¢ a filosofia deleuzeana da diferenga. Com Guattari, Deleuze criou, nas palavras de Luiz Orlandi, "6 ‘no apenas um novo modo de pensar, mas um modo de pensar 0 movimento do pensamento, que envolve novas maneiras de ver ¢ ouvir € novas maneiras de sentir. © que nos forga a pensar, segundo Suely Roinik, 0 mal-estar que nos invade quando forgas do ambiente em que vivemos ¢ que s4o a prépria consistincia de nossa subjetividade, formam novas combinagdes, promovendo diferengas de estado sensivel em relagdo aos estados que conheciamos @ nos quais nos situavamos. Neste momento ¢ como se estivéssemos fora de foco, © reconquistar um foco exige de nés 0 esforgo de constituir uma nova figura. E aqui que entra o trabalho do pensamento: com ele fazemos a travessia destes estados sensiveis que, embora reais, s40 invisiveis ¢ indiziveis, para o visivel e 0 dizivel. O pensamento, neste sertido, esté a servigo da vida em sua poténcia criadora. '"” Para nos abrirmos para a diferenga, precisamos nos deixar afetar pelas forgas da época. Talvez, dizem Deleuze ¢ Guattari,’* nossa tarefa mais dificil tenha se tomado acreditar neste mundo, nesta vida, ou criar, hoje, um modo de existéncia, Encontros: Estamos procurando escapar também de um pensamento segundo o qual pensar envolve recogni¢o, reconhecimento de algo pré-existente, como, por exemplo, a verdade. Bastaria, assim, encontrar um caminho capaz de levar-nos até ela. Nessa perspectiva, a entrevista assimilaria-se a um interrogatorio que, se bem encaminhado, conduziria aos segredos, as verdades do entrevistado. Verdade a ser desvelada pelo pesquisador, procurando ver 0 que esta detrés, ou embaixo do que o entrevistado diz. O entrevistado € suspeito e o entrevistador deve procurar a verdade, separando-a do que o entrevistado diz por pensar que € 0 que 0 entrevistador quer ouvir, ou, ainda, porque 6 0 que o entrevistado quer que o entrevistador pense que ele pensa, Talvez, se 0 pesquisador cavoucar muito, como um cachorro persistente, buscando reencontrar 0 osso outrora enterrado, deparar-se-ia com a verdade. Contrariamente a isso, procuramos viver as entrevistas que fizemos como encontros ~inspirados em Deleuze ¢ Pamet.'!” Em tais encontros, buscamos apreender, na abertura 6 Laie B. L, Orlandi, na apresentagio ao Bergsonismo. S.P., Ed. 34, 1999. ™ Suely Rolnik, Despedir-se do absoluto. Cadernos de subjetividade, p. 245. "8 Deleuze &Guattari, O que é a flosofia?, p. 99. 49 recfproca produzida ali - aprendida com os palhagos ¢ os xamas-, nessa dupla-capture, algo que se passou entre nds. Uma das condigdes para que isso ocorra é a confianca, Michel Serres, em Os cinco sentidos'*, nos fala da hipocrisia do método das cigncias humanas, multiplicando as piores priticas, buscando 0 que esta “por detrés” do objeto ou da relacdo, ou “por debaixo”. Agindo assim, “frauda os fraudadores, engana os enganadores, (...) estuda os fracos ¢ os miserdveis, explora-os, tomando-thes a informago, ‘seus Pequenos segredos, seus tltimos bens.” Sempre desconfiando do que esta por tras, ou debaixo, Serres pergunta: “Cansados desses jogos enganadores, dessas trapacas, sonhando que nossa vida breve escape a esse tempo monétono de sangue e de morte, esperamos voltar a uma instincia de confianga que no engana nem trapaceia, para uma teoria do conhecimento que reiina as ciéncias exatas e as ciéncias humanas, Novo saber, nova epistemologia, homem novo, educagio nova, s6 escaparemos morte coletiva nesta condigao,"™ Além de observarmos o V Encontro, algumas assessorias, ocorridas em 1996 ¢ em 1997, para a continuidade do trabalho com clowns iniciados pelo Lume e algumas assessorias realizadas com grupo de jovens atores, consti io em 2001, realizamos varios encontros com palhagos, Entrevistamos Ricardo Puccetti, em abril de 1999, a respeito de trabalho com Sue Morrison, realizado no Lume, naquele ano Havia planejado também entrevistar alguns clowns, privilegiando os que foram “iniciados” pelo Lume, além de entrevistar novamente Ricardo Puccetti, que se tornou © responsével pelo trabalho com clown do Lume e também Carlos Simioni, que coordenara Junto com Ricardo 0 encontro que participel. Naomi Silman também trax algumas experiéncias interessantes trabalhando o clown, tendo estudado, como j afirmamos, na escola de Jacques Lecog, em Paris e com Philippe Gaulier, em Londres; posteriormente com Sue Morrison, que depois veio ao Brasil convidada pelo Lume, para seu workshop: O clown através da méscara -processo que surgira nas entrevistas enquanto uma experiéncia para alguns dos entrevistados. °° Deleuze e Parmet, Didlogos. * O livro de Michel Serres 6 um exemplo de positividadee criaeio, Os cinco sentidos, em Hermes ¢ 0 pavdo. pp 337. 2 bid. p38 "= Bi. pp. 45-6. 50 Se © contato com certos autores da bibliografia pesquisada foi riquissimo ¢ 9, a realizacdo dessas entrevistas foi fundamental. Procurei, aprendendo com o clown, estar o mais aberta possivel, vivendo-as como encontros. E isso importante para o trabalho niio é “tedrico”, no sentido como se costuma entender essa palavra. Nosso trabalho procura localizar-se em uma outra “politica do exercicio do pensamento”, diferente da que separa teoria e pritica. Aprendendo por contagio, ou seja, aprender a dangar, no seguindo os manuais de danga, mas sendo levado na onda que os corpos fazem, nos arrastando para a ciranda. Ou, com um pouco mais de preciso: tecnicamente falando, diferente do conhecimento arborizante, hierarquico, 0 conhecimento por contégio implica entrosamento entre um devir conjugado das relagSes constitutivas de um corpo e das relagdes constitutivas de outros corpos. Por isso, conhecer por contigio é “o devir outro na vizinhanga de outrem”"* © processo social de contagio ¢ também o modo como as agdes coletivas ocorrem em sociedades sem chefia. ”° A transcrigo de nossos encontros com os palhagos nfo poderd ser anexada a esta tese, uma vez que no se trata de uma entrevista rapida, com perguntas e respostas, como por exemplo, as entrevistas jornalisticas. Trata-se de depoimentos, cuja média de duragdo em torno de uma hora e trinta minutos, alguns deles bem mais, outros um pouco menos. 7° Nao sabia inicialmente 0 que iria acontecer. Fui com duas questdes gerais: “por que voe8 quis ser clown?” e “o que o clown te trouxe?” Questées para serem feitas se houvesse necessidade. Mas, quando entrevistei o palhago Charles -Alessandro Azevedo, apresentador do Sarau do Charles, no Galp&o Raso da Catarina, em Sdo Paulo-, por exemplo, a questo Jj foi diretamente como construiu seu clown, pois ele tem uma marca muito forte da improvisagdo e do clown construido na rua. E 0 que aconteceu, quanto ao que foi sendo enunciado em cada encontro: pessoas apresentando preciosidades, linhas de sua singularidade, informagies técnicas, confissbes _subjetivas, discursos _filosoficos, ‘= Quanto & pesquisa biblogrifica a respeito de clown, conseguimos criar um acervo considerivel, levando em conta a pequena produgdo de registro escrito sobre 0 tema. Devido & impossibilidade de acesso no Brasil realizei uma pesquisa bibliogréfica em Genebra, Carouge ¢ Lausanne -na Université de Geneve. no Institut d'Etudes Sociales de Geneve, na Bibliothéque Municipale de Carouge ¢ em varios bouguinistes, nas tes cidades- em fevereiro de 2002, conseguindo xerocopiar ou comprar varios livros e uma dissertacdo. Além dos livros importados diretamente da Franca, "21 uiz Orlandi, Comunicacdo pessoal, novemibro de 2002. °° Carlos Fausto, Inimigos fits: historia, guerra e xamanismo na Amazonia. p. 275. © Bsa riqueza produzida em tais encontros possivelmente se tornari paiblica de mado independente desta tse. 51 declaragdes de amor ao clown e a vida... Até sugeriram outros clowns para serem entrevistados -o que procurei fazer. Alguns se auto-entrevistaram; com uns eu interferi nas colocagdes, apontei questées a partir do que afirmavam; com outros, apenas ouvi; outros me levaram para lugares impensados, uma —que jé acompanhava meu trabalho, teve incriveis insights durante a conversa... E eu sempre sem saber exatamente o que tinha acontes lo, até que a entrevista estivesse transcrita Através das entrevistas, fui entrando em contato com 0 efeito Leo Bassi - algo fulminante que passou por minha vida e pela de qualquer um que tenha assistido ao seu trabalho. As pessoas estavam profundamente impressionadas por ele e sua originalidade.'”” Nos dias de hoje, Leo Bassi é um dos grandes clowns mundialmente reconhecidos, eriador de um trabalho profundamente original, forte, assustador, em alguns casos; extremamente politico, Talvez, o inesperado de Leo Bassi seja que, com ele, sentimos medo; trabalha muito 0 suspense, a tens8o, Tem um dominio fantastico sobre o piblico. Contrariamente a0 palhago mais tradicional, que se vestia de pobre, com as roupas esquisitas e os sapatos grandes, 0 seu palhaco veste-se de executivo: terno preto, dculos e pasta preta. Incrivel Sendo assim, fui até ele, quando esteve em Belo Horizonte, apresentando seu novo espeticulo 12 de setembro, em agosto de 2002. Assisti ao espetaculo, aula aberta e 0 entrevistei Entrevistei’™* todos os jovens integrantes de um grupo que faz assessoria de clown com Ricardo, organizado por Erika Lenk, que realizou uma pesquisa de IniciagSo Cientifica a respeito de clowns, cujo trabalho envolve uma parte pratica, que é assessorada por Ricardo: Erika Lenk (23/04), Joana Toledo Piza (15/05), Marilia Gomes Henrique (28/05), Marilia Ennes (29/05), Hugo Cacilhas (07/05), Claudia Funchal Valente de Souza (24/05), ITvens Cacilhas (23/04), Todos os atores do Lume foram entrevistados”: Ricardo Puccetti (21/05, 02/09, 01/10), Carlos Simioni (02/05), Naomi Silman (29/04, 06/05, 14/05, 17/03), Renato Ferracini (19/06), Ana Cristina Colla (11/06), Raquel Scotti Hirson (04/06,11/06), Jesser de Souza (09/05). * Eu conbecia um artigo seu, publicado em Clowns & Farceurs, livzo rico em informagées, publicado ema. 1982, em Paris, composto por uma reunio de pequenos artigos, entrevistas etc, Nele, Leo Bassi defendia a aprendizagem de clown que se faz na rua ¢ criticava a aprendizagem em escolas. Inclusive, retomamos essa sua colocagdo quando ao entrevisté-lo. ' Conforme detalhado no final do trabalho, nas Referéncias, ' Entrevistas realizadas no ano de 2002, assim como as mencionadas no parégrafo anterior, 52 Realizei também as seguintes entrevistas: Barbara Firla, 24/02/2002, atriz de Genebra, Adelvane Néia, a Margarida, 18/04/2002; Pérola Ribeiro, Aristo © Dorotéia, 26/04/2002; Ana Elvira Wuo, a Dona Caixinha, 20/05/2002; Andrea Macera, a Mafalda, 21/05/2002; Cintia Vieira da Silva, 23/05/2002; Silvia Leblon, Spirulina e Spathodea, 28/05/2002; Gabriela Diamant, 22/10/2002; Elen Perez, 14/06/2002; Lily Curcio e Abel Saavedra — Seres de Luz Teatro, 13/05/2002; Pepe Nufiez, 15/12/2002; Alessandro Azevedo, 0 Charles,17/12/2002; Leo Bassi, 04/08/2002; Marcio Libar, Regina Oliveira Jo&o Carlos Artigos — do Teatro de Anénimo, 19/12/2002 e 20/12/2002 e novamente Jo&o, em 02/2003; Esio Magalhies, o Zabobrim, 13/05/2003; Sérgio Machado, da Companhia do Piblico, 13/04/2003; Joi Miguel, da pega Bispo, 20/07/2003, Juliana Jardim, da pega Madrugada, Luis Carlos Nem, do Espago Semente, 21/05/2003; Luiz Carlos Vasconcelos, © Xuxu, 25/08/2003; Sérgio Bustamante Filho, © Bicudo, 05/09/2003; Hugo Possolo, dos Parlapatées, Patifes e Paspalhoes, 28/10/2003, 53 Uma atitude de escuta do mundo com 0 corpo todo No precisa fechar 0 portéo, eu nao posso te fazer mal nenkum. Gispo)'" O rriso implica intensidade. A intensidade nos toma e nos faz sentir de outro modo. Aliamo-nos aos clowns enquanto uma politica especifica de relagio com a alteridade, que pressupde, necessariamente, uma abertura para 0 outro. Politica que se faz vitalmente. Os clowns, como dissemos, produzem modos de existéncia outros, vivem as coisas de miltiplas maneiras e criam novos mundos. A abertura para deixar-nos capturar pela imprevisibilidade da vida ¢ fundamental na arte do palhaco. Nao s6 deixar-nos atravessar pelos imprevistos, mas também, produzi-los, operar na imprevisibilidade: arriscar-se. Os varios palhagos operam, na contemporaneidade, cada qual a seu modo, com 0 riseo. Ricardo Puccetti afirmou, em um de nossos encontros que, para o palhago, quanto mais aberto-e disposto a arriscar se estiver, mais funciona. Uma “das coisas que diferencia muito o clown do ator - do ator no sentido mais tradicional, nlio da maneira como a gente trabalha aqui no Lume-, & esse risco que tem.” Ele trabalha 0 palhago incorporando esse Tisco, a relagdo intensa com o piblico e usando isso para o trabalho. Esse risco, segundo ele, esté presente no trabalho de todo clown. “De maneiras diferentes, mas esté. Tem sempre esse risco que ¢ 0 que dé essa caracteristica do momento real, ali, presente, naquela. hora. Para o clown, 0 que o diferencia também do ator, é que o clown faz naquele momento, naquela hora.” Em um espetéculo de clown 0 espaco importa muito. “Se a cortina é azul, se € preta, se tem uma escada, € aquele momento, é aquele espago, naquela hora. Tudo isso € risco.” Além disso, tem o risco inerente ao experimental. No clown “é sempre muito empirico, mesmo com as coisas que funcionam, Pode ser que naquele dia nao funcione, porque o piblico ¢ outro, ou pode ser que vooé tenha perdido o tempo... Voce alongou um pouco o tempo, ou voeé fez muito répido, ou vocé pulou um detalhe.... Tudo 18° Espeticulo Bispo -do ator Joo Miguel, entrevistado por nés, inspirado em Arthur Bispo do Roséto, Esteve em cartaz em So Paulo, no SESC Belenzinho, em 2003. Nao é um espeticulo de clown, 34 pode acontecer. Ou algum acidente, ou alguma reagio diferente de alguém do piblico. Tem sempre esse risco.” Cada um vai buscar 0 seu risco, enquanto palhago, diz Ricardo. “O meu, eu sinto que cada vez mais se acentua nisso de eu me sentir um conglomerado de impulsos ¢, mesmo que eu tenha a minha estrutura de espeticulo, de niimero, isso no é nada: posso largar tudo isso na hora ¢ fazer outra coisa se for levado para isso. Meu risco é esse. Um deles, talvez.” Posteriormente, Ricardo explicitou ainda mais esse raciocinio: “O clown nfo tem uma forma fixa e definida, ele ¢ um conjunto de impulsos vivos e pulsantes, prontos a se transformarem em ago no espago e no tempo." Eis aqui se configurando uma definig2o de um novo corpo e de sua poténcia: conglomerado de impulsos, que atuam em um fluxo de metamorfose, como veremos no capitulo A iniciagao, Ricardo diz que um projeto seu, no trabalho com palhago, avangando nesse risco, é fazer um espetdculo quase sem estrutura, como se fosse um a cada vez. Quando nos referimos 4 abertura para outros mundos, estamos pensando em outras légicas, outras possibilidades de vida, modos de agir, pensar, sentir. O clown opera com a produgao de tais modos. Um dos campos explorades pelos clowns é esse: a produgio de ligicas préprias. ‘Nessas linhas abertas por tais processos, destacamos inicialmente trés elementos, que surgem emaranhados, dai nossa dificuldade em falar isoladamente de cada um: transformar 0 medo do outro em abertura para o outro - a necessidade da relagdo com 0 piiblico, sem @ qual o palhago néo existe; transformar 0 medo de errar, de perder, de fracassar, a fragilidade, a sombra, tomando-os em sua positividade e construindo a partir deles; modos de sentir, pensar, agir que comportam o que se convencionou chamar de “loucura”, ou 0 “instintivo”, o “descontrole”, em suma, o intensive. Sempre em proporgdes variaveis, maiores ou menores, ¢ de modos diversos, para cada palhago. Nao precisa fechar o portdo, eu néo posso te fazer mal nenhum.'* Tais palavras de ibilidades, para 0 outro, Também a transposigao de um umbral, cuja passagem no precisa ser fechada. Bispo do Rosario so emblemiticas, expressando uma abertura para outras pos += Ricardo Puccetti, comunicagSo pessoal, janeiro de 2004, *? Segundo Joao Miguel, essas palavras foram ditas por ‘Bispo do Rosario 4 Rosangela. a estagiaria da colénia ‘onde estava internado, por quem se apaixonara, passando a fazer parte de suas obras para ela. Certa vez, ele ‘Permitiu que ela entrasse no tinico espago que interditara a ela: uma sala na qual estava a cama-trono, que ele 35 ‘Uma légica que envoive outros modos de sentir: Leo Bassi diz que o palhago busca o jogo, a brincadeira, Estando em cena, quer Jogar sem parar, e ndo apenas fisicamente, “mas também filosoficamente, conceitualmente Buscar um jogo maior, cada vez maior, ter 0 piiblico comigo.”" Quer esgargar, ampliar o campo do jogo, do divertimento, Leo Bassi defendeu a postura de fazer o palhago 24 horas por dia e de se criar uma sociedade humana baseada esse intento. A racionalidade esté nos levando para um mundo sem mistério. Por outro lado eu amo a racionalidade e nao quero viver sem ela. Mas como fazer com ue a racionalidade no nos tire 0 gosto de viver? A solugdo ¢ 0 jogo, a brincadeira Podemos jogar racionalmente ¢ perder sentido inclusive da racionalidade, quando vamos até os limites da loucura, 0 jogo como loucura... Entdo eu sincerament Penso que falta neste momento no mundo uma nova filosofia, uma nova religido {que junte racionalidade com jogo. ™* Segundo ele, 2 nossa sociedade esta mudando, Atualmente um jogador de futebol pode ser mais importante do que um politico ou do que o papa. Isso devido & importancia atribuida ao jogo. Os palhagos sio o cume desse processo, dedicando sua vida a buscar racionalmente 0 irracional.'** Segundo Leo Bassi, o palhaco, ao comtrario do jogador de futebol, pode inventar as regras do jogo, o que the permite grande liberdade. “Entdo eu sei que estou indo além da idéia de divertimento, estou num plano filoséfico pela necessidade de encontrar um sistema que ordene tudo isto e que permita a outras pessoas entender essas finalidades.”"° Andréa Macera afirmou que, no momento em que coloca o nariz do palhaco, encontra um lugar no mundo € um porqué. Coloca-se “isso a servigo de alguma coisa, 20 invés de enlouquecer. Porque o clown é a tua loucura, Uma loucura que esté dentro de um universo, que pode ser controlada, trabalhada e controlada.” Sem pensar em terapia e sem Psicologismo, diz ela, mas o artista ¢ um louco que se salvou, que colocou a sua loucura em algum lugar. A servigo de algo ¢ para o outro. Porque ver um bom clown é uma cura, diz ela. “Poder fazer também 0 €.” construire, toda enfsitada de tule, para que eles representassem Romeu ¢ Julieta. Quando cla entrou, cle fechou a porta e ela, pela primeira vez, sent certo medo. Bispo, entéo, disse aquelas palavras | Leo Bass, entrevistado pela revista Anjas do Picadeiro, x3. p. 34 | Tbid. p. 35. Grifo nosso) 2s ba 6 ia Lembramo-nos aqui de roteiro de J clowns, de Fellini, no qual 0 clown Bario diz que ser Augusto faz bem para a saide.'"” A abertura para a alteridade, para o imprevisto: © medo do contato foi tematizado por Elias Canetti em Massa e poder, podendo também ser percebido, de modo crescente, em um simples passeio pelos bairros residenciais de nossa cidade. Em Building Paranoia (Construindo a parandia)'**, Flusty descreve as mil maneiras de repelir os indesejaveis, criando “espagos proibitivos”. Entre os tipos descritos, ha os “espagos escorregadios”, que nao podem ser alcangados, por falta de ‘um caminho de acesso; 0 “espago espinhoso”, que nao pode ser confortavelmente ocupado, © “espago mervoso”, que ndo pode ser usado sem se estar submetido 2 uma vigilancia constante, humana ou eletrGnica. Tais espagos asseguram a exterritorialidade das novas elites globais. Uma das teses de Bauman" a respeito da globalizagao é a de que, enquanto 05 pobres so fixados a um territorio, as elites circulam livremente. Esse “no pertencer ao lugar” é assegurado por dispositivos que impedem 0 acesso dos pobres, ou excluidos, a espagos globalizados, sem tragos locais, como shoppings, aeroportos, sedes de empresas multinacionais, ete. Contrariamente a esse medo, que leva a subir muralhas -convocando os materiais mais pesados, como 0 conereto, ¢ os mais leves, como as barreiras eletrificadas, as digitais, numa sofisticagdo que toma ingénuos os fossos com crocodilos e as pontes dos castelos medievais-, cada vez maiores para afastar outro, 0 palhago trabalha com a abertura © pathago tem um modo de operar, de funcionar que necessariamente inclui o outro. Ele precisa do outro para atuar, precisa da cumplicidade do outro, do olhar do outro, atua em relagdo com o piblico. Existem imimeras maneiras de se fazer isso '" Rederico Fellini, Fellini por Fellini, p. 109, ‘Tomando ao pé da letra essa afirmagdo, podemos verificar, com Georges Minois, que “jé no século Il, Galiano observava que as mulheres alcgres saravam mais répido que as tristes. Hoje, 0s centros de terapia pelo riso multiplicam-se por todos os continentes. O riso libera catecolaminas, neurotransmissores que pem (© organismo em estado de alerta e aumentam a produclo de endorfinas, as quais diminnem a dor ¢ a ansiedade, O riso levanta o diafragma, acelera a circulago sanguinea, favorece a condugdo do oxigénio; ele {acilita a ereqdo e reduz a ins6nia.” Georges Minois Historia do riso e do escérnio, p. 616. "8 Conforme sugestio de Christian Pierre Kasper: Artigo de Steve Flusty. In: Architecture of Fear (Arquitetura do Medo). Nan Elin (org,) Princeton Architectural Press, 1997. ™ Conforme sugestéo de Christian Pierre Kasper: Zygmunt Bauman, Globalization. Polity Press, 1998 37 Ricardo ressaltou que, em seu trabalho, ele procura atuar o tempo todo tendo o publico jumto, de mao dadas com ele, Mesmo que algo que ele faca posse causar estranheza ou espanto ~ porque as vezes o devir-orianga de Teotdnio, seu palhago, aproxima-se da Joucura. Mas, mesmo assim, o piblico vem junto, diz ele, porque ele tem sempre muito forte “essa preocupagéo de estar fazendo para quem esté ali, fazendo junto. Eu sinto que a gente faz junto, eu dependo muito do piiblico, E eu gosto disso. Eu nfo vou lie fago 0 que eu vou fazer sozinho.” Diz preferir correr o risco de ocorrerem graves dificuldades nessa relagdo, “do que fazer como se nao tivesse piblico”, Prefere fazer para aquele piblico. As vezes, eu faco errado, diz ele. J aconteceu dele perder o tempo, por exemplo. “Mas, no geral, eu tenho aprendido a lidar com essa situagao Tenho aprendido, porque eu sei que eu sei, mas eu no sei tudo. Tem que estar sempre aprendendo no dia também, de uma certa maneira.” O trabalho com 0 palhago, como estamos vendo, no comporta a prepoténcia, a arrogancia de se pensar que ja se aprendeu tudo, O palhago, de fato, nunca esti confortavel, seguro de que tudo vai dar certo. Nessa perspectiva, ele sempre vai aprender mesmo. O aprender do palhago nio passa pelo momento em que se fecha algo definitivamente, em que algo se conclui, A abertura ¢ perpétua, Mesmo que o artista que desenvolve esse trabalho passe por momentos conclusivos, Procura eriar um caos, que consiste em nfo ter barreiras no contato com o piblico, no sentido de tocar, de ir no meio, de sentar, de ir fazendo com ele junto 0 tempo todo Provoca 0 caos, porque além de transformar os objetos, as logicas das coisas e do mundo, segundo Ricardo, “desorganiza até a pessoa que veio, que nio sabia, que veio para sentar lé e assistir.” Existem grandes riscos quando se atua escutando 0 piblico, acolhendo-o. Pois é necessirio aprender a se relacionar com os variados piiblicos, nos diversos locais. Isso se aprende fazendo. Lembramo-nos aqui do enorme fracasso que foi a primeira apresentagdo de Grock © Antonet nos palcos do music-hall. Eles se desesperaram, terminado o espetdculo, porque nada do que causava riso no circo provocava qualquer reago neste Outro publico. Nas apresentagdes seguintes, Grock foi experimentando mudangas, até que conseguiu adequar o numero as exigéncias daquele espaco e daquele piblico -conforme narrado no capitulo Como se faz um clown. Ricardo Puccetti nos contou de uma apresentagto do espetaculo La Scarpetta que fez em um assentamento do Movimento dos Sem Terra (MST). O piiblico compunha-se, em 58 sua imensa maioria, de criangas. Elas ficaram em tal excitagdo, diz Ricardo, que seu espago de atuagdo limitou-se a um metro e meio, As criangas vo se aproximando, querendo ficar perto. O modo de Ricardo lidar com essa situaglo foi “quase que esquecer do espetdculo” no modo como € estruturado e abrir um espago bastante grande para inventar ali, naquele lugar, com aquelas criangas, por exemplo, andar a cavalo, “porque tinha um cavalo parado 1a, Eu andei a cavalo, subi na cerca, enrosquei na cerca e tal. Eu fiz a coisa mais para eles ali, usando elementos do cotidiano e da vida deles, dai funciona muito mais do que se eu tento fazer os nameros, porque eles esto numa excitagio tio grande que eles nfo esto nem conseguindo acompanhar, se vocé quer fazer uma coisa que tem comego, meio e fim. Vocé tem que entrar um pouco na deles € dai vocé consegue fazer com que eles joguem junto com o palhago.” Ele fala de criangas que entraram totalmente no jogo proposto pelo palhago. O que nem sempre acontece. De qualquer forma, a presenga maciga de criangas no piblico ¢ sempre um fator de risco. O palhago atua no fio da navalha quando improvisa. Busca 0 risco, 0 inesperado, 0 fora de controle, para transformar isso em espetéculo, em criagdo. ‘Nas experiéncias com esses piblicos diferentes, existe todo um esforco do artista para encontrar uma porta para aquele piblico. Nao estamos falando que o artista faré apenas o que o piblico quer, mas em encontrar um canal para sintonizar-se com aquele piblico, mesmo que seja para provocar-the medo, como faz Leo Bassi. Para o trabalho com © clown, essa porta ¢ fundamental. Para o teatro é possivel ~mas no desejavel, ao menos por nés- vooé fazer 0 seu trabalho, o piblico assistir ou no assistir. Ricardo Puccetti enfatiza seu ponto de vista’ de que, no trabalho do palhaco, do clown, “tudo é feito para aquele momento, para aquele piiblico, para aquele espaco, naquela situago. Muita gente trabalha assim também.” Juliana Jardim, em nosso encontro, referindo-se & improvisagdo, nos disse que com © palhago “vocé aprende a dividir, porque o palhago divide tudo. O fato de lidar sempre em dupla com os objetos, em dupla com a platéia, em dupla com ele mesmo, com partes do corpo dele, porque ele pode comegar a conversar com a mao, Ele tem essa légica, entdo existe sempre essa relago da dupla. Mesmo com a platéia também, a hora que ele “= Uma constante nas virias entrevistas que realizamos com Ricardo Pucceti foi o seu cuidado em sempre ressaltar que 0 que dizia era a sua maneira de vero trabalho, era o que ele acreditava no modo de trabalhar. 59 triangula, ele esta aqui lidando com esse azeite'*', nao precisa nem ter outro palhago, nao Precisa ser um Augusto ¢ um Branco, pode ser ele sozinho, esté lidando, na hora que ele Conta para vocé o que aconteceu aqui, ele esta dividindo. Ent&o a gente aprende a no ser sozinho, porque 0 mundo esté muito do jeito que esté porque a gente pensa que é sozinho > Foi como o palhago a pegou. “Como ele te ensina a dividir, ele trabalha com a solidao, mas ele te ensina que vocé tem 0 outro € se vor no inclui o outro, vooé nao é um palhago.”” Falando a respeito do papel do coordenador, que atua no processo de iniciagto, ela diz que ele esté junto também, com o palhago, ha um envolvimento quase que de um muito bom terapeuta, muito empético, porque é uma coisa de empatia. Quando se coordena ela trabalha coordenando ha algum tempo, trabalhos com buffio e com palhaco-, “voce no sabe © que que o outro vai te mostrar, voeé preparou um dia de trabalho, um workshop, uma Oficina, um retiro, o que for, o outro vem com aquilo que vem naquele dia, voce no sabe Ou vooé esta muito nele, com ele, enfaticamente, ou vooé no vai construir uma relego transformadora para ninguém, nem para vocé e nem para ninguém que esté ali trabalhando. ‘Vocé ¢ sempre um improvisador também, no bom sentido do improvisador, que tem suas técnicas, tem tudo e que tem treinamento para estar naquele lugar, mas que esta aberto.” O clown exige essa entrega, diz Juliana, “é um estado muito fino, sutil, esse estado de estar em cena jogando, conectado com vocé, com 0 outro, com a platéia, isso para mim Passou a ser também, acho que pelo palhago, uma exigéncia como atriz e como mulher de teatro.” Fala da importancia do espetéculo de teatro incluir 0 espectador. “Incluir no no sentido de participar, de ter intervengio, mas de poder olhar no olho da platéia. O palhago também ensina isso de que o piblico ¢ fundamental mesmo. Nao é teoria, porque todo mundo fala isso em teatro, mas em geral ¢ teoria. A maioria dos espetdculos faz a coisa sem 8 platéia, sem acolher a platéia, isso € muito mais uma atitude, do que necessariamente clhar, necessariamente relacionar-se diretamente com a platéia. Nao precisa necessariamente olhar, fazer uma cena interativa. Nao é isso. E ter uma atitude fisica, uma atitude de inclusio. E uma atitude de escuta com o corpo todo, uma coisa treinada fisicamente. O Iutador de artes marciais, por exemplo, © bom lutador ele tem uma escuta com © corpo inteiro, porque no momento que alguém vem dar um golpe ele tem que ter uma precisio de olhar, de respiragio, de gesto, tudo, para responder aquilo. O ator também '*'Trata-se, obviamente, do azcite que estava sobre 2 mesa de refeigdo na qual conversivamos. 60 precisa dessa escuta, sé que nfo é a escuta marcial, ¢ escuta do mundo, é essa visio trezentos e sessenta graus, que tem que ser treinada pelos grupos, pelos atores quase que cotidianamente.” Sublinhemos que ndo se trata apenas de saber como produzir ume abertura, mas também de saber 0 que fazer com ela, ou nela. Um grande desafio para o pathaco é esse. ‘a0 mesmo tempo, abrir-se ao imprevisto, arriscar-se, mas tendo recursos para lidar com 0 que vird, com 0 que acontecerd nessa abertura criada, sem se perder, sem se dissolver, sem desmontar o agenciamento que dé sua consisténcia. Ao tratarmos de algumas trajetorias, como a do palhago Xuxu e do Charles, essa questo ¢ recolocada claramente. Isso nada tem @ ver com a espontaneidade. Mas com um trabalho arduo de experimentago, de preparaco para tais encontros. O jogo, a brincadeira do clown, do palhago, ndo se refere ao universo da espontaneidade, como pode-se pensar num primeiro momento, Da espontaneidade ele guarda 0 fescor, mas é um jogo, que, se bem jogado, arrastara o palhago em sua logica, em seu fluxo. E preciso preparo para criar tal jogo e ser jogado por ele ‘Nani Colombaioni -da tradicional familia circense italiana, que atuou em / Clowns, de Fellini-, dizia da importancia desse primeiro momento da entrada, da primeira entrada Quando atuava no teatro ou no circo, ele tomava a primeira entrada meio livre, ou muito simples, sem fazer quase nada. Assim, durante uns dois, trés minutos, ficava ali apenas colhando © piblico. Ele mapeava o piblico. Ricardo Puccetti afirmou ter aprendido isso com ele: mapear o piblico quando entra em cena, perceber, por exemplo, que de um lado da platéia tem alguém que ri muito forte, do outro lado ninguém ri; que na frente tem um que 44 fala qualquer coisa para voc8, Nesse momento, o palhago “se dé o tempo de entender, de perceber ¢ de sentir que piblico € esse.” Depois disso comegaré a fazer. Se “entra sem ter essa percepgdo, corre o risco de ndo criar essa conexdo de cara, podendo ficar mais dificil para ir criando durante o espeticulo.” Ricardo faz um paralelo entre pescar e ser um palhago. Segundo ele, palhago néo pesca com rede. Desde 0 momento em que ele entra, no picadeiro, no circo, na rua, no cespago em que ele estiver atuando, ele no trata o puiblico como uma massa, Ele trabalha a relag&io que ele vai construindo com as coisas que vao acontecendo, como se “fisgasse com uma vara de pesca” cada pessoa do piblico. E um a um. Comentando acerca de uma improvisagZo que fez em uma sala, num Congresso de Leitura: “quando 0 palhago entra, 61 olha no primeiro que ele “bater o olho’. Ali ele comega a construir uma relagdo. E 0 tiso, Que ¢ fisico, que se propaga em ondas, é uma coisa fisica. © corpo ri. Um riu ali, dai outro 1, dai outro... Vai se espalhando. Se o palhago tenta construir a relago dele tratando sua audiéncia como massa, ele tem muita dificuldade, porque so pequenos jogos, pequenas relagdes que se criam. O trabalho do palhago é um conjunto de pequenas relagdes que, no final das contas, resulta em algo maior.” © que © Lume chama de estado de clown, envolve essa abertura, essa disponibilidade para o que acontece naquele momento, essa presenga, envolvendo, como vimos, uma légica propria, de pensamento e de reagio a esses acontecimentos Falar em légica propria ndo significa dizer que 0 clown seja aquele que é contra todas as regras o tempo todo, o grande subversivo, totalmente fora dos padrées. Ele nio é necessariamente contra, mas ele é diferente -a diferenga pode incluir a oposig&o, mas vai além dela, Ele pode tentar seguir as regras, as normas, mas fara de um jeito proprio, descumprindo-as. Ele pode subverter as ordens tentando cumpri-las, levando-as as iiltimas conseqiiéncias, conforme jé mencionamos. O risivel muitas vezes surge desse embate. Criando com 0 erro, 0 fracasso, a vulnerabilidade: O palhago trabalha com aquilo que nos causa medo. E onde ele constréi. Porque o palhago €, entre outras coisas, a exposicdo de nossas fragilidades, de nosso ridiculo, de nossa vulnerabilidade. O palhago esta la onde esta o perdedor, a sombra como diz Fellini S6 que ele transforma isso, Temos medo de perder, de fracassar, de mostrar a nossa fragilidade, de que as coisas escapem ao nosso controle, déem errado. Tememos parecer idiotas perante os outros, ser objeto do riso alheio. Tememos parecer pouco inteligentes, pouco hébeis. Todas as coisas que morremos de medo de que os outros pensem a respeito de nds constituem o lugar onde © palhago constréi, Porque, para ser palhaco € preciso aprender a rir de si mesmo. Carlos Simioni diz que ser clown fez com que perdesse 0 medo do ridiculo, “E um peso que sai do coragdo do ser humano, Para a vida nao tem coisa melhor.” Tortell Poltrona -o palhago espanhol criador dos Palhagos sem Fronteiras, ‘organizagdo que vai fazer trabalhos em zonas de guerra, zonas de conflto, principaimente com criangas-, diz em seu espetéculo mais ou menos o seguinte: “Eu tenho muitos amigos 62 que a vida toda se prepararam para fazer as coisas direito, estudaram para ser médicos, estudaram para ser engenheiro, professor. E eu me preparei a vida toda para ser 0 bobo, para fazer as coisas errado.”!? No seu modo de trabalhar com 0 erro, o palhago transforma a logica existente. Ha uma positividade no erro. O erro ndo atrapalha ou destréi, mas cria. Uma coisa que nfo d& certo, pode ser também a oportunidade do surgimento de outra -talvez até entdo impensada- , de transformar as coisas. Com isso, afirmamos que o fazer pode ultrapassar ~e ultrapassa, de fato- 0 pensado, o planejado, o projetado. O pintor inglés Francis Bacon, por exemplo, dizia que uma tela branca nunca esta vazia, pois vem cheia de clichés. Bacon inventava estratégia para fugir deles. Uma dessas estratégias envolvia projegdes aleatérias de tinta sobre a tela -em varios momentos da pintura-, buscando com isso acolher o inesperado, 0 caso, Perder 0 medo de parecer ridiculo, é uma grande exigéncia, mas possibilite, em troca, uma enorme liberdade a quem consegue. Conforme Naomi Silman, “voce vé que todas as suas falhas podem se transformar em coisas boas, que as pessoas vao rir disso.” Isso traz muita leveza a vida Para o palhago, 0 erro é uma dadiva, nos disse Pérola Ribeiro -que procura falar positivamente do erro em seu trabalho com os Professores da Alegria, Se ele esté fazendo uma apresentacéo ¢, de repente, esbarra em um biombo © derruba © cenario ~o que destruiria uma pega de teatro-, isso seria maravilhoso para 0 palhago, fonte infinita de risos da platéia e material inesperado para ele explorar em cena. © palhago & amoral, inocente. Nao tem uma posigéo social para defender. Esta ligado ao anarquico, ao pequeno, ao minoritario, ao que escapa e foge em uma sociedade. Por isso, tudo 0 que queremos esconder ele pode mostrar. Nisso esté sua liberdade, sua forga e seu poder Podemos pensar a respeito do devir-minoritério, com Jesser de Souza, ator do Lume. Em nosso encontro, ele nos remeteu aos paradoxos da pequenez, Por ser baixinho, pequenininho (um metro € cinquenta € dois centimetros), desenvolveu uma personalidade dura, diz ele. Para parecer forte. Se o pequeno parece fragil, por outro lado, tem uma arma que é a agilidade. Alguém pequeno passa sem ser percebido, pode escapar facilmente. Por “ Essas palavras me veem de meméria, Nao disponho do texto do espeticulo, ao qual assisti em 1998, Ricardo Puccetti me ajudou a reconstituir. 63 Outro lado, pode ser pisado, sem que o autor de tal faganha sequer perceba, Personagens de Franz Kafka recorriam ao devir-pequeno, ao devir-animal, a0 devir-imperceptivel. Pensando nos clowns e também em personagem das pecas Contadores de Estorias, Café com Queijo, Um dia, conversamos a respeito da alianca com os seres que passam sem ser notados, como 0 tatu-bola, pequeno, quase invisivel, Jesser afirmou sentir-se bem nesse lugar, lidando com esse universo, de figuras “que so excluidas, que sio pequenininhas e que ndo sto vistas, que as vezes sBo pisadas, até sem se perceber. Um desse tatuzinho-bola, desse que se enrola todo. Conseguir colocar um tatuzinho-bola numa lente de aumento, evidenciar aquilo que ¢ fragil, no sentido de ameagado. Ameagado de deixar de existir.” E diriamos também, aliatmo-nos a cles para também aprender a devir-imperceptivel, apreender a poténcia do que ¢ menor, do que é pequeno. Sem pretender tornar-se majoritario. © pequeno envolve outro modo de othar para as coisas. Walter Benjamin escreveu paginas incriveis tratando de sua infancia em Berlim.? Entrando num devir-crianga, nos arrasta para esses mundos vistos por um corpo pequeno, por uma perspectiva diferente daquela do adulto. O pequeno esté frente a frente com coisas que costumam escapar 20 nosso angulo de visio. Nao € & toa que muitos palhagos aprendem a respeito de sua arte observando as criangas pequenas, talvez. principalmente as que esto entre dois e quatro anos de idade. O campo do clown € 0 erro, disse Esio Magathdes, o Zabobrim, em nosso encontro, “O erro, ¢ @ experimentagio e € a dificuldade. Quando vooé descobre o palhaco e nao se coloca mais em dificuldade eu acho que voeé corre o tisco de deixé-lo congelado.” Foi fazendo errado que Annie Fratellini conseguiu seu primeiro grande contrato Neta de Paul Fratellini - um dos componentes do famoso trio Fratellini, morto em 18 de Junho de 1940, quando ela tinha 7 anos-, Annie escreveu Destin de clown, publicado emt 1989, onde nos conta, além de episédios da “lenda familiar”, como procurou, vinda dessa tradig&o circense, escapar a0 circo, criando uma carreira fora dele, como cantora e comediante. Com 16 anos, Annie -nascida em 14 de novembro de 1932- estreou no Circo Medrano, com um nimero musical, surgindo no picadeiro andando sobre uma grande bola ‘S Walter Benjamin, Rua de mao tinica, pp. 71-142 ‘Isso antes de render-se a ele, vornando-se clown, gragas ao encontro com Pierre Etaix, 64 aml oca, na qual estavam guardados instrumentos musicais. Contasnos que havia trabalhado em galas com seu pai, sem curar sua timidez e que, certa vez, no momento de entrar em cena, fugiu e foi capturada por um velho clown, Loriot, que @ colocou sobre a bola, no picadeiro. Era como um sonho ruim, diz. Apresentou esse nimero om varias salas de music-hall. Numa noite, no teatro do Apollo, ela caiu da bola: “estonteada, em panico, eu escuto a voz de meu pai gritando: ‘continua, minha filha, continual” Eu me levantei, muito aplaudida; o piblico tinha achado que se tratava de uma acrobacia, A continuagio foi uma catéstrofe: eu tentei soprar no saxofone, sem sucesso, as teclas da sanfone estavam travadas, as da concertina também. Nesse dia, eu assinava um contrato para a Alemanha: minha queda tinha impressionado um diretor. "1% © clown russo Popov nos fala do fracasso: Para ele, “o destino de um clown é um destino dificil. Sua vida ¢ sua arte e a arte supde, ineviteveimente, fracassos. No inicio de minha carreira, nio somente eu no sabia se teria sucesso, mas estava mesmo convencido do contrério. Essa convicgdo era devida as dificuldades imensas do oficio que se apresentaram ento a meus olhos. A medida que meus conhecimentos a respeito do oficio se aprofundaram, meu conhecimento dos fracassos fez 0 mesmo. Como muros, derrubam 05 fracos, mas fortalecem os fortes. Eu tentava nfo cair, mas muitas vezes foi dificil. Meus primeiros golpes, eu os recebi como para me punir de minha tentativa de simplificer minha mascara cénica. Muitas pessoas viram nisso um sacrilégio contra as santas tradigoes do circo. Tive muitas dificuldades para me livrar da influéncia de certos tabus. Mas, levantando de um golpe, eu recebia outros, pois numerosos esquetes no combinavam com meu novo personagem. O siléncio de morte da sale apés um numero é ume coise muito pior que a mais terrivel das censuras atrés das cortinas, Eu conheci tanto uma como a outra, E a cada fiasco, de bom grado, eu devia passar em revista todo o caminho percorrido. Eu disse tudo isso para mostrar que a fidelidade & minha mascara a cada etapa do caminho de faganha, pois cada dia minha originalidade devia passar em exame. Diga a um estudante que seus exames no terminario nfo era uma simples inércia, mas uma espéci ‘munca € eu no estou certo que ele persista apés isso na sua vontade de se tomar engenheiro.”"* A vida do artista, diz ele, é “procurar, fracassar ¢ encontrar.” 5 Annie Fratellini, Destin de clown, p. 134, 5 Ojeg Popov, Ma vie de clown, pp. 204-206. 65 © papel do fracasso na construgdo do clown é bastante importante na escola de Jacques Lecog. O clown fracassa, fazendo com que 0 piiblico se tome superior. Mas no basta fracassar em qualquer coisa, tem que ser em algo que s6 ele saiba fazer, o que toma tal aco uma faganha, O trabalho clownesco consiste, diz Lecog, em relacionar a faganha 0 fracasso.'*” Os alunos de Lecoq buscam o figurino desse fracasso, baseado em roupas ¢ acess6rios fora de sua medida, Depois, experimentam um dentre os dois tipos de fracasso: 0 fracasso da pretensio e 0 do acidente. O fracasso da pretensio consiste em anunciar um grande feito © apresentar algo insignificante, banal. O fracasso do acidente ocorre quando o clown niio consegue fazer o que quer, sendo interrompido por um problema, como, por exemplo, a perda do equilfbrio, a queda Samuel Becket escreveu, no inicio dos anos 50, que “ser artista ¢ fracassar como nenhum outro usa fracassar. O fracasso constitui seu universo.”"* Se alguém ousa ir até 0 fim do fracasso, é o augusto’®, , © pathaco. ‘Vejamos dois modos diferentes de transformar o fracasso, a perda, em criagiio: uma pega de teatro que fala de perdas e 0 palhago que transportou para a vida o discurso do palhago: o perdedor e 0 palhago como uma retorica. Juliana Jardim, no espetéculo Madrugada -que nio é um espetéculo de clown, mas construido a partir das mascaras do palhago ¢ do buffo-, faz uma lista de objetos perdidos, muitos deles terminados em dor. Ew perdi um secador, um regador, um triturador, um Pregador, um transformador. .. E afirma a importancia de perder: “Pra achar tem que perder.” S6 assim vocé sai em busca, vai procurar 0 que perdeu ¢ entiio pode encontrar. OUTRA COISA. Perder € bom, porque depois quando acha da uma alegria e no fim vocé acha outras coisas, vocé niio acha exatamente o que vocé perdeu Marcio Libar, um palhago do grupo carioca Teatro de Anénimo, transportou para a sua vida o discurso do palhago, do perdedor. Como jé teria perdido tudo, nfo tem nada a Perder © pode dizer tudo 0 que quiser. Para ele, 0 palhago no esté apenas na atuagao antistica, mas esta em todos os momentos de sua vida. Procura derrubar as barreiras que # Jacques Lecog, Le corps poéttque, p. 155. “© apud Alfred Simon, La planete des clowns, p 254, \ © Augusto aparece em tomo de 1864, conforme seri apontado ao tratarmos do surgimento do clown, no Tid. p. 46. Ibid. p. 49. 9 nfo se deixar capturar pelo canto da sereia do iltimo modismo, para manter-se ligado a seus ideais, no fazer como todo mundo porque a moda agora é essa, Porque essa ¢ outra armadilha, que existe em qualquer tempo: 0s modismos ea pressao para que se adira a cles, A busca de seu personagem sera permanente, diz ele, porque um bom achado nfo é bom seno por certo tempo, Foi assim que ele se preparou para a insatisfagao eterna.” Mark Mestetchkine, do Circo de Moscou, foi um grande colaborador Conheceram-se em 1950. Foi para ele um segundo Morozov. Sé que no lugar de ensinar 0 ABC, ajudou-o a aperfeicoar-se. Foi com ele que aprendeu a técnica de preparagéo de um novo repert6rio. Alexei Rojdestvenski -o grande perito em trocas, esquetes © das reagdes do pblico-o ajudou igualmente, Ele foi o primeiro a Ihe propor mtimeros inéditos que Ihe ermitiram encontrar seu personagem, no comeso de sua carreira de clown. preciso aprender a jogar um esquete de modo que ele exprima a personalidade do ator, [0 que se refere 20 modo] como este Ihe dé voz e vida“? Popov diz que a arte clownesca possui qualidades ilimitadas, na condigdo de que se rejeite os antigos dogmas. Tal arte no é um género com clichés, diz ele, mas uma profissio de criador.? Quanto ao que é preciso saber fazer para tomnar-se clown, ele diz que, com o tempo, aprendeu que “um verdadeiro clown deve viver intensamente.” i: preciso também “ter 0 espirito licido, uma percepgo aguda dos acontecimentos, uma experiéncia de vida, da fantasia ¢ a arte de se servir de seu corpo e de seu rosto.“” Nos primérdios do circo, o mimero de clown era s6 uma diversio, pra relaxar a atmosfera, entre os nimeros. ‘Naquele tempo, “a comédia no circo nao era uma arte, no sentido que damos hoje a essa palavra. $6 com o desenvolvimento de todos os géneros do circo que 0 jogo do clown deixou de ser um meio de preencher os intervalos entre os ‘mimeros, pera se tornar um género artistico acabado, independente, criando um personagem to legitimo come os dos outros nimeros do programa,”** » Wid, p. 79. * Ibid, p. 86. Thi. p. 208, £ Tid p. 206, * Ibid, p. 108. 80 Popov apresenta a transformagao do palhago na Unido Soviética, afastando-se do palhago que ele chama de Ruivo, muito colorido, maquiado, com peruca vermetha, recorrendo a recursos excéntricos, trabalhando com muitos acessérios e quedas.* Esse foi o clown tradicional no circo soviético O novo circo requeria, diz Popov, um outro clown, Este se transformou, oferecendo uma imagem “caricatural” e engracada do homem. “Sublinhando as fraquezas de sua natureza, os clowns criaram um personagem engracado e negativo. Assim nasceu a sétira no cireo. Com alegria e facilidade, os clowns imitam os defeitos como a distraglo, a preguica, a falsidade, a inveja etc. Manifestando seu interesse crescente pelo homem, eles comegaram, pouco a pouco, a se ingerir nao somente no dominio da vida privada, mas também social e criando um personagem possuidor de uma significago social. © cardter popular do circo lhe permitiu ‘fazer eco’ A luta social e politica das massas e isto é particularmente verdade para o circo russo. O clown no pode mais se contentar cegamente com a mascara burlesca, Pouco a pouco, afastou-se dela, Assim fizeram Anatoli e Viadimir Dourov, rapidamente seguidos por outros comediantes de circo.”* Interromperemos brevemente a narrativa de Popov, para dizer algo mais a respeito de Viadimir L. Dourov, que viveu na Riissia pré e pos-revoluciondria. Tristan Rémy qualifica-o como 0 mais famoso dos clowns politicos. Nascido em Moscou, em 1863, orfo de pai e mie, foi mandado por um parente distante para uma escola militar, da qual foi ‘expulso por indisciplina. Em Tver, foi trabalhar com um prestidigitador, para poder circular nas feiras e desenvolver a sua inclinago para 0 cuidado e amestramento de animais. Desde cedo concebeu a idéia de usar 0 circo e animais adestrados para satiras sociais. Assim que pode, consagrou-se ao adestramento de animais, utilizando-os para zombar, “com espitito & causticidade”, dos vicios da sociedade. Passou a ser considerado o melhor clown politico, com seus trocadilhos sendo conhecidos em todo o pais. Foi deportado varias vezes e, ameagado de morte, teve que fugir do pais. Em Berlim, voltou sua verve contra o imperador Wilhelm, Segundo as memérias do augusto Beby, Douroy tinha um porquinho chamado Wil. No seu numero, colocava um capacete [em alemio: helm] de oficial alemio na cabega de Wil, O animal tentava se livrar do capacete e 0 clown gritava: Wil, Helm. Wil, Helm. Esse mimero valeu-the um processo por lesa-majestade. Processo politico * Ibid. p. 109. Thid, pp. 109-110. 81 Alemanha feudal da época, diz Rémy,“ que atraiu a atengao geral. Karl Liebknecht*” ofereceu-se para defender sua causa. Com a revolugio de 1917, aderiu ao bolchevismo, colocando-se como Propagandista. Sem a necessidade de uma sétira social, Dourov voltou-se para 0 estudo do comportamento animal, criando um método de amestramento sem utilizagao de violéncia Publicou varios livros, entre eles O amestramento de animais: novas descobertas em zoopsicologia, publicado em 1924. Anatoli, seu filho, seguiu seu exemplo de amestrador. Voltemos, entio, a Popov. Para conseguir atuar dessa nova maneira, buscou outros meios de expressio, “menos extravagantes, uma utilizagdo mais econdmica ¢ razoavel de ‘gags excéntricas. O espirito do jogo de clown casou cada vez mais harmoniosamente com aquele dos outros nimeros que procuravam criar um personagem realista,”** Assim, a arte clownesca soviética foi caminhando para uma “evolugdo para o realismo (depois da revolugao).” Parece que o realismo socialista nfo conseguiu prejudicar os clowns, segundo Popov, até pelo contrario, ajudou. O que no aconteceu com as outras artes, como por exemplo, as “vanguardas” do inicio da revolugo soviética, que foram dizimadas a seguir, no periodo stalinista, Mas quem aprisionaria um grande clown? Popov diz. que os personagens que criou possulam tragos reais do homem moderno, ‘com suas fraquezas e seus defeitos. Mas cada personagem deve denunciar o pior ¢ afirmar o melhor. Ele deve afirmar a vida. © aspecto ¢ comportamento cénico do artista séo primordiais nesse ponto. E afirma qualidades intelectuais, no mais fisicas.” Foi assim que ele foi se tornando “um personagem positive, de uma mascara ositiva, diferente daquela dos outros clowns realistas que criaram personagens satiticos que colocavam em primeiro plano um defeito, um trago negative. Meu heréi é um simples cara apaixonado pela vida. Sua qualidade mais visivel é a modéstia. E, coisa estranha, essa qualidade no o priva de nenhum modo de seus tragos excéntricos que fazem que um clown seja um clown. Quando um escritor soviético disse a meu respeito que eu era um ‘clown ensolarado”, eu no compreendi isso como um cumprimento exagerado, mas como a “ Tristan Rémy, Les clowns, p. 431 © Dirigente comunista da época. * Popov, op. cit, pp. 110-111. Ibid, p. 125, 82 expresso do calor caimo que torna meu personagem capaz de aquecer o piiblico, de the devolver seu bom humor.” Para Popov, 0 objetivo de sua gag ndo é fazer rir. Embora todos saibam que a excentricidade faz rir, 0 riso ndo é o essencial da excentricidade, diz ele. Os clowns bufSes do conhecem limite algum, no tém medida, Para eles, quanto mais o espectador ri, maior € seu sucesso. Segundo Popov, esse estilo s6 exprime © grotesco, privando © clown da possibilidade de exprimir no picadeiro tudo que se passa fora dele, no vasto mundo, No entanto, 0 cardter especifico do circo permite @ atuagiio do clown provocar a admiragao ¢ a alegria. A alegria, emogdo extremamente rica, pode engendrar o riso ou nit. Eis porque essa diferenca entre a bouffonerie ea arte clownesce realista permite dizer que aquela faz rir e esta da alegria Essa distingao é muito importante para compreender como chegar a um contato mais estreito com os espectadores.”’ Lembremos aqui que, na atualidade, se para uns, clown € bufio estiio bem separados, so claramente distintos, para outros essa separagtio no ocorre, ou nao ¢ t&o distinta, Assim, se nem a diferenciago entre clown e bufio € consensual, menos consenso ainda haveria a respeito do que cada um deles provoca no piiblico A veia que ele seguiu the trouxe © sucesso, mas também, diz cle, a extrema dificuldade “de preservar a individualidade do comportamento de meu herdi a medida que as exigéncias que eu me impunha aumentavam. O renome também é uma exigéncia. E um pesado fardo que exige uma renovagao perpétua. Bu devo sempre ser o ‘clown ensolarado’, mesmo hoje, quando a proximidade da maturidade me possibilita tratar de assuntos sérios onde encontra-se inevitavelmente tristeza, amargura, solidao.”*? Como manter um otimismo que seja sempre comunicativo? “Esse no € apenas um problema artistico, é também um problema da vida, pois para um comediante a vida e a arte so indissoliiveis. Nesse caminho, eu nem sempre encontrei ajuda. Eu me choquei com a incompreenséo. Mas a criacio artistica é também uma Inta. E em toda luta, nds encontramos sempre amigos e mestres. "*? Charles Chaplin foi uma espécie de referéncia para varios clowns, entre eles 0 proprio Popov. Quando era pequeno adorava os filmes de Chaplin. Ele e os outros meninos 8 Ibid. pp. 125-126. 8 Tbid., pp. 127-128, 2 Tid. p. 139. * Ibid 83 faziam tudo para assisti-lo. O circo era to interessante quanto os filmes de Chaplin. Nao Poderia imaginar que se tomaria um edmico de circo. Sua mie achava que os artistas de sirco eram boémios, nfo tinham familia, nem uma vida normal. Ele ficava deprimido por suas discusses com ela, mas teve forga para inscrever-se na Escola de Circo. Aprendendo sua profissiio © apaixonando-se por ela, passou a ver os filmes de Chaplin de um modo diferente: observava no o assunto, mas estudava como ele fazia seus personagens. “Esse foi para mim a melhor das escolas.”** Uma critica da imprensa belga dizia de Popov: “Cada época possui seus clowns, que foram seus intérpretes originais. Hoje, um clown nos traz algo de novo. Olhe bem! Seu costume parece um cafetan russo, seus cabelos so direitos como varetas, seu boné parece 0 boné de um menino de rua russo. Seu nome, Popov, é também t8o comum na Rissia como Silva no Brasil. Em tudo, literalmente em tudo, ele coloca em destaque o que o liga & gente simples, fonte inesgotavel de toda criagdo viva. (...) Faz rit todo 0 tempo, mesmo no meio de um miimero sério ¢ dificil. Mas o riso que ele provoca nio é um riso idiota, pois tudo que ele faz tem uma significado profunda. Ele se aproxima com efeito de Chaplin, mas no 0 imita. Sua simplicidade vem de Chaplin e também do célebre clown Grock: mas nenhum deles influencia Popov. Ele € o menino da escola russa do circo e ele ocupa um lugar igual a0 dele.”**. Popov é um clown bem modemo ¢, 20 contrério de bom nimero de seus colegas, ele € desprovido de todo falso romantismo, Ele tem um riso so e franco, como um grande sorriso.” Popov, como Charlie Rivel e outros grandes clowns, tinha nas criangas grandes inspiradores. Diz que estudava as criangas e que seus melhores achados nascem de seus Contatos com elas. E testava seus novos esquetes com elas, apresentando-os primeiramente nas matings. Se as criangas gostam, os adultos gostardo, diz ele** Pascal Jacob pode nos auxiliar na andlise dessa mudanga pela qual passou a arte clownesca soviética, depois da revolugdo russa e, principalmente, a partir da década de 1930. ‘No periodo entre as duas guerras mundiais, Grock, como vimos, criou um clown que unia tragos do augusto a asticia do branco, ou um augusto égil, sem estupider. A parti dos anos trinta, algo semelhante -nesse aspecto preciso- comegou a ocorrer com os clowns Ibid. p. 193. (Grifo nosso) § Ibid, pp. 149-150. * Ibid. pp. 162-163, 84 sovieticos. Nessa década os soviéticos popularizaram um augusto de soirée, de reprise ou de tapis, reinventando “uma figura cOmica inspirada, a0 mesmo tempo, na ingenuidade do augusto tradicional e na asticia do clown branco.”*” Antes da revolugéo de outubro, quando artistas ingleses, franceses e alemaes apresentavam-se na Russia, a referéncia de trabalho com clown, na época, era o trio. Moda lancada pelos Fratellini, Jacob afirma que, depois que os Fratellini deixaram o pais, no se viu mais clown branco integrado daquele modo ao grupo. O figurino ainda era utilizado, ‘mas apenas simbolicamente, ou como um acessério decorativo. “Apés eles, o emblema de uma autoridade triunfante, brilhante e, a priori, indestrutivel, desapareceu dos picadeiros soviéticos."** © augusto Karandache, nos anos 1930, trabalhou, eventualmente, com um parceiro vestido € maquiado como branco, mas esse modelo preciso parece que no durou muito no circo soviético pés-revolucionario. Dourov utilizava-se dos signos do clown branco para apresentar seus animais adestrados. Jacob detecta nessa ligago com a aparéncia original, um sutil deslocamento da autoridade exercida sobre o augusto -que era a vitima anterior do clown-, para o animal submetido, de outra forma, € como se, da dupla branco dominador e augusto dominado, tal relagdo ocorresse, a partir de entio, entre 0 augusto ¢ 0 animal adestrado Lembremo-nos que Popov, por exemplo, trabalhava com animais. No entanto, como vimos, Vladimir Dourov atuava assim antes da revolugao socialista. Com a criagiio da Escola de Estado, em 1927, assiste-se ao surgimento, jé na primeira turma diplomada, em 1930, de um novo tipo de cémico, mais realista, retirando os, aspectos surreais do clown branco. Karandache, Lazarenko, Nikouline, Enguibarov e, posteriormente, Popov, Nicolaev ¢ Marchevsky trabalhavam “essencialmente s6s ou com parceiros discretos; deslocaram o impacto da personalidade autoritéria do clown branco todo poderoso, criando ¢ desenvolvendo aquela do augusto dominante”“" O figurino seguiu esse movimento. Os aderegos brilhantes foram banidos, para uma banalizagao da aparéncia e revalorizagdo das qualidades humanas. Segundo Jacob, passaram a se vestir com um palet6 e uma calga muito ® Pascal Jacob Christophe Raynaud de Lage, Les clowns, p. 53 Ibid * Ibid. © Wid, p55, 85 curtos, um traje negro © um chapeuzinho colocado de lado, ou ainda uma simples malha de mangas compridas de cores berrantes Slava Polunin Para Slava, conhecido mundialmente por seu fantéstico espetéculo SnowShow e considerado -para quem gosta de rankings- como o maior clown russo da contemporaneidade, o clown tem trés bases: a poesia, a filosofia e a critica social. Para cle, “um clown ¢ uma outra versio do ser humano, ou talvez um anti- humano. Ele coloca-se contra 0 ordinirio ele expressa essas coisas que 0 ser humano normal esconde, Um clown é um segundo eu.” Existem muitos tipos diferentes de clowns, afirma Slava. “O primeiro é 0 clown- crianca, Na infincia estamos livres para fantasiar, mas logo a realidade nos obriga a fechar 4s portas, Uma crianga esté aberta para 0 contato com o mundo. O clown-crienga express © que ficou escondido. Ele vai correr, se ouve um barulho, ele vai dangar, mesmo se ninguém esta dangando, Uma crianga natural, ela nfo quer viver conforme as regras. Ela quer quebrar todas as barreiras que esto a sua frente. Esse tipo de clown pode ser chamado de clown-anarquista. Depois, existe 0 clown-lunatico, que esta sempre sonhando, ou pensando em coisas impossiveis. Ou tem o elown-louco, que pensa que no existem outros problemas, a ndo ser os seus, Todos so muito diferentes, mas todos atuam conforme sua prépria légica. Por exemplo, se um clown esta atrasado para pegar um 6nibus, vai escalar para dentro dele através da janela em vez da porta, se a janela esta mais perto. Isto é como nos escolheriamos viver, se nio houvesse cadeias nos amarrando. Se nds colocissemos todas essas coisas num saco muito grande, veriamos na nossa frente um clown de calga larga, No entanto, um clown ¢ impossivel de ser definido, porque um clown 6 t80 infinito quanto nossos sonhos.” Slava preocupa-se em ajudar as pessoas a elaborar os sonhos que elas perderam. Algumas delas os perderam por causa das dificuldades da vida. Tenta fazé-las lembrar, descobrir 0 que elas querem nessa vida. Para ele, seguir 0 proprio sonho é uma das regras da vida. Uma outra regra 6 dar felicidade as pessoas. © ‘Conforme afirmou Gabriela Diamant, em nosso encontro, acompanhando anotagOes que tomara quando fizera 0 workshop com Slava. Confer também o artigo de Brendan Kiley: Tears of a Clown, para 0 Daily of ‘the University of Washington Seattle (online), 4 de fevereiro de 1999, & Slava Potunin.The rules of heppiness. London, Total theatre. v. 8, n° 4, winter 1996/97. pp. 45. As citagtes so traduedes provisorias do inglés, feitas por mim, © Tid, p. 4. (Grifos nossos) 86 Enquanto clown, encoraja 0 piblico a brincar, a liberar sua imaginago, a “ser como oriangas —viver nfio nesse mundo, mas num lugar de fantasia.” Minha meta € estarmos juntos, diz ele. A atuagio nfio é de Slava, mas do piblico. Ele apenas da um empurréo, O teatro ideal, para ele, € 0 que provoca o piiblico a pensar por si mesmo. Dai a importéncia de no se fazer todo o trabalho, mas atingir © piiblico de modo preciso, para que ele “faga o resto.” Slava afirma que no pretende convencer seu publico de que ele ¢ um artista, mas “dar ao piblico a possibilidade de ser artista ele mesmo."* Para onde estariam apontando as praticas mais contemporaneas da arte clownesca? Slava nos diz como imaginaria a arte clownesca no século XXI: talvez um dia venha @ atuar com um homem-computador. E como a maquina de vento que usa agora. Hé alguns anos atras nfo teria sido possivel. A arte clownesca que pratica inclui, segundo ele, Stanislavski, Tairov, Meyerhold e Grotowski. No passado, o clown era mais simples, os principios da arte clownesca e do teatro estavam separados. A arte clownesca era apenas parédia. Os clowns contemporaneos misturam arte clownesca com teatro ~por exemplo, Richard Wilson, Pina Bausch e 0 teatro butoh, todos tém a ver com a arte clownesca. A mesma coisa aconteceré no século XXI -haveré uma vanguarda dentro da qual a arte clownesca no sera um outsider. Angela de Castro: Por que os adultos ndo brincam mais? Porque eles querem ser levados a sérto. Porgue 0s adultos riem e se emocionam com o clown? Porque 0 clown os lembra que eles ainda podem brincar.” Brasileira, estabelecida em Londres, Angela de Castro tem um trabalho de muitos anos com clown, tendo atuado em Snowshow. Publicou um delicioso livro a respeito do trabalho do clown: A arte da bobagem, do qual apresentamos apenas alguns poucos aspectos aqui. Afirma que a arte clownesca é “uma arte de coragem e disciplina”. Precisa-se de coragem “para expor a nossa propria vulnerabilidade, disciplina para enfrentar as Tid. = bid * tid © Angela de Castro, 4 arte da bobagem - manual do clown moderno, p. 8, a7 dificuldades em expé-la e ter a confianga em ns mesmos para expressar a nossa visio pessoal do mundo.”** Varios dos palhagos e palhagas entrevistados por nés participaram dos workshops de Angela de Castro, que trabalha bastante com releituras de jogos e brincadeiras infantis, Ela nos lembra sempre que “as melhores idéias sio sempre as mais. simples Comumente © trabalho dos clowns consiste em transformar coisas muito simples em espetaculo cOmico. Eles costumam operar com a simplicidade Jango Edwards foi um dos clowns que se apresentaram em encontros de palhagos no Brasil, causando forte impressio, por sua originalidade e radicalidade Regina. Oliveira, do Teatro de Andnimo, diz: ter se- surpreendido muito com 0 workshop de Jango. Contrariamente a seu espetaculo —no qual ele é bastante provocativo-, como professor ele € extremamente carinhoso com as pessoas, falando de amor. Pepe ‘Nuflez contou-nos que Jango lhe deu, com seu exemplo, a liberdade que ele precisava para assumir ¢ levar adiante certo modo de atuar que ele desejava para seu proprio trabalho Dificil concordar com a afirmaglo de que clown nao tem sexo ao assistirmos Jango atuar, com sua miniiscula tanga feita com a bandeira norte-americana, seu enorme pénis de borracha, Jango atua com os excessos, no sexo, na fome, na sede. Talvez Jango evoque certas vezes, mais do que um macho, a vizinhanca com o animalesco, como louco, com forgas outras que extrapolam nossas classificagdes costumeiras. Jango (Stanley Ted Edwards) nasceu em Detroit, em 1950. Estudou filosofia, religi6es, ciéncias esotéricas, Comegou a trabalhar junto com seu irmao, com 17 anos € ganhou certo dinheiro, até que, no inicio dos anos 70, decidiu deixar tudo, depois de ler A quarta via, de O.P. Quspensky, onde 0 autor fala como o homem pode viver feliz ajudando alguém a cada dia, Descobrindo sua forga cémica, Jango viria a ajudar as pessoas, fazendo- as rir. Mudou-se para Londres, onde estudou comédia. Ali criou sua primeira trupe, The London Mime Company, que se apresentava na rua. Depois mudou-se para Amsterdam, onde criou o Festival of Fools, de 1975 a 1984, © maior encontro mundial do que se ® Ibid, p. 10, © Ibid 'p. 6 88 convencionou chamar de “novos clowns”, movimento do qual ele se tomou a ponta de langa.”” Algumas atuagdes de Jango, comentadas pelo jornalista da Revista Untel- uma apresentag&o na qual ele colocou mogas atrés de um biombo, “furado no lugar certo’ apareciam para as cmeras apenas as bundas das mogas. Assim, Jango pode ensinar a Michel Denisot a arte de beljar ou de lamber uma bunda.””' Nessa mesma emissio, transmitiu um parto, seqiéncia que escandalizou o piiblico do canal pago, apesar de estar habituado ao exagero escandaloso, Assim é Jango, sempre avangando na provocagao ¢ no mau gosto, diz Glibert, 0 jomalista. Passear com ele ¢ uma expedi¢&o, pois o tempo todo ele interage com tudo que esta ao redor, entrando na égua se vé uma fonte, fazendo palhagadas para as criangas. Criou mais de 200 personagens. Jango diz que ¢ um clown ¢ que os verdadeiros clowns so os maiores atores do mundo, Clown é um estilo de vida, diz ele.” Jango € clown 0 tempo todo. “Eu me visto clown. Eu ando clown. Eu vejo clown. Eu como clown, Eu fodo clown, Muita gente vé os clowns como pessoas tristes em sua ‘vida, Mas isso no é verdade, os clowns so as pessoas mais positivas que existem. De fato, eu sou um rebelde.” ” Para Jango, quando as pessoas riem dele, estdo rindo de si mesmas, pois ele mostra-lhes com que elas se parecem. “Marcio Libar, do Teatro de Andnimo, contou-nos a li¢do de Jango: O segredo esti no amor. Cabe a vocé dizer para o mundo: eu sou assim, vocé me ama assim mesmo? Quando o piiblico responde: amo, o palhago, que é o transgressor por excelénecia, diz: foda- se. Porque por mais que vocé me ame, eu nunca vou ser do jeito que vood quer que eu seja Lembramo-nos da definigdo de amor para Octavio Paz: O amor é uma aposta, insensata, pela liberdade. N&o a minha, a atheia.” ‘Alguns pensam que um clown deve nos fazer rir; outros nto. Alguns pretendem que cle faga pensar, outros que faga sonhar. Alguns desenvolvem de modo mais explicito um © Bnirevista para a revista Untel, dez/jan/2002, n° 10, Genebra. Suiga, p. 60. Jango mudou-se para Genebra no verdo de 2001, segundo o jornalista, deixando Amsterda, onde vivera por mais de 25 anos, exclusivamente por amor comediantesuiga Natasha Sapey (Nana) * Ihid., p. 60. * Ibid, p. 62 * Ibid “ Octavio Paz, 4 dupla chama, p. 59. Apresentamos a sua definigo de amor, por enfatizar o que chama de liberdade do outro, apesar de ndo compartilharmes plenamente das teses defendidas pelo autor nesta obra. ‘Amor idilico, muito separado do erotismo, do desejo. 39 aspecto trégico, por exemplo. Uns usam nariz vermelho; hé quem use nariz preto, como 0 Charles; e existem os que nfo usam nariz, Com relaglo @ maquiagem, também hé uma grande variedade, desde uma maquiagem pesada, até 0 rosto limpo. O figurino também pode ser extremamente diferenciado, dependendo da linha de trabalho. Alguns usam 0 mesmo figurino sempre, outros nio. Quanto ao figurino, na perspectiva de trabalho do Lume, inicialmente havia uma énfase na necessidade de se encontrar uma certa roupa para criar seu clown ¢, uma vez encontrada, a tendéncia era de que permanecesse a mesma, Para acionar o clown, agencié: lo, era necessério colocar aquela segunda pele especifica. Ricardo Puccetti, no ano 2002, fez varias experiéncias em sua assessoria com 0 grupo dos jovens clowns, relacionadas a0 figurino, tentando desconectar 0 clown de uma roupa especifica e tinica. Seu objetivo, mais do que tudo, pareceu-me ser 0 de libertar o clown de formulas pré-fabricadas, de definigdes limitantes. Como, nesse caso, a de que teria que ser sempre a mesma roupa. O trabalho proposto buscava instigar nos atores a perspectiva de pesquisar, de nfo se fixar, nfo tomar ‘certas coisas como resolvidas. Além disso, pareceu-me até que, brincando livremente com (08 mais variados elementos do figurino, foi possivel criar novas possibilidades de devir- outro para cada ator. Annie Fratellini, da tradicional familia Fratellini, apresenta uma visio a respeito do clown bem definida, em seu livro Destin de clown. Diz que, apés surgir uma gravura de Grimaldi, na qual se inscrevia Grimaldi como clown, cada clown passou a ter um nome, uma maquiagem e um figurino,”* O augusto, para ela, ¢ a “anarquia organizada”, com a qual a crianga se identifica Ele perturba o poder, a ordem, a autoridade.”* Conta-nos que, sem ter tido tempo para ser crianga, pode, no proceso de tomar-se clown, encontrar a crianga que munca foi, rebelde e irreverente, anérquica. “Para meus pais, aquele que tinha 0 poder —um general, um médico, um professor, um juiz- era, necessariamente, alguém respeitével. Levei muito tempo para me livrar desse respeito, tentando aprender a vida fora do circo.””” * Annie Fratellini, Destin de clown, p. 159, * Ibid., p. 170. * Tid, p. 160. 90 Annie nos fala da necessidade do que chama de despudor ~nio temer ser ridiculo-, conseguido através de anos de trabalho com o piiblico ¢ necessirio para que se tenha a coragem de fazer rir. *O que come um clown?” Pergunta feita a Annie por uma menininha e que, segundo ela, deve permanecer sem resposta. Para Annie, mistério é uma “virtude essencial do clown. (...) Nao se deve saber quem é, de onde vem, a idade que tem. E mitico, poesia do absurdo. A crianga aceita essa légica.””* Sua maquiagem foi sempre a mesma. Ser clown corresponde a uma verdade, fala Annie. “Tateia-se um pouco, mas encontra ‘se’. Eu no conheci nenhum clown cuja maquiagem nao correspondesse a seu ser profundo.””” Annie afirma que “existe um “pensar clown’ que nos vem naturalmente. Mesmo 0 maior autor, apaixonado pelos clowns, no poder nunca escrever para eles, O clown é clown, de uma vez por todas, Nao muda de personagem, pois no é um personagem, é ele mesmo, profundamente,”*? © clown para ela esté ligado a uma imagem: Annie usa sempre o mesmo traje, uma tiinica desenhada por Pierre Etaix, como a de Yoyo. Por cima coloca um casaco largo que n&o permite que se perceba suas formas.*! Nesse manto esconde seus instrumentos musicais, 05 que estavam na bola azul. Por ultimo coloca os sapatos, que medem cerca de sessenta centimetros. “Se pergunta para uma crianga: desenha-me um clown, tera necessariamente um nariz vermelho e sapatos grandes. Essas criangas, eu gosto ouvi-las gritar, quando eu entro no picadeiro: “ah, os grandes pés! Ele anda como um pato.”” “Tudo isso nfo se pode falar de uma mulher normal. Aqui se reencontra inacessivel ¢ 0 irreal do clown, Somos uma imagem e devemos guardar nosso mistério. Se eu abrago uma crianga, eu o fago bem rapido, para ela néo ver a maquilagem, para que no possa pensar: esté fantasiada. Depois do espeticulo, quando eu volto ‘em civil’ e que a crianga pergunta: ‘Cadé o clown?” Eu respondo: “Ele dorme.’”** Fica bastante claro nestes dois tltimos paragrafos a diferenga de Annie Fratellini, ou uma delas - afirmando 0 clown como uma imagem, um figurine e maquiagem que no podem ser mudados, um mistério a respeito de quem esta sob a miscara do clown, sobre * Ibid, p. 161, ® Ibid. p. 162. © Ibid, p. 170. © Did. p. 163. Ibid, p. 164. 1

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