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5. O Império do Brasil e as grandes poténcias Francisco Fernando Monteoliva Doratioto* Aindependéncia brasileira foi si gaeris. Feita contra Portugal, antiga metropole que procurava restaurar seus privilégios comerciaise politicos em relagao ao Brasil, foi proclamada em 1822, pelo principe herdeiro portugués, Pedro de Alcantara, com o respaldo da burocracia que comandava no Rio de Janeiro. Esses privilégios haviam sido eliminados com a abertura dos portos brasileiros 4s nagdes amigas, em 1808, e a elevagdo da antiga colénia brasileira 8 condigio de Reino Unido a Portugal e Algarves, em 1815. O Brasil independente tornou-se uma monarquia, governada por aquele principe com o titulo de Pedro I, com 0 apoio daquela burocracia. Essa continuidade politico- administrativa, que também foi socioeconémica, proporcionou ao Império do Brasil usufruir conhecimentos diplomaticos acumulados por Portugal e de funciondrios experientes, permitindo ao novo Estado certa operacionalidade, inclusive em questdes externas. Em contraste, as colénias espanholas na América fizeram a independéncia enfrentando os representantes metropolitanos e romperam com a tradigao monrquica, adotando a reptiblica como forma de governo dos novos Estados. Os vizinhos hispanicos tiveram de construir uma nova maquina estatal, em meio a disputas, que se prolongaram até meados do século XIX, entre facgGes das elites quanto ao cardter centralizado ou federalista a ser assumido pelo Estado. Essa realidade dificultou a agao externa desses paises. Foi prioridade exterior de Pedro I, obter 0 reconhecimento da independéncia brasileira. Ter personalidade jurfdica reconhecida por outros paises é objetivo basico de qualquer novo Estado. No caso brasileiro, porém, significava mais, era eliminar obstaculos de ordem politica 4 realizagao do verdadeiro objetivo da independéncia: a ** Professor das Faculdades Integradas UPIS e do Instituto Rio Branco, doutor em Historia das Relagies Intemacionais pela Universidade de Brasilia. 133 ESTEVAO CHAVES DE REZENDE MARTINS (onG»N1Z4008) continuidade do livre comércio com 08 paises centrais, principalmente a Inglaterra. O primeiro reconhecimento do Império do Brasil foi africano, intermédio de embaixada, enviada ao Rio de Janeiro em 1823, pelos reis Ob4 Osemwede, do Benim, ¢ o Ologum Ajan, de Onim, atual Lagos,' seguido pelos Estados Unidos em 26 de maio de 1824. O reconhecimento do governo norte-americano foi cauteloso, para nao desgostar as poténcias européias conservadoras. O encarregado de negécios norte-americano no Rio de Janeiro, Condy Raguet, em margo de 1825, ap6s Washington tomar conhecimento de que as negociagdes entre o Brasil e Portugal estavam por terminar em bom termo.? A Inglaterra condicionou o reconhecimento da independéncia brasileira a prdpria aceitacdo por Portugal, tradicional aliado de Londres. Para obté-la, 0 débil Estado brasileiro foi obrigado, por meio de mediagao inglesa, a pagar “indenizagao” de 2 milhdes de libras esterlinas a Portugal, sendo | ,4 milhdo resultante de divida portuguesa feita para financiar a luta contra a independéncia brasileira. Esta foi conquistada, maso Brasil recuou para compra-la da antiga metr6pole, resultado da pressio inglesa nesse sentido, bem como a urgéncia de Pedro I e das elites brasileiras em manter sua estreita relagdo com a Europa. Nao se pensava — A exceg’o de poucos, como José Bonifacio — construir a sociedade brasileira em novas bases, mas, sim, em reproduzir a dependéncia colonial em outros moldes, por meio de contato direto com 0 centro capitalista. Nessa perspectiva, entende-se aquela “jndenizagio”, bem como as concessdes comerciais e politicas feitas, durante o Primeiro Reinado adiferentes Estadoseuropeus. Aceita a independéncia por Portugal, a Inglaterra impés a segunda condigao para o reconhecimento: a ratificagao, pelo governo brasileiro, das vantagens comerciais e politicas que havia arrancado, em 1810, de Portugal com dois tratados, 0 de Alianga e Amizade eo de Comércio e Navegacao. Por eles, os produtos ingleses importados ' Costae Silva, Alberto da. O Brasil, a Africa e o Atlintico no século XIX In: Studia. Lisboa, n° 52, 1994, p. 196-197. Garcia, Eugénio Vargas. Cronologia das rdagies internacionais do Brasil. S30 Paulo: Alfa-O mega; Brasilia: Funag, 2000, p. 43. 2 Bandeira, Luiz. A. Moniz. Preencadas Estados Unidos no Brasil (dois seulosdehistéria), 2.ed. Rio de Janeiro: Civilizago Brasileira, 1978, p. 56-57, 134 RELAGOES INTERNACIONAIS: VISOES DO BRASIL E DA AMERICA LATINA obtinham privilégios alfandegérios no Brasil, pagando imposto de 15% ad valorem, contra 16% para as mercadorias portuguesas e 24% para outros paises. Ademais, os stiditos ingleses gozavam da extraterritorialidade judicial no Brasil e de liberdade religiosa. Em 18 10 aInglaterra obteve, ainda, 0 compromisso portugués de proceder a gradual aboligao do trafico negreiro. O governo do Império do Brasil cedeu a pressao inglesa eassinou, em 1826, uma convengao determinando o fim desse trafico em trés anos. No Tratado Comercial de 1827, “desgostado, mas tolerado” pelo lado brasileiro, a Inglaterra consolidou os privilégios arrancados de Portugal em 1810, ao obter do Rio de Janeiro a condigio de nag’o mais favorecida.* A “conta inglesa’, escreveu José Honério Rodrigues, “transformou-nos num protetorado inglés até 1844".* Acondigao de nagao mais favorecida acabou por ser estendida pelo Brasil, em tratadosde reconhecimento da independéncia, aoutras poténcias européias. Em 1828, a Assembléia Geral aprovou o imposto de importagao de 15% para as mercadorias de todos os pafses.* Em 1831, a figura de Pedro I estava abalada junto aos brasileiros por haver cedido a Inglaterra na questo do trafico negreiro; por seu envolvimento na guerra civil travada em torno da sucessio do trono portugués; pela perda da Cisplatina e por cercar-se de membros do “partido portugués”, Como conseqiiéncia, o imperador se viu forgado a abdicar, em 7 de abril desse ano, em favor de seu filho, também Pedro. O herdeiro da coroa tinha apenas cinco anosde idade e, até sua maioridade ser antecipada em 1840, 0 império foi governado por regentes. No Periodo Regencial (1831-1840), a burocracia governamental do Rio de Janeiro, com o respaldo das elites dessa provincia, de Sio Paulo ede Minas Gerais, buscou implantar um modelo centralizador de Estado, sofrendo resisténcia armada de oligarquias regionais. Essas circunstancias, bem como 0 cumprimento dos tratados assinados na década de 1820, levaram a auséncia de estratégias externas definidas + Manchester, Alan K. Preeminéncia ingles: no Brasil. Sao Paulo: Brasiliense, 1973, p. 23. * Rodrigues, José Hon6rio. A piiragies Nacionais, interpretacdo hisérico-petitica. 4.ed. rev. Rio de Janeiro: Civilizagao Brasileira, 1970, p.79. 5 Cervo, Amado Luniz, Bueno. Clodoaldo. Histéria da politica exterior do Brasil. Sao Paulo: Atica, 1992, p. 35. 135 ESTEVAO CHAVES DE REZENDE MARTINS (onG»N1Z4008) por parte dos governos regenciais. Eles se colocaram em posigao defensiva ¢ reativa quanto as duas maiores questdes com as grandes poténcias no decénio de 1830: a tentativa de expansao européia ao norte ea pressio inglesa para que se pusesse fim ao trdfico negreiro. O trafico estava proibido desde margo de 1830, conforme estabelecera a convengo entre os governos brasileiro e inglés em novembro de 26. A proibigao foi regulamentada por lei brasileira somenteem 7 de novembro de 1831 e, ainda assim, o tréfico prosseguiu por ser de interesse dos grandes proprietarios de terras, que tinham no escravo a mo-de-obra para a lavoura. Uma agio decisiva, reprimindo © seu prosseguimento, levaria 0 governo regencial a ser acusado de subserviente, pois a opiniao ptiblica veria na extingio o resultado de imposigao inglesa.* Como resultado, de nada adiantou a pressio inglesa para terminar com 0 tréfico, o qual constituiu elemento perturbador nas relagOes entre o império ea Inglaterra até 1850.’ Quanto a fronteira norte, desde 0 periodo colonial houve conflitos de jurisdi¢ao entreautoridades francesas, instaladasna Guiana, e brasileiras na Amaz6nia. Contudo, 0 artigo 107 do Ato Final do Congresso de Viena, assinado em 9 de junho de 1815, estipulou a restituigdo 4 Franca da Guiana, ocupada pelos portugueses em 1808, até o rio Oiapoque. Era ratificado, portanto, o limite estabelecido entre essa colénia francesa e o Brasil no Tratado de Utrecht, de 1713. Desde 1832, porém, 0 novo Rei Luis Felipe, a Franga retomou a politica externa expan sionista, inclusive em relagao & Amaz6nia. Com estimulo oficial, um membro do Instituto de Franga e da Sodétéde Géographie de Paris, 0 irlandés Warden, falsificou mapa do Corografia Brazilica ou Relagéio Hist6rico-Geogrdfica do Reino do Brazil, elaborado pelo padre Manoel Ayres de Cazal. Warden confundiu, propositalmente, em 1834, o rio Oiapoque com o Araguari, de modo a reivindicar a fronteira entre a Guiana eo Brasil no rio Amazonas.* © Idem, p.51. 7 Alan K. Manchester, p. 209-210. * Williams. Donn Alan. Brazil and French Guyana: the four-hundred year struggle for Amapa. ‘Texas: Christian University, PhD. 1975, p. 93. 136 RELAGOES INTERNACIONAIS: VISOES DO BRASIL E DA AMERICA LATINA Os partidarios da expansio colonial francesa passaram a clamar pela expansao territorial da Guiana atéo Amazonas. Em 1836, tropas francesas ergueram um forte no lago Amapé, sob pretexto de proteger conterraneos, que estariam ameagados pelas lutas politicas no Pard, e, ainda, pela necessidade de se fixarem os limites entre o império ¢ a Guiana. Em agosto desse ano, 0 governador de Caiena, Laurens de Choisy, comunicou ao governador do Para, general Soares de Andréia, que forgas francesas tinham ocupado o territ6rio até o Araguari, conforme estabelecia o Tratado de Amiens.” Para a invasao colaborou aprépria fraqueza demonstrada pela regéncia de Diogo Antonio Feijé (1835-1837), revelada ao solicitar, em 17 de dezembro de 1835, em audiéncia secreta com o representante diplomatico inglés e francés, que seus pafses enviassem auxflio militar para reprimir a revolta da Cabanagem, no Para. O governo inglés nao atendeu ao pedido,'” que serviu, porém, para demonstrar aos franceses nao ter o Brasil condigdes militares de reagir a instalagao daquele forte. O ato francés provocou indignagao da opiniao ptiblica do Rio de Janeiro e, em decorréncia do siléncio francés frente a seus protestos, © governo imperial pediu, em 1° de abril de 1839, ajuda britanica. O representante diplomatico inglés, em Paris, solicitou ao governo francés que retirasse 0 posto militar instalado naquele territério brasileiro. A Gra-Bretanha nao interessava aexpansio territorial francesa na regio amazOnica, nas proximidades com a fronteira da Guiana Inglesa. A firme resisténcia brasileira as pretensSes francesas e a interferéncia da diplomacia britanica produziram resultado. As autoridades de Paris ordenaram, em 1840, a evacuagao daquele territério, que foi declarado neutro, em troca de notas entre os governos brasileiro e francés, de 1841.'' A questao somente seria resolvida cinco ° Relatério da Repartigio dos N egékios Extrangeiros apresentado a Aseanbléa Geral do Império, 1836, p. 10; 1837, p.7. © Conforme pesquisano Publics Records Office.em Londres, pelo antrop6logo David Cleary In: Indriunas, Luis. Pais pediu apoio externo contra revolta. Folha deSao Paulo, 13.10.1999, p. A8, Pinto, Liicio Flavio. Cartas mudam hist6ria do Império brasileiro. O Exado de Sao Puddo, 21.1.2001, p. A-16. "! Aratjo Jorge. Arthur Guimaries de. Rio Branco eas fronteirasdo Brasil: uma introdugao as obrasdo Bardo do Rio Branco. Brasilia: Senado Federal, 1999, p.62-64. 137 ESTEVAO CHAVES DE REZENDE MARTINS (onG»N1Z4008) décadas mais tarde, quando a arbitragem internacional deu vitéria & posigao brasileira. Por essa época, os préprios ingleses tentavam ampliar seu territério amaz6nico, a Guiana. Em 1838, 0 missiondrio protestante ‘Youd, vindo da Guiana Inglesa, estabeleceu-se, com alguns acompanhantes, em Pirara, regio salubre e povoada por indigenase brancos brasileiros, proxima de minas de pedras preciosas. Youd foi expulso por ordem do presidente da Provincia do Parde 0 distrito de Pirara foi reocupado por destacamento brasileiro que, pouco tempo depois, retirou-se devido a intimagao de forga militar inglesa mais numerosa, enviada pelo governador da Guiana por ordem do governo britanico. Em 1842, as forgas inglesas desocuparam a regido, apés ser acolhida sugestao brasileira de declaré-la zona neutra, em possessio dos indios e sem tropas de ocupagao. A defini¢do de limites entre a Guiana Inglesa e o Brasil se deu somente em 1904, mediante a arbitragem do rei da Italia, Victor Emanuel III, que, alegando nao ser possivel definir qual o direito preponderante na regiao litigiosa, resolveu dividi-la. Dos 33.200 quilémetros quadrados arbitrados pelo rei italiano, 13.370 ficaram com o Brasile 19.630 foram atribuidosa Gra-Bretanha.'* Aessa altura, no Brasil, consolidou-seo bloco de poder tendo como nticleo a oligarquia enriquecida com a produgio de café em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e em Sao Paulo, na regido do vale do rio Paraiba do Sul. Esse setor oligarquico tornou-se hegemGnico, aliado A burocracia governamental na defesa do Estado centralizado, para o qual obteve legitimidade ao colocar a frente do seu governo, antecipadamente, D. Pedro II. O jovem imperador simbolizava a nova articulagao entre as oligarquias regionais e esse nticleo hegem6nico, viabilizando a vitdria do projeto politico centralizador sobre 0 autonomista. As oligarquias regionais con venceram-se de que o modelo monérquico centralizador afinal Ihesconvinha, por ser «itil para manter a ordem no campo e na cidade, e ao mesmo tempo, arbitrar as divergéncias entre os grupos oligérquicos. A manutengao do satus quo "2 Delgado de Carvalho, Carlos. Histéria Diplomética do Brasil. Sio Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959, p. 209-215. 138 RELAGOES INTERNACIONAIS: VISOES DO BRASIL E DA AMERICA LATINA tornou-se “‘o fator principal da unidade nacional, entendida como unidade nacional das elites’.'* Um Estado brasileiro forte teria, ainda, melhores condigdes de gerenciar os problemas externos, fosse em relagio as grandes poténcias, fosse na regiao estratégica do rio da Prata. Aconstrugao da unidade intra-clites ¢ a melhoria das finangas imperiais fortaleceram o Estado brasileiro. Este pode, ento, implementar uma politica externa que “tendeu a racionalidade ea continuidade” e adquiriu caréter auténomo em relagao a poténcia hegemGnica, a Gra- Bretanha. A racionalidade resultava de um processo decisério para estabelecer metas de politica externa, do qual participavam o Parlamento, o Conselho de Estado, o Gabinete de Ministrose 0 proprio imperador.'* A nova orientagao externa brasileira tinha como uma de suas caracteristicas controlar a politica de comércio exterior. O império estava determinado a tirar da Inglaterra o cardter de nagdo mais favorecida, embora nao buscasse eliminar os interesses britanicos no mercado brasileiro. Buscava, sim, impor que a melhor posigao comercial da Gra-Bretanha no Brasil decorresse antes da superioridade das suas mercadorias, sobre a de seus concorrentes, do que de favores especiais. Favoresesses que, por outro lado, eram prejudiciais ao Tesouro Imperial, por implicarem na baixa taxagio aduaneira sobre a importagio de produtos ingleses. Como conseqiiéncia, o Tratado de Comércio com aGra-Bretanha, assinado em 1827, expirou em 42, sem ser renovado. Apressio resultante da missao especial do diplomata britanico Henry Ellis ao Rio de Janeiro, onde chegou em fins de 1842, partindo em margo do ano seguinte, obteve somente a prorrogagao por dois anos daqueles favores.'> Arecusa de renovar os tratados da década de 1820 “teve cardter de defeesa da soberania nacional contra os privilégios ingleses”.'* Em 13 Wemnet, Agustin. O periodo regencial. Sao Paulo: Global, 1982, p. 18. Cervo, Amado Luiz, Bueno Clodoaldo. op. cit., p. 55, 131. Sobre a relagio entre os 6rgiios de Estado € 0s partidos politicosnesse proceso ver Cervo, Amado Luiz. O Parlamento Brasileiro e asrelagies exteriores( 1826-1889). Brasilia: Editora da UnB, 1981. 45 Alan K. Manchester, p. 23, 193, 289. "6 Carvalho, José Murilo de. Taatro de smbras a politica imperial. Sao Paulo: Vértice. Rio de Janeiro: IUPERY, 1988, p. 28. 139 ESTEVAO CHAVES DE REZENDE MARTINS (oxcm1z~008) agosto de 1844, 0 governo imperial, com a finalidade principal de aumentar a arrecadagao fiscal, determinou novas tarifas de importagao, que alcangavam até 60%. Conhecida como Tarifa Alves Branco, a medida também teve alguma preocupagao protecionista, favorecendo as indistrias brasileiras nascentes, ao reduzir as importagdes de manufaturados. Nos anos seguintes, conforme venciam ostratados de comércio assinados com as demais poténcias européias, a diplomacia brasileira nio os renovava. Em julho de 1845, o governo brasileiro comunicou a Inglaterra acessagio da convengiio de combate ao trafico negreiro. Esse ato ea Tarifa Alves Branco, levaram Londres, no més seguinte, a retaliar a0 considerar, unilateralmente, pelo Bill Aberdeen, perpétua adeclaragao de pirataria para o trafico negreiro, contidana convengao de 1826. Os cruzadores britanicos passaram a capturar navios brasileiros que transportavam escravose suas tripulagdes eram julgadas em Cortes do almirantado inglés. O governo brasileiro, por sua vez, ordenou a sua Marinha de Guerra combater 0 contrabando de escravos, contra o qual era enorme a pressao britdnica. Em 1850, o Estado brasileiro ja era forte o suficiente para impor a senhores e comerciantes de escravoso fim dessa atividade, 0 que foi feito por meio da Lei Eusébio de Queirés.'? Eliminou-se, assim, um dos focos de tensdo nas relagSes bilaterais, mas persistiu a recusa do governo brasileiro em assinar novo tratado de comércio com a Gra-Bretanha, contra a qual persistiu a animosidade dos brasileiros. Superada a questao do trafico negreiro, o governo imperial teve de enfrentar outro grave problema, que foi a defesa da soberania "7 Busébio de Queirés apresentou a versio brasileira para a proibigio do trifico A Camara dos Deputados, em 16 de julho de 1852. Argumentou que, apés o Bill Aberdan, houve grande aumento na importagio de afficanos, alarmando os proprietérios rurais, pois os Negros que chegavam aumentavam a ameaga de insurreigBes. Ademais, os proprietarios de escravos tinham esperanga que, com a proibig&o do tréfico, teriam cancsladas suas dividas com os comerciantes portugueses, vendedores de africanos. Como resultado, segundo Queirés, a proibigo brasileira estava pronta para ser implementada pelo governo brasileiro, que teve dificuldade em imp6-la, devido as primeiras capturas de navios dedicados ao trafico por belonaves britinicas. Graham, Richard. Brasil-Inglaterra (1831-1889). In: Holanda, Sérgio Buarque. Hiséria Geral da Civilizagdo Brasileira. 4. ed. Sdo Paulo: Difel, t. 1 4° 1985, p. 143. 140 RELAGOES INTERNACIONAIS: VISOES DO BRASIL E DA AMERICA LATINA brasileira sobre 0 vale do rio Amazonas. As ameagasestrangeirasa essa regio vinham, na década de 1850, da indefinigao dos limites fronteirigos com as possesses européias ao norte — as Guianas -, e, principalmente, de interesses norte-americanos. As relagdes com os Estados Unidos eram delicadas. Seu representanteno Rio de Janeiro, Henry Wise, foi declarado, em 1846, persona non grata pelo governo imperial, devido a postura arrogante que adotou quando da prisio do Tenente Alonzo Davis, do navio norte- americano Saratoga, pela policia carioca. O incidente se inseria, na verdade, em um contexto mais amplo, da oposigao, “suposta ou verdadeira, do republicanismo democratico americano 4 monarquia brasileira’.'* As pressOes norte-americanas sobre 0 Brasil, no sentido de liberar a navegagao internacional do rio Amazonas, contribufram para que as relagGes bilaterais se mantivessem delicadas. O Brasil resistiu aessas pressOes, que eram nao somente norte-americanas, mas, também, dos pafses hispano-amazonicos. Ji em 1826, uma companhia foi organizada nos Estados Unidos para fazer a navegagdo desse rio contando, inclusive, com 0 apoio do representante brasileiro em Washington, José Silvestre Rebelo. Um barco norte-americano chegou a aportar em Belém, mas foi impedido de prosseguir viagem pelas autoridades brasileiras. O governo inglés, por sua vez, solicitou, em 1833, licenga para estabelecer a navegacao a vapor no Amazonas, pedido que foi recusado.'? Houve, na década de 1850, verdadeira campanha intemacional pela abertura do rio Amazonas a navegagao internacional. Movimento nesse sentido foi iniciado por cidadaos norte-americanos, coincidindo com a expansio da presenca dos Estados Unidos na América Central, antecedida pela anexacao de territdrio mexicano. Esteve a frente da campanhao tenente reformado da Marinha norte-americana, Mathew Fontaine Maury, que procurou, j4 no final dos anos 40, interessar seus conterraneos sulistas com a possibilidade da transferéncia de escravos para o plantio de algodao na Amazonia e, simultaneamente, obter do 'S Wright, Antonio F de Almeida. Brasil-Estados Unidos, 1831/1889. In: idem, p. 193-194. '* Bandeira, Luniz A. Moniz. Reatério da Repartigao des Newicias Eatrangeiros, 1833, p.5. p-87. 141 ESTEVAO CHAVES DE REZENDE MARTINS (oxcm1z~008) govemno brasileiro permissdo para supostas exploragdes cientificas dessa regido. As pretensdes de Maury ganharam intensidade por volta de 1852, quando o governo norte-americano passou a respalda-las.”’ O governo brasileiro tinha consciéncia da gravidade da situagdo “e(...) da forma como os [norte-]americanos pretendiam a anexagao da Amaz6nia’. Em 1849, logo apés 0 aparecimento das idéias de Maury, Sérgio Teixeira de Macedo, representante brasileiro em Washington, advertiu 0 Chanceler Paulino José Soares de Sousa de que a eventual abertura do Amazonas a navegagao internacional abriria aporta para a instalagdo de empreendimentos, a imigragdo de norte- americanose, portanto, “&amanobracom que se verificou a usurpagao do Texas”. Trés anos depois, em 1852, Francisco Inacio de Carvalho Moreira, substituto de Macedo, alertou 0 Ministério dos Negécios Estrangeiros que a instalagao de escravos norte-americanos 4 margem do rio Amazonas, como defendia Maury, serviria a futuros planos de anexacao da regiao pelos Estados Unidos.”! Em 1853, 0 governo brasileiro abriu o rio Amazonas a navegacao, mas apenas para embarcagces dos paisesribeirinhos superiores, com os quais tinha interesse em estreitar relagdes. Uma abertura irrestrita, valida para barcosde todasas bandeiras, viabilizaria a instalagdo de estran geiros de outros pafses nesse territ6rio, sob diferentes pretextos, colocando em risco a soberania brasileira. Mantido o controle da navegagio, a diplomacia imperial procurou assinar tratados definindo as fronteiras como paises vizinhos ao norte — Peru, em 1851; Colombia, em 1853 e Venezuela, em 1859 —, com base no uti posidetis:. Essa ofensiva diplomatica, bem como a expansio geogrifica da exploragio da borracha por brasileiros, permitiram ao Brasil reafirmar a posse da Amaz6nia.”” Durante quase vinte anos, nas décadas de 1850 e 1860, aagao diplomatica do Brasil, na fronteira norte, desenvolveu-se sob forte 2 Idem, p. 44, 2! Bandeira, Luiz A. Moniz. p. 88-89. 2 O Senado colombiano, porém, rejeitou 0 Tratato de Limites. Carvalho, Valéria Nely Cézar de. O Brasil ea Amazénia internacional no séaulo XIX. 1990. Dissertago (Mestrado em Histéria das Relagoes Intemacionais). Departamento de Histéria da UnB. Brasilia, p. 41-42; 51:75. 142 RELAGOES INTERNACIONAIS: VISOES DO BRASIL E DA AMERICA LATINA pressiio externa ¢ de setores internos, de liberalismo extremado. Tavares Bastos, por exemplo, via na abertura 4 navegagao do Amazonas uma forma de aproximar o Brasil dos Estados Unidose estender ao norte 0 livre comércio, dinamizando a economia dessa regiao.** Em dezembro de 1866, tendo em vista anular as simpatias dos pafses amazOnicos em relagdo ao Paraguai na guerra contra a Triplice Alianga, 0 governo brasileiro liberou a navegacdo internacional do Amazonas. O decreto estabeleceu que a abertura vigiaria a partir de 7 de setembro de 1867, nove meses apés sua assinaturae definiu quais riosestariam abertos a livre navegacao, evitando o acesso irrestrito de estrangeiros a regio. Solucionado esse problema diplomitico, persistia outra ameaga a soberania brasileira sobre esse territorio. Tratava- se das ambigGes franceses sobre o Amapé, definitivamente afastadas com 0 laudo arbitral de 1900, do governo da Confederagao Suiga, confirmando ser brasileiro 0 territ6rio. Na década de 1860, a diplomacia brasileira enfrentou duas outras situagdes complexas, a Guerra do Paraguai eo rompimento de relagdes com a Gra-Bretanha. Dos representantes desta no Rio de Janeiro, nadécada de 1850, o governo imperial teve que ouvir exigéncias e recriminagdes a respeito dos escravos importados da Africa a partir de 1831, quando, por lei brasileira, essa pratica estava proibida. Argumentavam os diplomatasbritdnicos que os negros nessas condigdes nao podiam ser reduzidos a escravidio. Um deles, William Dougal Christie, no Brasil a partir de 1859, foi particularmente insistente nesse ponto eem outros temas relativos a escravatura.’> Com essas questdes como principal pano de fundo, Christie, de personalidade arrogante e prepotente, apoiou-se em questo secundaria para obter a submissao do governo brasileiro, exigindo-lhe pedido de desculpase indenizaciio. Uma delas foi a pilhagem do navio inglés Prince of Walles, apés naufragar na costa do Rio Grande do Sul, 2) Tavares Bastos, A. C. 0 vale do Amazonas 2. ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1937, p. 37. 24 Carvalho, Valéria Nely César de. p. 98-99: 106-107. 2 Graham, Richard. p. 143-144, 143 ESTEVAO CHAVES DE REZENDE MARTINS (onG»N1Z4008) ¢, outra, quando da prisio de trésmarinheirosingleses, em trajes civis, no Rio de Janeiro, por desacato a autoridades brasileiras. Christie exigiu do governo imperial indenizacao pelo desaparecimento dos salvados do Prince of Wallese, ao nao obté-la, bloqueou a barra do Rio de Janeiro, entre 31 de novembro de 1862 ¢ 5 de janeiro do ano seguinte, com belonaves britanicas, que capturaram cinco naviosmercantes brasileiros na bafa da Guanabara. Os cariocas reagiram com fiiria, amaldigoando aos gritos os ingleses e ameagando atacar 0 Consulado e a Legag3o britanicos. O governo imperial pagou a indenizagdo exigida sob protestos erompeu as relagGes diplomaticas com Londres.” Elas somente foram reatadas em setembro de 1865, quando Edward Thornton, representante britanico na Argentina removido para Brasil, apresentou credenciais a D. Pedro II. Esse reatamento resultou do laudo arbitral do rei belga Leopoldo I, favordvel ao império brasileiro nachamada Questao Christie. Ao apresentar-se ao imperador, Thornton fez um discurso exprimindo “b sentimento com que Sua Majestadea Rainha [Vitoria] viu as circunstancias que acompanharam a suspensio das relagSes de amizade entre as cortes do Brasil e da Inglaterra, e de declarar que 0 governo de Sua Majestade [britanica] nega de maneira mais solene toda a intengao de ofender a dignidade do Império do Brasil”.*” Vindo da maior poténcia da época, o pedido de desculpas era uma significativa vit6ria diplomatica do Brasil. O reatamento se deu durante a Guerra do Paraguai, iniciada em dezembro de 1864, com a invasio do Mato Grosso, e terminada em margo de 1870, com a morte de Francisco Solano Lépez. Ao bloqueio naval imposto pela Marinha brasileira ao Paraguai, reagiram com pressdes os comandantes de navios de guerra estrangeiros interessados em chegar a Assuncio. Durante o conflito, as poténcias européias mantiveram-se neutras, embora o governo britanico tomasse iniciativa desfavoravel 4 causa dos pafses aliados — Argentina, Brasil e Uruguai— ao apresentar a seu Parlamento, em 2 de marco de 1866, 0 26 Manchester, Alan K. p. 240. 27 Apud. Comentério do Bardo do Rio Branco. In: Schneider, Louis. A Guerra da Triplice Alianga (anotado pelo Bardo do Rio Branco). So Paulo: EdigSes Cultura, t. 1, 1945, p. 346. 144 RELAGOES INTERNACIONAIS: VISOES DO BRASIL E DA AMERICA LATINA tratado até entao secreto que constituiu a Triplice Alianga.”* Ao tornar- se ptiblico esse contetido, houve a ampliagio das dificuldades diplomaticas do império na luta contra Solano Lépez. O interesse britanico na guerra consistiu, num primeiro momento, em evité-la”” ou, ao menos, impedir que ela afetasse, de forma considerdvel, o comércio naregitio platina. Apesar da neutralidade do governo de Londres durante 0 conflito, seus diplomatas no rio da Prata praticaram, algumas vezes, atos prejudiciais ao Paraguai. No geral, porém, esses representantes obedeceram as ordens recebidas do seu governo.*” No caso da Franga ocorreu 0 contrario, pois enquanto a posigio oficial era de neutralidade na guerra, seu cOnsul em Assuncao a partir de outubro de 1867, Cuverville, nutria simpatiaspela causa paraguaia. Solano Lépez chegou a utilizar-se da mala diplomatica francesa para remeter, em novembro de 1868, 20 mil pesos para o encarregado de negocios paraguaio em Paris, Gregério Benites, bem como correspondéncia oficial ao exterior. Tal liberalidade fez com que Curveville sofresse uma severa admoestagao da chancelaria francesa.*! Aneutralidade do governo de Paris dificultou, inclusive, ao império receber o encoura¢ado Brasil, encomendado aestaleiros franceses antes do inicio da guerra. Foi necessaria uma missio especial do bario de Penedo, representante brasileiro em Londres, para que essa belonave 28 representante britdinico em Montevidén obteve e6pia do Tratado da'Triplice Aliangado chanceler uruguaio Carlos de Castro, que assinou © documento, Frederico Francisco de Figaniere, encarregado de negécios espanhol, para o ministro dos Negécios Estrangeiros da Espanha, Of. n° 68, Rio de Janeiro, 8.5.1866. Archivo del Ministerio de Negocios Exteriores (Espanha), caixa 209. 2 Thornton para Russel, Assungio, 5.9.1864. In: British Documents on Foreign Affairs: reports and papers from the Foreign Office confidencial print; Latin-America, 1845-1914. Part I, Series D, p. 165. Thornton para Berges, ministro de Relagbes Exteriores do Paraguai, carta reservada, Buenos Aires, 7.12.1864. Archivo General de Asincién (Paraguai), Caleccidn Rio Branco, documento 3277. ™ Herken Krauer, Juan Carlos. Gimenez de Herken, Maria Isabel. Gran Brtafia y la guerra dela Triple Alianza. Asunci6n: Editorial Arte Nuevo, 1982, p. 2053. 4 Rivarola, Milda. La polenica france sobre la Guerra Grande. Eliseo Reclus: la Guerra del Paraguay: Laurent-Cochelet: correspondencia consular. Asuncién: Filitorial Histérica, 1988, p- 190-196. 145 ESTEVAO CHAVES DE REZENDE MARTINS (oxcm1z~008) fosse entregue ¢ partindo as pressas, temendo-se uma contra-ordem das autoridades francesas.*” Aneutralidade nao caracterizou, porém, a politica oficial dos Estados Unidos. O Congresso norte-americano aprovou, em dezembro de 1866, resolugo recomendando ao Departamento de Estado oferecer seus oficios para por fim ao conflito. O governo norte-americano encampou essa iniciativa, de modo a colocar-se como protetor e conselheiro aos olhos das reptiblicas hispano-americanas,** nas quais as simpatias iam para o Paraguai, um David enfrentando 0 Golias brasileiro, tinica monarquia no continente. O secretario de Estado norte-americano, Seward, remeteu aos pafses em guerra a proposta de um armisticio pela qual enviariam a Washington representantes Cada parte em luta teria direito a um voto, embora os aliados pudessem enviar trés ministros plenipotencirios. ‘Se esses representantes nao chegassem a um acordo, caberia ao presidente norte-americano designar Arbitro para dirimir a questao. O ministro norte-americano no Rio de Janeiro, General Webb suspeitavade uma intervengio mediadora da Gra-Bretanha e Franga. iniciativa que, afirmava, deveria ser desencorajada por meio de uma postura ativa dos Estados Unidos na questo. Essa preocupagio refletia a disputa de influéncia, sobre a América Latina, por parte dessas poténcias.*+ A Gra-Bretanha interessava limitar a expansio norte-americana na América Central, enquanto os Estados Unidos buscavam ampliar sua zonadeinfluéncia, participando dos assuntos sul-americanos.*> O governo estadunidense apresentou sua proposta de paz nos primeiros trés mesesde 1867. Solano L6pez aceitou-a, maso império recusou, atitude em que foi seguido pelos governos da Argentinae do ® Mendonga, Renato. Uma pégina na Hist6ria Diplomitica. In: Mensirio do Jomal do Cammeércio, Rio de Janeiro, t. I, v. Il, fev. 1938, p. 30. % Peterson, Harold F Argentina and the United States 1810-1960. New York: State University of New York, 1964, p. 195. ¥ Idem, p. 196.Webb para Seward, Rio de Janciro, 7.8.1866. In: ibidem. 8 Carmagnani, Marcelo. Eadoy Scviedad en América Latina: 1850-1930. Barcelona: Editorial Critica, 1984, p. 154. 146 RELAGOES INTERNACIONAIS: VISOES DO BRASIL E DA AMERICA LATINA Uruguai, apesar da impopularidade da guerra nos dois paises A recusa robusteceu a simpatia oficial dos Estados Unidos pela causa paraguaia, a ponto de o General M. T. MacMahon, agente diplomiatico norte- americano, acompanhar Solano Lépez no inicio de sua retirada pelo interior do pafs. O Presidente Grant, por sua vez, em encontro como enviado paraguaio, Gregorio Benites, pediu-Ihe que transmitisse a Solano Lépeza amizade e simpatia do governo norte-americano pelo Paraguai. Hamilton Fish, novo secretario de Estado, em conversacom Benjtesmostrou-se convencido das tendéncias do império em dominar os Estados platinos."” Em 1869 houve suspensio das relagGes brasileiro-norte- americanas, por iniciativa do General Webb, representante norte- americano no Rio de Janeiro, apoiado pelo secretario de Estado, Seward. Anteriormente, em 1867, Webb obtivera, mediante insultos e ameagas, vultuosa indenizagdo do governo imperial para supostas perdas sofridas pelos proprietarios de trés navios de bandeira norte-americana, um deles 0 Caroline. Em seguida, reclamou indenizagio para a baleeira Canada, que encalhara na costa brasileira ha mais de dez anos. As autoridades brasileiras repeliram a reclamagao, 0 que levou aquela suspensio de relagdes, em 10 de maio de 1869. A essa altura, porém, mudara 0 governo norte-americano, que desautorizou 0 ato de Webb erestabeleceu as relacdes diplomiticas.** Com o fim da Guerra do Paraguai, em 1870, terminaram os atritos nas relagdes bilaterais entre o Brasil e os Estados Unidos; a cordialidade passou a predominar. Também as relagGes do Brasil com aGra-Bretanha entraram em nova fase, caracterizada pelasoportunidades para investimentos industriais, estradas de ferro e servigos urbanos.*” Tendo safdo da guerra em péssima situag3o financeira, 0 império contraiu, entre 1871 e 1889, seis empréstimos na praca financeira de * Peterson, Harold E p. 196-197. % Benitez, Gregsrio. Anales diplomdtico y militar de la Guerra del Paraguay. Asuncién: Establecimento, 1906, v. 2, p- 100. ® Bandeira Laiz A. Moniz. p. 114. ® Richard Graham, p. 141.Alan K. Manchester, p. 276-277. 147 ESTEVAO CHAVES DE REZENDE MARTINS (oxcm1z~008) Londres, utilizando a maior parte desses recursos no financiamento do déicit orgamentério ¢ no refinanciamento de dividas antigas.*” Como conseqiiéncia dessa nova realidade, os governos norte- americano e britanico solicitaram, em 1871, que Pedro II, “amigo comum”, nomeasse um drbitro para integrar o tribunal arbitral no caso do navio Alabama. Novo passo positivo nas relagdes entre o império e os Estados Unidos ocorreu quanto a uma revisio da questao do Caroline. Em 1872, por solicitagéo da legagao brasileira em Washington, 0 procurador-geral dos EUA julgou que o Brasil fora vitima de extorsio no caso do Caroline. Foi apurado que Webb embolsara 9.252 libras esterlinas da indenizagdo paga pelo Tesouro brasileiro, remetendo somente 5.000 ao Departamento de Estado, Em 1874, 0 governo norte-americano devolveu ao representante brasileiro US$ 96.406,73, valor resultante da quantia original paga pelo Caroline, acrescido de juros anuais de 6%.*" Acordialidade nas relagdes entre o Brasil e os Estados Unidos tinha solida base comercial. Afinal, era superavitario para o Brasil 0 comércio com essa reptiblica, gragas a exportagdo de café. O momento politico mais significativo dessa cordialidade foi a visitado imperador aos Estados Unidos, em 1876, por ocasido das comemoragdes do centendrio da independéncia norte-americana. Pedro II, embora em visita particular, participou com o Presidente Grant da inauguragio da Exposigio Universal de Filadélfia. A visita foi um éxito de relagdes pliblicas, deixando uma imagem simpdtica do chefe de Estado brasileiro.” As trés viagens que Pedro II fez ao exterior permitiram-lhe estabelecer contatos de alto nivel com governos e instituigdes e robusteceram a respeitabilidade externa do império. Assim, em 1880, * Almeida, Paulo Roberto. Formagio da diplomacia econémica no Brasil; asrelagies ccontimicas internacionais no império. Brasilia: edigio do autor, 1998, p. 127. Conforme esse autor, 0 império do Brasil, nas seis décadas de existéncia, contraiu 68.19 1.900 libras esterlinas em empréstimos, resgatando 37.458.000. “1 Bandcira, Luiz A. Moniz p. 144-155. © Topik, Steven C. Trade and gunboats the United States and Brazil in the Age of Empire. Stanford (USA): Stanford University Press, 1996, p. 54-55. 148 RELAGOES INTERNACIONAIS: VISOES DO BRASIL E DA AMERICA LATINA a convite do governo francés, Pedro II nomeou o bardo de Arinos como um dos juizesda arbitragem nas reclamagées pendentes entre a Franca os Estados Unidos. Quatro anos depois, em 1884, o imperador, novamente atendendo a convite das partes interessadas, nomeou um rbitro para julgar as reclamag6es de prejuizos, por parte alguns paises europeus contra o Chile, decorrentes da Guerra do Pacffico.* Embora as décadas de 1870 € 1880 tenham se caracterizado pelo enfraquecimento do Estado monarquico, em decorréncia de suas ctises politica e financeira, a economia brasileira esteve préspera. Desde meados do século XIX, ocorreram surtos de prosperidade de diferentes produtos primarios (cana-de-agticar, algodao, borracha...) e permanente crescimento da produgao cafeeira. Como conseqiiéncia, 0 comércio exterior brasileiro tornou-se superavitario a partir da década de 1860,** € 0 pais se apresentou na Europa, desde os anos 70, como nagio receptora de imigrantes, principalmente para abastecer de mao-de-obra aprospera lavoura do café em Sao Paulo. AsrelagGes cordiais com os EUA levaram o império a aceitar 0 convitedo governo norte-americano para a Conferéncia Pan-Americana, que iniciou seus trabalhos em 20 de outubro de 1889, em Washington. Entre 0s varios objetivos da Conferéncia, explicitados no convite norte- americano, estavam a criagao da uniao aduaneira continental ea adogio de moeda comum a todos os paises americanos, bem como 0 estabelecimento de arbitramento obrigatério em eventuaisdivergéncias entre eles. O fato é que, em 1889, enquanto Estados Unidos, em seu comércio exterior, conseguiam um superdvit de US$ 129 milhdes com o resto do mundo, tinham um déficit de 142 milhdes com a Ibero-América. Desse modo, a finalidade da conferéncia de 1889 era a de colocar os paises independentes do continente sob a esfera da * Pedro Il viajou para a Europa ¢ © Oriente Médio em 1871; para o mesmo destino em 1876, com passagem pelos Estados Unidos, € retomou ao Velho Continente em 1887. ‘Nessa década 0 Brasil exportou 149.433 libras esterlinas ¢ importou 131.866; esses niimeros foram, respectivamente, 199.685 € 164.929 (1871-1880), e 220.725 e 192.361 (1881-1890). fanni, Octavio. O progresso econdmico ¢ 0 trabalhador livre. In: Holanda, Sérgio Buarque de. op. cit... 1. 3 v., p. 300. “8 Relatorio da Repartigio das Negékios Esrangeiros, 1889, p. 73-74. 149 ESTEVAO CHAVES DE REZENDE MARTINS (oxcm1z~008) influéncia dosEstados Unidos,** em detrimento dos interessesda Gra- Bretanha. A delegagio brasileira 4 Conferéncia Pan-Americana de Washington, chefiada por Lafayette Rodrigues Pereira, partiu do Rio de Janeiro apés encontro com o imperador. Tinha instrugdes, do Gabinete de Ministros, de tratar com extrema cautela as propostas de uniao aduaneira e de criagdo da moeda comum e rejeitar a idéia de arbitramento obrigatorio. O governo imperial via nessas duas propostas. a tentativa de os Estados Unidos estabelecerem protetorado sobre o continente americano, quer se colocando como drbitro perpétuo, quer reduzindo as relagdes politicas e econdmicas da Ibero-América com a Europa. Para os governantes brasileiros, devia-se, ao contrério, manter aliberdade de agao externa do Brasil que, mesmo aproximando-se dos Estados Unidos, nao deveria distanciar-se da Europa. Desse modo, se conservaria um equilibrio nas relagdes internacionais do Brasil, bem como facilitaria a manutengao da forma mon drquica de governo.*” Manter o equilibrio entre a Europa e os Estados Unidos nas relagdes externas do Brasil era um objetivo sibio no plano politico e pragmatico na dimensio econémica. No plano politico, 0 Velho Continente continuavaa ser aregiao que maior influéncia tinha sobre 0 resto do mundo e, no plano financeiro, predominava o capital britdénico no Brasil. Com o golpe de Estado republicano de 15 de novembro de 1889, 0 governo provis6rio alterou essa politica, a0 ordenar que se aceitasse 0 arbitramento obrigatério proposto na Conferéncia Pan-Americana. As posiges do novo representante brasileiro nesse encontro, Salvador de Mendonga, foram basicamente as mesmas da delegacdio norte-americana.** eee “ Steven C. Topik, p. 35, 44. 7 Apud. Mendonga, J. A. Azevedo. Vida e obra de Salvador de Mendonga. Brasfia: Ministério das Relagées Exteriores. 1971. p. 189. “8 Cervo, Amado Luize Bueno, Clodoaldo, p. 154-155. 150 RELAGOES INTERNACIONAIS: VISOES DO BRASIL E DA AMERICA LATINA politica externa do Império do Brasil teve, nas relagdes com as grandes poténcias, dois momentos: de subordinagao, da independéncia até 1840, e, desse ano em diante, do exercicio da autonomia possfvel, na defesa de interesses proprios brasileiros. A subordinagao decorreu, em um primeiro momento, da prioridade dos governantes do Império do Brasil em obter seu reconhecimento por parte das poténcias européias. Afinal, 0 projeto das elites brasileiras, econdmicase politicas, era de dar continuidade & relagdo com o centro capitalista na condigao de fornecedor de produtos primdrios e importador de manufaturados. Como prego do reconhecimento da independéncia, aquelas poténcias, principalmente alnglaterra, arrancaram do Brasil privilégios econdmicose politicos, por meio de diferentes tratados. A capacidade de implementagio de estratégias externas por parte do Império do Brasil, na década de 1830, foi limitadas por esses tratados e comprometida pelas lutas internas quanto a definigdo do carater do Estado Nacional brasileiro. Em 1840, porém, foi alcancada a unidade intra-elites, com a maioridade antecipada de Pedro II. O Estado brasileiro — monarquico e centralizado — pode, entdo, na medida em que acumulava poder, substituir a subordinagao externa pela autonomia, principiando por nao renovar os tratados impostos pelas grandes poténcias em troca do reconhecimento da independéncia brasileira. Estado periférico, mas nao submisso, 0 Segundo Império brasileiro agiu pragmaticamente para resistir 4s pretensOes inglesas de ter privilégioscomerciaise politicos; para defender a integridade nacional, repelindo pretensSeseuropéiase norte-americanas sobre a AmazOnia; para driblar a simpatia dos Estados Unidos pelo Paraguai, na guerra que este desencadeou contrao Brasil. Mesmo nas décadasde 1870 e 1880, quando a crise interna desviavaas atengdes e energia dos governantes brasileiros, o Império manteve-se respeitado pelas grandes poténcias. NasrelagGes interestataisinexistem dependéncia ou autonomia em termos absolutos; na insergao externa, cada pafs se coloca entre os dois extremos a partir de uma jungao entre seu poder nacional eo contexto internacional. E, porém, politica a decisao de se buscar, no espaco de manobra delimitado por essa jungao, 0 méximo de 151 ESTEVAO CHAVES DE REZENDE MARTINS (oxcm1z~008) autonomia possfvel. Essa decisio foi tomada pelo Império do Brasil, enfrentando com sucesso os desafios externos, de paises vizinhos e das grandes poténcias, na manutengao da soberania nacional. 152

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