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Cidadania cultural: 0 direito 2 cultura traz quatro ensalos da farilena Chaui sobre questdes centrais do debate politico é intelectual da atualidade. Retomando as discuss6es sobre 0 nacional e 0 popular na cultura e apresentando um balanco de sua atuagdo na Secretaria Municipal de Cultura de Sao Paulo no inicio dos anos 1990, Ciaul interliga a questao do direito a cultura e & ‘meméria, democracia e sociallsmo, provondo um ofhar instigante e ‘evelador sobre a cultura e suas condligtes de producdo e dlifusdo, sempre a partir de um ponto de vista de esquerda. Afinal, para a autora, “O lago que une esquerda e cultura é Indissoltvel porque & a ruptura das condigbes estabelecidas, nas quals se reproduzem im como Ihe & préprio afirmar a ale, ito €, da Cidadania cultural 0 direito a cultura peru Teeed volume e oferecé-tos aos leitores eet Sea ere Pee ean eee Bregua e cer i : Sed Pao eens SOS Rd resect Peete ee restringiu aos interessados, ac cen cut) ee Snes Tens Cee ec eee) Cee je culturais, da Unesco, de 2005 -, nada melhor do que reac: pee oviés da supremac Cipapania CuLruRAL Marr-ena Cuaut CIDADANIA CULTURAL O DIREITO A CULTURA [ "Date rtonsciorae de Gataepago va Publeaglo (CP) (Camara Gracia 0 Ua, SP. Bri). Ch, Mane "Canna ctl Maslos Ca 1. $9 Palo ar tito Pes Abe, 205 : crate Bar Secaase rn 2 : ‘eats Camm pines. axial | ene ' potion Tb RLS tLS ot cop.3062 eee oe Taio pa ge Tic oma constneede POLITICA & cuLTURAL _prrona Funoa¢io rERSE ARRAMO Pundagao Perseu Abramo aaclds pelo Dieéo Nacional do Pardo doe Tabaliadores ex msl de 1996 Dineoria Hamiton Peis (pesideare) Ricardo de Azciede (vice psidente) ‘Sema Racks (diver) lévio Jorge Rodrigues da Sa (eto) Editora Fundagio Perseu Abramo deat Edtril Faron Mae Aine Era ‘ive Alem Uomesa Rese Bie Ago Macro Beat Leal ce lana Keb lrg Eevee Eqn blo Grande Inpre seri Geen 1 eis jb de 2006 Tider ton earatart ws Fda eres Abn Rs Fane C24 0411791 ~ Stole S?— Brat “Tne (1) 357109 ~ Fa (1 3871-0010 Cone din tonite cr Vole pa etic de Bud ene Abas Ripiioen bana Coprih © 2026y Me Cho ISBN 5.700266 SUMARIO APRESENTAG&O .. ‘SOBRE 0 NACIONAL 0 POPULAR NA CULTURA, Cimapanta Cunrurat: RELATO DE UMA EXPERIENCIA INSTITUCIONAL, DIREIVO A MEMORIA? NATUREZA, CULTURA PATRIMONIO HISTORICO-CULTURAL E AMBIENTAL seco 103 ‘CULTURA, DEMOCRACIA E SOCIALISM .. 129 A AUTORA ‘Magitena Cuatur, fillia do jornalista Nicolau Chaui e da profes- sora Laura de Souza Chaui, nasceu em Sao Paulo em 1941. Fez. seu curso primério no Grupo Escolar de Pindorama (se), iniciou 0 curso secundério no ColégioN, S. do Calvério, em Catanduva (SP), vindo a concluf-lo no Colégio Estadual Presidente Roosevelt, em So Paulo. Fez 0 curso de Filosofia na Universidade de Sao Paulo (use), onde também fez.0 curso de pos-graduaeto e defenden seu ‘mestrado. Iniciou, em 1967-69, seu doutorado na Franga e veio a defendé-lo em 1971, também na use, onde, em 1977, defendeu sua tese de livre-docéncia e, em 1987, fez 0 concurso e recebeu o titulo dde professora titular de filosofia. Leciona no Departamento de Filo- sofia da usp e suas 4reas de especializacao sao Histéria da Filoso- fia Modema c Filosofia Politica. Membro fundador do Partido dos ‘Trabalhadores, membro do Diret6rio Estadual, aseguir, do Diretrio Municipal do partido, foi secretaria municipal de Cultura de S20 Paulo, na gestio de Luiza Erundina. membro da Comissio ‘Teoténio Vilela de Defesa de Direitos. E autora de iniimeras obras, entre as quais Brasil: Mito fundador e sociedade autoritéria (Editora Fundagao Perseu Abramo, 2000), Cultura ¢ democracia (Cortez, 2006), Escritos sobre a Universidade (Unesp, 2001), A nervura do real (Companhia das Letras, 1999). APRESENTACAO ‘Cucrura POLITICA POLfTICA CULTURAL Freqiientemente, filiados e simpatizantes do Partido dos Traba- Ihadores (r7) perguntam por que & tdo dificil para os petistas a comunicago répida, direta e persuasiva. Por que, perguntou-se tantas vezes, o pr ndo obtém votos nos dois péios extremos das classes sociais ~no da burguesia e alta classe média (que o rej’ tam) e no dos despossuidos (que nao o compreendem)? Essa pergunta nao é de pequena importncia, Por nfo respondé- lacorajosamente, 0 P1 foi, pouco a pouco, aceitando os padrdes de comunicagao do marketing politico, que fazem ganhar eleigdes mas hoje o deixam acorrentado aos discursos e ataques da dircita, pois, passou a falar a mesma linguagem que ela. Para a classe dominante de uma sociedade, pensar e expressar- se€ coisa facil: basta repetir idéias ¢ valores que formam as repre- sentagdes dominantes da sociedade (afinal, como dizia Marx, as idéias dominantes de uma sociedade so as da sua classe dominan- te), O pensamento ¢ 0 discurso da direita, apenas variando, alteran- 7 Anwesavegio do e atualizando o estoque de imagens, reiteram o senso comum ‘que permeia toda a sociedade e que constitui o cédigo imediato de cexplicagdo ¢ interpretagao da realidade, tido como valido para to- dos. Eis por que lhe é fécil falar, persuadir e convencer, pois os {nterlocutores jé esto identificados com os contetidos dessa fala, que é também a sua na vida cotidiana, Para a esquerda, porém, a dificuldade é imensa porque o pensa- mento € 0 discurso séo forgados a realizar quatro trabalhos suces- sivos ou até mesmo simultineos: precisam, primeiro, desmontar 0 senso comum social; em seguicla, precisam desmontar a aparéncia de realidade ¢ verdade que as condigGes sociais e as praticas exis- tentes parecem possuir, aparéncia sobre a qual se funda tanto a fala da direita como a compreensio dos demais agentes sociais; precisam, a seguir, reinterpretar a realidade, revelar scus funda- -mentos secretos e suas operagdes invisiveis para que se possa com: preender e explicar o surgimiento, as formas e mudancas da socie- dade ¢ da politica; e, finalmente, precisam criar uma fala nova, ‘capaz de exprimir a critica das idéias © praticas existeules, vapiie de mostrar aos interlocutores as ilusGes do senso comume, sobre- ‘tudo, de transformar 0 interlocutor em parceiro e companheiro para amudanga daquilo que foi criticado. Assim, enquanto paraa direita basta repetiro senso comum produ- ido por ela mesma, para a esquerda cabe o trabalho da pritica e do ‘pensamento critics, da reflexao sobre o sentido das ages sociaise ‘aabertura do campo histérico das transformagdes do existente. ‘Ollago que une esquerda e cultura é indissolivel porque 6 proprio da esquerda a posico critica, visando a ruptura das condigoes estabelecidas, nas quais se reproduzem a exploracdo e a domina- ‘eGo, assim como Ihe € proprio afirmar a possibilidade da justiga e da liberdade, isto é, da emancipago, por meio da prtica social e pol tica, Para a esquerda, a cultura € a capacidade de decifrar as for- ‘mas da produgdo social da meméria e do esquecimento, das expe- rigncias, das idéias e dos valores, da produgao das obras de pensa- mento ¢ das obras de arte e, sobretudo, é a esperanca racional de que dessas experiéncias ¢ idéias, desses valores e obras surja um 8 Manin Craut sentido libertétio, com forga para orientar novas priticas sociais e politicas das quais possa nascer outra sociedade, Enquanto desvendamento das aparéncias, interpretagdo critica das préticas sociais e politicas, paixdo transformadora e desejo de criagio, a cultura é o que permite & esquerda revelar a presenga escondida da luta de classes ¢ se contrapor & hist6ria oficial celebrativa dos dominantes, gracas a historia que os trebalhadores criam 2 partir de sua propria meméria, da erdnica de seus valores, Tutas, esperancas e tradigGes, inventando outro calendétio ¢ insti- tuindo seus préprios simbolos e espagos. Diante disso, ¢ paradoxal a constante dificuldade dos dirigentes petistas em relagao a cultura, ‘Via de regra, eles concebem sob trés aspectos: como saber de especialistas, como o campo das belas-artes ¢ como instrumento de agitagao politica, Sob o primeiro aspecto—saber de especialistas -, acultura € algo que alguns fazem e possuem enquanto os demais a recebem passi- vamente. Com essa perspectiva, simplesucate aderinuys & fouia atual da ideologia, a ideologia da competéncia, que divide a socie- dade entre aqueles que sabem, ¢ por isso mandam, ¢ equeles que no sabem, ¢ por isso obedecem. ‘Sob o segundo aspecto — belas-artes: teatro, artes plisticas, lite- ratura, cinema, miisica, danga -, a cultura € algo proprio dos talentosos ou dos que receberam formaclo especifica. Aqui, nfo se valoriza o trabalho de criago, nem seu modo de insergéo na sociedade e na histéria, mas a exposigao dos resultados, isto 6, a cultura como espetéculo, também passivamente recebido. Torna- se lazer ¢ entretenimento, ‘Sob o terceiro aspecto — instrumento de agitacao polttica -, red nem-se os dois primeiros, isto é,o saber e as artes devern produzir ““mnensagens” para atrair e persuadir a consciéncia da massa, Numa perspectiva muito préxima do marketing, concebe-se a “cultura” como algo aservigo de algo “néo-cultural”, isto é, a politica, Qual o paradoxo? Em Inger de tomar a cultura como uma das haves da prética social e politica da esquerda, os dirigentes petistas ° Abrssercacho Massuens Case deixam de lado a dimensao critica e reflexiva do pensamento ¢ das artes e simplesmente aderem & concepeao instrumental da cultura, propria da sociedade capitalista. E bem verdade que isso nfo aparece de maneira tfo direta e simples. Ao contrério, muitos dirigentes petistas acreditam que con cebem a cultura pelo prisma daquilo que Gramsci chamou de egemonia, Como sabemos, Gramsci foi além da critica da ideolo- ‘8ia como exereicio espiritual da dominagdo pela classe dominante ¢ ‘prop6s 0 conceito de hegemonia para designar aluta no interior da sociedade politica com o objetivo de operar mudangas nas idéias, 1nos valores, no comportamento e nas préticas por meio de ages visando & consciéncia dos explorados e dominados. Donde a im- ‘portncia que conferiu a cultura. (Ora, como a luta politica pela hegemonia se rava entre idéias, va- lores e comportamentos, as esquerdas brasileiras tendem a interpre tara posigdo gramsciana como luta politica que usa a cultura como instrumento, sem compreender que Gramsci propée uma mudanga a edacultura ma nova cultura, institutda pela classe trabalhadora, Em outras palavras, nao se trata de instramentalizara cultura paraa tua politica e sim de fazer da prépria lta pela hegemoniao proceso hhist6rico de instituigdo de uma cultura politica, Nes esquerdas bra- sileiras, a uta pela hegemonia transformou-se em atuagao pedlagé- gica (ensinar a verdade 2s massas), propaganda (convencer as ‘massas) ¢ produgo do sentimento identificador (a consciéucia de classe auténtica.e comreta). Entre outras conseqiiéncias, isso levou a chamar de “cultura popular” 2 maneira como as classes populares incorporam em seu universo préprio as belas-artes burguesas, em vez de, & maneira gramsciana, apreender os processos pelos quais uma cultura popular é produzida nas lutas sociais e politicas Assim, além da adesdo 3s idéias dominantes sobre a cultura, os dirigentes petistas incorporaram essa equivocada interpretagio das {dias de Gramsci. His por que, toda vez que a discussio cultural é feita no Pr, ela se fez, por trés prismas: o do entretenimento, 0 da agitagéo cultural Gnstrumental) e 0 da divisio doutrinéria entre cul- tura de elite e cultura popular. 10 Em Marxismo e literatura, Reymond Williams! examina amutagao cconceitual de alguns termos, ocorrida a partir do século xv. Assim, 0 termo indistria, que significava habilidade, engenho e perseveranca, qualidade do individuo, passa.asignificar uma instituigdo econdmica— amanufatura ea produgio— isto é, de qualidade pessoal, passa ater existncia social ea conotar um corpo de atividades coletivas. Demo- cracia, que antes significava governo do povo e pelo povo, passa a significar governo representativo, e deixa de sera forma de umregime politico para tomar-se uma préticae uma luta politicas. O temo clas- se, que anteriormente significava a divisdo juridica e militar romana, na dade Média, adivisio de grupos para o aprendizado nas universi- dades, passa.a designar divisdes na sociedade, surgindo primeiramente cotermo “classes baixas”, em seguida, “classes alts”, no século x0, “classe trabalhadora”. Arte, significando anteriomente habilidade ¢ engenhosidade para lidar com os materia naturais, técnica, trabalho, ;pasea a cignificar um conjunto particular de atividades e habilidades

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