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NORMAN FRIEDMAN Tradugdo de Fabio Fonseca de Melo 0 ponto de vista na ficc¢ao 0 desenvolvimento deum conceito critico “Permitam-me adicionar apenas que, nesta Arte, como em outras, ha e haverd sempre, independente do que jé tiver sido feito, algo novo a expressar, algo novo a descrever” (Walter Besant, The Art of Fiction, 1885). Idous Huxley, falando através do “Cademo” de Philip Quarles, questionou hd cerca de vinte & cineo.anoso mau gosto contem- Pordineo pelo autor onisciente na fi ‘Serd que o autor precisaser oreservado? Penso que estamos um pouco melindrados demais a respeito dessas aparigdes pesso- ais, hoje em dia", Quatro anos depois, Joseph Warren Beach escreveria: “Olhan- do de relance o romance inglés de Fielding aFord, a coisa que nos impressionard que qualquer outra éo desaparecimento do autor”, De maneiraconforme, Bradford A. Booth escreveu, em 1950: “Muito se tem falado que a mudanga mais significativa na fiegdode nosso tempo o desapareeimento do autor. Inve He, e vitoriano é a present tor, sempre disposto ‘mentdrio, interpretaros personagens ou es crever um ensaio sobre repolhos e reis” ie, pois, parece que nos- indres” se deram bem (1), dos por muitos hoje como sendo da maior a. “Eo recurso tenico mais eminente desde a época de Henry James”, afirma Beach, “que a est6ria se conte, con- duzida pelas impressdes dos person: historia e da filosofiae da cigneia”. A con- sideragdo de Mark Schorer é rigorosa; é hora, nei, de le} flo como se a técnica fosse al cial do que mero adorno, pois “a técnica é ‘omeiode que [o cscritor] dispoe para descobrir.explorar, desenvolversua maté- ria, transmitir seu significado e, por fin a, sobreiudo,. la relagdo es Iética entre 6 autor e sua obra. “Nao pode- mos mais considerar séria, comtinua, “a eet le poesia que nto ices Jo, 0 caso ainda nao foi demonstrado™. Se, em Tiegdo,0 caso ainda nao foi demonstrado, ha forgas pode- rosas trabalhando no proceso de demons- trd-lo. O “ponte de vista” vem se tornando. das disting&es criticas mais iteis dis poniveis hoje a0 estudioso da fiegiio (2). © propésito deste € resumir 0 fundo estético desse conceito e sua emer géncia como instrumento critico, delinear REVISTA USP, Sé0 Poulo, 0.53, p, 186-182, n chiro serie da here 3 et 0. 4: Guetiao, sir 8d, Ni, 28 ug, 1762 The lca Sholespror shoighin Sir hy, pileado ical 11818) Anal Poon, ed 1853 March, toa a a, Ht 1864, lehers of Weve cdo: ents poralhe Nowa, 1912, Pre. grag a eu cakgo, 0 Chas, lagtin ge © exemplificar seus prineipios basicos e, finalmente, discutir sua significagdo, de modo geral, em relagaioao problema da tée- nica artistiea, A arte da literatura, por oposiga0 as outras artes, &, em virtude de seu medium verbal, aum sé tempo amaldigoada eaben- coada com uma capacidade fatal de falar. Seus vicios so os defeitos de suas virtu- des: de um lado, sua amplitude e profui dade de significagaoexcedem grandemen- te 0 escopo da pintura, da musica ou da escultura; de outro, sua aptidio para proje~ tar as qual is de pessoas, lugares e eventos é menor na mesma medi da. Se pode expressar mais idéias e atitu- des, apresenta imagens qualitativamente mais débeis. Basta ao pintor servir-se de sua paleta para obter a nuanga certa no lo- cal certo; mas o escritor fica continuamen- te abalado entre a dificuldade de mostrar o queumacoisaé ea facilidade de dizercomo se sente a respeito dela, © escultor pode apenas mostrar; © mts musica programética, nao pode nunca nar- rar, Masa literatura deriva sua propria vida dese conflito ~ baisico em todas as suas formas —e a hist6ria de sua estética pode, em parte, ser escrita gragas a essa tensio fundamental, a qual o problema do ponto de vista na ficgio se relaciona como parte de um todo. Pois a distingao geral foi feita, de Plataoe Aristételesa Joyce e Eliot, para que oespecifico tomasse forma. Dasorien- tagdes tocantes & “vi ret6ricos antigos até o estudo da “proje- go” (empatia) dos estetas modernos, a relagdio entre os valorese atitudes do autor, sua incorporacdoemsua obraeseus efeitos sobre 0 leitor foram € continuam a ser de importaneia crucial. Para nossos propésitos, bastard estabe- leceros dois pontos opostosno tempoentre os quais a hist6ria deste conceito pode ser tramada, Platdo, primeiramente, fez uma distingao, ao discutir 0 “estilo” da poesia épica (3), entre “narragao simples”, de um fades sensor ) exeluindo-se a lez” (enargia) dos REVISTA USP, Sto Poul, 9.53, p lado,e“imitagio”, de outro. Quando pocta fala na pessoa de outro, podemos dizer que ele assimilaseuestiloa maneirade falardessa pessoa; essa assimilagao dele mesmo a ou- to, pelo uso da voz ou do gesto, é uma imi- 1acdo da pessoa cujo caréter ele assume. ‘Todavia, se 0 poeta em todo lugar aparece e nunca se oculta, entio a imitagiio 6 abando- nadae sua poesia se torna narracdo simples Plato, em seguida, ilustra essa diferenga “traduzindo” umapassagem inicial da Iliada do discurso direto para 0 indireto ~essenci- almente, colocando “ele disse que” ou “ele ordenou-Ihe que” no lugar dos didlogos en- tornando, assim, uma passagem tre aspas. imitativa em narragao simples. Ele vai adi ante € observa que © extremo oposto ~ did- logos, apenas ~ se aproxima do estilo do drama, inteiramente imitativo (& exce¢ao, poderfamosacrescentar,dos comentarios do coro © das narragdes dos mensageiros). Homero, é claro, mistura ambos — assim res. Temos, por outro lado, a forma que usa somente a ‘voz do poeta: por exemplo, o ditirambo (It- jew). Veremos a seguir, entretanto, que 0 didlogo nao € o nico fator que distingue a imitagdo da narracao, Partindo agora paraaextremidade opos- ta da curva da hist6ria, recordemos uma. distingao na pessoa de Stephen, entre as formas Ifrica € dramatica, tendo pico como interme- didrio, que no difere de maneira alguma, em linhas gerais, daquela de Platao. Neste ponto, ele fala da evolugao da literatura do clamor lirico para as projegoes dramaticas impessoalizadas: “A narrativa tampouco & meramente pessoal. A personalidade do artista passa para a propria narragiio, en- chendo, enchendo de fora para dentro as pessoaseaacdo como um mar vital (...).A forma dramatica € atingida quando a vita lidade que encheu e turbilhonou em volta decada pess pessoa uma forgatal queele ou elaacaba assumin- do uma vida estética prépriac imangivel™. ‘Segue, entio, a hoje famosa passagem so- bre o desaparecimento do autor: “A perso- nalidade do artista, no comego um grito,ou uma cadéneia, ou uma maneira [lirica], © como a maioria de seus suces: imilar desenvolvida por Joyce ‘enche tod: 66-182, motgo/meic 2002 depois um fluido e uma radiante narrativa {épica], acaba finalmente se clarificando fora da existéncia [drama], despersona- lizando-se, por assim dizer” (4), Permitam-nosconsiderarbrevementea cemergéncia da aplicacao especifica desta distingdo bésica a andlise do ponto de vista na ficeao, pois o ponto de vista oferece um modus operandi para distinguir 0s posst- veis graus de extingo autoral na arte nar- rativa, No que toca ao problema particular da relagdo entre autor, narrador e o tema da est6ria, Edith Wharton lamentou,em 1925: “Parece, nfo obstante, que tal questiio deve preceder qualquer estudo do temaescolhi- do, jé que tema é condicionado pela res- posta a ela; mas nenhum eritico parece té- laproposta, e coubea Henry James fazé-lo, ‘em um daqueles intrincados prefacios & Edigo Definitiva da qual os axiomas téc- nicos deveriio, um dia, ser piamente des- prendidos” (5). Pelo que se seguiu desde entio, ela provou-se ainda mais correta do que imaginava, pois nao s6 0s prefiicios de James tornaram-se a origem e a fonte da teoria critica nessa matéria, como também nada menos que duas exaustivas interpre- tagdesdos mesmos jé haviam surgidoquan- doelaescreveu esas palavras—ade Beach, ‘em 1918, €a de Lubbock, em 1921. Mas, antes, examinemos alguns dos pronuncia- mentos do préprio mestre. James,em seus preficios (1907-09), nos diz que se encontrava obcecado pelo pro- blemadeencontrarum “centro”, um “foco” para suas est6rias, 0 que foi solucionado, em larga medida, pela consideracao de como o vefculo narrativo podia ser limita- do pelo enquadramento da agiio na consci- éncia de um dos personagens da prépria trama. “Sempre € uma bela paixo”, co- menta, “o esforgo criativo para entrar na pele da criatura...". Logo, uma vez que a irresponsdvel quebra das ilusdes do garru- lo autor onisciente — que conta a estéria como ele a percebe, ¢ niio como a percebe um de seus personagens — € eliminada por esse dispositivo, a estéria ganha em inten- sidade, vividez ¢ coeréncia. “Nao hi eco- nomia de tratamento semum ponto de vista adotado, relacionado, ¢ embora cu enten- da, sob certos graus de pressdo, umacomu- nidade de visio representada entre varias partes da agiio quando pede concentragito, nao entendo quebra de registro, sacrificio da consisténcia do registro, que antes no disperse e enfraquega” (6). (O professor Beach incumbiu-se de or- ganizara teoriadesse “método" eaplicé-lo a fic¢do do préprio James. Ele faz.a distin (go entre diversos tipos de pontos de vista e discrimina entre as calculadas alternan- ciasno foco de Jamese “aquelaalterndncia arbitréria e impensada no ponto de vista dentro de um capitulo, de um pardgrafo, aquela manipulacio visivel dos titeres a partir de fora, que representa uma ameaga to grande a ilusdo e A intimidade”. © pro- blema como um todo, entretanto, “é mais dificil e complexo, € a pritica dos escrito- resé variada, Seriaimpossfvelfazerumbreve resumo do uso comum, mesmo que fosse feita uma pesquisa suficientemente cuida- dosa desse campo para sentir-se seguro de todos os fatos” (7). A horaera propicia, apa- rentemente, para 0 préximo passo. Restou a Percy Lubbock aplicar a dis- tingdio geral entre a apresentagdo direta e ireta — distincdo comum, como sugeri mos, em toda a hist6ria da estética e da critica —a discussdo da concepeao particu- larde James arespeito do ponto de vista na ficgSo.“A arte da ficgiio”, afirma, “ndotem inicio até que 0 romancista pense sua est6- ria como algo a ser mostrado, a ser 80 exposta que se conte por si mesma [em vez deser contada pelo autor]... eladeve pare- cer verdadeira, e 6 tudo. Ela no se faz parecer verdadeira por simples afirmagio” Se a“verdade” artistica é uma questiio de compelir a expressiio, de criar a ilusiio da realidade, entao um autor que fale em sua propria pessoa sobre as vidas e fortunas de ‘outros estard colocandoum obsticuloamais entresuailusdoe oleitor,em virtude de sua propria presenga, Para remover esse obsté- culo, 0 autor pode optar por limitar as fun- bes de sua prépria voz pessoal de uma maneira ou outra: “A tinica lei queele deve obrigatoriamente obedecer, seja qual foro curso que esteja perseguindo, é a necessi REVISTA USP, S80 Paulo, n.53, p. 166-182, mareo/taio 2002 4 ses do ete Sudo ve (ad Db. 1908 Thee, 191, pl en 1918) ase docap WC shen odie it Cha Tot (1917 ml td Hs Plo” (1919 fonimodawanid too eke, cl abide, ANidamBoak of fests ed. . 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Nae to, 191 2966, Feeiovestitp, het ot Nett lend 192, po. 25282 170 dade de serconsistente em algwm plano, de seguiro principio que adotou; e, obviamen- te, trata-se de um dos primeiros de seus preceitos, assim como para cada artista, de qualquer género, permitir-se apenas a lati- tude necesséria, nada mais”. Um dos prin- cipais meios para esse fim, aquele que 0 proprio James no $6 anunciou como pos em pritica, € fazer com que a hist6ria seja contada como que porum dos personagens dela mesma, mas na terceira pessoa. Desa forma, leitorpercebe aagdoa medida que ela ¢ filtrada pela consciéncia de um dos personagens envolvidos, e contudo a per- cebe diretamente, & medida que ela vibra sobre essa consciéneia, evitando, assim, aquele distanciamento tao necessério’a nar- ragiio retrospectivaem primeira pessoa: “a diferenga € que, em vez de receber seu re- lato, nés podemos vé-lo na ago de julgare refletir; suaconsciéncia, outroraumrumor, ‘umpontoarespeito do qual deviamosacre- ditar em sua palavra, encontra-se agora diante den6s em sua agitagdo original” (8) Aconsciéneia mental é, portanto, dramati- zada de maneira direta, em lugar de ser relatadae explicada indiretamente pela voz do narrador, muito da mesma forma que palavras e gestos podem ser dramatizados diretamente (cena), em ver de serem res midos pelo narrador (panorama). Embora, sobre esse ponto, possamos encontrar varias observacdes perspicazes dispersas pelos escritos de romancistas € criticos antes que os prefécios de James viessem cristalizar a questéo fundamental ~pois seus conceitos nao cairam do céu (9) —devemos forgosamente limitar-nosauma breve consideragao sobre 0 que Ihes acon- teceu depois que foram comentados por Beach e Lubbock. Excegio deve ser feita, todavia, ao trabalhode Selden L. Whitcomb intitulado The Study of a Novel (1905), © primeiro, até onde sei, adedicar uma segio formal a rubrica, “The Narrator. His Point of View”. Nele se afirmaque“aunidadede uma passagem ou tramadepende largamen- te da clareza ¢ estabilidade da posigao [do narrador}” (10). Essa nogao, da forma como surgiu.um ou dois anos antes dos prefaécios de James, parece notavelmente profética REVISTA USP, S80 Poul, 9.53, p. 166182, mar do que estava por vir, uma vez que, a partir dese ponto, quase todos os manuais publi- cados sobre a arte da ficg’o contém uma secdio similar. Durante os dez anos seguin- tes, aproximadamente, ocorreu umaenxur- rada de manuais que logo se tornou uma avalanche, € @ andlise especifica do ponto de vista tornou-se uma propriedadecomum ap. Otrabalho mais ignificativo nese cam- po, depois de Beach e Lubbock, embora, como vimos, pareca curiosamente nao ter consciéncia disso, é © da prépria Sra. Wharton, de 1925: “Deveria sera primeira preocupacao do escritor escother deliberadamente amente que refletiréasua, como se escolhe © local para uma edifi- cago. ..e, isso feito, viver dentro da mente escolhida, tentando sentir, vere reagirexa- tamente como faria esta, no mais, nio menos, e, acima de tudo, niio de outta for- ma. S6assimpoders oescritor evitaraatri- buigdo deincongruéncias de pensamentoe metafora ao intérprete escolhido”. Deste ponto em diante os manuais estao sempre conosco (12). Orestante da segunda década distingue- se pela contestacdo de E. M. Forster, em 1927, que olha ligeiramente para © nosso problema, apenas para passé-lo adiante como um tecnicismo trivial. Dandocrédito total a Lubbock por suas “formulas”, ele prefere ver 0 romance de outra maneira: a principal especialidade do romancista se- ria a onisciéncia desembaracada por meio da qual “ele comanda toda vida seereta,e deste privilégio ndo deve ser privado. ‘Como 0 escritor sabia disso?", se vezes, ‘Qual € seu ponto de observagio? Ele ndo esta sendo consistente, esta mu- dando seu ponto de vista do limitado para oonisciente,e agora retornando novamen- te’. Questdes como estas tem bastante da atmosfera dos julgamentos feitos aseures- peito. Tudo o que importa ao leitor & se a mudanga de atitude e a vida secreta sto convincentes" (13). A terceira década ¢ agraciada especial- mente pelo estudo monumental de Beach, em 1932, sobre a técnica do romance do século XX, caracterizado, diz ele, princi- ‘moto 2002 palmente em virtude do fato de que “a es- ria conta-sea si mesma; aestoria fala por si. © autor no pede desculpas por seus personagens; ele nem sequer nos diz.0 que fazem, mas faz com que eles mesmos nos digam, Acima de tudo, faz com que nos digam o que pensam, o que sentem, que impressdes passam por suas mentes a res- peito das situagdes em que se encontram”. Aparentemente encorajado pelo trabalho de Lubbock, que veio a cena logo apés seu estudo inicial sobre James, Beach, nesse ‘momento, faz uma investida congruente € desconcertante sobre 0 problema de con- tar/mostrar da maneira como ele aparece em centenas de romances modernos (14). Em um ensaio datado de 1941, encon- tramos Allen Tate aceitando 0 desafio de- clinado por Forster: “A limitada e, portan- to, crivel autoridade para aagio, aleancada colocando-se 0 sabedor da agao dentro de seu espectro de agio, é, talvez, 0 elemento distintive do romance moderno: ¢ é, em todas as infinitas mudangas de foco de que € capaz, o elemento especifico que, mais do que qualquer outro, tornou possfvel 20 romancista construir uma estrutura objet va”, De maneiraconforme, Phyllis Bentley, em 1947, 6 forgadoaobservar: “O declinio gradual no uso do comentirio direto, até seu total desaparecimento de um 86 golpe no século XX, € um estudo fascinante que deveria merecer mais atengao dos criticos contempordneos no interesse... [daquela la da ficg@0] que men- cionei em minha introdugao” (15). ‘O avango verdadeiramente significati- vona teoria do ponto de vista ocorrido nos anos 40 foi o trabalho de Mark Schorer, de 1948. Se Lubbock viao pontode vistacomo um meio paraumaapresentagaocoerentee vivida, Schorer dé um passo a frente, exa- minando “os usos do ponto de vista ndo apenas como um modo de delimitagaodra- mética, mas, mais particularmente, de de- finigdo temética”. Um romance, diz ele, revela normalmente um mundo criado de valores eatitudes, ¢ 0 autor é assistido nes- sa busca por uma definigao artistica desses valores e atitudes pelo medium de controle oferecido pelos dispositivos do ponto de estética negligent vista; através desses dispositivos, ele é ca- az de desenredar seus préprios preconcei tos predisposig6es daqueles de seus per- sonagens e, dessa forma, avaliar os de seus personagens dramaticamente entre si den- tro de seu proprio espectro. Nisso, ele tem a concordancia de Ellen Glasgow, que es- creveu em 1943: “Ficar perto demais, a0 que parece, é mais fatal, em literatura, do que ficar longe demais; pois € preferivel que 0 escritor criativo recorra a imagina- 40 do que sucumba & emocao™. O roman- cista deve “separar o tema do objeto no ato da criagao”; isso € feito através da “total imersdo” ou “projegiio” nos materiais de sua est6ria. Finalmente, que a distingzo entre contar/mostrar encontra-se estabele- cida como um Iugar-comum da critica de ficgaio fica evidente nas iltimas reiterages a esse respeito, no trabalho de Bernard De Voto, de 1950, assim como nos compén- dios atuais nao somente naqueles sobre escritura e leitura de ficga0, mas também nos langamentos mais recentes (16). ‘Tendo tragado 0 desenvolvimento des- te conceito-chave, podemos agora tentar uma definigao conereta e coerente de suas partes e de suas relagdes. Tal definigo, penso, serd produzida se conseguirmos codificar as questdes das quais essas dis- tingGes so respostas ¢ se pudermos orga- iressas respostas de forma que aparen- tem uma seqilgncia Iégica. J&que 0 problemado narrador éatrans- missdo apropriada de sua est6ria ao leitor, as questdes devem seralgocomo: 1) Quem falaao leitor? (autor na primeira ou terceira pessoa, personagem na primeira ou osten- sivamente ninguém?); 2) De que posigio (Angulo) em relacio & est6ria ele a conta? (de cima, da periferia, do centro, frontal- mente ou alternando?); 3) Que canais de informagao 0 narrador usa para transmitir aest6riaao leitor? (palavras, pensamentos, percepgdes e sentimentos do autor; ou pa- lavras © agdes do personagem; ou pensa- REVISTA USP, S30 Poulo, v.53, p. 166-182, marco/maio 2002 12Whoten po. 114, 434,70 5, 8095: Gem Cll, Ao fx shat SexyAt Nowe York, 1922, pp, 8995 Flash Dies Te Modern Neve, Novo, 1926 66 24662, Mecho op, How te Wie o Shot Sy Nowe Yer, 1926, 4736 3 Apacs of th Novel, Nowe Yor, 1997, gp. 11828.C. Gretna The Phila eter, Now Yo, 1928, 59.1315 Call Gece, The Tocris of te Nee Novae, 1928p. 65,8 Von er Anes, A the Noel, Chicago, 1p. 17793; Sowa Beach, Shor Sey Teche, Basen, 1920, op. 413, 10820, 13658 i Batt Ooi, ‘SrSoy ng Now Yer, 28, pp. 11121; Edth Niles Wing Sy, Noa Ye, 1928p. 81-121: john Gallshow, Ten Peers cl Fon Wee Now Yo eds, 1928p ve, B16? 14 The Tenth Ceray Noa Nove Yo lends, 1082 15 et possin. Cl fod Modes Fo Tec a Seuenfoview 1935, 20 $S:Godenrel et, How Te'Beod Fo, Pnclon, pp 545,687,713 Dougos Bene” Ve Sho, fp 1007 F Handok of Shot baeNoa’ nal DON 1905 po. $8860 Selo! 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(pro- ximo, distante ou alternando?). B, ademais, J que nossa principal distingao é entre “contar” e “mostrar”, a seqtiéncia de nos- sas respostas deveria proceder gradualmen- te de um extremo a outro: da afirmagiio & inferéncia, daexposigio’ apresentagao, da narrativa ao drama, do explicito ao impli cito, da idéia a imagem. Autor onisciente intruso No que toca aos modos de transmissio do material da est6ria, temos primeiro, portanto, que definir concretamente nossa principal distingao: sumérionarrativo(con- tar) versus cena imediata (mostrar). Ben Franklin, quando jovem, a caminho da Fi- ladéifia, deparou-se com uma edigiio de A Jornada do Peregrino em holandés, ¢ co- mentou, algo ant esto John foi o primeiro, dos que sei, a misturar Narragio e Didlogo, um Método de Escrever bastante cativante para 0 Li tor, que, nas Partes mais interessantes se ve ‘como que trazido para dentro da Compa- nhia ¢ presente durante 0 Discurso. De foe {sic],emseuCruso [sic], seu Moll Flanders, Religious Courtship, Family Instructor € outras Pegas, 0 imitou com Exito. E Richardson fez 0 mesmo em sua Pamela, etc.” tao certo de que, para nossas finalidades, 0 dislogo seja o fator crucial. Edward Overton, o narradorem Destino da Carne, de Burton, informa-nos, no capitulo de abertura, que “bastava ouvir dizer o nome de Pontifex, para que rosto de meu pai se iluminasse: ‘Palavra, Edward, dizia-meele, © velho Pontifex era no sé um homem notavel, como um dos homens mais noté- veis que eu conheci”. Era uma afirmagao ‘excessiva, para o rapaz que eu era, — Mas meu pai, que € que ele fez?” (17). Mal se Je essa 6 a nossa distingo, no estou pode dizer que odidlogo aqui constitui uma cena—outros fatores parecem ser necessé- rios. Observemos que a forma verbal € 0 pretérito imperfeito ¢ que, conseqiiente- mente, o tempo eo espago sao indefinidos. ‘Assim, para que 0 evento sejacolocado imediatamente diante do leitor, é necessa- rio pelo menos um ponto definido no espa~ coe no tempo. A principal diferenga entre narrativa e cena segue o modelo geral-par- ticular: o sumérionarrativo €uma apresen- taco ou relato generalizado de uma série de eventos cobrindo alguma extensio de tempo e uma variedade de locais, e parece ser 0 modo normal, simples, de narrar; a cena imediata emerge to logo os detalhes especificos, continues e sucessivos detem- po, espago, ago, personagem e didlogo comesam a aparecer. Nao 0 didlogo tio- somente, mas detalhes concretos dentro de ‘uma estrutura especifica de espago-tempo 60 sine qua non da cena. Butler, mais uma vez, nos oferece um exemplo de sumério narrative puro: “O velho Mr. Pontifex se casara em 175% durante quinze anos, porém, a mulher nao Ihe deu filltos. No fim desse perfodo, Mrs. Pontifex assombrou a aldeia inteira, apre~ sentando sinais evidentes de que pretendia presentear 0 esposo com um herdeiro ou herdeira. J4 hd muito tempo considerava- seo seu caso irremedidvel; e quando ela foi consultar o médico a respeito de certos sin- tomas, inteirando-se do que significavam, chegou a injuriar 0 doutor, tal foi sua zan- ga” (aberturado cap. 11). Notemosaqui que, apesarda data especifica (1765), €otom do narrador, € nao evento ele mesmo, que predomina — “sinais.evidentes”, “certos sintomas”, e assim por diante, revelam 0 prazer de Overton pela ironia da situaca0, antes que pela situagao ela mesma. Nao nos Ediretamente mostrada a aparéncia da Sra. Pontifex (embora possamos inferir seus contornos gerais), nem sua vi co, nem suas palavras de raiva e injiria, € assim por diante. Comoexemplo de cenaimediata, pode- rfamosigualmente selecionara ébvia—nela, Hemingway € mestre: “A chuva parou, quando Nick entrou no caminho que atra- ita ao médi- REVISTA USP, Sto Paulo, 0.53, p. 166-182, moygo/moto 2002 vessa 0 pomar. As frutas ja haviam sido colhidas,¢ 0 vento outonal soprava através das érvores nuas. Nick paroue apanhou a0 lado do caminho uma maga Wagner, que a chuva pusera a brilhar no capim escuro. Colocou a mag no bolso da japona tipo Mackinaw” (18). Aqui, mesmo que nin- guém tenha ainda falado, temos a apresen tagdo paciente do detalhe sensorial, tfpica de Hemingway: cendrio (tempo: chuva, vento; elementos de fundo: caminho, arvo- res, mag, capim), ago (Nick entrou, pa- rou, apanhou, colocou) e personagem (Nick © sua japona tipo Mackinaw). O préprio evento predomina, no aatitude patentedo narrador. Esses modos de apresentagio, um de segunda-miio e indireto, outro imediato e direto, raramente ocorrem em suas formas puras. Defato, principal virtude do medium narrativo € sua infinita flexibilidade, ora expandindo em detalhes vividos, ora con- traindoem econdmico sumério: poder-se-ia arriscar, ainda, a vaga generalizagao de que a ficgio moderna € caracterizada por sua €nfase na cena (mental ou no discurso e na ‘acdo), ao passo que a ficgao convencional caracteriza-se por sua énfase na narragdo. Porém, mesmo a mais abstrata das narra- oestrar4, incorporadaemalgum lugar dela, indicagdes ¢ sugest6es de cenas, e mesmoa maisconcretadas cenasexigirdaexposi¢o de algum material sumério. Todavia, a ren- dénciano Autor Onisciente Intrusoestélon gedacena, pois €a voz do autor que domina ‘omaterial, falando frequentemente por meio de um “eu” ou “nés”. “Onis significa literalmente, aqui, um ponto de vista totalmente ilimita- do —e, logo, dificil de controlar. A estéria pode ser vista de um ou de todos os angu- 108, 2 vontade: de um vantajosoe como que divino ponto além do tempo e do espago, do centro, da periferia ou frontalmente. Nao hd nada que impega o autor de escolher ‘qualquer deles ou de alternar de uma outro ‘© muito ou pouco que the aprouver. Demodosemelhante, o leitortemaces- so a toda a amplitude de tipos de informa- io possiveis, sendo elementos distintivos, desta categoria os pensamentos, sentimen- tos e percepgGes do proprio autor; ele €li- vre no apenas para informar-nos as idéias eemoges das mentes de sens personagens como também as de sua propria mente. A ‘marca caracteristica, entao, do Autor Onis ciente Intruso é a presenga das intromis- sdese generalizagdes autorais sobre a vida, (0s modos € as morais, que podem ou niio estar explicitamente relacionadas com a est6ria&mao. Assim, porexemplo, Fielding, em Tom Jones, ¢ Tolst6i,em Guerra e Paz, interpolaram seus ensaios como capitulos separados dentro do corpo da obra e, dessa forma, so mais facilmente destacaveis. Hardy, por outro lado, niio faz distingao formal ao comentar aqui e ali no meio da ago, do modo como achar melhor. Deve-se, de fato, investigar essa rela- io por vezes ambigua entre os comenté- ios do autor e a est6ria ela mesma. Os re~ sultados so, quase sempre, interessantes, se niio esclarecedores. Hardy € um dos ca- sos em questo: em Tess(19), eleindulgen- cia, em uma de suas caracteristicas passa- gens editorializantes: “Na imprudenteexe- cuctio do prudente plano de coisas, o apelo raramente trazoesperado,ohomemaamar raramente coincide coma hora do amor”. E ele continua falando da dessemelhanga geral dessa situagdio desigual sempre cres- cente para, em seguida, tentar, explicita- mente, relacionar essa observagio com a est6riai mao: “Basta dizer que, no presen- te caso, como em milhées, nao foram as duas metades de um todo aparentemente perfeito que se defrontaram no momento perfeito (...). Desastrado atraso de que bro- tariam ansiedades, desapontamentos, sus- tos, catdstrofes, e mais que estranhos des- tinos” (1891, final do eap. V) Podemos, portanto, esperar que a est6- ria ilustre essa relagdo de causa e efeito: se a miséria de Tess tem origem na total falta de sorte, deveria, para ser exata, nao ter causa em seu temperamento; pois ou a fa- tha esté em ns mesmos ou na estrela com que nascemos. Hardy, mais uma vez, na andlise da motivagao de seus personagens, parece, algumas vezes, implicar algo mui- to diferente, Tess tomou coragem, por exemplo, para contar a Angel a terrivel REVISTA USP, So0 Paulo, 0.53, p. 166-182, morgo/meto 2002 18°A Ventana de et ir, Nis Herngnay, Cente ddePasingvoy ra. A. Vga Fale, Bo de owe, Cit e580 Bre, 1965, ONT. Hy Ts Net do Sho, Slo Horace, ei, 1984, 173 174 verdade, mas termina (como de costume) fugindo do assunto: “No tinha-the faltado coragem; temiaque acen- surasse por nao Ihe ter contado mais cedo; € 0 seu instinto de conservacao era mais forte que a sinceridade” (metade do cap. XXX). Hé um conflito interno, portanto; umconflito que ela niio consegue resolver. Aparentemente, hé mais aqui do que mera ce canhestra m4 fortuna, Mais uma vez, ela decide visitar os pais dele, em um esforgo para assentar as coisas, e novamente fra- ‘imo momento, queja no momento critico: “seguiu seu ca minho sem saber que omaiorinfortiniode sua vida era aquela perda feminina de co- ragem no momento derradeiro e eritico” (metade do cap. XLIV). As coisas no precisavam ter sido tio ruins para ela, por outro lado, se 0 cardter de Angel fosse diferente: “Dentro das pro- fundezas remotas da sua constituigso, tio suave e afetuoso como eraem geral, estava oculta uma dura reserva légica, como um veio de metal na argila mole, que amassava © corte de tudo que tentasse atravessé-lo. REVISTA USP, So F Bloqueara a sua aceitacao da Igreja; blo- queava a sua aceitagdo de Tess” (metade docap. XXXVI). Trata-se, obviamente, de uma questo aberta cista pode criarpersonagens totalmente destituidos de motivacio significativa, mesmo se aservi- 0 de um fatalismo naturalista. De todo modo, é uma conseqiiéncia natural da atitude editorial que 0 autor ntio relate o que se passa nas mentes dos perso- hagens, mas sempreacritique. Logo, Hardy retrata a pobre Tess vagandodesconsolada pelo campo apés seu desastroso encontro com Alex, supondo que as paisagense sons naturais a proclamam culpada. Ele, entio, informa abertamente ao leitor que a desa- fortunada moga estava errada em se sentir daquela forma: “Mas aquela abrangéncia de personagens da sua prépria invengao, baseadaemretalhos de convengdes, povoa- da de fantasmas e vozes que Ihe eram anti- piticas, era uma criagao triste e falsa da fantasia de Tess — uma nuvem de duendes morais pela qual se deixava aterrorizar sem. razdo” (final do cap. XIII). Como ela ja mais descobre isso, tudo 0 que podemos dizer é que é realmente muito mau que ela tenha percepcdo menor que seu criador Narrador onisciente neutro Uma vez que 0 préximo passo em dire- ‘co A objetivagaio difere do Autor Oniscien- teIntrusoapenas devido misses autorais diretas (0 autor falademodo wus@neiade intro- impessoal, na terceira pessoa), podemos continuar nossa discu: jo sobre as diversas media disponiveis para a transmissio do ial da est6ria em questiio. A auséncia deintromissoes: mate implicanecessariamen- te, contudo, que o autor negue a si mesmo uma voz ao usar 0 espectro do Narrador Onisciente Neutro; personagens como Mark Rampion e Philip Quarles, em Contrapon- 10, so, claramente, projegdes de uma ou outradas variadas atitudesdopréprioHuxley (naquele tempo), como sabemos por evidén- cias externas, mesmo que Huxley nun editorialize em sua propria vor. 1.53, p. 166182, morgo/meie 2002 Com relagio a caracterizagiio, embora um autor onisciente possa ter predilegao pela cena e, conseqtientemente, permita a seus personagens falar e agir por eles mes ‘mos, atendéneia predominante é deserevé- os e explicé-los ao leitor com sua voz pré- pria, Assim, Tess encontra Alex pela pri- meira vez, precéria ¢ hesitante diante dele: “... uma figura aproximou-se vindo da es- cura porta triangular da tenda. Era ade um, homem jovem ¢ alto, fumando”. Mas, em- bora Tess estivesse ld observando, Alex & descrito como visto por Hardy, e nao pela herofna: “Tinha ele a tez quase tisnada de 3m labios cheios, mal conformados, ‘emborarubroselisos,acimados quaisse via ‘um bigode preto bem frisado, com pontas recurvadas, emboraasuaidade ndio pudesse ser de mais de vinte e trés ou vinte € quatro anos. Todavia, apesar dos tragos de barbirie dos seus contornos, havia uma forga sings lar no rosto do cavalheiro e nos seus olhos méveis ¢ atrevidos” (metade do cap. V). ‘Com vistas a ilustrar de maneira con creta esse procedimento indireto caracte- ‘0, reescrevi a passagem colocando a descrigdo mais diretamente no espectro sen- sorial de Tess: “Ela viu uma figura apare- cer da escura porta triangular da tenda. Era a de um homem jovem e alto, fumando. Notou sua tez quase tisnada de sol, com labios cheios, mal conformados, embora rubros ¢ lisos, acima dos quais se via um bigode preto bem frisado, com pontas recurvadas. mbora sua idade nao possa serdemais que vinte erés ou vintee quatro anos, ela pensou. Todavia, apesar dos tra- cos aparentes de barbarismo de seus con- tomes, ela percebeu uma forga singular no rosto do cavalheiro € nos seus olhos mé- veis e atrevidos”, ‘De mancira similar, os estados mentais © 08 ceniirios que os evocam sio narrados indiretamente, como se jiitivessem ocorri do~e sido discutidos, analisados e expli cados — em vez de apresentados cenica- ‘mente como se ocorressem naquele instan- passagemem que Tess encontra-se vagando pelo campo, sentin- do-se culpada, leremos: “Por aquelas coli- nase vales solitérios, a sua passagem tran- te, Seretornarmos a REVISTA USP, $40 Reulo, 9.53, p. 1665182, marso dliila ¢ sileneiosa calhava bem com o ele- mento em que se movia (...). As vezes, a sua fantasia caprichosa dava intensidade 08 processos naturais em torno dela, até parecerem fazer parte da sua propria hist6- ria (...). A arageme a brisa da plena noite, chorando entre a cortiga e os ramos bem abrigados das ramadas hibernais, eram f6r- mulas de amarga censura”. Em contraste, tentei outra vez revisar a cena para apre- senti-la ocorrendo diretamente na mente de Tess: “As vezes ela sentia a paisagem ‘como parte de sua prépria hist6ria. Ouviaa aragem ca brisa da plena noite, chorando entre a cortiga ¢ os ramos bem abrigados das ramadas hibernais, censurando-a amar- gamente”, Por fim, como 0 sumério narrativo ea cenaimediataestao igualmente disponiveis (a tiltima em grande parte nos discursos e ages externos), a distancia entre a est6ria © 0 leitor pode ser longa ou curta, ¢ pode mudar a seu bel-prazer — com freqit por capricho ¢ sem desfgnio aparente. A caracterfstica predominante daonisciéncia, todavia, é que 0 autor estd sempre prontoa imtervir entre o leitore a est6ria, e, mesmo quando ele estabelece uma cena, ele a es- creverd como a ve, nilo como a véem seus personagens. “Eu" como testemunha Nosso progresso em diregao a apresen- taco direta cartografa o curso da capitula- ‘¢40; uma um, como no deseascardos anéis, concéntricos de uma cebola, sucumbem os canais de informagiio do autor e seus pos- siveis pontos de vantagem. Assim como declinou comentirios pessoais ao mover- se do Autor Onisciente Intruso para oNar- rador Onisciente Neutro, ao mover-se para a categoria “Eu” como Testemunha, ele entrega completamente seu trabalho a0 outro. Muito embora o narrador seja uma ctiagdodo autor, aeste titimo,deagoraem diante, sera negada qualquer voz diretanos procedimentos. © narrador-testemunha & um personagem em seu préprio direito ‘moi 2002 175 ‘20 ia doco. VT925). 8 N15 Fogel, OGede Got, tol. Beo Shee, So Fouo, Abi Cola, Toto. 2 een eps mn clef oes nbioemoegen e's emolemnrtorobeae0 ‘Soars domes 0 rama gage. Por exer, 0 seo Sroeooimde ips Egon oe pore thm ck 176 dentro da estéria, mais ou menos envolvi do na aco, mais ou menos familiarizado com os personagens principais, que fala ao leitor na primeira pessoa. A conseqiiéncia natural desse espectro narrativo € que a testemunha ndo tema um acesso senso ordinério aos estados mentais dos outros; logo, sua caracterfstica distin- tiva € que 0 autor renuncia inteiramente sua onisciéncia em relagio a todos os ou- tros personagens envolvidos, ¢ escothe deixar sua testemunha contar ao leitor so- mente aquilo que ele, como observador, poderia descobrir de maneira legitima. A sua disposigao 0 leitor possui apenas os pensamentos, sentimentose percepcdes do narrador-testemunha; ¢, portanto, vé a es- t6ria daquele ponto que poderfamos cha- mar de periferia nomade. © que a testemunha pode transmitir de maneira legitima ao leitor ndo¢ taorestrito ‘como pode parecer primeira vista:ele pode conversar com todas as personagens da estoriae obter seus pontos de vistaarespei- to das matérias concernentes (note-se 0 cuidado que Conrad ¢ Fitzgerald tiveram para caracterizar Marrow e Carraway como homens em quem os demais podiam confi- articularmente, ele pode se encontrar como préprio protagonista;e, porfim, pode arranjar cartas, didrios outrosescritos que podem oferecer reflexos dos estados men- tais dos outros. No limite Gltimo de suas forgas, pode fazer inferéncias do que os outros estiio sentindoe o que esto pensan- do. Assim, Nick Carraway especula, ap6s ‘a morte solitéria de Gatsby, sobre o que pode ter passado por sua cabeca antes de ser alvejado: “Nao houve qualquer recado telefOnico (...). Tenho a impressao de que nem mesmo o proprio Gatsby acreditava que alguém 0 fizesse, e ralvez isso jé nlio Ihe importasse. Se istoera verdade, ele deve ter sentido que perdera aquele seu célidoc antigo mundo, pago um prego demasiado alto porhaver vivido com um Gnico sonho. Deve ter fitado, através das folhas assusta- ‘doras, um céu desconhecido—esentido um arrepio, ao verificar quéio grotesca é uma rosa, ede que maneiracruacafaaluz do sol sobre a relva que acabara de brotar” (20). ‘Mas Butler passeiaerrante para alémde seus limitesem Destinoda Carne commais freqléncia do que seria desejével. Seunar- rador-testemunha, na verdade, informa-nos explicitamente de seus limites: “Mas quais cram os sentimentos de Theobald e Cristina depois que deixaram a aldeia e enquanto rodavam [na carruagem da lua-de-mel] suavemente através da plantagiio de abe- tos? (...). © casal ficou algum tempo em silencio: deixo ao leitor a incumbéncia de adivinhar 0 que sentiram durante a primeira meia hora, pois estaria acima das minhas forgas descrevé-lo”. O que, entdo, havemos de deduzir desta passagem imediatamente precedente? “Ele [Theobald] ¢ Cristina ti- nham se dado téo bem ~ refletia — durante anos e anos; entéio por que—sim, por que?— no continuariam a se entender do mesmo modo durante todo o resto da vida?” (inicio do cap. XII). Ainda outra vez: ““Espero’, dizia Theobald a si mesmo, ‘espero que ele ha de se esforgar — ou entdo que Skinner 0 faga se esforgar"” (inicio do cap. XXIV). HE verdade que Overton é contempord- neo e amigo proximo de Theobald, assim como © padrasto e guardido de Emest, ¢ que Theobald, nessas instancias, deve ter- Ihe dito mais tarde sobre © que se passou em sua mente, mas Overton muito freqiien- temente nao nos dé pista de nenhumaespé- cie no que tange A sua autoridade para tais informagoes. Uma vez que 0 narrador-testemunha pode resumir sua narrativa em qualquer ponto dado, assim como apresentar uma cena, a distAncia entre leitor € a est6ria pode tanto ser larga ou curta, ou ambas. Podemos notar aqui que as cenas sao geral- mente apresentadas de modo direto, como a testemunha as vé (21). Narrador-protagonista ‘Comatransferéncia da responsabilida- de narrativa da testemunha para um dos personagens principais, que contaaestéria naprimeira pessoa, alguns outros canais de informagdo so eliminados e mais alguns REVISTA USP, Sd0 Paulo, 0.53, p. 166-182, margo/maio 2002 pontos de vantagem, perdidos (22). Devi- do a seu papel subordinado na prépria es- t6ria, o narrador-testemunha tem uma mo- bilidade muito maior e, por consequiéncia, uma amplitude ¢ variedade de fontes de informacao bem maiores do que o proprio protagonista, que se encontracentralmente envolvidona ago. Onarrador-protagonis- ta, portanto, encontra-se quase que inteira- mente limitado a seus proprios pensamen- tos, sentimentos e percepgdes. De maneira semelhante, o Angulo de visio é aquele do centro fixo. E,uma vez que onarrador-protagonista pode resumir ou apresentar de modo direto muito da mesma forma que a testemunha, a disténcia pode ser longa ou curta, ou ambas. Um dos melhores exemplos deste modo pode ser encontrado em Grandes Esperangas. Onisciéncia seletiva maltipla Apesardo fatode que tantoomodo“Eu” ‘como Testemunha quanto 0 Narrador-pro- tagonista estejam limitados & mente do narrador, h4, ainda, alguém fazendo a fala, alguém narrando. O préximo passo em di- regdioa objetivagdo do material daestoria é a eliminagao ndo somente do autor, que desaparece com o espectro do ‘Testemunha, como também de qualquer espécie de narrador. Neste ponto, 0 leitor ostensivamente escuta a ninguém; a est6- ria vem diretamente das mentes dos perso- nagens & medida que Id deixa suas marcas. Como resultado, a tendéncia € quase intei: ramente na diregfio da cena, tanto dentro da ‘mente quanto externamente, no discurso € na aco; ea sumarizacao narrativa, se apa- rece dealguma forma, 6 fornecida de modo discreto pelo autor, por meio da “diregio de cena”, ouemerge através dos pensamen- tos e palayras dos préprios personagens. Aaparénciados personagens, oqueeles fazem e dizem, cenario ~ todos os mate- riais da est6ria, portanto—podem ser trans- mitidos ao leitor unicamente através da mente de alguém presente. Assim aidadee a aparéncia da Sra. Ramsay so dadas em Passeio ao Farol, de Virginia Woolf: “Era preciso achar um meio de eseapar a tudo aquilo, Devia haver uma forma mais sim- ples, menos complicada, suspirow ela Quando se othounoespelho, viwoscabelos sgrisalhos, a face abatida, aos cinglientaanos, € pensow: poderia ter conduzido melhor as, coisas ~ seu marido, o dinheiro, 0s livros dele” (23). Poderiamos questionarde que maneira, exatamente, este modode apresentago,em. que © autor nos mostra estados internos, difere da onisciéncia normal, emque oautor perscruta as mentes de seus personagens € conta-nos 0 que esti se passando 14. A di- ferenga essencial & que um transmite pen- samentos, percepgdes sentimentos i me- dida que eles ocorrem consecutivamente e em detalhe, passando através da mente (Cena), a0 passo que 0 outro os sumariza.e explica depois que ocorrem (narrativa) Uma “traducao” de outra passagem da Sra. Woolfilustraré o ponte preciso da diferen- a:*“Taleraacomplexidade das coisas [pen- saLily Briscoe]. Pois acontecia-Ihe—prin- cipalmente quando ficavacomos Ramsays — sentir violentamente duas coisas antag6- rnicas a0 mesmo tempo: uma, o que voc’ sente; outra, 0 que eusinto. Eambas briga- ‘vam em sua mente, como nesse momento. E tao emocionante esse amor que tremono seu limiar” (24). A mudanca para a onisei- éncianormal éefetivadaalternando-se para © discurso indireto, padronizando os pro- nomes pessoais na terceira pessoa (com freqiiéncia, em pensamento, nos referimos ands mesmos na primeira, segunda e ter- ceira pessoa) enormalizandoasintaxe: “A. Lily parecia que as coisas eram bastante complexas. Ficar com os Ramsays a fazia sentir que estava sendo atrafda a duas dire- es antag6nicas ao mesmo tempo. Deum lado, havia os sentimentos dos outros; edo outro, havia nossos préprios sentimentos. As vezes 0 amor parecia tio emocionante ‘que ela tremia no seu Timiar”. Um autor onisciente menos paciente poderia escre- ver, simplesmente: “Lily sentia-se ambi- valente quanto ao amor, especialmentecom 0s Ramsays”. REVISTA USP, Sd0 Paulo, 0.53, p, 166-182, mergo/maio 2002 2268 ne exer i ercerato og Ease 6 sappinesiia, scone fsbo ee, ns odie {do rent are Sapdpiapeica laoepe Jose conorta doen onde como Tse edo Namodaroagniin 236d. Horace Modern Clases, 1927, 5p. 194.16 NIV. Woal, Fos a0 Far a, ies lobo, Bo do biti, Nevoroaa 1982 2am, bem p. 154. fomon Femande em Messager {1926 roduc do tres 1 Montgomery Belgion Rover 927 pp. 015), feeimaogudn dings op relma defo ape dis erteoYonence’ fe hatleo tet at 177 7 Bol est ene mK 198 pea a om reprcetion © Onisciéncia seletiva Aqui, 0 leitor fica limitado & mente de apenas um dos personagens. Logo, de ser-the permitida uma composigao de diversos angulos de visio, ele no centro fixo. As dema mesmas respostas dadas nas categorias contr is questes tm as anteriores. Restaamerailustragiio. Um vividoexem: plo de como, exatam estéria so transmitidos diretamente ao lei- tor através da mente de um personagem pode ser encontrado em Retrato do Artista Quando Jovem, de Joyce: “A consciéncia de lugar the [Stephen] voltou como maré, vagarosamente, através dum vasto trato de nte, os materiais da tempo apagado, sem sensaciio, sem vida. A cenaesquilida se ia compondoa volta dele: 0 acentos comuns, 0s bicos de gas acesos nas lojas, 0 cheiro de peixe, de dlcool, de serragem tmida, homens e mulheres indo, vido. Uma velhaiaaatravessararua,com, uma almotolia na mao. Aproximando-se, perguntou-Ihe, inclinando-se, onde havia uma capela por perto” (25). Pai 8 166-182, ma Oscomegos abruptos ¢ muito da carac- terfstica de distorgiio dos contos ¢ romar ces modernos se devem ao uso das Onisci- éncias Muiltipla e Seletiva, pois, se 0 obje- vo € dramatizar os estados mentais ©, dependendo de quao “fund personagem se vai, a logica ea sintaxe do 1a mente do discurso comum, normal e cotidiane, co- mecama desaparecer. Obviamente, nao hd conexio necessaria: Henry James, perma- necendo nos niveis “superficiais” das men- tesdess , de todo modo, s personagens, qu so geralmente do tipo altamente articula- do, nfio pode ser chamado de escritor de “fluxodeconscién: Woolf, alguémque, poder-se-ia dizer, insiste no nivel “médio’ das mentes de seus personagens (que so, por caracterfstica, castos), € Joyce, cuja profundidade desconhece limites, so, correspondentemente, mais dificeis (26). 0 modo dramatico Tendo eliminado o autor € o narrador, 4 estamos prontos para colocar juntos os estados mentais. As informagdes dispont- veis ao leitorne Modo Dramatico limitam- se em grande parte ao que os personagens fazeme falam; suas aparéncias e 0 cenério devem ser dados pelo autor como que em diregdes de cena: nunca hd, entretanto, nenhuma indie: jo dircta sobre o que eles percebem ( janela € da conta del personagem pode ofhar pela um ato objetivo— mas o que ele vé © que pensam ou sentem, Isso ndio significa dizer, claro, que os esta- am ser inferidosa partir dos mentais nao po: da ago e do didlogo. ‘Temos aqui, com efeito, um elenco de uma pega dramatica nos moldes tipografi cos da ficgiio. Mas existem algumas dife- rengas: a ficeao € para ser lida e o drama, para ser visto e ouvido, de modo que have- renga correspondente de esco- mplitude, fluidez e sutilezas. A analo- r4.uma dif po,a gia, todavia, é largamente procedente, no que © leitor aparentemente nio ouve nin- _guém sendo os préprios personagens, que semovimentam como seestivessememum palco; seu Angulo de visio ¢ 0 da frente fixa (erceira linha central) e a distancia deve sempre ser pequena (uma vez que a apre- sentagio é inteiramente cénica). Nisso, Hemingway tem merecida fama (prineipal- mente emcontos como Colinas Parecendo Elefantes Brancos) e devemos mencionat The Awkward Age (1899) de James, que representa algo como um tour de force — em que os ganhos de imediagao esforgam- se por compensar as dificuldades de sus- tentar todo um extenso romance escrito nesse modo (27). Acémera Em grande parte por uma questio de imetria, nosso relato dos tipos de ponto de vista pode ser concluido com aquele que parece sero tiltimoem matéria de exclusio autoral. Nele, 0 objetivo é transmitir, sem selecao ou organizagio aparente, um “pe- dago da vida” da maneira como ela aconte- cediante do medium de registro: “Sou uma camara”, diz 0 narrador de Isherwood na abertura de Adeus a Berlim (1945), “como obturador aberto, bem passiva, que regis- tra, no pensa. Que registra o homem se barbeando na janela em frente ¢ a mulher de quimono lavando 0 cabelo. Algum dia, tudo isto precisard ser revelado, cuidado- samente copiado, fixado” (28). Contudo, talvezcomaextingao final do autor, a fiegdo, como arte, seja também cextinta, pois essaarte, porexigir algum gran pelo menos de vividez, também exige, pa- Tece-me, uma estrutura, 0 produto de uma inteligéncia mentoraimplicitananarrativa ‘© que dé forma ao material de modo a inci- taras expectativas do leitorcom relago a0 provavel curso dos eventos, a cruzar essas expectativas com um curso contriioigual- mente provavel e, enttio, apazigué-las de maneira que o desfecho resultante parega, no fim das contas, aquele necessério. Esta afirmagao nao precisa sertomadacomoum, apelo & volta aos romances em que “algo acontece”, no sentido da aco melodrams- ‘eventos” se refere igualmente, como. argumentamos acima, tanto aos estados mentais quanto & agao patente, e um escri- tor ~ como a Sra. Woolf, por exemplo — pode se tornar infinitamente sutil nessa ‘matéria sem abandonar inteiramente a es- trutura. Argumentar que a fungdo da litera tura é transmitir, inalterado, um pedago da vida é conceber erroneamente a natureza fundamental da propria linguagem: o pré- prio ato de escrever € um processo de abs- tragio, sclegdo, omissaoe organizacio. Mas porque, afinal, precisamos de um romance para ter um pedago da vida quando pode- mos simplesmente nos dirigir 4 esquina mais préxima e experimentar, de primeira mio, um pedago de vida mais vivido? Qual, poder-se-ia perguntar, 0 resulta- dode todosesses“melindres? Seraquetodo esse lufa-lufa investigativo da parte de um autorndo resulta cm frio desinteresse, obje- tividade clinica © sem paixdo? Assim Bradford Booth objeta que, “se o autor in- terferente vitoriano falhou, falhou em gran- de escala, pois tentou muito. Aes olhos de muitos de nés, todavia, ele nfio falhou. Afir- ma-se que ele no sustenta um ponto de vis- ta consistente, Que importa, se seus perso- nagens viverem? Afirma-se que ele vé a natureza humana somente por fora. Que importa, se sua vistionioestiverdistorcida?” Naio sao Scott e Dickens, no fim das contas, mais agradéveis que James, com sua escru- pulosidade obsessiva? Para Beach, aresposta € relativa, uma questo de gosto: “Nao po- demos serruins paracom a sapiéncia desses grandes homens, dessas grandes almas [isto €, 08 romancistas vitorianos}. Mas, para melhor ou para pior, a moda agora é outra; gostamos da ficedo ndo adulterada; gosta~ mos da sensagiio de fazer parte de uma ex- periéncia real e presente, sem a interferén- de um guia autoral” (29). ‘Mas sera realmente tanto assim uma questo de “moda”? E por acaso Booth nao levantaalgumas questes cruciais? Indica- REVISTA USP, Sdo Paulo, 9.53, p. 166-182, marga/maio 2002 27 Pea ara deceéo do ‘0 dese problema, cone: Heimor MA. Wosran, “An Inestgaon of Mabeds ond Techniques inthe Dralion of Fo’ in Speech Monegrops, ik, 1952 pp. 4652, 28 Cnlose qs Toi ogition peas de ura cme, en $0 ple lov come ‘foten nagede 1851, wo 2 eset ony di. CF Piea DS. Misy, A Fitoy of Rion ioe, Novo Yr 19341927, pp 32930; e Jonke town, Toy A Acocks 19 p21 Chonase Hs ‘ole oe Orion, nes i corse una pe NTC tevoad, Ades a ee, vo. Galo Galo Feros, SooFaio, Bese, as Book, pp. 946; Beoch, Tier Ceuy Nor pp 56, Book noma oe ‘20 patie a pelo die ‘ano soes gies mot ‘oxtes dsd bo 179 Corsa, eg. Feo do ‘eso, 4605 Dgpode vee Homa 0, gue, fet 80 i 9 cerkers 6 ‘defn 0 pot. E52 eldoroninsopoasion ‘eure pede de ‘eromininda Oster poe nen dete a We, peo imionde, © om ens ceases 6 Hons Sipos de bee prémbvo, peg kgo un horen. a muha, os ol cao feronogen, bos com xt INT: pasagon gina} ene cods 19 vaio de yr; za akadiode aby Aso, Poa’ 8 Os Podees~ Ail, 1, 155, S80 Pade, Now Galt 1c, 199) 180 ‘mos, acima, que tem sidoum lugar-comum da teoria estética que a apresentagiio efeti- va e a “impessoalidade” andem de maios dadas (30); ¢ a diferenca entre Dickens James no que toca a vivacidade existe tam- bém em fungao de suas escolhas caracte- risticas de materiais, niiomeramente de téc- nica. Mas talvez toda a questao possa ser reformulada em termos de meios e fins: 0 romancista utilizou as técnicas dispontveis de maneira a produzir 0 efeito pretendido? ou ele deixou as oportunidades escaparem e-surgirem obstaculos entre 0 leitore ailu- silo desejada? A pressuposigio basica, entdo, daque- les seriamente interessados pela técnica, comoopréprioJamesapontoutemposatras, é que a finalidade primordial da ficgiio é produzir a mais total ilusdo possivel pela estéria, Determinado material potencial- mente interessante, concentragio ¢ inten- sidade e, portanto, vividez, sao resultantes. de um trabalho dentro de limites, embora auto-impostos, ¢ qualquer lapso daf sera, com toda a probabilidade, resultado ou da falta de estabelecer um espectro limitativo ‘com que comegar ou da quebra daquele j4 estabelecido. Com todaacerteza,esteé um dos prineipios basicos da técnica artistica em geral Assim, a escolha de um ponto de vista ao se escrever fice &, no mfnimo, to crucial quanto a escolha da forma do verso 20 se compor um poema; da mesma forma ‘como hf coisas que no se consegue que sejam ditas em um soneto, cada uma das categorias que detalhamos possui uma amplitude provavel de fungGes que conse- gue desenvolver dentro de seus limites. A questo daeficdcia, portanto, diz respeito& adequagao de uma dada técnica para se conseguir certos tipos de efeitos, pois cada tipo deest6ria requer oestabelecimento de um tipo particular de ilusiio que a sustente. © Autor Onisciente Intruso, por exemplo, pode ser chamado de “verso livre” da fic~ ilo: seus limites so Gio exclusivamente internos que um romancista incauto tem mais oportunidades de quebras da ilusiio do que em outros modos. Quanto de ‘Whitman, Sandburg ou Masters é monéto- no € enfadonho? E quanto de Guerra Paz para tratar do maior de todos ~ po- deria facilmente ser dispensado? Por ou- tro lado, quando personalidade do autor- narrador possui uma fungdo definida a preencher em relagtio a sua est6ria—diga- comp: fundidades filos6ficas, e assim por diante ele ndo precisa retirar-se para detris da obra, na medida em que seu ponto de vista encontra-se adequadamente estabelecido ¢ coerentemente sustentado. F mais uma questo de consisténcia do que deste ou daquele grau de “impessoatidade”. Mas 0 autor-narrador tem um problema mais complicado em suas milos, neste ponto, € teria que olhar melhor seus dispositivos. © verso livre nao 6 “livre” afinal, como observou Eliot alhures; mas estabelecer um padrio interno mais dificil, portan- to, mais propenso a rompimentos. A esse respeito, o Tom Jones de Fielding tem mais sucesso do que Guerra e Paz: 0 tom inte- lectual ¢ 0 material pedante dos entrecapftulos de Tolst6i divergem, com frequencia, do teor e do impacto da pr6- mos de ironia, (0, mbito e pro- pria estéria, que tem como tema a glorifi- cagio (em Pedro, Kutuzov, Karataev, Nikolai, Natasha) das forcas instintivas e intuitivas da vida. Assim, revela-se, com toda amajestade, uma ambigiiidade fatal- mente irresoluta na esséncia dese roman- ce: € normalmente aceito que André © Pedro so projegdes simbélicas da ambi- valencia do préprio Tolstéi, ¢ € como se, depois de ter aniquilado André, 0 autor- narrador nfo pudesse permitir que aatitu- de de André desaparecesse com ele da est6ria, de modo que a mantém viva, con- forme existia, nos entrecapitulos. Seja como for que os vejamos, eles nao tém basicamente forga dramitica. Desse modo, se é essencial aos propé- sitos de um autor que as mentes de muitos sejam reveladas livremente ¢ a vontade ~ para produzir, por exemplo, 0 efeito de um meio social a maneirade Huxley —ese o tom superior e elucidativo do autordeve dominar a percepgao ¢ a consciéncia de seus personagens ~ para produzir aquele efeito tipico de Huxley de pequenez, futi- REVISTA USP, S80 Poulo,n.53, p. 166182, mareo/maio 2002 lidade e indignidade — entdo o Narrador Onisciente Neutro é aescolhal6gica. Seo elemento de suspense deve virem primei- ro lugar ~ como, digamos, em contos de mistério e ficcdo policial -, se a situagso deve ser gradualmente armada e revelada pouco a pouco — como, por exemplo, em Lord Jin, entao o narrador-testemunha parece mais adequado do que qualquer outro. Seo problema étracar 0 crescimen- to de uma personalidade a medida que ela reage aexperiéncias, o narrador-protago- nista se provard mais titil como em Gran- des Esperancas — assumindo-se que ele jade e inteligéncia sufici- entes para desenvolver e perceber a signi- ficancia desse desenvolvimento (um pro- tagonista naibe pode, claro, serusado para efeito irdnico). Seo autorestéinteressado pelo modo como personalidade ¢ experi- énciaemergem como um mosaico a partir do choque comas sensibilidades de diver sos individuos, entio a Onisciéncia Sele- tiva Multipla dard esse jeito — como em Passeio ao Farol. Se o intento é apanhar tenha sensibili ‘uma mente em um momento de descober- ta — como em Retrato do Artista Quando Jovem—aOnisciéncia Seletivaéomeio.E, finalmente, se 0 propésito do autor é pro- duzir na mente do leitor um momento de revelacdo — como em Colinas Parecendo Elefantes Brancos de Hemingway ~,entao © Modo Dramitico, com sua tendéncia a implicar mais do que aquilo que afirma, oferece a abordagem légica. A andlise da técnica, entio, € crucial, como sustenta Schorer, quando vista como reveladorados propésitos do autor e, ainda mais funda- mentalmente, a estrutura basi res que ele ineorporou por meio daquela técnica. Consisténcia, endo sangue-frio, étudo, pois a consisténcia — dentro de um espec- tro determinado, seja ele © quio amplo, diverso e complexo for ~ significa que as partes esto ajustadas ao todo, os meios a0 fim e, por isso, que 0 efeito maximo foi conseguido. Trata-se, contudo, antes de de valo- uma causa necessaria do que suficiente; a consisténcia geral de um 6timo, porém canhestro, romancista pode emergir ape- sar das inadequagdes técnicas, a0 passo que a consisténcia de um talento menor no produziré obras-primas nela mesma, tendo éxito em um espectro menor do que aquele que 0 genio pode tentar. As vezes, uma nobre falha € mais exeitante do que uma mintiscula vit6ria. Mas quantos de nossos romancistas mais ambiciosos brilhantes teriam tido ainda mais sucesso se uma atengio mais rente tivesse sido dirigida a esses pontos (31)? Certamente, niio hi contradi¢o necesséria entre 0 gé- nio ¢ a maestria técnica. D. H. Lawrence € um desses casos, ¢ Schorer esbocou a causa basica do eurio- s0 cansaco que recai sobre 6 leitor apés a leitura de, digamos, Filhos ¢ Amantes. Apesar de seus conceitos “moderns” de sexo € inconsciente, essa estoria € ainda narrada dentro do espectro sem bordas do Autor Onisciente Intruso fora-de-moda,e © perigo da identificagao autoral com 0 protagonista—e, portanto, de partidarismo € oportunismo ~ nao foi prevenido. O au tor-narrador assim analisa os pensamen- tos de Miriam: “Assim, chegando 0 més de maio, pediu-Ihe [a Paul] que viesse a Fazenda Willey, onde encontraria a Sra. Dawes. Fle nao queria outra coisa e ela via-o, sempre que se falava de Clara Dawes, animar-se ¢ zangar-se levemente. Declarou que no a admirava; todavia, estaya sempre pronto a ouvir falar dessa mulher, Pois bem, submeter-se-ia & pro- va. Miriam calculava que nele existissem sentimentos elevados ¢ outros baixos, ¢ que os primeiros acabariam por triunfar. Em todo o caso, convinha um ensaio”. E entao Lawrence acrescenta: “O pior é que se esquecia que, em seu conceito, ‘alto’ e *baixo’ podiam ser classificagées arbitrs- rias” (32). Tanto Schorer quanto Diana Trilling apontam que hé, por conseqiéncia, uma contradigiio no tema do livro: Paul Morel ndlo consegue ter um relacionamento se- xual satisfat6rio ou por causa de sua enervante fixagio na mie ou porque Miriam abarca apenas os aspectos “espi- Tituais” de tal relagdo. E esses dois temas sto mutuamente excludentes ~ a culpa ou REVISTA USP, Sd0 Paulo, 9.53, p. 166-182, marzo/mato 2002 ho em erie a, por ror, 0: Svs Sas no rata da Den Guile Semconsoscone cinodaneure ce 6 Cid Hot oa domo ‘Wee C. Bok, “The So Cnc Nore Ficentaloe U4 952 ep. 162 85; evonpuscotnde Nekiocome spose $ noradrenergic ey Dek esos fata eet 2033 roati pl en £2 eptléi ce chron enfonsb;cvaednivaare grieve i Hietre semen: sor no ene de okreae romances de Wi 82Schote, “Technique Dscover, op. ci pp. 197 8 lowancs (1915), Maden itso Eten, p. 269 NID Howe “Anxts atCatel Nos ‘ina, Se0Fel Cielde live 78 181 Yost, 1947, pp. 1920, Igor TD H.lowece: A onl Record, Lote, The Sy foNol 98) daThonas le “Aronveze oes mid, odes & expos nes ee fies eese sve pore Sebitogiem anda como Giendsicaguecedis a redo pods fer inl’ Edge Ragu de cos de Wl, Nove Yr, 197 bt Shor See One Daod Keow Beckie, pp- 1178, vs Menon, The Seven Meson, Now Ye, Sr 1932 1948), op 25556 Gosden, "Sone Boas xd Misaodings in Sowa Fesew, UI 1958, pp. 384 a7, 182 da mic ou de Miriam —e 0 problema € que Lawrence foi indbil o suficiente para dissociar a si mesmo de Paul, para dele distinguir-se, daf resultando que ele tenta consegui-lo de ambas a formas. Mas o lei tor permanece frustrado; a falta de consis- téncia levaa perdadoefeito. Mais uma vez, aironia€ que opréprio Lawrence acredita- vana eficdcia da projegiio dramética como uma maneira de esclarecer e compreender ‘seus pr6prios problemas emocionais: “Nos. livros entornamos nossas enfermidades — repetimos e reapresentamos nossas emo- ‘96es, para nos assenhorarmos delas”. To- davia, E.T., a Miriam original, sabia que, esse caso, ele tinha falhado: “...cle aba- foua verdadeira questao, Queera sua velha inabilidade em encarar seu problema ho- nestamente, Sua mie tinha que ser supre- ma... Ento, em vez de uma liberagio & libertagao do cativeiro, 0 cativeiro foi glo- rificadoe tornado absoluto.... O methor que pposso pensar dele € que tanto corre coma lebre quanto eagou com os cles" (33) {A titulo de contraste, podemos obser- var a apresentastio de Stephen por Joyce, em Retrato, onde, apesat da tendéncia co- mum de ser tratada como autobiogréfica,a est6ria do chegar da idade do her6i encon- tra-se totalmente objetivada. Uma vez que Joyce limitou estrtamente o fluxo de in- formagio apenas Aquelas cenas, percep- g8es, pensamentos e sentimentos que a mente de Stephen recorda, ele eliminou a possibilidade de partidarismo autoral que tanto vicia nestruturade Filhos eAmantes. Como resultado, temos um retrato tao cla~ rodo protagonista que ium de seus amigos pode dizer-Ihe: “E ria, curiosa, digo-te-observou Cranly sem a menor paixo — como o teu espfrito esté supersaturado com essa religilo em que dlizes nfo acreditar”. Nao se pode eonceber que Lawrence, dada sua falta de controle, permita a Miriam dizer a Paul: “Que coisa curiosa,digo-te,como seu amor to exces- sivoporsua mie faz.com que voct inadver- tidamente busque um escape sexual com uma coisa extraordiné- mulheres mais jovens, que sero destitut- das de contetido sexual. Paixdo e devogiio esto separadas em seu espirito pela culpa, ¢, portanto, vocé reage violentamente quan- do uma mulher pede-Ihe ambas as coisas ao mesmo tempo, acusando-a de querer roubar-Ihe a alma”. (Ser-me-d dado, espe- 10, 0 devido desconto pelo fato de eu nao ser um romancista; mas acredito, pelas evidéncias do livro de E.T., que Miriam fosse completamente capaz de tal penetra- iio. Lawrence, contudo, apresenta-acomo agoniadamente desarticulada.) Tamanho € éxito da projeciiode Joyce que, apesar do fato de que ambos, elee seu heréi, rejeitem deliberadamente © catoli- cismo, 08 catélicos literérios podem, nao obstante, apreciar o retrato da vida religio- saque faznolivro. Assim comenta Thomas Merton as famqsas passagens do Inferno: “Oque me impressionou nao foi omedodo inferno, mas a habilidade do sermao. Entao continuei a ler Joyce, cada vez mais fascinado pelas descrigdes de padres e da vida catlica que salta aqui ¢ ali em seus livros". De modo semelhante, Caroline Gordon pode dizer: “Suspeito que este li- vro foi lido de maneiraequivocada portoda uma geragdo. Nao € essencialmente o re- trato do artista rebelando-se contra a auto- ridade constitufda. E, antes, 0 retrato de uma alma em danagao, pois o tempo ¢ a cternidade o pegaram no ato de vere saber de sua danagao de antemao” (34). Ae mes- ‘mo tempo que penso que seja um sofisma perverso, penso também que se tratade um tributo ao génio dramético de Joyce que um cat6lico possa simpatizarcomo retrato de valores catélicos rejeitados pelo heréi do romance. Tudo isso paradizer simplesmenteque, quando um autor eapitula na fiegio, 0 faz para conquistar; ele abre mio de alguns privilégios e impoe certos limites para cri- ar a ilusdo da est6ria de maneira mais efi- caz, 0 que constitui verdade artistica em fico. Ea servigo dessa verdade que ele Oe toda a sua vida criativa. REVISTA USP, Séo Paulo, 0.53, p. 166-182, margo/maio 2002

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