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OBRAS DE EDUARDO LOURENCO Heterodosia 1, Coimbra Editora, 1949 Heterodoxia Ie It, Assirio © Alvim, 1987 Q Desespero Humanista na Obra de Miguel Torga, Coimbra Editora, 1955 ‘Sentdo e Forma da Poesia Neo-Realisa, Editorial Ulissia, 1968 Pessoa Revisitado, Nova, 1973; 2 ed., Moraes Editores, Tempo ¢ Poesia, Inova, 1974; 2.ed,, Relgio d’Agua, 1988 Os Militares 0 Poder, Arcadia, 1975 ‘Situagao Africana e Consciéncia Nacional, Lisboa, 1979 O Fascismo nunca Exist, D. Quixote, 1976 © Labirinto da Saudade — Psicandlise Miica do Destino Portugués, D. Quixote, 1978 0 Complexo de Mars, D. Quixote, 1979 0 Espelho Imagindrio, Imprensa Nacional, 1981 ‘Foesiae Metafisic, Sida Costa, 1983 (Prémio de Ensaio do Pen Club) easionais I, A Regra do Jogo, 1984, Fernando Rei da Nossa Baviera, Imprensa Nacional, 1986 ‘Nés ¢ a Europa ow as Duas Razdes, imprensa Nacional, 1988 (Prémio Furopeu do Ensaio «Charles Veillon»), Lausana, 1988; 3."ed, 1990 © Canto do Signo, Editorial Presenga, 1994 0 Esplendor do Caos, Gradiva, 1998 Portugal como Destino Seguido de Mitologia da Saudade, Gradiva, 1999 Em franei Le Labyrinthe de la Saudade, Ed, Sagres-Europa, Bruxelas, 1987 L'Ewrope Introwable, Ed. A. Marie Mesilié, 1991 Montaigne ou ta Vie Eerite, ’Escampette, Bordéus, 1992 Mythologie de a Saudade, Ea. Chandeigne, 1997 Fernando Pessoa, roi de notre Bavire, Ed. Chandeigne, 1997 EDUARDO LOURENCO PORTUGAL COMO DESTINO SEGUIDO DE MITOLOGIA DA SAUDADE © Eduardo Lourenco/Gradiva — Publicagées, L* Capa: Armando Lopes Revisio do texto: Manuel Joaguim Vira Fotocomposigao: Gradiva Impressio ¢ acabamento: Rolo & flhos, Artes Gréfteas, L Reservados os direitos para Portugal por: Gradiva —Publicagées, Ls Rua de Almeida e Sousa, 21, r/c, esq.— 1399-041 Lisboa Telefs. 397 40 67/8 —397 13 57 —395 3470 Fax 395 3471 —Email: gradiva@ip.pt URL: bttp-iivww.gradiva.pt 22 edligdo: Setembro de 1999 Depésito legal n* 141 469/99 indice PORTUGAL COMO DESTINO: Dranatui cual portuguese 1 MITOLOGIA DA SAUDADE 87 aos 13 9 133 143, 135 167 ‘Tempo portugués* Melancolia © saudade Da saudade como melancolia feliz*... Clarimundo: simbologia imperial e saudade... Sebastianismo: imagens e miragens ‘Romantismo, Camdes ¢ a saudade* ‘Tempo e melancolia em Femando Pessoa* ois principes da melancolia: Femando Pessoa e Luis FOriginalmente publicados em Mythologie de ta Saudade, Eitions CChandsigne, Outubro de 1997. Tradizdos do franets por Maria do Rosirio de Morais Vaz. PORTUGAL COMO DESTINO Dramaturgia cultural portuguesa E tentador assimilar o destino de um povo ao do individuo, com o seu nascimento, a sua adolescéncia, maturidade e dectinio. A analogia organicista é, naturalmente, falaciosa. Nem a povos ou civilizagdes extintos o paradigma humano se aplica. O tempo do individuo, a leitura que ele préprio faz do seu percurso, pode ajustar-se a esse processo de surgimento, afirmagdo e desapa- rigo. Um povo tem igualmente uma histéria e, por comodidade hermenéutica, pode ser tentado a ler 0 seu percurso em termos subjectivos de afirmacao de si, de presenga mais ou menos forte entre 0s outros ou de existéncia precéria ou ameagada neste ou naquele momento. Mas o tempo dessa histéria nfo é, como o dos individuos, pereebido ao mesmo tempo como finito e irrever- sivel. O tempo de um povo é trans-histérico na prépria medida em que € «historicidaden, jogo imprevisivel com os tempos diversos em que o seu destino se espelhou até ao presente e que © futuro reorganizaré de maneira misteriosa. Cada povo 86 0 & por se conceber e viver justamente como destino, Isto ¢, simbolicamente, como se existisse desde sempre tivesse consigo uma promessa de durago eterna. E essa con- vicgio que confere a cada povo, a cada cultura, pois ambos so indissociéveis, 0 que chamamos «identidade». Como para os individuos, a identidade s6 se define na relagdo com o outro. Como essa relagao varia com o tempo — é o que chamamos a nossa histéria—, a identidade é percebida e vivida por um povo 9 em termos simultaneamente histéricos e trans-histéricos. Mas s6 © que a cada momento da vida de um povo aparece como para- doxalmente inalterdvel ou subsistente através da sucessio dos tempos confere sentido ao conceito de identidade. Podemos assi- milar essa estranha permanéncia no seio da mudanga aquilo que 0s roménticos alemies designaram, para desespero da historio- sgrafia iluminista, como «alma dos povos». A realidade efectiva de um povo é aquela que ele ¢ como actor do que chamamos «historia». Mas 0 conhecimento —em princfpio impossivel ou inesgotavel — da realidade de um povo cenquanto autoconhecimento do seu percurso, tal como a historio- grafia se prope decifré-lo, no cria nem pode criar o sentido desse percurso. Nao é a pluralidade das vicissitudes de um povo através dos séculos que dé um sentido a sua marcha e fornece um contetido a imagem que ele tem de si mesmo. A histéria chega tarde para dar sentido a vida de um povo. $6 0 pode recapitular. Antes da plena consciéncia de um destino particular —aquela que a meméria, como crénica ou histéria propriamente dita, revisita —, um povo ¢ jé um futuro e vive do futuro que imagina para existir. A imagem de si mesmo precede-o como as tébuas da lei aos Hebreus no deserto. Sto projectos, sonhos, injungdes, lembranga de si mesmo naquela época fundadora que, uma vez surgida, ¢ j6 destino e condiciona todo o seu destino. Em suma, mitos. Enquanto povo, Portugal ndo se vive como surgido na «noite dos tempos». Tem, como todos 0s povos, a sua noite dos tempos, © seu vinculo & histéria comum, ainda hoje enigmética, da Eu- ropa, por sua vez religada a da Asia e da Africa. Mas, quando se define, nos meados do século x, como pequeno reino entre os diversos reinos cristios de uma Ibéria dividida a meias com o Isldo, que a invadira no século vir, jé nasce num quadro histérico com largo passado e, o que mais importa, com leitura dele. A sua primeira identidade e matriz quase intemporal da sua futura mitologia, aquela que no século xvt 0 poema nacional, Os Lusiadas, fixard, & de «reino cristo» obrigado a definir-se a0 10 mesmo tempo coritra o' reino vizinho de Ledo e Castela e a presenga mugulmana que ocupa o futuro espaco portugues até a0 Douro. O nascimento de Portugal como estado inscreve-se no movimento geral da reconquista crista do Isldo, que s6 termi- naré com a conquista de Granada, em 1492. Portugal € pr samente o primeiro reino da Peninsula a libertar-se da presenga do Islao ea ocupar, desde 0s fins do século xa até hoje, a mesma tira estreita & beira do Atlantico, a outra fronteira sem fim que mais tarde fard parte do seu espago real ¢ mitico de povo desco- bridor. A hora de nascimento de um povo — que pode ser ou ndo a da sua cultura —nio se compara a nenhuma outra. A de Portugal foi ao mesmo tempo simples e interminavel. Ainda hoje, olhando ‘© mapa da Peninsula Ibérica, ocupado quase todo com a grande mancha da Espana, custa a perceber como s6 0 pequeno rectingulo portugués se constituiu e, sobretudo, perseverou a0 ongo de oito séculos como uma nacao politicamente indepen- dente. E, com este estatuto, um dos mais antigos e coerentes estados da Europa, Compreende-se mal que 0 pequeno reino de Portugal do século xu tenha resistido ao destino comum de todos 8 pequenos reinos da Tbéria, seus contemporineos ou anterio- res, como 0s reinos de Aragio, de Castela e Leo, ou do condado da Catalunha, incorporados com 0 tempo a «grande Espanhay. Claro esté que a historia da Peninsula anterior & constituigao tardia dessa grande Espanha —a dos Reis Catdlicos, de Carlos, Ve de Filipe I — explica ou permite tornar mais inteligivel a insélita excepedo portuguesa. Do século x1 ao século xv, pe- iodo que vé a ascensdo irresistivel e hegeménica de Aragio Castela no espago ibérico e a que, com dificuldade, s6 0 pequeno reino lusitano escapa, a situagdo de Portugal, as suas forgas, os ‘seus recursos, 0 seu relacionamento com outros reinos da Penin- sula ou da Europa nao eram muito diversos dos da Catalunha, de Aragio, seu aliado privilegiado, ou da propria Castela e Leo de que se separou, seu adversirio potencial. Isto pode explicar, em parte, o aparentemente insélito milagre de uma sobrevivéncia WL politica e de uma autonomia histérica como a de Portugal. Nem por isso 0 seu caso € menos estranho e como tal foi vivido sempre, nio s6 pelos que consideram do exterior o destino por- tugués, mas sobretudo, e permanentemente, pelos proprios Por- tugueses. (© sentimento profundo da fragilidade nacional —e o seu reverso, a ideia de que essa fragilidade é um dom, uma dédiva da propria Providéncia, e 0 reino de Portugal uma espécie de milagre continuo, expresso da vontade de Deus — é uma cons- tante da mitologia, nao s6 histérico-politica, mas também cultu- ral portuguesa. Muitas nagdes — em particular as surgidas na 6poca da Europa medieval — representa as suas préprias ‘«cenas primordiais» sob o signo de Deus ¢ consideram o seu destino nessa mesma éptica providencial. A sacralizaglo das origens» faz parte da histéria dos povos como mitologia. Mas deve ser raro ter algum povo tomado to a letra como Portugal essa inscrigfo, nao apenas mitica, mas filial e jé messifnica do seu destino, numa referéncia, ao mesmo tempo lendaria ¢ fami- liar num horizonte transcendente, & do proprio Cristo, N&o apenas na ordem da crenga, ou, mais catolicamente, na da Fé, ‘que 0 povo portugués vive a existéncia e as suas peripécias sob a categoria do «milagre». Nisto ndo é ele diferente de outros povos, em especial dos que relevam do espago catdlico, herdeiro directo do paganismo e da sua familiaridade ontolégica com os deuses. O singular no povo portugués é viver-se enquanto povo como existéncia miraculosa, objecto de uma particular pre- dileogio divina. Dizer-se que se vive como «povo de Deus» seria irrelevante, sobretudo hoje, que esse conceito tomou um sentido mais vago. E como povo de Cristo, e nao meramente cristio, que, desde a sua irrupgdo na histéria medieval como reino independente, os responsdveis pela sua primeira imagem € discurso miticos o representam. Numa constincia e num fecha- mento sobre si mesmo de que s6 encontramos simil no povo |judaico, a representagdo simbélica de Portugal é a da Cruz de Cristo. De Ourique, onde, como a Constantino, mas na sua apa- 12 réncia de crucificado, e iio apenas como signo, Cristo se mostra a0 primeiro rei de Portugal, até Fatima, a configuragao simbética do destino de Portugal como destino cristico-mariano no s6 condiciona a imagem do povo portugués como actor histérico, mas também subdetermina a trama do imagindrio nacional e a dramaturgia da cultura portuguesa no seu conjunto. ‘Neste fim de século, inundado pela vaga cultural de todas as formas de irracionalismo ou de obscurantismo triunfalistas, recalcada ou contrariada durante dois séculos pela exigéncia do «espirito criticon, uma evocagio do destino portugués em pers- pectiva mitica ou mitolégica seria uma achega mais ao confor- mismo universal. © nosso propésito nao é o de, complacente- ‘mente, revisitando o que nos parece ser caracteristico da imagem e dos avatares do destino portugués durante oito séculos, com- preender a realidade desse destino, ainda em devir, mas 0 de insinuar que nao s6 ele ndo é inseparivel das ficg6es activas com que os Portugueses viveram ou vivem, como a sua leitura é impossivel sem ter em conta essas mesmas ficgGes, isto é, a mitologia que elas configuram. Desde o século xix, com 0 nas- cimento de uma histéria digna desse nome, imaginou-se, e com azo, que seria ela o lugar por exceléncia da compreensdo de 1nés mesmos como passado colectivo e, por consequéncia, a lei- tura mais adequada de um povo como destino. Da poética dessa histéria exclufa-se, por defini¢Zo, o que na ordem da informagao do passado relevava da lenda ou do mito. Era o prego a pagar pela nova inteligibilidade dos factos, dos sucessos, dos acon- tecimentos, que, assim expurgados da ordem do ficcional ou do inverificavel, adquirem «sentido» especificamente histérico. Supunha-se assim uma intrinseca racionalidade do agir humano remetia-se para a sombra ndo s6 0 que ndo deixa trago de existéncia verificdvel, como 0 que nio pode deixé-lo seniio nos seus efeitos, verificados ou adivinhados: intengSes, projectos, fantasmagorias da aco, delirios, sonhos, isto & a réverie ‘humana que antecipa e cria o espago onde todos os actos huma- nos adquirem ou falham o sentido ideal que os condiciona. Em B suma, a massa de sombra luminosa que chamamos 0 «imaginé- rio», a face ndo iluminada de frente por nenhum conhecimento dito «histéricon. Sé em fungdo dele, e nao o contrario, é possivel qualquer coisa como a autognose. O imagindrio transcende a mitologia constituida ou plausivel, mas é na mitologia, na ficcionalizago imanente & histéria vivida, que melhor o pode- mos apreender, Adoptando uma célebre formula de Kant, pode- mos dizer que a mitologia sem historia & vazia e a histéria sem mitologia é cega. ‘Acontece que, na ordem dos tempos, que é também a ordem, de leitura, a visio mitolégica antecede a histérica. A ideia de uma singularidade, e ainda mais de uma especificidade de Portugal e do seu papel no mundo —a parte a de ordem fiictica de monarquia independente e a do uso de uma lingua que no ¢. ainda afectada por qualquer valoracao identitéria —, é uma ideia tardia. As «memérias» do pequeno reino durante a Idade Média, na medida em que existem, ndo tém mais alcance que geneald- gico e em nada se distinguem das de outras nagGes da Peninsula. tempo desse Portugal é 0 aleatério ¢ fragmentario dos raros anais ou 0 mimético de crénicas inspiradas da historiografia cas- telhana ou dos paises mais cultivados da Europa. O préprio re- lato do «milagre de Ouriquen 86 retrospectivamente adquire uma configurago mitica. A universalidade do acontecimento — den- tro da visio cristd do mundo — néo podia servir de instrumento de «identificagio de um pais», para empregar a conhecida fér- mula do historiador José Mattoso. Todos os povos do Ocidente sfo igualmente cristios. Aos da Peninsula distingue-os 0 facto de serem fronteiras da cristandade. O seu problema é 0 da luta contra o Isldo, em que também estio empenhados, como se de cruzada se tratasse, outros povos da Europa. Ou, pelo menos, senhores e cavaleiros de além-Pirenéus. Independentemente de outros factores, este papel marcou e predestinou o futuro dos povos peninsulares. Deu-lhes uma imagem militante que nunca mais se apagou. Indirectamente, subtraiu-os aos conflitos agudos de largas consequéncias que caracterizavam a ja outra Europa, 14 rivalidades entre as emergentes nagdes hegeménicas (Franca, Inglaterra), lutas entre o papado e o império, ascensao das cida- des-estados ou comunas; nascimento das hansas do Norte, etc. Pela urgéncia do seu combate com o Islo, a Peninsula, mas em particular Portugal, ficou um pouco & margem do processo espe- cificamente feudal desses conflitos, através do qual uma nova Europa se inventava como espago econémico novo, o da nascente burguesia comercial. A Peninsula — talvez com excepcao da Catalunha— viveu-se de outra maneira, Até a0 século xv estard 20 mesmo tempo na margem dessa revoluggo econémica e na vanguarda politica — com a Franga—, se se entende por isso a antecipacao de um poder central forte. En- quanto «estados», as pequenas nagdes peninsulares, lutando en- tte si, no estavam, sendo por excepedo, & mercé de uma perma- nente redefinigdo do seu estatuto, como era o caso na Itilia, na Alemanha e Europa Central, na Inglaterra e até no paradigma da nagio-estado, a Franca. E, menos do que todas elas, Portugal, apesar ou por causa da sua pequenez. Do século xi ao século xv, Portugal no esta ausente nem das lutas entre estados peninsu- lares ou destes com o Isléo, nem do que se passa numa Europa que Ihe esta mais préxima do que esteve depois e com a qual entretém relagdes de ordem diplomética (ento concretizadas com casamentos de princesas suas com principes de nagées dis- tantes, como a Dinamarea) ou culturais, isto 6, endo, sobretudo religiosas. A Europa crista é, sob este tiltimo ponto, como se sabe, um todo mais organico do que o seré em seguida. Na extrema Europa, e a bragos com 0 inimigo mugulmano, por mais estranho que parega, 0 Portugal medieval foi «mais europew» e sobretudo menos itha do que 0.seré e se sentiré depois. Iha simbélica, entenda-se, mas é isso que importa. ‘Quando, nas primeiras décadas do século xix, Portugal, pela pena dos primeiros representantes de um novo Portugal — saido da revolugao liberal —, faz: balango da sua situago no mundo, isto é, na Europa, e, a0 mesmo tempo, se volta para o passado para saber se ainda teré futuro, f8-Io j& como se nfo fosse Europa, 15 ‘ou entio como se fosse uma outra espécie de Europa. E nto que se dé conta de até que ponto a sua situagéo é singular E dessa singularidade faz parte o estranhissimo fenémeno, mais do que paradoxal, de ter sido durante séculos uma nagdo que -viveu e se viveu simbolicamente como uma ilha, sendo ao mes- ‘mo tempo um povo que desde os séculos xv e xv1 se instalara no papel de descobridor e colonizador, em terras de Africa, do Oriente e do Brasil. Nesse diagnéstico nao era muito claro que essa situagdo de pais isolado — e por isso em perigo — € esse alheamento, pelo menos relativo, do movimento geral da ci zagio e da cultura europeias tinham uma relagdo intima com esse facto, ainda hoje insélito, de uma pequena nagao se ter conver- tido num império. Sé hoje, no fim desse império, aparece com outra evidéncia que a nossa situagdo de «ilha», quando nos con- sideramos em relac&o 4 Europa, est intimamente conexa com 0 nosso destino imperial, Durante séculos, nem para nés nem para (8 outros era Portugal mais do que «um pafs que tinha um im- périon. E esse estatuto, que foi —e continua sendo na nossa meméria — o identificador supremo de Portugal, convertera-nos na ilha histérica mitica por exceléncia da Europa. O Império Portugués ndo foi um mero prolongamento da «pequena casa lusitana» (primeira grande férmula camoniana de Portugal como ilha), um Portugal objectivamente mais poderoso e maior por possui-lo no espago europeu, ou sob o olhar europeu, que era entdo «o olhar do mundo. Também foi algo disso, no século xv1 e um pouco no século xvi, mas foi sobretudo, para o Portugal europeu, um refiigio. ‘Com os Descobrimentos e as suas consequéncias — estabe- Tecimentos na costa da india, em Malaca, na China, povoamento de ilhas atlanticas, colonizagio ¢ povoamento do Brasil, mais tarde, ou simultaneamente, presenga em Angola, Guiné, Mogam- bique —, Portugal entrou num tempo histérico que Ihe alterou n&o s6 0 antigo estatuto de pequeno reino cristéo peninsular, entre outros, mas a totalidade da sua imagem. Em sentido pré- prio e figurado, passou a ser dois, néo apenas empiricamente, 16 mas também espiritualmefite. Cam@es, que conferiu a nova idade de Portugal a sua maxima expresso simbélica e épica, conhece- dor desses «dois Portugais», falou da «alma [portuguesa] pelo mundo repartida», Na verdade, é de «visto» que se trata. O novo tempo imperial portugués —o da nossa cultura dai em diante votada a glosa intermindvel desse tempo, entre todos «glo- rioso» — néo se acrescenta, como fizeram os reis de Portugal a0 atribuirem-se os titulos das suas novas conquistas', ao «velho tempo portugués», dilacera-o. E, antes de tudo, metamorfoseia-o € com essa metamorfose instala Portugal e a sua cultura num espaco fechado, embora de ambito universal. Como se de stibito nos tivéssemos transformado numa auténtica «grande nagon, sem mais passado que o de Roma ou de Alexandre com o qual pudéssemos comparar 0 nosso, encerrimo-nos magicamente na esfera do Império e de lé olhémos e medimos, com os olhos de sonho que 0 Império nao menos de sonho nos dera, essa Europa a que, real e simbolicamente, primeiro do que ninguém, voltéra- ‘mos as costas. Por mais isolados ou marginais — aliés numa época em que © isolamento ¢ a margem eram um pouco o estatuto de todos os ovos ou culturas da Europa —, os Portugueses dos primeiros séculos da sua histéria estavam longe de se terem convertido nos sonhadores de si mesmos. Portugal, esse Portugal pobre, mas autogovernado, dos municipios & moda romana que o maior historiador de Portugal tanto admirava, era um actor realista ‘numa época dura, mas nfo menos realista, apostado na defesa da sua sempre frdgil autonomia politica, vivendo quase em autarcia e do comércio ainda rudimentar, herdado de Gregos, Fenicios ¢ Romanos, do Sul da Europa com os paises nérdicos, sobretudo com a Inglaterra, sua futura aliada. A luta com o Isldo ndo pre- cisa de justificagdes. A paz armada com Castela nascera no dia da sua separagio do reino de Ledo e Castela. Esse pequeno pais, " Reis de Portugal e dos Algarves, d’Aquém e Além-mar em Africa, da Conquista da Guin, da Etigpi, da india, ete. 7 ‘tem inimigos reais ¢ naturais, alia-se, dentro ou fora da Penin- sula, com os inimigos dos seus inimigos (Aragio, Inglaterra), os seus sonhos no so maiores do que as suas forcas. Sé a légica deles —afirmar-se contra o Islio — 0 levara a conceber uma primeira verso imperialista do seu futuro destino, por razies politicas, estratégicas e econémicas que tém como justificagio linica o reforgo e a preservacao da sua independéncia em relago a Castela, Os Portugueses tém tendéncia a pr entre parénteses © seu tempo africano, iniciado com a conquista de Ceuta, em 1415, continuado durante século e meio com implantagéo cus- tosa nas costas de Marrocos e terminado em tragédia — a tinica assumida corio tal no tempo euférico do destino portugués, nas areias marroquinas de Alcdcer Quibir. Ai pelos finais do século Xvi, um Portugal que entretanto explorara durante um século a costa africana, dobrara o cabo da Boa Esperanca ¢ se instalara frutuosamente na india, tornando-se a primeira poténcia colo- nizadora europeia, perde num tinico combate o seu jovem rei, D. Sebastifo, e pe em perigo uma independéncia politica velha de mais de quatro séculos. O Império-refiigio tinha-se tomado, com o tempo, um refiigio ilusério e fizera perder a0 pequeno pais que o inventara 0 sentido das realidades. Quase sem transi¢o, Portugal deixa de se viver como actor sujeito da sua prépria histéria, entra no tempo do seu apaga- ‘mento politico préprio, unido, pelas leis do tempo ¢ pelas rela- ‘Ges de forga, a uma Espanha, seu inimigo hereditario ¢ dai em diante, durante sessenta anos, seu parceiro forgado. Estas vi situdes histéricas, ao contrario do que poderia pensar-se, em nada alteram o estatuto cultural e ainda menos 0 religioso da nago portuguesa politicamente subalternizada. O cédigo cultu- ral da Peninsula tem uma estrutura comum, latina e crista. S6 as suas expressOes, a diversa meméria das suas linguas, apesar de tudo, préximas, as influéncias sofridas no contacto com as gran- des culturas do Ocidente, a que a Peninsula pertence, as fazem parecer mais distintas do que sto. De resto, 0 intercdmbio entre elas, pelo menos até ao século xvi, é permanente, com hege- 18 monismo castelhano em geral, mas também interesse ¢ fascinio pela cultura lusitana, sobretudo pela sua poesia lirica, Nada disto se altera com a perda de independéncia politica. Mas altera-se 0s poucos e, por fim, duravelmente, a imagem reciproca dos dois paises. A Espanha, durante o século xvu, integra, incons- cientemente ou ndo, o patriménio cultural lusitano no seu e Por- tugal, consciente ou inconscientemente, reflui para si mesmo, tomna-se de ilha imperial gloriosa em ilha perdida na qual espera a ressurreigio do seu passado simbolicamente intacto e como que sublimado naquela obra que durante esses sessenta anos guardaré intacta a meméria do passado. O sebastianismo é ape- nas a forma popular dessa crenga de uma vinda do rei vencido. O verdadeiro Sebastido ¢ 0 texto dos Lusiadas que desde entio — embora s6 0 romantismo Ihe confira esse estatuto — se con- verteu na referéncia icénica da cultura portuguesa. Por motivos ébvios, a posteriori, os Portugueses dramatiza- ram a unio forgada de Portugal 4 Espanha e a subalternizagio politica que essa unio representou e que nada tem que ver — a0 ‘menos numa primeira fase — com a ocupagdo de um pais por outro em termos modemos. Tratou-se de uma monarquia dual. Mas o facto de a capital ser Madrid e Portugal deixar de ser corte cra jé suficiente diminutio capitis para um povo que era cabeca do Império e hé séculos era e se sentia diferente. Tudo se passou como se Portugal tivesse ficado com um presente virtual, um passado morto, embora glorioso, e um futuro onirico. Precisa- mente, o fenémeno do sebastianismo encena estes trés tempos sem ver entre eles nenhuma contradig4o. Num primeiro momento € uma maneira de negar a realidade — a da morte do jovem rei e a da perda da independéncia, aliés equivocamente ressen- tida —, num segundo momento, mais positivo, a de afirmar a existéncia, ndo sé histérica, como imortal, de Portugal ¢ da sua missio transcendente na historia como povo messianico. E 0 messianismo intrinseco da cultura portuguesa, tal como os seus poetas, os seus tedlogos, os seus mitSlogos, o$ seus cronistas, de Feméo Lopes a Joao de Barros, com insisténcia o apregoaram, 19 que da corpo ao sebastianismo, e no a mera nostalgia mais ou ‘menos interessada pelo Desejado. ‘As categorias de ordem profana, tais como a historiografia moderna as explicitou, subordinando toda a compreensfo a um processo de causas e consequéncias e inscrevendo a aventura ‘humana numa temporalidade irreversivel desvinculada do seu suporte simbélico e transtemporal, adaptam-se mal a fenémenos da pura ordem do desejo e do sonho como o do sebastianism S6 numa cultura intrinsecamente mistica que coloca na ressurrei ‘s&0 e, por conseguinte, no futuro o tempo que, resumindo todos 6s tempos, Ihe dé sentido & que uma espera messinica, real ou simbélica, como a que o sebastianismo encarnou em Portugal, é ‘compreensivel. E ninguém a ilustrou melhor do que 0 autor da Historia do Futuro, o padre Anténio Vieira. Nenhum desmentido da experiéncia o arrancou ao sonho do regresso de D. Sebastiao, que deveria representar para um Portugal restaurado, mas sem- pre em vias de perder a sua recuperada independéncia, nao 36 a confirmagdo dessa nova vida, mas também o aniincio ¢ jé 0 comego de um Quinto Império, o de Cristo, de que Portugal seria a hist6rica manifestagdo. Anténio Vieira nfio era um louco rema~ tado, antes um sagaz observador do mundo, diplomata insigne ‘como seu qué de maquiavélico, entenda-se, ao servigo de causa ‘em si mesmo boa, como é proprio de um eminente jesuita. A sua visio, de forte inspirago biblica, constitui um todo. Nao ha outro cédigo para decifrar os aparentemente contraditérios e até perturbantes acontecimentos de um mundo criado por Deus governado pela sua Providéncia além do texto biblico. Que é um texto, no acidental, mas intrinsecamente profético. O tempo da profecia ndo se regula pelos imperativos da temporalidade hu- mana. Tudo nele sao sinais ¢ indicios. Portugal ndo é para ele ‘uma nagdo como outra qualquer. E uma nacdo literalmente eleita. Eleita para anunciar e ilustrar o reino universal de Cristo, tal como ele e os seus. companheiros de miss o anunciam em terras da China ou nas florestas da Amazénia. O destino singular e universal de Portugal nao se resume no facto de a sua presenga 20 e, com ela, a imagem de Cristo terem chegado aos quatro cantos da Terra. Esse é apenas um indicio exterior. Mesmo antes de se langar na sua aventura descobridora e missionéria, Portugal, para ‘Ant6nio Vieira, era jé um povo messianico. Um povo assim mo pode perecer. As suas quedas — como a de Alcdcer Quibir ou a da perda da independéncia — explicam-se por qualquer desvio do ideal de que € portador. Nao hé na cultura portuguesa dis- curso mais alucinatério e sublime que o de Antonio Vieira. E a sintese arrebatada, mas simbolicamente coerente, de cinco sécu- los de vida colectiva vividos com a convicgdo arreigada — mas também culturalmente cultivada — de que a propria existéncia de Portugal € da ordem no s6 do milagre, como da profecia. Pela sua publica fidelidade cristica, Portugal profetiza. Pelo menos, profetizava nos tempos de Vieira, nesse século xvit em que a cultura portuguesa, no sentido profano, mas tam- bém religioso, dialoga cautamente com a cultura dominante do ‘tempo. O seu tempo proprio & outro, o da fidelidade incondi- cional, exageradamente passiva, & ortodoxia consagrada pelo Concitio de Trento. Exagerou-se sem diivida, num tempo de reatamento com 0 movimento geral da Europa, como foi jé 0 do século xvii, ainda no tempo de D. Joo V, monarca faustoso mecenas de varios artistas europeus, e sobretudo no de Pombal, © nosso isolamento, tido como indeclindvel decadéncia. Mesmo Anténio Vieira, que na segunda metade do século xvi muito viajara na Europa ao servigo do Portugal restaurado, patriota ardente, sofreu com essa imagem de povo decaido, pouco conhe- cido e considerado na Europa. Sessenta anos de submissio po- litica a Espanha haviam subalternizado Portugal e, quando, em 1640, os Portugueses recuperam, penosamente, com forte auxi- lio diplomético ou conivéncia da Inglaterra e da Franga, a sua autonomia, é como se tivessem acordado outros. Conscientes disso, os seus reis nao sdo representados com a sua coroa real na cabega, mas com ela ao lado, em rica mesa. Alguma coisa se quebrara com o interregno filipino — assim serd pensado 0 do- minio espanhol apés a Restaurago — e a meméria portuguesa 2 integra uma espécie de ndo-tempo, que desde entdo sera sempre no s6 dolorosamente recordado, mas como que subtraido ao curso glorificado da nossa histéria. Emergindo desse tempo, baptizado como cativeiro, uma vez mais assimilado & época de escravidio do povo judaico em Babil6nia, a Restaurago s6 podia ser. pensada e vivida como 0 terceiro milagre portugués. E ninguém contribuiu mais do que Anténio Vieira para Ihe conferir esse estatuto, Na logica profé- tica de Anténio Vieira importa tanto a temporalidade sincrénica dos acontecimentos como a capacidade de os usar para fins, na 6gica ordinéria, inconcilidveis. Sobre a experiéncia dos tempos de cativeiro, resgatados pelo seu fim providencial, Anté: Vieira, reunindo numa s6 visio as profecias do sapateiro Bandarra, émulo de Nostradamus, as esperangas no regresso de D. Sebastifo, refundador no s6 do reino perdido, mas de um novo reino, erguerd a sua utopia de um Quinto Império, prome- tido, segundo ele, ao primeiro rei de Portugal e contido nos Descobrimentos iniciadores ¢ iniciéticos do infante D. Henrique. Esta utopia e o seu sonho chegaram intactos até a Mensagem, de Femando Pessoa. Mas porventura o mais original, nesta versio de um Quinto e iiltimo império sob a égide de Cristo, foi o facto de Anténio Vieira ter imaginado que a sua prova, igualmente © seu centro mitico, nao seria tanto o abatido Portugal como 0 Portugal restaurado, para quem o jovem Brasil era jé a anteci- pada certeza de perenidade e grandeza. Atentou-se pouco, tomando-a como interessado desvario, que © Norte do Brasil fora a terra missionéria de eleigdo de Anténio Vieira, nesta translago do sonho imperial portugués do Oriente para 0 Brasil. Nos dois casos, Portugal habituara-se a viver fora de si mesmo e a vincular a sua imagem tinica de povo europeu a esses dois espagos. Mas um encolhia a olhos vistos, 0 do Oriente ou o da primeira expansio africana. Ainda nos meados do século xvi, Portugal abandona os seus pontos fortes em. Marrocos. E no século xvi vai deixando a Holandeses e Ingleses © monopélio comercial do Oriente. Com a Restauragio, para 2 wera | assegurar o apoio agoo, corners = roman uma sa 4 aliada ¢, desde entio, sempre protectora Inglaterra, Ficava o Brasil, que, liberto da ameaga holandesa que Anténio Vieira vivera de cruz, arma e palavra nos labios, se desenhava como refigio, promessa e garantia de uma sobrevivéncia politica nacional sem par. Durante mais de dois séculos, Portugal — e ainda mais os portugueses do Brasil e 0s jé brasileiros — inventa © Brasil e o Brasil assegura a Portugal, por vezes em sentido literal, a sua sobrevivéncia. Esta deslocagao real e imaginéria da historia portuguesa, tida em pouca conta na tradicional verso do seu percurso cultural, ndo constituiu menos um acontecimento de incalculaveis consequéncias. E sb hoje nos obriga a rescrever de outra maneira a singular peregrinagao, a primeira vista incoerente e esfacelada, da cultura portuguesa, tal como os espiritos criticos do século xvull, a Geragio de 70, no século xrx, ¢ até Antonio Sérgio, no nosso século, a visionaram. Isto ¢, como um aberrante e drama- tico proceso de decadéncia, mais ou menos conexo com a subalternizagio politica, decadéncia em todas as ordens, desde a econémica até a das artes, das letras, para nao falar da ciéncia, por assim dizer inexistente, ¢ da filosofia, mero comentirio dos grandes autores escolisticos dos fins do século xvi, principios do século xvi, Em suma, o Pais e a sua cultura tinham-se conver- tido, aos olhos dos raros espiritos criticos nacionais e a olhos estrangeiros (ao menos era o que se dizia) no grotesco e misero Reino da Estupidez, apodo que chegou até & nossa geracio, ‘embora por motivos um pouco diversos. Naturalmente que este diagnéstico, lavrado no século xvi por varios autores, mas sistematizado, para fins de regenerago de tio lamentivel panorama, por Luis Anténio Verney e o seu célebre Método de Estudar, néo era inteiramente falso. E em varios dominios mais do que justificado. Particularmente no dos novos conhecimentos cientificos, que desde meados do século xvii se haviam tornado a pedra de toque da modernidade e de que ‘nds (mas igualmente a vizinha Espanha) estivamos, por assim 23 dizer, ausentes, ou s6 possuiamos uma informagao de outiva, desprezada pelo ensino dominante. Levaremos séculos a pagar este objectivo atraso e a sofrer os seus efeitos em todos os do- minios. Nos fins do século xvii, 0 matemético ¢ poeta José Anastécio da Cunha, ao corrente do novo espirito cientifico na sua drea, evocando o estado da cultura. portuguesa em relagdo & ceuropeia— exercicio obrigatério depois, durante dois séculos —, 36 via em Camées, no passado, nome digno de figurar no panteio das glérias da Europa. Era um exagero, mas marca bem 0 sen- timento que, no século das Luzes, aqueles que entre nés viam nelas a propria expresstio do progresso € do espirito modernos tinham do seu pais e da sua cultura. Com o esgotamento —ou a relativizago — da ideologia propria das Luzes seria tentador inverter, como o faz 0 sector mais assumidamente «reaccionério» do pensamento portugués, ‘no s6 suspeitar, mas inverter o diagndstico da nossa célebre «decadéncia» de Pais da Estupidez. Nao tém faltado provocado- ras ¢ brilhantes tentativas nesse sentido. O exereicio € facil, mas eivado de tanto ressentimento cultural e ideolégico como o era © proceso, mais justificado pelos factos, do nosso «atrason cultural, levado a cabo por Verney, Antero e Anténio Sérgio e seus seguidores. Felizmente que, desde hé meio século, um co- nhecimento mais sério dos nossos séculos xvi e xvi permite sermos mais justos para com eles, isto é, para com nés proprios, ‘como cultura portuguesa. Nao hé divida de que uma boa parte da cultura portuguesa funcionou entio em termos de arcaismo, saber repetitivo ao servigo de uma ideologia religiosa — méscara da religifio— em estado de excepcional hagiografismo ou de autodefesa em relagio ao discurso no menos ideolégico, mas ‘mais autocritico e criativo, da Europa protestante, politica e eco- nomicamente dominadora. Menos do que se diz, por impossivel, «fech4mo-nos» & Europa, levando assim a rara perfei¢ao a ten- déncia ingénita de nos vivermos como ilha, que a nossa fuga da Europa, com os Descobrimentos ¢ a colonizagdo, paradoxal- mente acentuou. Mas este fechamento, tio bem comparado 4 mais tarde, por Oliveira’ Martins, ao de uma «lamassarian & Portugal a uma espécie de Tibete europeu, era, no outro lado do Atlantico, lenta construgo de um futuro pafs-continente, de onde nos finais do século xvu, nos viria um ouro mal e bem empre- gado (do ponto de vista da metrépole), e, no inteiro espago portugués, em termos de cultura, condigio daquilo que & a varios titulos, a mais original manifestagdo estética portuguesa: © barroco. Fenémeno europeu, do catolicismo contra-reformista, sem chivida, mas a que a circunstincia portuguesa, mesmo no Ambito de uma evidente decadéncia politica, emprestou um esplendor universal. De Macau a Belo Horizonte, as igrejas e os palicios daqueles séculos falam ainda hoje uma cultura de glo- rificagdo onirica de nés mesmos e da nossa maneira extasiada, feérica e lidica de sermos cristios sem tragédia cristi. E este cbarroquismo» histérico € uma das componentes, ¢ no das ‘menos significativas, da nossa dramaturgia cultural. Com os Sermées, de Vieira, 0 espaco dourado do nosso barroco, que foi também a nossa maneira de esconder e transfigurar a morte, foi © nosso real e tinico Quinto Império. Nem 0 romantismo, nem, em geral, o século 20x se reclama- ram desse barroco e menos ainda do Portugal onde representara ‘uma cultura em estado de felicidade piblica — com a tragédia do terramoto mais célebre do século no meio—, plena de pe- regrinos, de culto divino profanizado e de culto profano divi- nizado— evocado magistralmente por Oliveira Martins ressuscitado com ironia no mais célebre livro de José Saramago, O Memorial do Convento. Antes de ser para nés a expressfio de um novo Portugal, o romantismo foi, na Europa além-Pirenéus, a expresso de um certo cansago europeu, apés 0 acontecimento capital da histéria politica do Ocidente — a Revolugdo Francesa © a sua consequéncia napolenica — que pée termo ao Ancien Régime e que, na ordem da cultura, entrelagou a epopeia com a nostalgia. Mas, sobretudo com a Alemanha e na Alemanha, fez. da cultura, e nfo da politica, a esséncia da nagao. E neste sentido, @ nfio no meramente ideolégico ou filoséfico, que o romantismo 25 & a weriticay do século das Luzes, que ja fora ut6pico, mas néo onirico, como ele o sera. Depois do Renascimento, 0 roman- tismo foi (@) a maior revolugao cultural do Ocidente. Melhor dizendo, espiritual. A Revolugdo Francesa consagrara os direitos do homem —seus direitos de homem e cidadio—, 0 roman- tismo instala a concreta humanidade no coragao do mundo. Como ‘Kant, seu inocente pai espiritual, o propusera, o Eu é a forma do universo. Mas um Eu universal ¢ singular ao mesmo tempo. ‘Nenhuma revolugéo cultural nos veio mais de fora — no sentido préprio e figurado — que o romantismo. Por isso mesmo nos foi ele outra coisa bem diferente da que péde ser nos paises de cultura protestante, de que & a sublimagio ¢ a conclusio natural. Nés adaptémos o romantismo a uma cultura e a um pais, que nao tivera «Luzes» —nio se pode chamar assim ao despo- tismo iluminado de Pombal —e adogdmos com ele uma ruptura politica que viera nas bagagens de Napoledo em 1807 em 1820 permitira o dificil triunfo do liberalismo. ela primeira vez, em séculos de unanimismo religioso, cul- tural, politico, ético, desde as invastes napoleénicas até ao de- finitivo estabelecimento da monarquia constitucional (1834), Portugal discute-se. Pot conta do que é ou foi, por conta do que no € © quer ser: um pais europeu, com o mesmo ou andlogo modelo politico e cultural corrente na Europa. Desde entio, de ‘uma certa maneira, Portugal e a sua cultura nunca mais deixaram. de se discutir. Confusamente, polemicamente, como era de espe- rar quando 0s dados da questo no resultaram de uma histéria interna com necessidade, gosto, capacidade ou possibilidade de se discutir, toda ela empregada, em casa ou fora dela, na defesa ia identidade e maneira de ser e, fora dela, na voca- ia que se outorgou na sua época urea. Apesar disso — e este foi um dos momentos excepcionais da nossa cultura e, como tal, permanece exemplar —, gragas aos criadores do nosso romantismo, Almeida Garrett ¢ Alexandre Herculano, essa época sem precedentes na nossa histéria, ¢ por via de consequéncia na nossa cultura, foi pensada e admiravelmente 26 pensada, de acordo com as necessidades e urgéncias profundas do Pais, como nunca mais o serd. A sua maneira, poeticamente ‘um, ideolégica e filosoficamente outro, Almeida Garrett e Her- culano refundaram Portugal, reenquadrando, repensando e remitificando 0 nosso imaginério cultural. O que o grande reformador Mouzinho da Silveira inscreveu na histéria real do Pais, eles 0 inscreveram, mais duradouramente ainda, na nossa historia ideal. Almeida Garrett e Herculano «refundaram» Portugal porque, pela primeira vez, e de uma maneira mais radical do que acon tecera nas raras mas fortes crises que pontuaram a nossa histéria de nagio independent, o Pais esteve em sérios riscos de perecer. E de uma maneira que nfo afectaria apenas a sua expressiio politica, mas 0 seu todo como organismo histérico e cultural. Inconscientemente, levéramos séculos a afastar-nos de uma «fa- talidade» europeia e do jogo de forgas que ela representava, reforgando a nossa capacidade econémica com o trifico affi- cano, © comércio do Oriente, o agiicar e depois, miraculosa- ‘mente, 0 ouro do Brasil. A Espanha, a bragos com os seus deve- res de poténcia europeia, engrandecida, mas também ocupada com a gestio do seu imenso império e a defesa precéria dos galedes de prata e ouro que dele regressavam, num processo de decadéncia paralelo ao nosso, teve de consentir na nossa inde- pendéncia e de desistir do seu secular sonho unitério, Precisva- mos da Europa — sobretudo da Inglaterra e da Franca — para preservar a independéncia reconquistada, mas no tinhamos in- teresse em nos intrometer nas suas querelas intermindveis. Como para todos 0s povos pequenos, 0 nosso interesse era sermos neu- ‘tros. Mas para ser uma outra Suia, quando se foi naco impe- rial, é preciso, além de montanhas intransponiveis, riquezas. Sem ‘© querer, Portugal foi implicado nas diversas querelas de familia das poténcias europeias modemas. Sem lucros, mas também sem_ grandes danos. Numa delas perdemos Olivenga, de que ainda hoje nos lembramos. Infelizmente, com a Revolugio Francesa, a Europa e mesmo o mundo tinham entrado na época da politica 21 ¢ da guerra propriamente modemnas. Isto é, pré-totais. Portugal ‘do tinha resposta para esta nova espécie de guerra e de inédita situagdo. Em 1807, quando Junot, com a conivéncia de Espanka, i vade Portugal, a Europa assiste a um espectaculo inédito: a fa- rilia real portuguesa, protegida pela frota inglesa, embarca para © Brasil. J4 nos primeiros anos da Restaurago, temendo nova ¢ definitiva anexagao de Portugal, o rei de Portugal pensara seria- mente retirar-se para os Agores. O Império Portugués, tio pouco presente, na aparéncia, nos cuidados da metr6pole e ainda menos nos do portugués comum, cumpria & letra o seu papel de refitgio. ‘Nao sabiamos entio que nfo regressariamos os mesmos da famosa fuga para o Brasil, dentro em breve pensado como nagio irma e como um Portugal maior. Mas também o Portugal metro- politano nunca mais seria o mesmo. Ocupado durante trés anos, ‘com intermiténcias, prometido a uma reparti¢ao entre a Franga, a Espanha e o rei de Portugal, o Pais experimentou-se entéo como um povo jogado aos dados. E nio foi o governo de Beresford, general inglés, exercendo o poder em nome do rei ausente, que modificou o panorama. Portugal estava em discus- sli na balanga da Europa e isto era jé uma situagao ins6lita para uma velha nago que nunca fora partilhada nem objecto de olbar alheio, mas actor, ainda que diminuido, de vida propria. ‘Com o rei longe, embora sempre amado e obedecido no pe- riodo da regéncia, Portugal e os Portugueses, pela primeira vez divididos ideologicamente — ao menos uma pequena minoria — comegam a preocupar-se ¢ a ocupar-se com o destino de Portu- gal. Como se fossem ja cidadios endo meros sibditos. E a esse titulo, revoltados contra a tutela inglesa de Beresford e invocando a sua fidelidade ao rei ausente e as tradigdes do Pais, que 1820 levam a cabo a Revolugdo Liberal, tomando como modelo politico a Espanha, a das cortes de Cédis de 1812. Com o voto da Constituigdio de 1822 nasce o liberalismo em Portugal e pede- -se ao rei que regresse para jurar a Constituiglo. A semente estava langada, embora fossem precisos doze anos, a tinica das nossas 28 guerras civis ¢ 0 exilio dos nossos poetas futuramente romanti- cos, para separar 0 Portugal velho do Portugal novo. ‘Separaco dificil na‘ordem politica, mais dificil, mas, curio- samente, radical na ordem econémica, teria de ser, por assim dizer, complexa e até impossivel na esfera do que ainda no se chamava cultura. Tratava-se, simplesmente, de questionar a men- talidade nacional, conservadora na ordem dos costumes, autorité- ria no plano da justiga, dogmatica no dominio das ideias, intole- rante em matéria de crenga — como o seré no da descrenga quando chegar a sua hora—, horizonte e matriz da visdo portu- guesa do mundo. Esta imagem parece designar um comporta- mento e uma sensibilidade de povo particularmente fandtico e, sobretudo, inculcar a ideia de que esse hipotético ou real fana- tismo se deve 4 maneira como os Portugueses assumem ou viver a religiao catélica, Como da nossa histéria faz parte nao sé 0 epis6dio pouco exaltante da expulsio dos Judeus ou da sua con- versio forgada, mas também o mais longo e estruturado da Inqui- sigdo, esse fanatismo e a sua matriz religiosa no parecem discu- tiveis. A matéria ¢ complexa. O povo portugués no é o tinico a merecer 0 apodo de «fandticon, se estas generalizagbes sto acei- taveis, Como 0 bom senso cartesiano, o fanatismo ¢ a coisa mais ‘bem partilhada do mundo. O que se chama fanatismo — expres- silo exacerbada da recusa da palavra ou crenga do outro e afirma- do brutal e acritica da propria — pode ter a ver com a religifio ‘ou autojustificar-se com a sua defesa. Mais o sera se 0 contetido dessa religido for, ele proprio, de natureza intolerante, pratica obrigatéria de exclusdo ou até aniquilamento do adversério dela. N§o é certo que alguma «religido» se possa definir assim. Em todo o caso, nao é essa a esséncia do cristianismo, Religio, por exceléncia da ndo-etnicidade, exclui, por definigao, toda a inci- ‘tagdo ao fanatismo. Acontece, no entanto, que o comportamento ‘humano, individual ou colectivo, enquanto motivado realmente pelo religioso, é raro. Mais depende de uma pratica cultural regida por imperativos de outra ordem: étnicos, sociais, politicos, em suma, intrinsecamente ideolégicos. E, na defesa deles, nao s6 29 © fanatismo no € impossivel, como & quase fatal. A religio & s6 a mascara mais nobre dos interesses, no que eles tém de menos confessével ou mais inumano. E disso que o fanatismo é feito. A caltura portuguesa, tendo como referente mitico 0 catoli- cismo e, por sua vez, 0 catolicismo assimilado a nossa historia ideal de cruzados de Cristo durante séculos, integra em si, como uma espécie de imperativo, a defesa dos sagrados valores do cristianismo, Tais como uma certa tradi¢Go, um certo passado cultural sem hébitos de intensa reflextio ou de tolerdncia os vi- vem e tém tendéncia a vivé-los. Durante séculos, Portugal foi realmente uma nago-cruzada e nfo & qualquer coisa que se possa ter sido impunemente, Mas, durante os mesmos séculos, ‘08 Portugueses adaptaram a eldstica pritica «religiosan que é a sua, que jé Oliveira Martins evocava como seu imanente paga- nismo e Jaime Cortesio, talvez. com mais razo, como seu natu- ralismo, as exigéncias mais austeras ou refinadas do cristia~ nismo. Se o «fanatismo» realmente ainda hoje presente na mentalidade portuguesa —mas ndo mais do que em muitas outras—, sob formas que ja nada tém a ver com a religiio, ‘marcou a nossa tradigo cultural e espiritual como cultura de pouco didlogo» ou «nfo didilogo», talvez isso se deva menos ao influxo passado de paixio religiosa pritica que ao facto mais profundo da nossa inconsciente imersio do que somos como individuos no que somos como colectividade. Fizemos sempre tudo colectivamente, até os Descobrimentos. A emergéncia do individuo na cultura europeia foi lenta, penosa ¢, em termos de aventura participada — passe o paradoxo —, rara. A nossa co- megou justamente com o romantismo, e por isso foi herdica a Juta que na nossa cultura, naturalmente holistica, se travou para fazer dele, enquanto cidadio e enquanto actor cultural, o sujeito de um novo Portugal. Almeida Garrett e Alexandre Herculano foram dois admir- veis individuos. Tao individuos que cada um deles marcou 0 novo Portugal com a sua imagem. Embora nao se contradizendo, cessas imagens reestruturam, pela primeira vez, 0 imaginério 30 portugués, fora do cAnone — ou c&nones — do nosso idedrio nacional, assimilado grosso modo ao da tradigao catélica, revisi- tada ¢ estritamente pautada pela «romanizacio» e «politizagaion do cristianismo pelo Concilio de Trento. Com ambos, Portugal, a sua hist6ria, o seu destino, vo ser pensados, problematizados, discutidos em termos profanos. Cronistas, historiégrafos-mit6- Jogos como Jo&o de Barros, Camées, seu e nosso sublimador, tedlogos hagidgrafos, profetas de génio como Vieira, todos ins- crevem a visdo de Portugal numa esfera de contesdo transcen- "dente. Almeida Garrett e Herculano inscrevem-na na Histéria. ‘Na hist6ria politica propriamente dita e na histéria da cultura, balbuciante, mas ja com ilustres pergaminhos uma, apenas adi- vinhada outra. E, como entre nés as no havia, inventaram-nas. A Historia de Portugal de Alexandre Herculano nfo é uma entre ‘outras, éa primeira digna desse nome escrita de dentro e segundo as mais rigorosas exigéncias da época. E jé também, e intrin- secamente, Portugal como historia. O inacabado monumento ficou perfeito no seu inacabamento, E também uma leitura do nosso passado luz do presente, um Portugal que, de armas na mio, se conquistou como liberdade. E é 0 passado dessa liber- dade — quando, na sua perspectiva, mereceu esse nome — que ele exuma ¢ exalta. Um passado julgado mesmo com severidade — nio sé pelo infamante Santo Oficio, mas também pelo pendor tirdnico e até pela cegueira ¢ fumos da india—, antecipando a leitura dramatica da geragio seguinte. Miraculosamente, con- tudo, tenta preservar os dois Portugais que sob os seus olhos se digladiaram, conciliando liberalismo com cristianismo. Nao por oportunismo, como a cultura oficial do constitucionalismo o faré, ‘Mas porque tal era a sua visdo da historia e a exigéncia do seu individualismo ético. De tio fundas consequéncias como a fundagao «historialy de Herculano foi a recriagao visionaria e mitica de Garrett. O que Herculano fundou em prosa epicamente nostélgica, Garrett fun- dou em nostalgia elegiaca, colocando Camées, de uma vez para sempre, no centro da nova mitologia patria, patria de feitos, sem 31 diivida, mas patria de canto, de cultura, sem as quais a meméria deles nao existe. Mas no 0 pos no centro sem the mudar de algum modo o contetido e, até, de o inverter. E ele 0 verdadeiro rei Sebastido ou, pelo menos, o seu livro 0 novo Gral, pois foi por via dele, como no seu drama Frei Luis de Sousa é manifesto, que a esperanca da ressurreicdo patria se conservou. Patria que nesse momento de liberdade triunfante, mas impotente — tio vulnerével a sente Garrett como quase todo o seu século—, precisa de se lembrar do seu passado glorioso para nil desespe- rar do futuro. Portugal existe porque existiu ¢ existiu porque ‘Cam@es o salvaguardou na sua meméria, como a dos Hebreus se perpetua na Biblia, Garrett nao espera 0 futuro ¢ o renascimento da alma e da cultura portuguesas de qualquer profecia com ga- rantia providencial, mas da vontade e da capacidade de rees- cerever 0 seu passado como se fosse presente e de reler nas pedras do presente que atestam tio glorioso passado, «viajando na nossa terra», a mensagem do futuro. A saudade é gosto amargo do bem passado, «delicioso pungir de acerbo espinho», mas igualmente penhor de ressurrei¢do do que, por excesso de vida, no pode morrer. Com ele, a saudade ndo é apenas perfume de alegrias mortas, sentimento um pouco desencantado de nfo encontrar no presente a imagem perdida de um pafs fora da hist6ria, como Ihe parece —ou parece o seu a olhos estranhos —, mas 0 corpo € a sombra da alma portuguesa. Unindo historicamente, ¢ nfo acidental ou liricamente, Portugal e a saudade, Garrett instaurou a primeira mitologia cultural portuguesa sem transcendéncia, ‘A que fez do pais de Camées o pafs-saudade, 0 Portugal-sau- dade, que nfo tem outro destino seno o da busca de si mesmo. Com adequagio aos tempos e aos modos da futura vida portu- guesa, 0 essencial desta percepgo mitica de Portugal permane- cera intacto até aos dias de Pascoais e de Pessoa. © nosso romantismo inventou uma imagem para 0 novo Portugal e com ela criou uma cultura diferente da antiga, in- quieta, exigente, destinada a descobrir o enigma do passado ¢ 0 ‘no menor do nosso eclipse, mais aparente do que real. Ele esco- 32 Iheu no passado as altas referéncias — Femo Lopes, Bemardim, Gil Vicente, CamSes —, colocou-as numa histéria onde elas no estavam seno como fantasmas no nevoeiro e, procedendo assim, simultaneamente inventava-nos como wma cultura e como cultu- ra, Ao mesmo tempo, escolheu uma meméria, leu-a em funcdo dos valores do presente, gosto da liberdade, paixdo da gléria, horror da intolerdncia, Ao gosto das ruinas de Herculano juntou 10 gosto mais so e ristico da terra e da paisagem portuguesas, ‘gosto da natureza e do natural, mais tarde destinado ao ditirambo narcfsico. Que iria fazer a geragao seguinte desta dupla heranga de reapropriagdo do passado — que fora também depuragio — ede descoberta das «nossas coisas», para usar um famoso titulo de José Régio? Descobertos e reinterpretados em estado de urgéncia, Portu- gal e a sua cultura vo ser ao mesmo tempo inventariados, des- critos, sondados como objectos de sonho, de desejos, de revela- do romanesca, to dignos como as nagdes-fardis da cultura europeia e analisados, comparados, escalpelizados sem piedade, mas com paixdo, no seu estatuto cultural, na perspectiva fasci- nada e legitimadora da civilizagio, tal como as préprias nagdes hegeménicas da Europa a ilustram. Este «regresso a Portugal», ou da cultura portuguesa ao seu passado e as visdes que nele a determinaram, tal como 0 nosso romantismo as ilustrou, tanto como o seu prolongamento na época e épocas seguintes, no significam um «ensimesmamento» narcisista do nosso imaginé- rio, como seriamos tentados a crer. O romantismo nao veio s6 histérica e culturalmente «de fora», ele foi, na sua origem, aber- tura e encontro com a nova cultura europeia, com a qual conti- ruou a dialogar criticamente, como as obras de Garrett e Hercu- lano 0 mostram. Desde o Renascimento que a nossa cultura no dialogava tio fundo e tio originalmente com a cultura europeia. Por muito intensa e da mais alta qualidade que tenha sido a relagio de D. Francisco Manuel de Melo — ou, noutro angulo, ade Anténio Vieira — com a cultura geral da sua época, ela no teve nem o alcance nem o carécter de «ficcionalizagdo» do ima- 33 gindrio alheio, como seri de novo, apés o exemplo impar de CamBes, 0 caso do nosso romantismo. Goethe, Ossian, Rous- seau, Chateaubriand, Klopstok, Schlegel, Byron, Walter Scott foram, com os grandes historiadores da Alemanha e da Franga, ‘0s mediadores-mediados dos nossos dois grandes romanticos. E 0 mesmo sucederé em seguida com os expoentes da fic- go romanesca do século: Balzac, Hugo, Eugéne Site, Ale- xandre Dumas ou Dickens, na época de Camilo e de Jilio Dinis. Num caso e noutro, os nossos autores, a partir do ro- mantismo, viajam ao sabor da sua curiosidade no mundo dos ‘outros a partir de um «dentro» ou em fungdo dele. E desse «den- tro» fazem parte menos contexto e as circunstincias de vida real da sociedade portuguesa, consciente da sua nova sensibili- dade «omanesca» invadida pelo imaginério alheio veiculado pela moderna imprensa e pelo folhetim, do que a nova trama do ‘nosso imagindrio caseiro agitado pelo romantismo e pela sua aspiragao latente a pér em causa a complexa trama dos nossos valores, menos determinados pela estética que pela ética e pela religido. Nessa trama, a obra gigantesca de Camilo, naturalizando entre 16s a fiego, dando-Ihe como pasto inesgotivel o mundo senti- ‘mental e passional de uma sociedade que entra no seu século de vapor e ferro com os vagares de uma diligéncia, nfo inscreve ‘uma ruptura que possa comparar-se & do primeiro romantismo, ‘A sua intengio nfo 6 mudar Portugal, contribuir para renovar 0 seu modo de ser e ainda menos pensé-lo. O seu designio é ape- nas encenar a vida portuguesa como teatro de sentimentos, palco de conflitos entre o dever e a fatalidade, 0 bem e o mal. Sé este subjectivo e desconhecido retrato de Portugal, pais de paixdes, e como paixio, Ihe interessou. O seu sucesso foi & medida do piblico cujas vidas, tragicas ou cémicas, sondou, com pena ré- pida, molhada em sangue e lagrimas. Com ele tivemos a nossa pera escrita, mais gritada do que cantada. Paralelamente, sem 0 ter feito de propésito, o retrato mais fidedigno, sob as suas rou- pagens melodraméticas, do Portugal profundo, ristico, provin- 34 cial, dividido entre a libertinagem cfndida e a repressio silen- cciosa, como entre a avidez de pobre e o sonho de riquezas ima- no «universal» ou, pelo menos, no «transnacional», como o proprio Antero o fez em 1868, entusiasmado pela revolugdo espanhola, de idedrio federativo e iberista. O autor das Causas da Decadéncia, futuro iberista, apenas lido na perspectiva politico-ideolégica, dificilmente esca- pava & acusagao de antipatriota. Na verdade, Antero de Quental, talvez por acoriano, mas mais por consciente adesdo a uma viséo da historia de inspiragao hegeliana, nao teve pela «nagao» aquele centusiasmo e sentimental afecto que tanto inspirou Garrett e 0 seu préprio mestre na leitura do nosso pasado, Alexandre Herculano. A sua atitude neste capitulo, sem ter a originalidade © a complexidade da de Nietzsche em relago & Alemanha, tem com ela alguma analogia. E o primeiro intelectual «nfo nacio- nalista», no sentido banal da nossa cultura. E isto nunca mais Ihe 4 seré perdoado. E porventura, de um certo modo, embora mais tarde partithasse 0 sentimento de indignagao patriética geral diante do Ultimatum que a Inglaterra, por motives relacionados com a partitha de Africa, enderega a Portugal em 1890, também ele a si mesmo se ndo terd perdoado. Profeticamente, no texto da sua conferéncia, ele confessa — sobretudo quando evoca a pas- sada gesta dos Descobrimentos, em si mesma no condenével, nnio fosse o espirito de cobiga que levava dentro— como & dolorosa esta sua luta contra as i/usdes inocentes ou cientemente cultivadas que tinham para nés a cor e a forga de verdades ins- piradas. E como ele mesmo, denunciador temerério de um estado de coisas intoleravel, de um pais sem politica digna desse nome, miseravel, pouco instruido, lantema vermelha da Europa, depois de ter sido, num passado convertido em pura retérica, um dos seus fardis, teria de pagar o prego mais alto por essa pretensfo de abrir os olhos a um pais declarado sondmbulo, convocando-o para uma palingenesia que, no caso portugués, s6 podia ser da ordem do milagre. ‘Na sua gera¢do, por mais acompanhado que parega, e no panorama geral da cultura portuguesa até hoje, Antero de Quental é uma figura solitaria. Nao fosse a qualidade poética dos seus Sonetos, um dos cumes do lirismo pessimista e idealista do século xrx, e a sua figura enquanto pensador e critico da cultura portuguesa nao teria recebido mais do que o respeito dlgido, a leitura envergonhada ou excessivamente esquematizada que, salvo raras excepgGes, entre elas a capital, de Anténio Sérgio e do seu discipulo Joel Serrio e, mais recentemente, de Femando Catroga, Nuno Jiidice ¢ Ana Maria Almeida Martins, the tém sido reservados. Miguel de Unamuno, no mais célebre dos seus livros, inclui-o entre 0s catorze grandes nomes que no passado século teriam encamado «o sentimento tragico da vida». A honra é merecida, mas induziu Unamuno, espirito paradoxal e angus- tiado, a pensar que, a exemplo de Antero, nobre suicida, Portugal ea sua cultura exemplificavam, como poucos paises ou culturas, ‘esse famoso sentimento tragico da existéncia, Algumas aparén- 42 cias ¢ @ estado pouco brilliante dos negécios piiblicos ¢ da socie- dade portuguesa dos fins do século xx e principios do nosso século emprestavam ao diagnéstico de Unamuno alguma verosi- milhanga. Ontem, como hoje, confundia-se um certo pendor melancélico, alias complexo, do povo portugués com qualquer percepgao da vida e do destino como essencialmente «tragicon. Talvez haja alguma verdade nesta imagem que & costume evocar em relagio a este povo que canta «o fado» ou no fado se canta, Mas essa verdade reporta-se apenas ao sentimento de precariedade e de dependéncia, no em relago ao destino e & fortuna, como se dizia pagamente no Renascimento, em que os individuos deixam de ter 0 seu «lugar certo» na sociedade, mas em relacdo & providéncia, quando ela parece softer um eclipse. Contudo, essa vivéncia & pouca coisa ou nada em relacdo 20 mais profundo e quotidiano reflexo de um povo que ha séculos, se no milénios, tudo fia de Deus e da sua misericérdia, Nao sendo nisso, 0 povo e a cultura onde se exprime, muito diversa de todas as outras onde Deus e o destino se no opdem, mas se confundem. Em particular, do Isiio, salvo na familiaridade com que em terra crista se vive ou desvive a relagdio sem nome entre ‘os homens (¢ sobretudo as mulheres) € Deus. Ora essa relagao & tudo menos trdgica, embora o possa ser o motivo dela. E contra este serafismo intrinseco, convertido em pragmatismo transcen- dente, vivéncia comum do sentimento das coisas, dos seres e do proximo na simbolicamente imével e feliz sociedade portuguesa, ‘uma alma e um espirito como os de Antero, desenraizados desse lugar arquétipo e matemo de uma religiio com resposta para ‘tudo, sobretudo para 0 incompreensivel, nao podia fazer mais que pensar como quem morre. Era um mistico em estado um Pouco menos selvagem do que Rimbaud, numa cultura que odeia de instinto 0 didlogo directo, real ou imagindrio, a Bergman, com Deus ow a sua auséncia, lugar de Antero é buraco negro de uma cultura nacional imaculada. Ele mesmo recusou esta vista directa sobre o abismo que acabou por devoré-lo. O seu suicidio nfo é uma peripécia 43 = subjectiva, nem uma tragédia sentimental ou cultural, & Werther ou Chatterton, é o iiltimo acto de uma vida que desejou tocar a face de Deus e no a encontrou. Em vez dela, um vazio que desde entio, das maneiras mais imprevistas, se infiltrou no ima- gindrio nacional ou the serviu de repoussoir. O acontecimento- Antero é a primeira expressio, entre nds, do que na cultura ocidental se designaré como «morte de Deus». Na verdade, 56 depois dele tem sentido perspectivar 0 movimento da cultura portuguesa em termos de «dramaturgia». Antero foi o primeiro , até hoje, inultrapassivel encenador de um drama que antes dele s6 por intermiténcia filtrava do fluir tranquilo da nossa cultura (Cam@es, Garrett) e desde entio passou a haver, como Pascoais e Pessoa diversamente o mostraram. A problematizagio de Portugal como histéria e como cultura, levada a cabo por um sé texto, respondeu ¢ correspondeu a sua gerago de miiltiplas maneiras e a seguinte, a dos anos 90, por ‘uma antiproblematizagao, uma exaltado da nossa identidade, da nossa originalidade e singularidade, colocadas sob a égide de Garrett. Mas nem na ordem meramente estética, nem na de uma ideologia com o minimo de estrutura e originalidade, e ainda menos de uma qualquer visio do mundo que pudesse dialogar com 0 idedrio anteriano e as intuigdes de alcance universal em que se funda, esse esbogo de rectificacao, de andlise ou supera- G40 do discurso critico e ut6pico de Antero alcangou qualquer relevancia. Quando muito, vale unicamente como sintoma, de ‘mero perfil neo-romantico e folelérico, sem outro contetido que no 0 emocional. Para esses «neogarrettistas», Portugal e a sua cultura nao justificavam o retrato ideolégico, segundo eles, his- toricamente discutivel e eticamente inaceitével que Antero pin- tara e a sua geragfo iria ilustrar, mas também corrigir, com a criago de um romance de tipo novo, de uma nova visdo hist6- rica ou de uma critica literdria digna de uma nagdo realmente informada do seu passado e a par da exigéncia estética que lé fora abria caminho desde os tempos de Schlegel e Coleridge aos de Sainte-Beuve e Taine. 44 Ent menos de duas décadas, o panorama cultural portugués sofreu uma metamorfose que s6 pode comparar-se A que o im- pacto do Renascimento' italiano produzira entre nés no século xvi. Numa perspectiva quase s6 literdria, 0 nosso romantismo reatara o antigo didlogo com a Europa. De 1870 a 1890, esse didlogo tornou-se imperativo ¢ foi vivido e ilustrado, como ‘Antero o havia anunciado, em termos que poderiamos rotular de ««sociolégicos» de inspiracao diversa e por vezes inconcilidvel a0 nivel dos principios, que iam de Proudhon a Auguste Comte, ‘mas que obedeciam a um leitmotiv comum: ewropeizar Portugal, tinico meio de 0 arrancar & sua passividade e ao influxo do passado. A europeizacao fazia-se em termos pragméticos, pelos pprogressos induzidos pela revolucdo industrial em curso, a que introduzia em Portugal, como no resto da Europa, ou no longin- quo Far West, 0 caminho-de-ferro e o telégrafo, a especulacdo financeira, uma timida industria. Mais dificil, nos termos em que a Geragdo de 70 e, com ela, a maioria da classe liberal a dese- javam, era a revolugo cultural que o progresso técnico supunha, 1 transformagdo do ensino, a criagio de uma tradigao cientifica, ‘0 gosto da experimentagao, condigdes da liquidagdo do pasado da construgo de um novo Portugal. Ora, como era fatal, os estigmas denunciados por Antero eram tudo menos estimulos, eram os préprios obstéculos a essa europeizagao mitica. Nés néo podiamos, por artes mégicas, transformar-nos nos Claude Benard, nos Charcot, nos Liebieg, nos Darwin ou mesmo nos Michelet, nos Niebhur, nos Renan ou nos Comte, que essa gera- edo lia com paixdo, mas também como frutos excepcionais de uma cultura que hes caia em casa literalmente do céu. E dificil imaginar hoje o que teve de exaltante e de perverso esse contacto, literalmente miraculoso, nao filtrado por nenhuma recepeo universitéria digna desse nome, na pléiade de literatos s portas de quem a Europa vinha bater com tanto fascinio e exigéncia. A «normalizagao» das nossas relagdes com essa Eu- ropa, sobretudo a da ciéncia e da técnica, levard um século a efectuar-se. E, provavelmente, s6 a crise do paradigma «euro- 45 = pew», tio ambiguamente mitificada pela Gerago de 70, nos permite hoje essa consoladora conviccao. Para essa geracio, que se converteu num mito cultural para as geragdes seguintes, essa ilusio nunca thes foi consentida. Nenhum dos seus grandes re- presentantes, Antero, Ega de Queirés, Oliveira Martins, talvez ‘mesmo Teéfilo Braga, morreu convencido de que o Portugal do seu tempo tinha «apanhado» o famoso comboio europeu. O para- doxo da Gerago de 70, que se dera como missio weuropeizar» Portugal, liberté-lo, na medida do possivel, do seu arcaismo, foi © de retratar um pais, como ninguém o fizera antes, em fungio de um modelo de civilizago que tinha em Paris, Londres ou Berlim a sua vitrina. O resultado, como seria de esperar, e con- trariamente aos seus propésitos de aggiornamento, foi um retra- to deprimente da sociedade portuguesa, o de um Portugal nfo apenas pouco ou nada «europeun, como essa geragao o sonhava ou pretendia, a0 menos nas suas classes dominantes ou institui- ges representativas (Igreja, Parlamento, Banca, Universidade), mas mérbida ¢ mimeticamente fascinado por essa mesma Euro- pa que ele no era, mas oniricamente imaginava ser. Nunca se tirou a Portugal e & sua cultura um retrato mais cruel do que aquele que E¢a de Queirés deixou, com o rasto indelével do ‘26nio satirico e realista que foi o seu, nos mais famosos roman ces da nossa literatura. O facto de os retratistas estarem também inscritos no retrato em nada atenua a verdade nem o alcance desse olhar sem piedade sobre nds mesmos. Até porque a ironia © a auto-ironia, cada vez mais presentes nessa descida a0 coragio do tempo portugués, redimiam pouco a pouco essa espeleologia, para nfo dizer esse exercicio de anatomia, sobre o corpo morto de Portugal. Que no fim da ligdo, que era para os seus autores uma mistura indiscernivel de jbilo e macerago, acabou por ressuscitar e mesmo por subir ao céu, Em nome deste «novo» Portugal encamado por Gongalo Mendes Ramires, to outro do que suscitara nos anos 60 € 70 a urgéncia de um electrochoque, foi a Geragao de 70 acusada de incoeréncia ¢ até de perjério aos seus ideais «revolucionariosy. 46 Bla teria-terminado, melancolicamente, por converter 0 seu pro- pésito critico e construtivo da juventude em discurso mitico, simbélico, messianico. Quando muito, esperava de uma revolu- Go moral, embora de intengdo sempre social, aquela mudanga profunda que a sociedade real, esposando com dificuldade o seu século em progresso material sensivel, tormara inexequivel nos termos em que a haviam sonhado. O Portugal profundo, catélico, intrinsecamente conservador, resistira & sua guerrilha ideolgica cultural e, com a tinica excepco de Antero, recuperara, afinal, (0s seus quixotescos demolidores. Tal , pelo menos, a versio mais corrente da acco e do papel daquela geraco que, ndo apenas por ironia, mas pela intima convicgio do seu falhango, na perspectiva épica e subversiva que fora a sua, se baptizara de «Vencidos da Vida». S6 eram vvencidos aos seus prdprios olhos. Na ordem das aparéneias, a social, quase todos os seus representantes pertenciam ou ascen- deram & classe dominante ou gozavam junto dela, que nunca os tomara muito a sério, da considerago reservada ao talento, reputagdio e ao sucesso literdrios. Mas vencidos eram, excepto os que, como Teéfilo Braga, haviam adoptado a ideotogia acessivel ede consequéncias realistas em termos de pedagogia, de culto da ciéncia e do progresso, do positivismo, que foi na Europa e na América Latina, a filosofia comum das classes ascendentes, en- sgenheiros, técnicos, militares, em volta da qual se estruturou rea- listicamente o combate politico de inspiragdo republicana. O ini- ciador da Histéria da Literatura Portuguesa, actor eminente, a0 lado de Antero de Quental, da fase polémica da futura Gerago de 70, contrariamente aos seus companheiros, era um «naciona- lista» convicto, e ndo um «internacionalista». O positivismo de Teéfilo Braga, feig&o Littré, ¢ sobretudo o seu anticlericalismo fobico, em particular o seu édio mitico ao jesuitismo, cultivado através de Michelet, de Quinet, de Eugénio Site, encontravam um eco facil entre as novas camadas de leitores. A sua ideologia, prosaicamente agnéstica, tomou-se o lugar-comum da cultura portuguesa do tltimo quarto do século xix. Aparentemente, em 41 pouco se distingue da dos seus grandes camaradas de gerago, incluindo Antero, que o desprezava, ou da de Eca de Queirés Oliveira Martins, que tinham com ele relagSes correctas ou cor- iis. Contudo, separava-o deles, além do seu militantismo posi- tivista, qualquer coisa de mais intransponivel e dificil de expri- mir. Chamemos-Ihe a sua falta de «graga» artistica, a falta de sedugaio da sua escrita, que nao era mais do que uma certa secura cesterilidade da sua imaginagao. Isso s6 bastou para o excluir do que distinguiu ¢ continua a distinguir a geragdo de Antero, Ega Oliveira Martins. Mas & uma questio a reconsiderar. Atribuiu-se, sobretudo pelo papel de Antero, 4 revolugo mental e ideolégica levada a cabo pela Geraco de 70 um esta- tuto cultural ‘nico e marcémos a partir dela o que chamamos ainda a «modemidade», Mas 0 que a caracterizou e a definiu verdadeiramente foi a sua capacidade de mitificar a realidade, qualquer que fosse, impondo-the um estilo, atribuindo-the um papel no vasto drama espiritual em que se convertera para eles acultura e de que eles proprios eram ao mesmo tempo 0s actores, 0s inventores e os consumidores consumidos. Pela primeira vez, ‘4 maneira romantica, de que essa gerago, com a sua paixio ‘germénica, &a lidima representante, a cultura vive e arde no fogo de si mesma. A literatura, a histéria, o dreito, a ideologia nao sto venerados ou cultivados como campos autonomizados, mas, ‘muito hegelianamente, como modos de apreensio do espirito por si mesmo, Acrescente-se que esse «estilo», de um modo diverso em cada um deles, esti atravessado por uma pulsio explicita ou implicita de sedudo, isto &, de autoconsciéncia da sua pritica escrita, e que ela Ihes importa tanto —como mimese do acto criador — como a mensagem que veicula. E no caso de Ega de Queirés, mais. Se mais nada distinguisse a Geragao de 70, esse poder de seducdo, até esse momento inocente e agora convertido em fim, bastaria para justificar o seu papel eo seu impacto num imaginério portugues que reestruturou de maneira indelével. Pode dizer-se mesmo que o inventou, nfo por té-lo recentrado fem tomo de preocupagies ideolégicas, filoséficas, sociais de 48 novo perfil ¢ em sintonid com o imaginério deflagrado de um século que discute os valores, as referéncias, os saberes do pas- sado, mas por ter submergido, ficcionalmente, os leitores dessa sociedade em mutagio sem precedentes no mago de um movi: mento geral de adesencantamento do mundo» (Gntigo), ofere- cendo-Ihe em troca um mundo regido simbolicamente pelo prin- cipio do prazer. A esse titulo, a obra de Bea de Queirés, centrada integralmente, e com um fascinio que no encontramos na ficgo do seu século, no dominio da transgressao erética — que s6 a poesia abordara metaforicamente —, remodelou como nenhuma outra, nem antes, nem depois, 0 contetido ¢ a forma do imagi- nério portugués. Nos seus romances O Crime do Padre Amaro, O Primo Basilio, A Capital, Os Maias, nio se trata tanto de retratar, com minticia e distanciadamente, & maneira de Flaubert, seu mestre, os diversos tipos de hipocrisia de uma sociedade, no fundo, pacata, sofrendo passiva ou alegremente a sua miséria, a sua injustiga, a sua resignada condigao de mundo sem horizon- tes, submissa 4 tutela ética da Tgreja e ao arbitrio de um poder distante, como de reconduzir essa hipocrisia de superficie a uma iinica fonte, ainda sem lugar na ficg4o nacional, a do contido e incontivel Desej ‘A pulsio e 0 império do desejo participam muito canonica- mente, na obra de Ega de Queiris, dos atributos opostos, mas entrelagados, do demoniaco e do paradisiaco. Sob a sétira ¢ a ironia, & a percepco profunda deste entrelagamento que, quase contra a vontade do seu autor, tinge a ficgo queirosiana de uma inegavel aura trégica. Na literatura em lingua portuguesa, s6 0 seu contempéraneo e critico Machado de Assis, brasileiro, teve ‘uma similar consciéncia do trégico inerente a relagao erética, ‘mas nfo em si, como Bea, apenas como figura de um destino forjado por uma convengdo social. Claro esté que nfo foi esta percepgio da tragédia ligada sexualidade, ¢ néo apenas ao cédigo que a rege nas sociedades ocidentais (ou regia), 0 que granjeou a Ega de Queirés um sucesso nunca desmentido ¢ que a mera qualidade estética da sua fico de sobra merecia. Foi a 49 encenagdo, inédita entio, de uma verdade gritante, do teatro da sedugio erética, num contexto sempre transgressivo, que valeu a Fea de Queirés a reputagdo sulfurosa que foi a sua, muito imi- tada depois, nunca excedida, porque ela marca uma subversio total do nosso imaginério como imagindrio amputado, ciente- ‘mente, dessa dimensio, & parte na manifestagao lirica ou passio- nal dele, conio em Camées, Garrett e Camilo, A revolugdo de Eea de Queirés, a tinica que merece esse nome, modificou, em termos que nem € possivel avaliar, 0 c6- digo tradicional da sensibilidade portuguesa. Nesse sentido ha ‘um Portugal antes ¢ depois de Ea. Mas, em matéria de liberta- Go literariamente assumida, o autor d’Os Maias e da sua subversora visio da nossa vida real ficou isolado na sua ilha incandescente. Tomou-se essa audacia como mimetismo literdrio ou moda naturalista. Por isso, o que é oferecido a0 consumo oficial, 0 das escolas, mesmo hoje, idade da permissividade universal, é antes 0 autor d’A Cidade e as Serras ou d’A Ilustre Casa de Ramires, maravilhosos livros, mas admirados mais como {cones de uma visio da nossa realidade reabilitada por um Ega menos idélatra da civilizago que Ihe servia em jovem de estaldo para julgar a nossa do que pelos seus méritos intrinsecos. Apesar de tudo, nada pode impedir que a audacia tenha ousado uum dia defrontar 0 mais oculto, o mais recalcado da nossa cul- ‘ura, estruturada como poucas, mas sem muita consciéncia disso, pelo que, bem discutivelmente, se continua a chamar heranca judaico-crista. ‘Toda a obra da Geracdo de 70 sofrerd uma «desleituray ou um «adogamento» similares aos da obra de Eea. Dos Sonetos de Antero tentou ocultar-se o mais intolerdvel para a nossa idilica visio da existéncia. Da obra de Oliveira Martins, responsével pela primeira leitura pouco hagiogréfica da nossa histéria, a0 ‘mesmo fempo que instaurava com ela uma mifologia cultural que teve —e tem — 0 mérito de integrar as sombras do nosso passado nas visées unanimemente apologéticas dele, preferiu-se sempre aquela que no final da sua vida, e em contradigo com 50 ‘o que Antero de Quental dissera na sua conferéncia, dedicou & evocagao das vidas herdicas de Nun’Alvares ou d’Os Filhos de D. Jodo I. Estas exaltagées eram a sua resposta melancélica & «apagada e vil tristeza» da sua época, mas vio servir de caugio ao modemo «nacionalismo portugués». S6 Femando Pessoa, na Mensagem, subtraira este culto do «herdi» de Oliveira Martins: ao seU aproveitamento mais rasteiramente chauvinista ou mera- mente politico. ‘Meio século depois, esta incompreensio, voluntéria ou involuntiria, do legado da Geragaio de 70, embora o nao parega, continua no centro da nossa dramaturgia cultural. Em parte é essa mesma geragio a responsavel por ela. Nao por se ter atraido», como pensa a exegese de «esquerda» que se reclama do seu exemplo, ou por ter cantado a palinédia, como 0 assevera jubilosa a exegese de «direita», mas por ter dado a impressio — para outros, 0 aval — de que a Verdade se confundia com a Ideologia. E, no caso dela, com uma ideologia de inegavel recorte iluminista, revoluciondtio, relevando de um nebuloso socialismo eivado de anarquismo, mais tarde edulcorado e convertido em xutopismo social, oscilando obscuramente entre evangelismo franciscano ¢ ataraxia budista. Nao se pode negar que a Gerago de 70 deve a sua originalidade, o seu impacto cultural, ao militantismo ideolbgico assumido dos seus primeiros tempos. ‘Também nfo é discutivel que a explicita ou implicita oposigiio ou divergéncia entre «esquerda» e «direita» radique na sua préi- tica ideolégica e cultural. Foi assim que o entenderam as gera- ‘gGes posteriores, ¢ todas elas, de uma maneira ou de outra, se posicionaram em relagdo & sua famosa ideologia, desde os que, depurando-a ou separando nela o aceitével do inaceitavel, se proclamaram seus exegetas e herdeiros, como Anténio Sérgio ou V. Magalhaes Godinho, aos que a adaptaram a sua propria ideo- logia, como Anténio Sardinha, e até aqueles que a criticaram e ‘minimizaram, como Alvaro Ribeiro. Se o fizeram, foi porque encontraram, nessa ideologia e nos seus avatares, razdes para assim proceder. Nao fara outra coisa a geragao da Presenca, que SI do seu espirito eritico se reclamaré —mas mais do seu valor literdrio—, nem a geraco marxista dos anos 40 deste século, | que, complexamente, se declararé mais critica do que herdeira. | © que representou a Geragdo de 70 —e, por té-lo feito, con: tinua a representar — importa ainda hoje, € no apenas numa perspectiva historicista e literdria, que se tormou mais ou menos consensual, ao que ainda é, ow nao é, a cultura portuguesa. Se o no pensasse, estas consideragdes seriam ociosas. E 0 mesmo pensava decerto Anténio José Saraiva, o autor da Historia da | Cultura em Portugal, que terminou a sua vida consagrando uma admirével evocagdo aqueles autores que foram para a nossa geragdo uma referéncia, uma interpelagdo e um desafio. Como _ decerto, embora noutra perspectiva, o pensaram todos aqueles que consagraram uma parte da sua obra & releitura e reinter- | pretago da Geracdo de 70, como ideologia, Joel Serrdo, Alberto Ferreira, Oscar Lopes, José Augusto Franga ou, mais recente- mente, Joo Medina, Alvaro Manuel Machado, Helena Buescu. A leitura ideolégica da Gerago de 70, quase a tinica que existe, deriva de uma exigéncia que the foi consubstancial. Mas, a mais de um século de distancia, nada nos obriga a decalcar a nossa pela leitura ou leituras que 0s seus actores fizeram da sua labirfntica e tormentosa aventura. Embora sempre continue como pano de fundo, a leitura ideolégica oculta em excesso o que de | original e futurante teve 0 seu contributo. A revolugio e 0 uto- pismo, quase todo de inspira¢o alheia — francesa e ale —, sio afinal de contas menos importantes do que o sopro mitico € simbélico que, através dela, impregnow a cultura portuguesa dos finais do século xxx ¢ comecos do xx. Como em Portugal nada adquiria sentido ou alcance sendo em fungo do que até eno era a religiosidade tradicional, isto é, 0 catolicismo, foi também em relago a ela e em conflito com ela —atacando nao s6 a sua miitologia, mas sobretudo a sua visio do mundo, a sua ética e 0 seu imaginério— que a Geragdo de 70 se definiu. Com uma radicalidade e efeitos que nunca mais deixaram de se fazer sentir, Antero, Ega e Oliveira Martins deram uma nova dimensio & 52 suptura timida com o passado de muitos séculos que fora o nosso romantismo. Garrett e, sobretudo, Herculano haviam, de maneira suave, com quatro séculos de permeio, exaltado o cristianismo em detrimento do e oposigao ao catolicismo, transpondo para a ‘nossa paisagem literdria e sentimental 0 que Chateaubriand, mas sobretudo Lamennais e Lamartine, tinham levado a cabo em Franga, Sem transigo — ao menos no instante de ruptura—, a Geragio de 70 entusiasma-se, como por uma religido nova, pelo panteismo, ndo menos roméntico, mas com uma ponta de agnosticismo, de configurago germénica. Qualquer coisa ané- Joga, mas sem 0 fulgor literério do caso portugués, se passou na vizinha Espanha com 0 insélito «krausismo», espécie de panteismo espiritualista e obsessivamente ético. Na Peninsula compreendia-se, por instinto, que a cultura tradicional ndo seria afectada por nenhuma critica com pretenses racionalistas, mas apenas pela difustio de uma sensibilidade irénica ou sincera- mente impregnada de «religiosidaden. O panteismo foi esse cexcesso, no de deuses, como 0 paganismo, que viria na sua sequéncia, mas de religiosidade. Ninguém melhor do que Ega de Queirés deu forma a esse misticismo, ao mesmo tempo estético eherdico. Na Correspondéncia de Fradique Mendes, 0 seu her6i, ‘como mais tarde Pessoa, banhado desse religiosismo universal, confessaré a sua paixo por religides, almas, culturas diferentes, em suma, verses de uma tinica divindade imanente e difusa no universo. ‘Nem todos os actores da Geragio de 70 cultivaram com esta displicéncia e largueza de vistas uma religiosidade tio pouco «caseira», to estranha ao nosso milenario catolicismo, ofere- cendo assim a quem cultiva letras um horizonte e uma excitagdo nunca antes conhecida na nossa cultura. Mas todos salam, a0 ‘menos em imaginago, do pequeno Portugal com a ideia de the abrir 0 espago confinado ¢ o desprovincializar. A época era, na Europa, cosmopolita, ¢ a Europa entrara, sem problemas de cons- ciéncia, na sua época de imperialismo colonial, pacifico ou guer- reiro, © romantismo importara, timidamente, uma outra cultura 33 ou sensibilidade europeias para Portugal. No iiltimo quarto do século xix somos nds que estamos, como nunca mais estaremos, nessa Europa que descola vertiginosamente de si mesma. Tinha- ‘mos estado no mundo — sobretudo no Oriente, no século xvi — como cristdos e mercadores. Agora estivamos como espectado- res, clientes, estudiosos ou simplesmente curiosos do que a Civi- lizagdo tinha para nos ensinar, Nao esté feito o levantamento sério deste «europeismo», que foi menos passivo e diletante do que o priprio Ega, fascinado e secretamente humilhado por tanta civilizagao, no-lo faz crer, ndo s6 nos romances que vivem desse cenério — fascinio-decepsao da Europa —, como nas extraordi- ndrias crénicas, nunca igualadas, que ele enviava, desse «cora- ‘so do mundo», analisando-o com uma inteligéncia e uma ironia divertidas, para Portugal e o Brasil, ‘Embora relativa a uma elite, esta emigrago, ao mesmo tempo real e ficticia, da nossa cultura para o circulo da cultura tida ‘como universal criou, quase do nada, uma relagdo esquizofrénica de Portugal com a Europa que nunca existira nestes termos. ‘Outros pafses viveram situagdes andlogas (talvez todos, na Eu- ropa ou fora dela), excepto a Inglaterra, ou entio culturas que, pela sua intrinseca autonomia ou ontolégico isolamento (China, por exemplo), néo se liam ou destiam na luz da civilizagao europeia em fase hegeménica. Mas para poucos se terd tornado essa questdo tio obsessiva como para Portugal, pais que sempre se sentiu «universal» por dentro e insignificante e marginalizado por fora, em particular no contexto europeu. A situagio era tio absurda ¢ to inextricével ao mesmo tempo (e o drama cultural da Geragio de 70 é simultaneamente 0 produto e o espelho ampliado deste relacionamento esquizofrénico com o nosso pas- sado e o presente europeu) que esta tentativa de nos salvar europeizando-nos, se no plano material era meio pleondstica, pois nem nds nem ninguém podia fugir as consequéncias dos rogressos materiais do século, no campo propriamente espiri- tual a Europa a que chegavamos atravessava uma crise cultural ‘que era a da propria civilizagao e de que nunca mais sairfamos. 54 ‘86 que a Europa vivia-a dentro de uma historia, de um processo, de uma contradigao, cujo cédigo lhe era familiar e totalmente imanente, Primeiro, a critica implacdvel de todos os valores da civilizagao cristd, depois a critica nfo menos radical do idedrio prometaico que a revolugao burguesa Ihe substituira e, por fim, a transmutagéo de todos os valores exigida por Nietzsche. Como se fossem actores de um s6 drama num acto, Hegel, Marx, Michelet, Renan, Darwin, Schopenhauer, Nietzsche, como, nou- tra ordem, Biichner, Geethe, Flaubert, Dickens, Dostoievski ou Tolstoi, Strindberg ou Ibsen, fazem parte da mesma intriga. Nos entramos em cena, como no célebre Helzzappopin, vindos de outro filme, mesmo o mais A vontade nele, Eca de Queirés. Estavamos no palco europeu, amos visitar timidamente Michelet ‘ou Zola, mas a cena era-nos alheia. O reflexo ¢ que era, brilhante ou dolorosamente, nosso, Em todos os dominios, o regresso 4 casa lusitana, o confront connosco préprios, que s6 por mediagao aheia iamos tendo, era vivido sem meio-termo, como decepgo ou regeneradora redescoberta do nacional, do castigo. Decididamente, a Europa do tltimo quartel do século, essa Europa de onde esperévamos messias, em vez. de nos estimular, melancolizava-nos ou humi- Ihava-nos simbolicamente. O pior de tudo é que isto nada tinha que ver, em geral, com a Europa efectiva, no positive ou nega- tivo dela, mas com o psicodrama puramente onirico que nés viviamos a s6s connosco ¢ que a dita Europa nem imaginava. ‘Quando, em 1890, a Inglaterra, mie de impérios, da ciéncia e da democracia, nos envia o seu Ultimatum, 0 psicodrama cultural protagonizado pela nossa intelligentsia ruiu como um castelo de cartas. O imperialismo europeu reduzia-nos nossa expressio subalterna, como oito anos depois o seu herdeiro americano despojava a grande Espanha dos restos do seu Império. De si- bito, nés, que j4 no tinhamos nem verdadeiro império nem imagindrio imperial desde os principios do século, com a natural independéncia do Brasil, acordamos para o império africano, até entio desprezado, e ai buscémos uma imagem de n6s préprios 55 «que nos compensasse da pouca ou nenhuma imagem europeia. Nao foi no plano meramente politico, como episédio subaltemo das contradiges do imperialismo e do colonialismo europeus, onde éramos a quinta roda do carro, que o, para nés, famoso € intolerivel Ultimatum foi um acontecimento importante, mesmo se, alguns anos mais tarde, a velha monarquia portuguesa pagou ‘com sangue 0 vexame nacional. Foi no plano cultural e simbé- lico que 0 Ultimatum constituiu um traumatismo patridtico — 0 patriotismo moderno data desse momento duradoiro —, que s6 uma dupla fuga vai colmatar durante meio século e a que, curio- samente, s6 a Revolugdo de Abril e a consequente perda das nossas coldnias africanas porao um termo. E duvidoso que esse remate seja um fim. A primeira reacgdo de um Portugal humi- Ihado foi —apés desesperados e patéticos protestos contra a Inglaterra — de partir para a Africa que nos restava. «Ocupé-la», pois, afinal, nao o estava tanto como os Portugueses 0 imagina- vam. Comegou ento uma atribulada odisseia, com pacificagdes herdicas, como as dos Ingleses e Franceses nos respectivos dominios, para criar em Africa um equivalente modemo, distinto do momento imperial do Oriente, «novos Brasis» que nos pu- sessem, como 0 outto, ocasionalmente, ao abrigo de alguma dramética ameaca europeia. A partir de entio, até 1974, com a Revolugdo de Abril, a «nossa» Africa tornou-se 0 horizonte incontomnavel do nosso destino como destino predestinadamente colonizador. E oniricamente imperial. Nao € certo que 0 nio continue a ser. Extraordindria e, creio, sem exemplo em nenhum outro es- ppago europeu —nisso muito diversa da reaceo espanhola de- pois da perda de Cuba, em 1898, ilustrada pela geraco de Una- muno, de Machado, de Maeztu, de Ortega — foi a nossa fuga simbéliea para 0 imagindrio imperial. Enquanto as poténcias europeias, na propria Europa ou fora dela, do Cairo ao Cabo, de Carrum a Viadivostoque, disputavam imperialisticamente o im- pério da reatidade, os seus tesouros € os seus mercados, o antigo pais de Cam@es, afogado em crepes, ressentimento e melancolia, 56 reconstrufa pedra a pedra, coino o «marinheiro» de Pessoa, um puro império de sonho. Em estilo simbolista, que era o estilo da alma dessa mesma Europa,‘na vanguarda da civilizagao capita- lista e guerreira, gravida de conflitos suicidérios, sonhando com Mallarmé, Maeterlink e Gauguin, exilios de si mesma, herdados de Byron e de Baudelaire: «n‘importe oit mais hors du monde.» (Ou exilios conquistadores, como os de Rimbaud. Os nossos — ou ‘0 nosso, pois, desde os fins do século x1x até aos anos 30, com a aparente excepeo do futurismo e a mais verdadeira de Aqui- Iino Ribeiro, é um iinico exilio — no se inserem nessa miste- riosa fuga aos «velhos parapeitosy da Europa evocados por Rimbaud. So pura depressio ¢ melancolia vividas e consumidas « europeu ou mundial influencia, embora nem sn, Pre positivamente, 0 que mais importa, ue & 0 didlogo de nos com nés préprios, a respeito de tudo, mas, na otdem natural das coisas, connosco mesmos. Na verdade, @ ndo set por motives Brest © 0s Thomas Bernard, Mas em que espago oco seniio no le uma guerra fria extinta que para nés s6 existiu no Papel e, mesmo assim, silenciada? : Regressemos a Portugal, como nos tempos de Garret, Nio or snobismo as avessas ou arcaismo chique. Mas para saber guem somos, onde estamos, agora, neste pals pseudo europeu, imerso, 20 menos por fora, na maré de uma mundializagdo que, gussia do tempo de Epa ia até Paris para entrever por um bind- © alugado os dessous excitantes das filles do Moulin Rouge. 8 Neste fim de milénio, em vésperas de um quarto de século de democracia, Portugal no esté exactamente nem em «tempos de apagada e vil tristeza» — que jé outrora s6 seria a de poctas ‘impecuniosos —, nem no «nevoeiro» apocaliptico da Mensa- gem, e ainda menos nos tais ominosos tempos em que as pare- des, e sobretudo as mesas dos cafés, tinham ouvidos. A era da transparéncia satisfaz-nos todas as curiosidades, até as chamadas sais. S6 alguns misantropos irredutiveis nao ajudam a esta missa cantada do nosso fim de século. Sao os tiltimos abencerragens da nunca esquecida Geragdo de 70? Que queriam ha mais de um século estes sonhadores de Portugal-Outro? Que tivesse as ideias, as comodidades que nfo tinha? Que abdicasse de ambi- Ges planetérias que naufragavam todas a saida da Barra, onde Cesério as imaginava? Hoje tudo isto caducou. Temos tudo e 0 resto. Quem seja o dono desse «tudo» importa pouco. E, todavia, como sempre, a euforia nacional parece excessiva e artificial. Gozamo-la, mas no a somos. Uma parte da existéncia nacional 6 intrinsecamente passiva. Como jé 0 era na época do Gama, ‘mas rematada pela esfera armilar. Provavelmente é s6 isso que nos falta: simbolico! Festejamo-nos a nés mesmos, mas em fun- ‘¢40 de nada. Continuamos por dentro no século xvi e a imensa gua em que nos banhamos n&o cura mais que Tétis as dores incurfveis do Adamastor. A ideologia da nossa Expo em bem pouco diferiu nisso da «imperial» dos anos 40. De quem a culpa, se culpa ha? De todos e de ninguém, que agora no a podemos pér no nacionalismo arcaico — e nem tanto como isso — de Salazar. Da democracia? Mas a democra- cia somos nés todos. Neste tiltimo quarto de século realizamos -uitas e belas coisas, reparémos algumas injustigas, melhorou a qualidade de vida para a generalidade dos cidaddos, mas falhamos 0 que se chama a «revolugao cultural». Ou, para que © conceito ndo suscite maus pensamentos, a necesséria, com plexa, delicada desconstruco de uma ideologia estruturalmente imperial sem império, militante, hagiogrifica, ultranacionalista, aberta ou inocentemente hostil & inspiragiio democritica, sem a 9 qual ndo era viavel superar meio século de «pensamento tinicon, Para isso, a jovem democracia no estava preparada, ou estava preparada as avessas. Dos dois partidos dominantes, um no estava interessado nem porventura sentia necessidade desse aggionamento, humilde, mas de infinitas consequéncias, No essencial, a sua visto ideolégica e pedagégica nao diferia muito ou nada da do antigo regime. Quanto ao Partido Socialista, ape- nas acabado de nascer, solicitado pelo combate politico, a cultura foi o menor dos seus cuidados. S6 0 Partido Comunista possuia uma ideologia pedagégica e militantemente cultural. Passado um ‘momento de exaltagio, percebeu que a sua vitbria era, grosso ‘modo, nfo se mexer. Militantes, ou simpatizantes, ocupavam hd Imuuito nflo $6 os cargos para que tinham sido naturalmente habi- Mitados, como os organismos de direcco ou consulta que se ‘mostraram decisivos na primeira fase da «expurgago» salaza. rista. Toda esta hist6ria esté por fazer. Paradoxalmente, ndo foi a esse nivel que a democracia — em Particular a que representava uma visio liberal da cultura — se ‘mostrou mais carente. Quando chegou a sua vez de governar, 0 PS nfo tinha quadros para competir com os quadros mais osten. sivamente representativos da antiga ideologia cultural, © mais extraordinério foi que os nfo tivesse e escolhesse, por mera ra- Zio de classe, de amizades, de estrito burocratismo, para confiar organismos capitais na concepedo e gestio de uma nova politica cultural, militantes notérios e zelosos da antiga ordem salaza- rista. E até ultra-salazarista. Com eles entraram para a extensa rede da cultura um sem-niimero de funcionétios, excelentes alguns deles, que vinham todos da fina flor do antigo regime. A mesma classe ilustrada de antes do 25 de Abiil ou os seus familiares e herdeiros sto 0s cronistas, os Femdo Lopes, os ordenadores dos fastos de uma época que 86 pela ocupago espectacular do es. ago mediatico se distingue daquele funcionalismo cinzento, do culto moderado do chefe que nés vivemos num pesadelo calafetado, Néo admira que, pouco a pouco, 0 povo portugués, © mesmo que, interrogado na Expo. no sabe e confessa nao 80 saber onde esti (s6 sabe que aquilo «no parece Portugal»), esteja agora confrontado com a vertigem de uma cultura comuni- cacional de que usufrui alguns prazeres psicadélicos sem ter praticamente saido do espago real e simbolicamente opaco de uma cultura oral que agora Ihe é vendida ou ele mesmo a vende como se acedesse as delicias da sua identidade divina, paradoxo é que este Portugal de fim de século nunca foi tio culturizado como hoje. Nao por terem acedido a um saber mais diversificado e partlhado novas geragées de adolescentes —e, neste capitulo, a democracia trouxe ou esté sofrendo uma autén- tica mutago —, mas porque, sob essa acumulago de conheci- rmentos pragmaticos, a filosofia que os subdetermina no com- porta, ou comporta,escassamente, 0 conhecimento critico da realidade que nos cera ou do mundo onde vivemos. E no s6 entre n6s isso acontece. A finalidade, expressa ou nflo, dessa culturizagdo é a do acesso, tanto quanto possivel lidico, a uma visio caleidoscépica de uma informagao de onde, salvo para ‘uma elite mundial, desapareca a necessidade e o gosto de conhe- cer, como se dizia classicamente, «a tazio das coisas». ‘Nunca a humanidade teve ao seu aleance conhecimentos mais exactos e sublimes acerca do universo. Vividos como pura diver- sfo. A curiosidade que durante séculos —e hoje numa parte quase secreta da humanidade — excitou o espirito dos homens é sarcasticamente aludida como um reflexo arcaico e o tempo dela aludido com desdém como 0 «século das Luzes». O nosso, depois de ter sido, como escreveu Camus, 0 «século da escravi- <0» (voluntéria), termina banhando-se nao apenas nas revistas da ignorincia snob para geragdes ostensivamente felizes com ela, mas com uma vaga de fundo de obscurantismo cultivado expressamente para alimentar 0 desejo de pseudomistérios ou 0 bem-estar de uma humanidade momentaneamente (ou definit ‘vamente) alheia as questdes que, na sua idade de ouro pensante, el Kant punha por ela. emg comércia dete, ‘auto-intoxicago da humanidade por si propria € hoje o mais rendoso do planeta. No século xvi, Copér- 81 nico ou Bacon podiam penosamente comunicar os seus «pensa~ mentos» (0s que pensavam o mundo e nos quais 0 mundo se ensava). Hoje, © mais delirante e ignaro dos mortais pode caviar, em tempo directo, as suas elucubragdes aberrantes Ag & nebulosa inédita do éno-pensamenton, matéria ideal ara dis- ‘tair a humanidade do seu inesgotivel sonambulismo, aradoxais suicidios & Schopenhauer. $6 por procuracao, come Portugal, ou todos os outros paises, salvo a América, A imagina- ¢#o humana ¢ infinita talvez, mas repetitiva numa vide de homem. Nos iltimos dez anos, 0 mundo (isto & aAmtrica) jé se destruiu uma meia dizia de vezes, Monstros saidos de wn ve ¢ Lautréamont ou dos sueessores mediocres de Jlio Verne oa Kubrik deitaram fogo ao tnico templo — premonitoriaments Votado a expiagdo— da Casa Branca, Investidos do carisma do rei dos reis, o presidente dos Estados Unidos, Harrison Ford, Tom Hanks, Travolta, acabam por salvar a nossa atormentade ‘aiko simbélico da bistéria nesta aurora daqueles tempos que Malraux imaginou «metafisicos> ou religiosos» & jum espago de shumanidade. A inica diferenga & que este delirio, coragao de todas a identidades, no tem, ao menos na aparéncia, outrapalovra sant, ‘que a contrarie, Como recentemente se exibiu na cena do mundo, a América, transparente ¢ divina, 86 conversa consigo prépria. ‘Consigo prépria como espirto de Deus ou sua histérica encamacao, Que destino fica reservado aos povos que ndo comungam nesta spoteose de uma América convertida em «internet de 82 Deus» Reinventar uma outra cultura radicalmente diferente, nfo wr enraizar em tempos, mais antigos ou supostamente menos birbaros que todes 0 so > mas por nfo se imag, como mes i americana © desde 0 seu inicio, imune a0 demmocsticamente a comunge, por eonvcsao ou sem ela ™ éxtase ao mesmo tempo naturale transcendente da sua pradari este. - Saldo de iusdes da mesma ordem, povo misionéro de om planeta qu se misiona sozinin,confinno no modesto cant de cn snap er ier veh x mn, ong os para ; a ra em situagao de se aceitar tal como foie enite os povos, Que dev a volta a0 mundo par tomar a medida da sua maravilhosa imperfeigdo, Vence-Dinard, Setembro de 1998 83 MITOLOGIA DA SAUDADE Tempo portugués Ha mais de meio século que centenas de milhares de portu- gueses vivem na Europa, no meio de povos que 0s aceitaram ¢ eles aceitam. Mas poucos suspeitam a que ponto essa gente da extrema Europa, ibérica, catdlica — frequentando ainda igrejas que eles mesmos desertaram e em vias de as desertar também —, vem de um outro mundo e continua a viver nesse mundo que deixou. Todos os povos, mesmos vizinhos, se conhecem mal uns aos outros. No século xrx dizia-se da Espanha que era a China da Franga. Fernando Pessoa, perito em geografia simbélica, pensava que «as nagdes todas sio mistérios» e «cada uma é todo ‘© mundo a sis». A ideia pode surpreender, mas retrata bem a maneira como os Portugueses vivem a sua relacdo consigo pré- prios e o mundo. Os outros —mesmo aqueles no meio dos quais trabalham, eestudam ¢ com quem acabam por se misturar — tém dificulda- des em imaginar a natureza desse «mistério» particular aos Por- ‘tugueses. Tanto mais que um dos seus tragos mais conhecidos é da sua capacidade de se fundirem na paisagem. A sua estra- nheza é, a todos os titulos, impalpvel. Eles mesmos nfo tém_ consciéncia disso, a tal ponto fazem corpo com ela. E-lhes ve- 87 dado apreendé-la a partir de qualquer exterioridade, mesmo imagindra, A cultura portuguesa nunca produziu — pelo menos até de Queirés — nem Montaigne, nem Montesquieu, SeiGaint nem Lessing, isto 6, um olhar exterior a si mesma que a acor. dasse, no de qualquer cegueira dogmética ou culposa, mas da contemplagao feliz e maravilhada de si mesma. Todos os povos vivem, mais ou menos, confinados no amor de si proprios. Mas a maneira como os Portugueses se comprazem nessa adorago é verdadeiramente singular. Seria absurdo pretender que um povo entre outros, ¢ ainda por cima um pequeno povo, possa estar fora ou escapar a esse maelsirdim a que chamamos Histéria. Contudo, evitar o destino comum, instalar-se, ndo se sabe por que aberra, $40 ou milagre, & margem do mundo, é um pouco aquilo que 0 Povo portugués sempre tem feito. Portugal vive-se «por dentro», ‘numa espécie de isolamento sublimado, e «por fora», como ¢ exemplo dos povos de vocago universal, indo 20 ponto de dis. ae © seu corpo a sua alma pelo mundo inteiro. A imagem de Camées © todos os portugueses a conhecem de cor. Essa mitologia esta inscrita na bandeira portuguesa. Portugal foi 0 {inico pais que colocou no centro da sua bandeira a esfera armilar, em suma, a representagdo do universo. Isto nlo espanta ninguém ¢ ainda menos os Portugueses. Essa imagem no é apenas de ordem cosmoldgica — consagragdo do papel de Por- ee descobridor de «novas terras € novos céus» —, mas fea aac a do convidado modesto sentado no lugar de, Com que direito e em nome de qué? Em todos os tempos, os ovos que desempenharam um papel na Histia Se atrium misses de cardcter messianico. Mais do que todos, 0 povo de Israel, que espera ainda que o seu sonho Se cumpra e mude a istéri. Portugal no fugiu & regra. Na época da sua expansio no. mundo ‘investiu-se totalmente numa cruzada, a0 mesmo temy ‘imperial © messidnica, herdeira de Roma e de Israel. A topia imperial conheceu a sangio dos factos. O sonho messianico, 88 esse, desenrolar-se-A seni entraves no seu espago interior, de Luis de Cames ao padre Anténio Vieira e a Pessoa, ou do infante D. Henrique ao fais banal dos seus governantes. O mais ccurioso é que, num momento de fanatismo, Portugal amputou-se ou recalcou a sua parte de Israel para se tomnar, paradoxalmente, uma espécie de Israel cat6lico. Talvez estivesse na ordem das coisas ou, pelo menos, da histéria. Em nome de Cristo, Portugal assumiu 0 papel impossfvel de povo «eleito». A volta do brasio de Portugal, evocando as cinco chagas de Cristo, os reis desse pals, entdo senhor dos mares, do Brasil ao Japao, ousaram colo- car-se no centro do mundo, Esse momento de universalidade —mais sonhado do que real —, justificado menos por qualquer poténcia temporal do que pela irradiagdo de uma fé, vivida como luz e dom de Deus, tomnar-se-A para os Portugueses aquele «lugar» onde eles se ‘véemi, ao mesmo tempo maiores e mais pequenos do que so. Essa identidade mitica, razo da sua estranheza e do seu misté- rio, € o seu céu a sua cruz. Quem os faré sair de um labirinto que no é mais do que o da sua imagem sublimada, consoladora, de que eles sio 0 criador e as criaturas? E por que motivo sairiam dele? Acabou, realmente, esse tempo em que os Portugueses ressentiam como uma ferida 0 fosso que separava o seu presente sem relevo particular, invisivel aos olhos de outrem, desse mo- mento «imperial» de si mesmos para sempre perdido? (Os Portugueses ndo so 0 tinico povo que se sente desconhe- cido, mal conhecido ou decaido do antigo esplendor, real ou imaginério, De algum modo, 0 caso de toda a gente e, hoje, até daqueles povos e culturas que, durante séculos, os outros olha~ ‘ram como fardis do mundo, Mas o que surpreende, nos Portu- gueses, 6 0 facto de parecer terem decidido viver como os cris- ‘dos nas catacumbas. Nao porque pese sobre eles qualquer ameaga efectiva, mas porque ndo suportam ser olhados por quem ignore ou tenha esquecido a sua vida imaginéria. Preferem entio, a exemplo de Fernando Pessoa, ausentar-se de si mesmos € outorgar-se, como ele o fez com insélita fulgurdncia, o préprio 89 estatuto da auséncia. Uma auséncia onde finidamente reversiveis: eres Nio sou nada, ‘Nunca serei nada, Nio posso querer ser nada. Parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. 3 leitores estrangeiros ima, it ea ions esang iginam muitas vezes que Femando verti Portugués universal, é excepedio i= tuo de pio ler, sem divda. Nios tiulo de pomngoce, 9 lespeito do seu desejo de querer «ser tudo de todas as mascines, Se gSim, or conta de todos, da poquena casa hsitanay, a ltaneamente banal e onirico que & 0 tinico onde os Porn, i. payee casa. ‘Nele so to estrangeiros. como nae ‘ugar ndo se situa apenas no mapa. E muito menos se circuns. ‘Creve a0 pequeno rectingulo, deitado a beira do Atlantico, cz fndo de passado e vida singulare, que chamamos Portugal, rete ssde os tempos mais Tecuados que essa terra, Atlantida sem_ ana dela, parece deserar a Europa. Por necssiade ou fndes, taro or aventura, os Portaguesespartram dela 20 {ange dos séeulos, por vezes sem eperanga de regresso. Alongs om aera incnd nel anerir ao seu ascineno . va e de cen a fp en cutrora no Brasil, na Africa, no Oriente e hoje no Canadé, ne , no Havai ou mais n Babe om Franga, na Atemanha, na Suiga, ea aa vane nha. Mas nem essa deriva, neu essa‘ tae Rosen seem tt tn vontade ou a forga, adaptavel, disereto no meio dos outros, seq, Pre pronto, na aparéncia, a trocar a sua identdade pela dos ou 8, na realidade nunca abandonou o. ‘seu ponto de partida. Quer dizer, a sua verdadeira patri a ia, a do sonho i extinto no fundo do seu ser. ees 90 ‘Um tal povo, to & Vontside no mundo como se estivesse em casa, na verdade no conhece fronteiras, porque nao tem exte- rior, Como se fosse, sozinho, uma itha. Mundo onde, D. Sebas- tigio de si mesmo, esperasse um regresso sempre diferido, so- nhando com a sua vida passada. A semelhanga do Marinheiro de Pessoa, memorial incomparivel de nostalgia e saudade dedicado 4 pura auséncia como forma suprema da presenga. Evocando admiravelmente a saudade, na medida em que pode ser evocada, D. Francisco Manuel de Melo supés, primeiro do que ninguém, que Portugal se tomara esse povo de uma nostalgia sem verda- deiro objecto, devido ao seu destino de povo maritimo, viajante, separado de si mesmo pelas Aguas do mar ¢ do tempo. Sem divida que 0 nosso destino de errancia conferiu a essa nostalgia, a esse afastamento doloroso de nds préprios, 0 seu peso de tris- teza e de amargura, a sua coroa de bruma. E a lembranga da casa abandonada, esse gosto de mel e de lagrimas que a palavra-mito dos Portugueses sugere. Mas no é nesse destino que devemos colher a origem, a esséncia do sentimento que a si mesmo se plasma na palavra, no pensamento, da saudade. ‘A saudade, a nostalgia ou a melancolia sio modalidades, modulagdes da nossa relagdo de seres de meméria e sensibi lidade com 0 tempo. Ou, antes, com a temporalidade, aquilo que, a exemplo de Georges Poulet, designarei como «tempo humano». Isso significa que essa temporalidade é diversa da- quela outra, abstractamente universal, que atribuimos ao tempo como sucessio irreversivel. Sé esse «tempo humano», jogo da meméria e constitutivo dela, permite a inversio, a sus- ppensio ficcional do tempo irreversivel, fonte de uma emogio a nenhuma outra comparavel. Nela e através dela sentimos 20 ‘mesmo tempo a nossa fugacidade e a nossa etemidade. A esse titulo, a nostalgia, a melancolia, a propria saudade, revindicada pelos Portugueses como um estado intraduzivel ¢ singular, so sentimentos ou vivencias universais. Da universalidade do «tempo humano», precisamente, E 0 contetdo, a cor desse tempo, a diversidade do jogo que a meméria desenha na sua leitura do o1 asada o que dstinge a nostalgia da melancofae estas duas Voltar-se para o pasado, lembrar-se, nunc: nor Per me apenas como simples alusdo, mero sinal enderesado aos aconte. aes 40s sentimentos que salpicam, como nos romances Sere Woolf, 0 decorrer ‘flutuante, intermitente, da «nossa Vide». Os crearessos»especiicos da melancolia da nostalgia, da le sio de outra ordem: conferem um sentido 20 pasado ne através delas convocamos. Inventam-no como uma fi ‘ao, rmelancolia visa o passado como definitivamente passado c.g esse titulo, & a primeira e mais aguda expressto da temporai dade, aquela que a lirica universal jamais se cansaré de evocan A nostalgia fixa-se num passado determinado, num lugar nan momento, objecto de desejo fora do nosso alcance, mas amdn ‘eal ou imaginariamente recuperdvel. A saudade participa de um € de outra, mas de uma maneira tio paradoxal, to estranha —como é estranha e paradoxal a relagdo dos Portugueses oom ° «seu» tempo —, que, com raziio, se tornou. um labirinto e um enigma para aqueles que a experimentam, como o mais mist Tso e 0 mas preciso dos sentimentos. , ‘Si mesma, a saudade no tem histé: manifestagdes dela. $6 em termos hisoriciste, eae na oerénciaintema, ssa historia — eserita com fins dogméticos mereceu alguma atengao. Antes de ser Pensada, a saudade foi cantada e ¢ filha © prisioneira do lrismo que primeito The den Yo% Antes dese tomar o mito que jé a nio deixa pensar e 2 configura num papel hagiogrifico-patristico, a saudade no foi) nai ae a expresso do excess de amor ein relag30 tudo o eee ete "© amigo ausente, a amada distante, a verde pino,endss do mar Nenhuna nasonsnce ee , la Tessonanci: i Joe Nena icp or Su ingenuade. No seu bergocéltic, o da Galicia e Portugal ‘saudade parece modulada pelo ritmo universal do mar. Deseo” 92 bre-se, sem bem o saber airida, que a eternidade ¢ feita de tempo 0 tempo de cternidade. Tudo é af, simultaneamente, passado € presente, Esta miisica de’ fundo, primeiro exterior, torar-se-& misica da alma. Contrariamente a lenda, 0 povo portugués, ferido, como tan- tos outros, por tragédias reais na sua vida colectiva, nfo é um povo trigico, Esté aquém ou além da tragédia. A sua maneira espontinea de se voltar para o pasado em geral, ¢ para o seu em particular, nao é nostélgica e ainda menos melancélica. & sim- plesmente saudasa, enraizada com uma tal intensidade no que ama, isto é, no que é, que um olhar para 0 passado, no que isso supée de verdadeiro afastamento de si, uma adesio efectiva a0 presente como sua condig&o, é mais da ordem do sonho que do teal. E esse lugar de sonho, esse lugar ao abrigo do sonho, esse passado-presente, que a «alma portuguesa» no quer abandonar. Para o nao abandonar — antes mesmo que esse passado se tives- se tomado historicamente mitico, como tempo glorioso dos Des- cobrimentos ou infeliz de Alcdcer Quibir—, Portugal, imerso com dogura no mundo, natural e sobrenaturalmente maravilhoso, converteu-se em ilha-saudade. Um lugar sem exterior onde the fosse impossivel distinguir a realidade do sonho, um porto de onde ndo se sai, como Ulisses, para defrontar os monstros ¢ a traigo dos elementos — mesmo se nenhum povo os afrontou com maior afoiteza —, mas para tentar recuar até aos limites 0 momento de encontro consigo, imposto pelo Outro, o verdadei- ramente Outro, aquele que nao nos vé como nés nos vemos: ‘avaleiros do Gral adormecidos, mas de pé, iméveis, no coragaio da realidade. Com a saudade nfo recuperamos apenas 0 passado como paraiso; inventamo-lo. © nosso povo, imemorialmente rural, absorvido por fora em afazeres desprovidos de transcendéncia, ‘mas levados a cabo como uma epopeia, com o seu talento do detalhe, da miniatura, é um povo sonhador, Nao especialmente por ter cumprido sonhos maiores do que ele, mas porque, no fundo de si, ele recusa o que se chama a realidade. Ou, se se 93 prefere, a ordem do tempo, rio sem regresso, Mais Th gue D. Quixote, os Portugues nio die realmente oe ne 4 realidade empirica, Suportam-na, mas no se dobram iamte de ‘nenhum desmentido da realidade, Nem mesmo diante da mais itrefutavel de todas: a morte, Na sua ilha-saudade, a um tonne ilha dos mortos e ilha dos amores, como criangas, ignoram morte. Ou, noutra. verso, ela é-lhes de tal modo ‘consubstancial (Morte irma coeterna da minha alma») que acabou por se Ihes ee ‘Ninguém morre no Pais da saudade. Como nos Nada é mais popular em Portugal que o Purgtiio, Com oda as forgas do nosoinagingre ean © nada. Sem divida, isto é verdadeiro para toda a humanidade Mas para nés, Portugueses, essa recusa tornou-se um habito da nossa alma. A saudade, descida no coragio do tempo para res, galar o tempo —o nosso, pessoal ou colectivo—, é como uma Vampada que recusa apagar-se no meio da noite, Taives nos tore ¢stranhos e mesmo complacentes para com essa estranheza, maa esse sentimento é puramente ilusério. Sob outros nomes ou sem homes, a saudade & universal, ndo apenas como desejo de eter- nidade, mas como sensacdo e sentimento vividos de elemidade Ela brilha sozinha no coragio de todas as auséneias ; Vence, 9 de Setembro de 1997 Melancolia e saudade Sabemos que 0 jovem Sartre pensou no titulo Melancholia para 0 livro que havia de se tomar célebre com o nome de A Néusea. Se o tivesse mantido, teria posto um remate na longa historia da melancolia que faz. do corpo a fonte do desencanto da alma perante o mistério da existéncia, com que o romantismo se deleitou. Sartre arrependeu-se, com razdo, dessa primeira escolha. Nao releva da melancolia a repugndncia de Antoine Roquentin perante a opaca e proliferante realidade das raizes do castanheiro, Ha na «ndusea» sartriana, metafora da do corpo, um excesso de mundo, um insustentavel peso do ser. Nao hé nela lugar para o jogo entre os tempos do «ew», que 86 so possiveis através da meméria, Para descrever a melancolia baudelairiana, Starobinski fala de «melancolia ao espethon, termo que to bem se adapta A melancolia moderna, cujo eu simultaneamente auténomo e miiltiplo. No fundo, toda a melancolia é ja espelho, Tugar em que se quebram as mipcias reais entre o eu ea vida, em que o presente se interrompe, suavemente repelido pelo senti- mento de fragilidade ontolégica do teatro do mundo. ‘© «sentimento» da melancolia parece inscrever-se numa constelago de afecgdes da alma que vao da tristeza & angistia, sem esquecer o tédio. Na medida em que pertence a esfera do 95 «psicolégicon, hé interferéncias entre estes és «estados da alma», em especial entre a tristeza e o tédio. A angustia, essa, é mais nitida. Menos indistinta, leva o ser & beira da propria ne- ‘gagdo. Mais nao é, alids, que a vida subtraida ao futuro, asfixiada Por um presente sem dimensdes. Falta-nos o tempo e ns falta- ‘mos ao tempo. Heidegger ligou-a & consciéncia da nossa finitude, a nossa esséncia de seres-para-a-morte, Isto é sem diivida verda- deiro, mas em fungo de uma morte por assim dizer sonhada, imaginada e vivida como absoluta falta de escolha, tempo que volta do passado para se imobilizar diante de nés como um infindével buraco negro. De certa maneira, 0 angustiado tem ‘excesso de vida e de impaciéncia; no pactua com o futuro nem projecta nele as cores da sua anglstia. Ao contrétio da melan- colia, a angéstia no comporta 0 «jogo» com o tempo — tudo é urgéncia, a propria meméria fica como que em suspenso. O campo priprio da angtstia é o da imaginagdo, imaginagio do por, em que o real fica de fora. O tédio, pelo contrério, remete- “Ros para o real, para o tempo, mas ndo para o jogo do tempo, como a melancolia; subjugados pela realidade, estamos simulta neamente desligados dela, privados do cordio vivo que a ela nos prende. A realidade esta a mais e nés também. Nao precisamos de pedir ao tempo que suspenda 0 seu voo, como no poema em que a melancolia romantica se encenou. Esta jé suspenso, ou ‘melhor, roda invariavelmente em tomo de si mesmo. Por sua ‘vez, 0 tédio baudelairiano esta demasiado préximo da melanco- lia — € inseparével dela, como nos mostra Starobinski — para nos ajudar a discernir o que ela tem de especifico. E ainda um ‘6dio que podemos mobilar com as lembraneas da vida e em que © tempo, apesar de cinzento © bago, desempenha ainda o seu Papel, como no poema citado por Starobinski: [..] la Mélancolie, & midi, quand tout dort, Je menton dans la main, au fond du corridor [...] ‘raine un pied alourdi de précoces ennuis, ¢t son front moite encore des langueurs de ses nuits, Como esta melancolia ém majestade, o tédio baudelairiano, agrotesco ou repelenten, é ainda demasiado nobre, no esté sufi- cientemente despojado dos ouropéis romantics ¢ romanescos exigidos pela épera negra das Flores do Mal. Teixeira de Pas- coais, um dos maiores poetas portugueses, a quem se deve, sob ‘o nome de saudade, a verso mais paradoxal da melancolia, dé- -nos uma figura mais humilde e nua do tédio. Na sua Cangdo Mondétona, 0 tédio manifesta-se pelo recalcar € esmagar do tempo, mas também como tempo-Janus, indiferente a alegria ou tristeza dos dias: ‘Monotonia... ‘Sempre a imagem das cousas que nos pesa. ‘A mesma cor vermelha da Alegria, (© mesmo claro-escuro da Tristeza, Sempre, no mesmo corpo, a mesma doenga: a vida! ‘Sempre a mesma elegia, em sflabas de mégoa. Ll Este intimo Alentejo em que se perde a gente Em nosso proprio ser, o Tempo desmaiado ... ‘O mesmo, o mesmo, o mesmo, em nés, perpetuamente! Sob a sua forma romintica, ainda sentimental e lirica, o tédio encontra aqui uma espécie de reconhecimento resignado. Para além dele, seria um tédio gélido, verificagdo sem concessdo nem resigna- fo do sem sentido da vida, que tem no mais célebre poema de Femando Pessoa, «Tahacarian, a sua expresso e a sua poética: Sempre uma coisa defronte da outra, Sempre ums cis Ho ini camo aout, Sempre o impossivel tio estipido como o real, i rio da sempre 0 mistério do fundo to certo como 0 sono do mist ma [superficie, Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra, 7 Excesso de desespero, de ironia metafisica, orienta aqui a visio melane6lica em que se enraiza o famoso poema para a pura irrisio © 0 absurdo. O t&dio assim descrito no releva sequer do tempo morto ou esmaecido, como em Teixeira de Pascoais, nem mesmo o toma em consideragdo. Estamos para 1 da melancolia © do seu jogo no interior da meméria, me- moria de coisas vivas, mais vivas que as da vida presente, © no entanto impalpAveis, inacessiveis, a nio ser pela viagem através da eternidade perdida de nés préprios, de que se tece Justamente a melancolia. A liica universal nao é mais do que 8 perpétua tentativa de trazer A superficie a barca afundada dos nossos momentos de eternidade. A poesia antiga conhecia bem a dor inexprimivel do tempo que foge, fonte origindria da melancolia. Basta lembrar Virgilio ou Ovidio. Mas neles © tempo dos deuses e o tempo dos homens era demasiado heterogéneo para fazer nascer na sua consciéncia essa outra dor prépria da melancolia moderna de seres insatisfeitos com @ sua condi¢ao humana. A melancolia antiga, que Zielinski lia nas estétuas da época helenistica, era natural, por assim dizer, como a que a tradigdo lirica associa ao Outono. Ulisses nao desceu ao reino das sombras para trazer os vivos de volta 0 reino da luz, mas para lamentar a tristeza dos mortos bem. ~amados. E, se Orfeu, que é a propria poesia, traz Euridice Consigo, & sob condigiio de nunca se voltar, de nunca olhar Para o espelho do tempo. E um papel contrario 0 que atribui- ‘mos & melancolia, ou que a melancolia moderna desempenha Para nés, mau grado o halo lunar de que a rodeamos ¢ da Postura curvada com que Diirer a figurou. Apesar das aparén. cias, a melancolia no é essencialmente a expressio da nossa, derrota, como seres simbolicamente imortais, as mios do fempo, mas a ultima encenagao de todo 0 nosso ser para aliviar 0 Tuto das nossas esperangas desfeitas, dos nossos anseios perdidos, dos nossos amores defuntos. Ha entre a melancolia ¢ a nostalgia uma profunda afinidade. Confundi- ‘mos talvez amitide uma com outra, ou ha entre elas tal entre. 98. Jagamento que nio é facil distingui-1as. Um poema de Alvaro de Campos pode ler-se em qualquer dos dois registos: ‘No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz ¢ ninguém estava morto. z : [Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradigio de ha séculos, E a alegria de todos, ¢ a minha, estava certa com ae J Hoje j nfo fago anos Duro, Somam-seme os dias, Serei velho quando o for. Mais nada. Ld © tempo em que festejavam o dia dos meus anos! .. lia e nostalgia se tecem ‘Na mesma trama cerrada de melancol alguns dos mas blot poems deV. de Milosz um dos grandes poetas da melancolia visada como tal, experiéncia suprema da revelagdo dos nossos arcanos celestes, como na pungente Sinfo- nia de Novembro: te vie. La méme chambre, Ce sera tout & fait comme dans cette vie. 7 >n enfant, Ia méme. Au petit jour Ioiseau des temps ame i [la feuillée pile comme une morte: alors les servantes se lévent et l'on entend le bruit glace et creux des eaux. im ae Ge sera tout fait comme dans cette vie! Le méme jr Profond, profond, touffu, obscur. Et vers midi des gars se réjouiront d'etre réunis 1a Qui ne se sont jamais connus et qui ne savent les uns des autres que ceci: qu'il faudta s’habiller 99 ‘comme pour une féte, et aller dans la nuit des disparus, tout seul, sans amour et sans lampe. Ce sera tout a fait comme dans cette vie, Se a verdadeira melancolia é insepardvel da tristeza e de uma espécie de distanciamento da prépria tristeza, 0 poema de Milosz raduz melhor ainda que o de Pessoa a esséncia da melancolia. ‘Ha que lembrar, porém, que a melancolia — porque nfo é uma modalidade, entre outras, da sensibilidade e do sentimento, mas Juma manifestagdo estrutural do ser humano, afectado pela sua rela¢do com 0 tempo — néo pode ser confundida com expres- ses contingentes da nossa existéncia como a tristeza ou a nos- {algia. A tristeza ¢ a nostalgia tém causas, origens e motivagdes, identificéveis na ordem da experiéncia empitica dos homens. Se bem que se fale também de «tristeza sem motivo» a propésito de certos estados de alma de ensimesmamento doloroso. Mas, se Acrescentamos «sem motivo a essa espécie de tristeza — que se aproxima assim da melancolia —, é porque para esta paixio ha habitualmente uma causa ou um motivo, real ou suposto. Nao & esse 0 caso da melancolia. Aquilo de que ela «fala» ou o que fala nla esti fora da esfera empirica, apesar de alterar todo 0 nosso comportamento dito «normaby ao ponto de o tornar «anormaby ou «insano», como diriam 0s antigos. A singularidade da melancolia e do homem melancélico no escapou ao olhar da medicina, da «psicologia» e da filosofia sregas, ¢ tanto o seu diagnéstico como a sua mitologia chegaram quase intactos até Esquirol, passando pelo Examen de Ingenios de Huarte de San Juan. A melancolia reside na natureza, no corpo, em que a «bilis negra» dita, por assim dizer, a lei. A alma, © espirito, limitam-se a softer as consequéncias, No entanto, ¢ Paradoxalmente, os Gregos classificam os melancélicos (alguns deles entre os maiores) como seres excepcionais. Hércules, 0 her6i por exceléncia, releva deste estranho «desarranjo» que 0 aliena, Também aos poetas era atribufda uma certa afinidade com a melancolia. Sem sairmos, com os antigos, do circulo da 100 fureza, de uma afecséo do corpo gémea da da alma, a intui- ao de Sa sapciontate de ordem espiritual especifica da me- Jancolia deixa supor que’ela releva de uma outra instancia i no a da «natureza» ou do «espirito» concebido como emanagio oo estamos certos de que haja uma analogia perfeita entre aquilo a que 0s antigos chamavam «melancolia» € 0 ave desig: amos por melancolia quando pensamos em Direr, Hamlet, Werther, René, Nerval, Baudelaire ou Pessoa. Nao temos uma ideia exacta da maneira como o homem da antiguidade rine inserido no real, incluindo o tempo. S6 Nietzsche ou Hélderlin, antes dele, sob a mascara da nostalgia, tiveram here ra mento», fonte da nova modernidade, de um enraizamento é alma antiga numa temporalidade tao concreta como um rio. Os deuses so «astros», 0 divino, a ordem que configuram, ea ideias, bore «ado sensei, so forms e,acima de to, alge que exci por defnio«o tempor, Como gar # uma ta vivéncia, empirica ou intelectual, a perturbagdo da nossa relag! com o ser que se exprime na melancolia, se virmos nesta, para empregar as palavras de Shakespeare, a tomada de coon de um tempo «saido dos eixos»? A perturbagao de Pascal Late ie (© famoso «siléncio dos espacos infinitos» ¢ menor que a dos poetas qu seniram primeio que ninguém o tempo da melanco- lia quando se dram conta de que jo eram capers de vera mem no rel6gio de Deus. ro elacota moderna, a de Baudelaire, al como a dor ou a tristeza, no ¢ ja a alegoria medieval, representagao ampliada e sintética das dores e tristezas reais, mas um simbolo. Perdida a referéncia do uanseendente, 05 signos que evocam esta perda ‘nao podem ser senao «simbolos», mesmo quando sao objecto i uma alegoria de grau superlative, como é justamente 0 caso de Baudelaire. Na Idade Média, nem a morte nem a alegoria que vvisa 0 sentimento de desalento, ou de «desinteresse activo» pe- rante a vida, eram desconhecidas, Mas o sx sentido © o Seu interesse nfo podem ser os mesmos que na época em que a vis? 101 teocénetrica do mundo e 0 quadro orginico da: sociedade se esboroam ou se desintegram. No seio do mundo cristio, 0 fendmeno da melancolia s6 podia ser entendido como misterioso ¢ incompreensivel «abandono» de Deus —a perda do gosto da vida e a perda do gosto de Deus (acedia) confundem-se — ou como castigo de uma falta, em suma, como um pecado. A ver. dadeira vida é um louvor a Deus e as suas criaturas, So Fran- cisco dard a este ideal a forma mais perfeita, Os santos sio alegres e a tristeza — sobretudo a mais negra, a melancolia — é suspeita. Os deménios so mudos, cheios de uma tristeza sem brilho, como a do anjo caido de Milton. A representagao da melancolia reflecte o seu estatuto no imagindrio medieval: é ersonificada na figura de uma velha, retrato do abatimento, Parente préxima da morte. E a morte no coragio da vida, de que 86 a Graga nos pode livrar. E forgoso verificar, no entanto, que © desgosto da vida, o encerramento em nés, existem nessa época © que se torna necessério compreender como experiéncia hu- ‘mana essa estranha doenga de langor do corpo e da alma. No primeiro quarto do século xv, um rei de Portugal dado & ‘melancolia, D. Duarte, debrugou-se com as armas da sua medi- {aco pessoal sobre a velha «doenga sagrada» dos antigos. No Leal Conselheiro, este personagem escrupuloso e fora do co- ‘mum, infeliz como rei e como ser humano, deixou-nos o que se Pode ja chamar, a justo titulo, uma espécie de «anatomia da melancolia». Ou, melhor, porque estamos longe de qualquer titificago, do «humor melanedlico». A andlise que consagra a este «humor» interessa-nos duplamente, Primeiro que tudo, por- ue, a0 contririo do tratamento das outras paixdes, sentimentos ou afecgdes da ulma, as suas consideragdes sobre o «humor melanc6lico» nos so apresentadas numa éptica autobiogrifica: a sua experiéncia da melancolia é-nos relatada no capitulo «Da maneira que fui doente do humor menencérico [melancdlico], dele guareci [me curei}». Em segundo lugar, porque é no mesmo contexto autobiografico, a propésito da melancolia ou doutros estados de alma comparéveis ou ligados a sua manifestagaio, que 102 D, Duarte elabora a primeira meditag4o conhecida sobre a cas dade. Bastaria esta razo para merecer um lugar & parte naquilo a que podemos chamar

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