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Colecgao Outras Obras Coleccao Outras Obras (Ouras obras publica: FERNANDO PESSOA-POETA DA HORA ABSURDA Mario Sacramento COMPREENDER PESSOA Ramites Viena AQUILINO EM PARIS Sorge Reis PAGINAS DO EXILIO Cartas © Créicas de Paris 1908-1914 Aaqullino Ribeiro Revolha de textos © organizasao de Jonge Reis PAGINAS DO EXILIO 1927-1930 Carts © Criicas de Pars Aquino Ribeiro Recolha de textos e organizacdo de Jorge Reis Se desea eceberinformagaes ppormenorizadss ou livros jt Dubicados, peva 0 cailogo 20 Seu liven, preencha o postal ‘que poders encontrar nesta (digo ou solicit ainda, através de um simptes posal, informagses pericas pars VEGA Gabinete de Eaves Ras foo Saraiva, 36-3.° 1700 LISBOA — Telet, 80 95 79 Vv 816 0175 V 816 0195 Vv 8160277 V 816 032 8 V 18 033 8 OCTAVIO PAZ FERNANDO PESSOA O DESCONHECIDO DE SI MESMO- FERNANDO PESSOA (© DESCONHECIDO DE SI MESMO Tilo orignal: El Desconocido de Si Miso Fernando Pessoa Autor: Octavio Paz Colegio: Outras Obras radu: Lus Alves da Costa ntraigo d¢ Los Sigas en Rotacin y Ottos Ensayos de Octavio Paz (Alianza Ecitoral, Madrid 1983) Diceitos reservados em lingua portuguesa por Vega, Limitada Rus Jodo Saraiva, 36-3.° 1700 LISBOA — "Tele 80 95 79 Sem autorizapio exprssa do eto, no &peritda 8 dls parcial outta desta obra desde quel reprodugio nfo tlevorre day finalidadesexpefcas da divalgasoe dy cies. tor: Asvrio Bacclar Capa: Ls Pino e Panehita, com reprodugo de uma Pintura «Os Misros de Diante-do “Tajo, mis Vastos¢ Profuados gue os de Eléwsise, de Luis Alves da Cost Fotocon nagi0 ¢ folios: Sotela, Li. Impressio e acabameno: IAG- Anes Grifiss, Li Depisito Legal N.° 2225/88 OCTAVIO PAZ FERNANDO PESSOA O DESCONHECIDO DE SI MESMO | ‘Tradugao de Luis Alves da Costa nat Rag POBOI PCE vega Os poetas nao tém biografia. A sua obra é a sua biogra- fia, Pessoa, que duvidou sempre da realidade deste mundo aprovaria sem vacilar que se fosse directamente aos seus poe ‘mas, esquecendo os incidentes acidentes da sua existéncia terrestre. Nada na sua vida é surpreendente — nada, excepto fos seus poemas. Nao creio que o seu «caso», hd que resignarmo-nos a empregar esta antipitica palavra, os expli- que; creio que. & luz dos seus poemas, o seu «caso» deixa de sé-lo. O seu segredo, para mais, estd escrito no seu nome Pessoa quer dizer personagem e vem de persona, méscara dos ‘actores romanos (‘). Mascara, personagem de ficcao, nin- guém: Pessoa. A sua historia poderia reduzir-se & viagem entre ‘a irrealidade da sua vida quotidiana e a realidade das suas fie- des. Estas ficgdes sfio os poetas Alberto Caeiro, Alvaro de Campos, Ricardo Reis ¢, sobretudo, ele mesmo, Fernando TB Node T= Proposta para 0 jogo intraduzivel original «[..] Pes- soa quiere decir persona en portugues y viene de Persona, miscara de los actores Romanos» Pessoa. Assim, nio é inutil recordar os factos mais salientes da sua vida, na condicdo de se saber que se trata das pegadas de uma sombra. O verdadeiro Pessoa ¢ outro. Nasce em Lisboa, em 1888. Crianea ainda, fica drftio de pai. Sua mie volta a casar-se; em 1896 traslada-se, com os filhos, para Durban, Africa do Sul, para onde o seu segundo marido havia sido enviado como consul de Portugal. Eues- cdo inglesa. Poeta bilingue, a influéncia anglo-saxénica sera constante no seu pensamento ¢ na sua obra, Em 1905, quan- do est prestes a ingressar na Universidade do Cabo, tem de regressar a Portugal. Em 1907 abandona a Faculdade de Le- tras de Lisboa e instala uma tipografia. Fracasso, palavra que se repetiré com frequéncia na sua vida. Trabalha depois co- mo «correspondente estrangeiro», isto é, como redactor am- bulante de cartas comerciais em inglés ¢ francés, emprego modesto que Ihe daré de comer durante quase toda a sua vi- da, Verdade € que, em certa ocasiao, se Ihe entreabrem, com discricdo, as portas da carreira universitéria; com o orgulho dos timidos, recusa a oferta. Escrevi discrigao e orgulho; tal- vez devesse ter dito desinteresse e realismo: em 1932 aspira ao lugar de arquivista numa biblioteca e é recusado. Mas nao hd revolta na sua vida. Apenas uma modéstia parecida com © desdém. Desde 0 seu regresso de Africa, nao volta a sair de Lis- boa. Primeiro vive numa velha casa, com uma tia solteirona uma avé louca; depois com outta tia; uma temporada com sua mae, de novo vitiva; o resto do tempo em domicilios in ertos. Encontra-se com os amigos na rua eno café, Bebedor solitirio de tabernas ¢ bares dos bairros velhos. Outros por menores? Em 1916 projecta estabelecer-se como astrélogo © ocultismo tem 0s seus riscos e, em certa ocasidio, Pessoa vyé-se envolvido numa embrulhada tecida pela Policia contra o mago ¢ «satanista» inglés B. A. Crowley-Aleister, de pas sagem por Lisboa em busca de adeptos para sua ordem mistico-erdtica. Em 1920 enamora-se, ou cré que se enamo- ra, de uma empregada de comércio; a relacao nao dura mul to. «O meu destino», diz na carta de ruptura, «pertence @ outra Lei, de cuja existéneia ndo suspeita voce sequer...» ©) Nao se sabe de outros amores. Ha uma corrente de homossextise Tismo doloroso na Ode Maritima ¢ na Saudagao a Whitman, grandes composigdes que fazem pensar nas que, quinzs anos mais tarde, escreveria o Garcfa Lorca de Poeta en Nueva York. Mas Alvaro de Campos, profissional da provocacao. nao € todo 0 Pessoa. Ha em Pessoa outros poetas, Casto, (0 das as suas paixdes sao imaginérias; melhor dito, o seu gran” de vieio € a imaginacZo. Por iss0 niio sai da sua poltrona. E hd outro Pessoa, que ndo pertence nem a vida de todos os WN, do T, — No original da carta «.. 0 meu destino perience & coutra Lei de cuja existéncia a Ofelinha nem sab dias nem a literatura: o discfpulo, o iniciado. Sobre este Pes- soa nada pode nem deve dizer-se. Revelago, engano, auto- -engano? Tudo junto, talvez. Como o mestre de um dos seus sonetos herméticos, Pessoa conhece e cala. __Anglémano, miope, cores, fugidio, vestido de escuro,re- ticente e familiar, cosmopolita que predica o nacionalismo, investigador solene de coisas fitteis, humorista que nunca sorri nos gela o sangue, inventor de outros poetas e destruidor de si mesmo, autor de paradoxos claros como a agua e, co- mo ela, vertiginosos: fingir 6 conhecer-se, misterioso que nao cultiva o mistério, misterioso como a Lua do meio-dia, taci- turno fantasma do meio-dia portugués, quem é Pessoa? Pier- re Hourcade, que 0 conheceu no final da sua vida, escreve: «Nunca, ao despedir-me, me atrevi a voltar-me para trds; ti nha medo de vé-lo desvanecer-se, dissolvido no ar». Esqueco- -me de algo? Morreu em 1935, em Lisboa, de uma célica hepatica. Deixou duas plaquettes de poemas em inglés, um delgado livro de versos portugueses e um bati cheio de ma- nuscritos, Todavia continua por publicar a sua obra completa, ‘A sua vida publica, temos de a chamar de alguma manei- ra, decorre na penumbra. Literatura de arredores, zona mal iluminada em que se movem — conspiradoras ou Tundticas? — as sombras indecisas de Alvaro de Campos, Ricardo Reis ¢ Fernando Pessoa. Durante um instante, os bruscos projec 10 tores do esedndalo e da polémica iluminam-nas. Depois, & obs- curidade de novo. O quase anonimato ¢ a quase celebridade, Ninguém ignora 0 nome de Fernando Pessoa, mas poucos Sa tem quem é € o que faz. Reputados portugueses, espanhis « hispano-americanos: «O seu nome diz-me qualquer coisa jornalista ou realizador de cinema?» Imagino que a Pessoa nao Ihe desagradava 0 equivoco. Até o cultivava. Tempora- das de agitacao literdria seguidas por perfodos de abulia. Se as suas aparigGes sao isoladas e espasmédicas, golpes de mio para aterrorizar os papdes da literatura oficial, 0 seu trabalho solitario & constante. Como todos os grandes preguigosos, Pas- sa a vida fazendo inventérios de obras que nunca escreverd. FE, como também acontece com os abilicos, quando so apal- xonados € imaginativos, para nZo estoirar, para nao enlou- Gquecer, quase &s escondidas, 8 margem dos seus grandes projectos, todos os dias escreve um poema, um artigo, uma reflexdo, Dispersio e tensfo, Tudo marcado por um mesmo sinal: esses textos foram escritos por necessidade. E isto, a fatalidade, 6 0 que distingue um escritor auténtico de um que simplesmente tem talento. screve em inglés os seus primeiros poemnas, entre 1905 @ 1908. Por essa época lia Milton, Shelley, Keats, Poe. Mais tarde, descobre Baudelaire e frequenta varios «subpoetas por- tugueses». Insensivelmente regressa & sua Kingua materna,ain- da que nunca deine de escrever em inglés. Até 1912 a u | influéncia da poesia simbolista e do saudosismo sao prepon- derantes. Nesse ano publica as suas primeiras coisas na re- vista Aguia, 6rgio da «Renascenga Portuguesa». A sua colaboragao consistiu numa série de artigos sobre a poesia portuguesa. E muito de Pessoa isto de comecar a sua vida de escritor como critico literdrio. Nao menos significativo é 0 titulo de um dos seus textos: Na Floresta do Alheamento. O tema da alienacdo e da busca de si mesmo, no bosque encan- * tado ou na cidade abstracta, é mais do que um tema: é a subs- tancia da sua obra, Nesses anos procura-se; nao tardard a inventar-se. Em 1913 conhece dois jovens que serio 0s seus compa- nheiros mais seguros na breve aventura futurista: 0 pintor Al- mada Negreiros ¢ 0 poeta Mario de Sé-Carneiro. Outras amizades: Armando Cortes-Rodrigues, Luis de Montalvor, José Pacheco. Presos ainda no encanto da poesia «decaden- te», esses rapazes tentam, em vdo, renovar a corrente simbo- lista, Pessoa inventa 0 . E logo, através de Sé-Cameiro, que vive em Paris e com quem mantém uma fe- bril correspondéncia, a revelagao da grande insurreigio mo- derma: Marinetti. A fecundidade do futurismo é inegével, ainda que 0 seu resplendor se tenha obscurecido depois com as ab- dicagdes do seu fundador. A repercuss4o do movimento foi instantanea, talvez porque, mais do que uma revolugio, fos- se um motim. ‘Foi a primeira chispa, a chispa que faz. voar 12 a pélvora, O fogo correu de um extremo ao outro, de Mos- covo a Lisboa. Trés grandes poetas: Apollinaire, Mayakovs- ie Pessoa. O ano seguinte, 1914, seria para 0 portugues 0 ano do descobrimento ou, mais exactamente, do ane aparecem Alberto Caeiro ¢ os seus disefpulos, 0 fururista Al- varo de Campos ¢ © neoclissico Ricardo Reis. ‘A irrupedo dos heterdnimos, acontecimento interior, pre para o acto publico: a explosio de Orpheu. Em Abril de up sai o primeiro niimero da revista; em Julho, o segundo e Wit ‘mo. Pouco? Antes demasiado. © grupo nao era ae © proprio nome, Orphew, ostenta a marca simbolista. Mes- ‘mo em Sé-Carneiro, apesar da sua violencia, os eriticos por tugueses notam a persisténcia do «decadentismo», Bm cay ‘adivisio é nitida: Alvaro de Campos é um futurista integral, mas Fernando Pessoa continua a ser um poeta «paulistar. O piiblico recebeu a revista com indignaglo. Os textos de Sé° “Carneiro e de Campos provocaram a firia habitual dos jor- nalistas, Aos insultos sucederam-se as piadas; as piadas, 0 silencio. Cumpriu-se 0 ciclo. Ficou alguma coisa? No pri- meiro mimero apareceu a Ode Triunfal; no segundo a Ode Maritima. A primeira € um poema que, a despeito dos seus tiques e afectagdes, possui ja 0 tom directo de ieee : visio do pouco peso do homem diante do peso bruto ia social. A segunda é algo mais do que os fogos-de-artificio da poesia futurista: um grande espirito delira em voz alta e 0 Seu 1B grito nunca é animal nem sobre-humano, © poeta ndo é um «pequeno deus» mas um ser caido. Os dois poemas fazem re- cordar mais Whitman que Marinetti, um Whitman ensimes- mado € negador. Mas isto no € tudo. A contradicdo ¢ 0 sistema, a forma da sua coeréncia vital: ao mesmo tempo que as duas odes escreve O Guardador de Rebanhos, livro péstu- mo de Alberto Caeiro, os poemas latinizantes de Reis e Epi- thalamium © Antinous, «dois poemas ingleses meus, muito indecentes, € portanto impublicaveis em Inglaterra». A aventura de Orpheu interrompe-se bruscamente. Alguns, ante os ataques dos jornalistas ¢ talvez assustados pelas im temperangas de Alvaro de Campos, desertam. Sé-Carneiro, sempre instavel, regressa a Paris. Um ano depois suicida-se. Nova tentativa em 1917: 0 mimero tinico de Portugal Futu- rista, dirigido por Almada Negreiros, onde aparece 0 Ulti- matum, de Alvaro de Campos. Hoje é dificil ler com interesse esse chorrilho de diatribes, se bem que algumas ainda guar- dem a sua saudavel viruléncia: «, ¢ continuou, com uma formidavel infincia; «Acaso hé um niimero 34 na realida- de?» (). Outra anedota, Perguntaram-Ihe: 23 LT a pena viver-se é a experiéncia da verdade. A debilidade de Caeiro niio reside nas suas ideias (essas so antes a sua for- ca); consiste na irrealidade da experiéncia que diz incarnar Adio numa quinta da provincia portuguesa, sem mulher, sem filhos e sem Criador: sem consciéneia, sem trabalho e sem religiao. Uma sensaco entre as sensagies, um existir entre as existéncias. A pedra é pedra e Caeiro é Caeiro, nes- te instante. Depois, cada um serd outra coisa. Ou a mesma coisa. E igual ou é distinto: tudo ¢ igual por tudo ser diferer te. Nomear é ser. A palavra com que nomeia a pedra nio é a pedra mas tem a mesma realidade da pedra. Caeiro ndo se propée nomear os seres, € por isso nunca nos diz se a pedra _ éuma fgata ou um calhau, se a drvore é um pinheiro ou um azinheiro. Tao-pouco pretende estabelecer relages entre as coisas; a palavra como nao figura no seu vocabuldrio: cada coisa esté submersa na sua propria realidade. Se Caeiro fala € porque o homem é um animal de palavras, como o passaro um animal alado. O homem fala como 0 rio corre ou a chu- va cai. O poeta inocente nao necesita nomear as coisas; as suas palavras so drvores, nuvens, aranhas, lagartixas. Nao cessas aranhas que vejo mas estas que digo. Caeiro espanta-se ante a ideia de que a realidade é inacessivel: ela af esti, fren- te a nds, basta tocé-la, Basta falar. ‘Nao seria dificil demonstrar a Caeiro que a realidade nunca cesté & mao e que devemos conquisté-la (ainda que arriscandy 24 {que no acto da conguista se nos evapore ou se nos converta noutra coisa: ideia, utensilio). O poeta inocente € um mito mas um mito que funda a poesia. © poeta real sabe que as palavras e as coisas ndo sio 0 mesmo, € por isso, para resta- belecer uma precéria unidade entre o Homem ¢ o Mundo, no- ‘meia as coisas com imagens, ritmos, simbolos € comparagdes. ‘As palavras nfo sao as coisas: sdo as pontes que desdobra- mos entre elas e nés. © poeta € a consciéncia das palavras, quer dizer, a nostalgia da realidade real das coisas. Decerto, as palavras também foram coisas antes de serem nomes de coisas. Foram-no no mito do poeta inocente, isto 6, da lin- guagem. As opacas palavras do poeta real evocam a fala de antes da linguagem, o entrevisto acordo paradistaco. Fala ino~ Jléncio em que nada se diz porque tudo esté dito, tudo se esti dizendo. A linguagem do poeta alimenta-se desse si- Jéncio que é fala inocente. Pessoa, poeta real, ¢ homem cep- tico, precisava de inventar um poeta inocente para justificar 1 sua propria poesia. Reis, Campos ¢ Pessoa dizem palavras mortais e fechadas, palavras de perdicao € dispersao: sao 0 pressentimento ou a nostalgia da unidade. Ouvimo-las contra © fundo de silencio dessa unidade. Nao é por acaso que Caei- ro morre jovem, antes que os seus disefpulos iniciem as suas ‘obras, E 0 seu fundamento, 0 siléncio que os sustenta, (O mais natural ¢ simples dos heterénimos € 0 menos real. Eo por excesso de realidade. O homem, sobretudo homem cente’ os moderno, € de todo real. Nao é um ente compacto como a Natureza ou as coisas; a consciéncia de si é a sua realidade insubstancial. Caeiro é uma afirmagio absoluta do existir e daf que as suas palavras nos parecam verdades de outro tem- Po, esse tempo em que tudo era uno e o mesmo, Presente sen- sivel, intocdvel: mal 0 nomeamos evapora-se! A mascara de inocéncia que nos mostra Caeiro nao é a sabedoria: ser sdbio € resignar-se a saber que nao somos inocentes. Pessoa, que © sabia, estava mais perto da sabedoria. O outro extremo é Alvaro de Campos (*). Caeiro vive no presente intemporal das criangas e dos animais; 0 futurista Alvaro de Campos no instante. Para o primeiro, a sua aldeia 0 centro do mundo; outro, cosmopolita, nao tem centro, desterrado nesse lugar nenhum que so todos os sitios. Nao obstante, parecem-se: ambos cultivam 0 verso livre; ambos atropelam portugués; nenhum deles evita os prosafsmos. Ndo créem sendo no que tocam, sao pessimistas, amam a realida- de concreta, no amam os seus semelhantes, desprezam as ideias e vivem fora da hist6ria, um na plenitude do ser, outro ‘Nasce em Tavira, a 15 de Outubro de 1890. A data coincide com 1 seu horéscopo, diz Pessoa. Estudos liceais; depois, em Glasgow, de cengenharia naval. Ascendéncia judaica. Viagens ao Oriente, Paraisos ar- tificiais e outros. Partidrio de uma estética nao aristotélica, que vé reali zada em tr@s poetas: Whitman, Caeiro e ele mesmo. Usava monéculo Irascivo impasstvel. 26 na sua mais extrema privaco. Caeiro, 0 poeta inocente, ¢ (0 que nao podia ser Pessoa; Campos, 0 dandy vagabundo, 60 que poderia ter sido e nao foi. Sao as impossfveis possibi- lidades vitais de Pessoa. primeito poema de Campos possui uma originalidade enganosa. A Ode Triunfal é, aparentemente, um eco brilhan- te de Whitman e dos futuristas. Mas logo que se compara es- te poema com os que, pela mesma época, se escreviam em Franga, na Ruissia e noutros paises, nota-se a diferenca (’) Whitman acreditava realmente no homem e nas maquinas; me- Ihor dito: acreditava que o homem natural nao era ineompa- tivel com as maquinas. O seu pantefsmo abarcava também ‘a indtstria, A maior parte dos seus descendentes nao incorre nestas ilusdes. Alguns véem nas mquinas brinquedos mara- vilhosos. Penso em Valéry Larbaud e no seu Barnabooth, que tem mais de uma semelhanga com Alvaro de Campos (*). A ‘@) Em espanhol nao houve nada de semelhante até & geracao de Lor- cae Neruda, Havia, sim, a prosa do grande Ramén Gémez de la Serna. No México tivemos um timido comeco, mas sé um comero: Tablada. Em 1918 surge realmente a poesia moderna em lingua espanhola. Mas © seu iniciador, Vicente Huidobro, é um poeta de tom muito distinto (@) Parece-me quase impossivel que Pessoa no tenha conhecido o li ro de Larbaud. A edigio definitiva de Bamabooth é de 1913, ano de intensa correspondéncia com Sé-Carneiro. Pormenor curioso: Larbaud visitou Lisboa em 1926; Gémez de La Serna, que vivia ento nessa cida- de, apresentou-o aos escritores jovens, que Ihe ofereceram um banquete 27 atitude de Larbaud perante a maquina € epicurista; a dos fu- turistas, visionéria. Véem-na como agente destrutor do falso humanismo e, por certo, do homem natural. Nao se propdem humanizar a méquina mas construir uma nova espécie huma- nna semelhante a ela, Uma excepedo seria Mayakovski ¢ mes- mo ele... A Ode Triunfal ndo é nem epicurista nem romantica: € um canto de raiva e derrota, E nisso radica a sua origina- lidade. Uma fétbrica é «uma paisagem tropical» povoada de ani- ~ mais gigantescos e lascivos. Fornicagao infinita de rodas, ém- bolos e roldanas. A medida que o ritmo do mecanismo redobra, o paraiso de ferro e electricidade transforma-se em sala de tortura, As maquinas so Grgios sexuais de destrui- a0 e Campos quereria ser triturado por essas hélices furio- sas. Essa estranha visio é menos fantéstica do que parece no é apenas uma obsesso de Campos. As maquinas sfo uma reprodugao, simplificagdo e multiplicagao dos processos vi- tais. Seduzem-nos ¢ horripilam-nos porque nos dao a sensa- do simulténea da inteligéncia e da insconsciéneia: tudo 0 que fazem, fazem-no bem, mas no sabem o que fazem. Nao é esta uma imagem do homem moderno? Porém as méquinas so apenas uma das caras da civilizago contempordnea. A Na cronica que consagra a este episddio (Lettre de Lisbonne, in Jaune blew blanc), Larbaud fala elogiosamente de Almada mas nao cita Pessoa, Conheceram-se? 28 | i i | | | outra 6 a promiscuidade social. A Ode Triunfal termina num alarido; transfor mado em fardo, caixa, paquete, roda, Alva- 0 de Campos perde o uso da palavra: assobia, chia, repica, martela, estraleja, rebenta. A palavra de Caeiro evoca a uni- dade do homem, a pedra e o insecto; a de Campos, o rufdo incoerente da hist6ria, Pantefsmo e pan-maquinismo, dois mo- dos de abolir a consciéncia Tabacaria € 0 poema da consciéncia recuperada. Caeiro interroga-se: que sou?; Campos: quem sou? Do seu quarto contempla a rua: automéveis, transeuntes, cies, tudo real € tudo oco, tudo perto e tudo longe. Em frente, seguro de si ‘mesmo como um deus, enigmitico e sorridente como um deus, esfregando as mios como Deus Pai depois da sua horrivel cria- ao, aparece e desaparece o Dono da Tabacaria. Chega & sua caverna-templo-tenda, Esteves 0 despreocupado, sem meta~ fisica, que fala e come, tem emogGes e opinides politicas respeita as festas que sao de respeitar, Da sua janela, da sua consciéncia, Campos mira os dois monos e, ao vé-los, vé-se asi mesmo. Onde estd a realidade: em mim, ou no Esteves? (© Dono da Tabacaria sorri e ndo responde. Poeta futurista, Campos comega por afirmar que a tinica realidade € a sensa- do; uns anos mais tarde perguntar-se~d se ele préprio tem alguma realidade. ‘Ao abrir a consciéncia de si, Caeiro suprime a his agora & a histéria que suprime Campos. Vida marginal: os 29 seus irmaos, se os tem, so as prostitutas, os vadios, o dandy, co mendigo, a gentalha de cima e de baixo. A sua rebelido na- da tem a ver com as ideias de redencao ou de justica: Nao. Tudo menos ter razéo! Tudo menos importar-me com a Hu- manidade! Tudo menos ceder a0 humanitarismo! Campos rebela-se também contra a ideia de rebelido. Nao é uma vir- tude moral, um estado de conscigncia — é a consciéncia de uma sensagio: «Ricardo Reis & pagdo por convicgiio; Ant6- . nio Mora por inteligéncia; eu sou-o por rebeliio, isto é, por temperamento.» — A sua simpatia pelos desgragados esta tin- gida de desprezo, mas esse desprezo sente-o, antes de mais, por si mesmo: Sinto uma simpatia por essa gente toda, Sobretudo quando no merece simpatia. Sim, eu sou também vadio e pedinte Ser vadio e pedinte ndo € ser vadio ¢ pedinte: E estar ao lado da escala social Nao ser juiz do Supremo, empregado certo, prostituta, No ser pobre a valer, operario explorado, 30 Nao ser doente de uma doenga incuravel, Nao ser sedento de justica, ou capitio de cavalaria, Nao ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelista: Que se fartam das letras porque tém razo para chorar lagrimas E se revoltam contra a vida social porque tém razio para isso supor. ‘A sua vadiagem e mendicidade nao dependem de nenhu- ma circunstancia; sao irremedidveis e sem redencio. Ser va- dio assim é ser isolado na alma. E, mais adiante, com essa brutalidade que escandalizava Pessoa: Nem tenho a defesa de poder ter opinides sociais... Sou lhicido. Nada de estéticas com coragdo: sou hicido. Merda! Sou ltcido. A consciéncia do desterro é uma nota constante da poesia moderna desde hé século e meio. Gérard de Nerval finge-se principe da Aquitania; Alvaro de Campos escolhe a mascara do vadio. A mudanga € reveladora. Trovador ou mendigo, que oculta essa mascara? Nada, talvez. O poeta é a consc cia da sua irrealidade histérica. $6 que essa consciéncia se retira da historia, a sociedade abisma-se na sua propria opa- cidade, torna-se Esteves ou 0 Dono da Tabacaria. Nao falta- +r quem diga que a atitude de Campos néo € «positiva». Ante criticas semelhantes, Casais Monteiro respondia: «A obra de Pessoa realmente 6 uma obra negativa. Nao serve de mode- 31 lo, ndo ensina nem a governar nem a ser governado. Serve exactamente para 0 contrario: para indisciplinar os espiritos.» Campos nio se langa, como Caeiro, a ser tudo, mas a ser todos e a estar em todos os lados. A queda na pluralidade paga- -se com a perda da identidade. Ricardo Reis escolhe a outra possibilidade latente na poesia do seu mestre (°). Reis é um ‘ermitao como Campos 6 um vagabundo. A sua ermida é uma -filosofia e uma forma. A filosofia é uma mescla de estoicis- moe epicurismo. A forma: o epigrama, a ode ¢ a elegia dos poetas neoclissicos. S6 que 0 neoclassicismo é uma nostal- gia, quer dizer, um romantismo que se ignora ou que se dis- farga. Enquanto Campos escreve os seus largos monélogos, cada vez mais perto da introspecedo que do hino, 0 seu ami- g0 Reis pule pequenas odes sobre o prazer, a fuga do tempo, as rosas de Lidia, a liberdade iluséria do homem, a vaidade dos deuses. Educado num coiégio de jesuitas, médico de pro- fissio, monérquico, desterrado no Brasil desde 1919, pagdo {@ Nasoeu no Porto, em 1887. £ 0 mais meditertnico dos heters- nimos: Caeiro era loiroe de olhos azuis; Campos, sentre branco © more- tor, alto, magro e com ar internacional; Reis, «moreno-mate», mis perto do espanhol e do portugués meridionais. As Odes no sfo a sua énica ‘obra. Sabe-se que escreven um Debate Estético ere Ricardo Reis e Al- taro de Campos. As suas nota criticas sobre Caeiro © Campos sio um modelo de precisio verbal de incompreensto esti € céptico por conviccao, latinista por educagdo, Reis vive fo- ra do tempo, Parece, mas nao é, um homem do passado: es- colheu viver numa sagesse intemporal. Cioran assinalava recentemente que 0 nosso século, que inventou tantas coisas, no criou a que mais falta nos faz. Nao é estranho assim que alguns a busquem na tradiedo oriental: taofsmo, budismo Zen; na realidade, essas doutrinas cumprem a mesma fungdo que as filosofias morais do mundo antigo. O estoicismo de Reis uma maneira de ndo estar no mundo — sem deixar de estar nele. As suas ideias politicas tém um sentido semelhante: nao siio um programa, mas uma negagio do estado de coisas con- tempordneo, Nao odeia Cristo nem 0 ama; aborrece o cris- tianismo, se bem que, esteta no fim de contas, quando pensa em Jesus admite que «a Sua sombria forma dolorosa nos trouxe algo que faltava..O verdadeiro deus de Reis, é 0 Fado e to- dos, homens ¢ mitos, estamos submetidos ao seu império. A forma de Reis é admiravel e monétona, como tudo 0 que é perfeicdo artificiosa. Nesses pequenos poemas percebe- -se, mais do que a familiaridade com os originais latinos e gregos, uma sébia e destilada mistura do neoclassicismo lu- sitano e da Antologia Grega traduzida para inglés. A correc fo do seu idioma inquietava Pessoa:

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