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Ubaldo Nicola Antologia ilustrada de Filosofia DY Meg MOM Cele Mele Ia tT] Ubaldo Nicola Antologia ilustrada de Filosofia Das origens 4 idade moderna ond @ ) Copytight © 2002 by Giunt Gruppe Edtorale, Firenze Gopynght da vaca 2008 by Ears Globo Sa Titulo original: Antologia lilustrata di Filosofia — dalle origin alfora madera ‘Texto original: Ubaldo Nicola ‘Tradugao: Maria Margherita De Luca Eticaor Sheila Mazzolenis / Esnider Pizzo Revisto; Ana Maria Fiot| ‘Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortogréifice da Lingua Por- tuguesa (Decreto Legislative n* 64, do 1995}, ‘Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta odigdo pode ser utiliza da ou reproduzida = por qualquer meio ou forma, seja mecéinico ou oletronico, fotocépia, gra- vacao etc. —nem apropriada ou estocada em sistema de banco do dados, sem a expressa au- totizagao da editora Direitos de edligdo em lingua portuguesa para 0 Brasil adguiridos por Editora Globo S.A. Ay. Jaguars, 1485 - 05346-902 - So Paulo - SP wyhu.globolivros.com.br Dads ntgnacionas de Catelogacto na Pubteagao (Ci {Camara Brstora do tive, °° raat) ‘Nate, Ubaido ‘Aelegafustrad do recon: de orgens ‘iase moderna/Ubaks Nesta: fete ivarghora Be Lica} ™ Sto Pail" Gio, 2005, Tio orginak Anologa stuseata di fiossra ‘Gale ong a ora modoma ISBN 85-250-2800-7 2, Filosofia. Flosota - Hstiria Fie. 00-102 t02 $3 edicao 9 reimprossdo, 2010 Impressao @ acabamonto: Yangraf Introdugcao Uma antologia de divulgacao Nos ultimos anos foram publicados intimeros textos de divulgacao do pensamento filosofico. O sucesso que obtiveram demonstra que existe, nas pessoas, uma grande vontade de entender e de se aproximar dessa disciplina, geralmente considerada tao dificil quanto fascinante. Mas é possivel um leigo no assunto ser bem-sucedido na leitura das obras dos classicos? O mercado parece inclinado a responder nao a essa pergun- ta, dada a falta de antologias que rompam 0 circuito académico. Certa- mente, as obras dos fildsofos (mas nem todas) sao de dificil compreen- sao. Tornar acessiveis e compreensiveis os textos sagrados da Filosofia, sem utilizar condensacoes simplificadas, foi o desafio editorial que deu origem a esta antologia. As explicacées A solucao para esse desafio foi encontrada apés um cuidadoso trabalho de sintese preliminar e paragrafacao dos trechos filosoficos propostos, reunidos em itens numerados — por exemplo, em Parménides e Zendo encontramos os itens de 10 a 15, sendo que cada um deles refere-se a um tema estudado por esses dois filosofos. Os trechos selecionados fo- ram reduzidos aos seus elementos essenciais e sao acompanhados de fra- ses — sempre colocadas ao lado, em destaque — que dao as referéncias ne- cessarias para a sua compreensao. Dessa forma, o leitor pode adaptar fa- cilmente a leitura aos conhecimentos que ja possui. Critérios para a escolha dos textos Aproximar-se do publico nao especializado em Filosofia é um dos obje- tivos desta antologia. Por isso, foram escolhidos duzentos textos, entre os mais famosos, que constituem verdadeiras vigas mestras do pensa- mento filos6fico construido a partir de Tales até 0 inicio do século XX. As informacées completam-se com biografia resumida dos cinquenta pensadores analisados. Leitura sequencial e leitura exploratéria Existem duas maneiras de ler esta antologia. A primeira, linear, é acom- panhar o percurso cronologico do pensamento filoséfico desde 0 inicio. A segunda, recomendada pelo organizador da obra, consiste em formu- lar uma pergunta e buscar as diversas respostas elaboradas no transcorrer da historia. As sugestdes de pesquisa especificam trinta questOes fundamentais ¢ in- dicam os itens e os trechos que devem ser consultados. SUGESTOES DE PESQUISA a | Sugestoes de pesquisa (os ntimeros referem-se aos itens, e nao as paginas) QUAL EF A ORIGEM DE TUDO? TALES O principio éadgua......... ANAXIMANDRO 0 principio € 0 infinito . . . . ANAXIMENES O principio é0 ar ......... ie wt HERACLITO O principio é 0 fogo (ou o dinheiro) .. PITAGORAS A miisica é harmonia de niimeros . DEMOCRITO Nao hd sendo atomos e vazio EXISTE A VERDADE? PARMENIDES A viagem em direcao averdade ........ PROTAGORAS © homem é a medida de todas as coisas . GORGIAS Nada existe, e mesmo que existisse. SOCRATES Conhece-te a ti mesmo ... PIRRO. Dez argumentos contra a verdade O QUE SIGNIFICA PENSAR? HERACLITO Todos tém o logos, mas s6 os despertos o sabem ..... of PARMENIDES O olho que ndo ve ..............- SOCRATES A importancia de saber que nao se sabe PLATAO Todo conhecimento € uma recordagao . CUSA Elogio da douta ignorancia .............. DESCARTES O método para raciocinar corretamente CONDILLAC Imagina ser uma estatua... LOCKE A mente nao inventa ideias . . . KANT Existe um a priori em toda sensacao . . HEGEL Tudo aquilo que dizemos finito nao existe HUSSERL Faca epoché, coloque o mundo entre parénteses ............ - 198 PEIRCE Como estabelecemas as nossas crencas 194 JAMES O significado de uma ideia € a sua consequéncia ......... cee 19S O QUE E A LINGUAGEM ? PARMENIDES Os enganos do verbo ser . 11 GORGIAS O poder magico das palavras ............+ 22 DEMOCRITO Como os homens inventaram a linguagem 18 ROUSSEAU As palavras para dizer “Eu te amo” ....... . 130 HOBBES Homem = Animal + Racional . = 100 LOCKE As palavras so sinais das ideias 5 COMO FUNCIONA A MENTE? ARISTOTELES A diferenga entre o homem e 0 animal . . CAMPANELLA Um original sistema didatico sat DESCARTES As verdades evidentes sao intuitivas LEIBNIZ Existem pequenas percepcdes inconscientes . LOCKE A mente é uma folha em branco KANT A mente deve criticar asi mesma FREUD O complexo de Edipo ....... _ BERGSON A intuicao € 0 instinto da inteligéncia 7 ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA SUGESTOES DE PESQUISA O QUE SIGNIFICA CONHECER? PLATAO Como buscar 0 que se ignora? —— ARISTOTELES A causa final e a origem dos monstros CUSA Conhecer € colocar em proporcao TALES Os animais também pensam .. . BACON Estudar os erros para evita-los LEIBNIZ Por que temos olhos? KANT Uma revolucdo na filosofia do conhecimento - FICHTE Cada Eu se poe a si mesmo. HEGEL O Absoluto também esta em devir . . . KIERKEGAARD “Aquele individuo”: um otimo epitafio : SCHOPENHAUER O que ¢ 0 mundo? Uma representagao minha CROCE Todo homem é um compéndio de historia......... O QUE EA SUBSTANCIA? PARMENIDES Homens com duas cabegas ........ ARISTOTELES Por que a metalisica ¢ necesséria” ARISTOTELES A metafisica ¢ a ciéncia do ser . a DESCARTES Como demonsiro a existéncia do meu corpo LEIBNIZ A Monada é um atomo espiritual FSPINOSA Deus é substancia: de nada precisa para existir . HUME O que € substancia? Um feixe de percepgdes . FICHTE Quando o Eu encontra 0 Nao Eu SCHELLING A nattreza nao o sabe, mas ¢ inteligente HEGEL Tudo se afirma, se nega, se supera : O QUE EA REALIDADE? HERACLITO Nao nos banhamos duas vezes no mesmo rio PARMENIDES O ser ¢ uma esfera bem redonda ARISTOTELES A causa final e a origem dos monstros . . GALILEU A linguagem do grande livro da natureza . CONDILLAC Para conhecer o mundo, basta toca-lo LEIBNIZ Como cheguei a descobrit a Ménada . HEGEL O real é racional e o racional ¢ real EXISTE UM METODO CIENTIFICO? ARISTOTELES Ciéncia é conhecer as quatro causas GALILEU_ Seria verdade, se Aristételes nao 0 hegasse BACON Indugao: um saber das obras, nao das palavras DESCARTES Quando os raciocinios séo concatenados HUME Observemos duas bolas de bilhar... ‘ KANT A diferenca entre juizos analiticos e sintéticos . © QUEE UM HOMEM? PLATAO O corpo € 0 obstéculo ao conhecimento ...... ia 30 FICINO_O homem ¢ copula mundi, 0 centro do universo - PICO DELLA MIRANDOLA © homem € um camaledo DESCARTES Penso, logo existo ...... 0.0.0.4 PASCAL Nada somos para o infinito KIERKEGAARD Somente anjos ¢ animais nao conhecem a angistia NIETZSCHE O Super-Homem € o sentido da terra . O QUE EO CORPO HUMANO? SOCRATES 0 filésofo deseja morrer ane ea aw at une weoew le ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA 8 SUGESTOES DE PESQUISA | PLATAO Os géneros sexuais eram trés . . .31 AGRIPA O homem é um cosmo em miniatura vould PARACELSO A medicina microcésmica . afl MORUS 0 direito a eutanasia ae . 84 DESCARTES Um modelo hidréulico do corpo humano . 97 SCHOPENHAUER Por que se vive? Para continuar a viver qnaneqalOr FREUD O caso de AnaO. .... = . 185 BERGSON Entre passado e futuro esta 0 0 corpo que Eup qUNSSsecRwornEsTd 190 O QUE DEFINE A EXISTENCIA? SENECA Como curar 0 desassossego ....... AT CAMPANELLA A magica cidade do Sol TS LEIBNIZ Vivemos no melhor dos mundos possiveis .. .. AL VOLTAIRE Como Candido foi expulso do belo castelo . 125 ROUSSEAU Nas maos do homem, tudo degenera - 126 PASCAL Nao ficamos serenos dentro de um quarto 102 KANT O céu estrelado e a lei moral 133 FICHTE Eo Eu que determina o que nao é .... 146 KIERKEGAARD desespero do homem ético 172 HUSSERL O mundo-da-vida .............. -199 COMO SE DEVE VIVER? ARISTOTELES A virtude esté no justo meio DIOGENFS Como vivia Digenes, denominado 0 Cao . EPICURO O objetivo da vida feliz € 0 prazer . < ZENAO DE C[11O_ Vive conforme a natureza, ou seja, conforme a virtude SENECA A vantagem de ser espontaneo MARCO AURELIO. Olha dentro de ti: af se encontra a fonte do bem MORUS Trabalhar todos para trabalhar menos miner shen HUME As escolhas morais fundam-se no sentimento . . pean wuseaiene 12? KANT O imperativo categorico em quatro casos concretos « 41 FICHTE Dogmatismo ou idealismo? Depende do carater . . 149 SCHOPENHAUER A tinica solucdo € esquecer que se existe 169 NIETZSCHE Aos milhées se ajoelharao no pd ....... +. 179 O QUE EO TEMPO? AGOSTINHO A criagdo.e 0 mistério do tempo . 53 KANT Espaco ¢ tempo: esquemas mentais, » 138 NIEIZSCHE _Viver como se tudo tivesse que retornar . _ 184 BERGSON O tempo da vida é a duragao do presente ........ wowed BO) O QUE E A MATERIA? ZENAO O paradoxo de Zendo: 0 movimento no existe ........... 02.06.15 DEMOCRITO A alma também € feita de atomos .. PLOTINO Deus nao criou o mundo, mas emanou-o AGRIPA As simpatias da natureza . BRUNO Habitamos um dos infinitos mundos . GALILEU Qualidades objetivas ¢ subjetivas ..... : 87 BERKELEY A matéria? Nao existe: € uma ideia da mente. e 119 LEIBNIZ. Em cada gota existe um jardim cheio de plantas... - 2110 SCHELLING A materia é vida adormecida . . ASL as 51 RE 70 9 ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA | | SUGESTOES DE PESQUISA ey F 5 j O QUE EA VIDA? PITAGORAS Oar é cheio dealmas ........... DEMOCRITO Como a vida nasceu do vortice atémico | BRUNO O mundo ¢ um grande animal BERGSON A inteligéncia nao explica a vida . . O QUE EO AMOR? PLATAO A escala de graus de Eros .... CAMPANELLA O amor entre os Solares satan MORUS Amore guerra entre os habitantes de Utopia. KIERKEGAARD O sedutor é 0 instante fugaz .. . SCHOPENHAUER Nao existe amor sem sexo . QUAL E A DISTINCAO ENTRE SONHO, VIGILIA E LOUCURA? PLATAO Quando o delirio é um dom divino ............ 34 ERASMO A loucura de Cristo e a dos cristaos - 60 DESCARTES Duvida hiperbolica: e se um génio enganador... : 12.92 SCHOPENHAUER Talvez a vida seja um sonho muito longo -166 ‘ FREUD O sonho € satisfacdo do desejo ..... ve eeeeeee es 186 COMO NASCEU A SOCIEDADE? CAMPANELLA A familia deve ser abolida .......... HOBBES O homem nao é um animal social . LOCKE A primeira sociedade foi entre marido ¢ mulher . ROUSSEAU A superioridade do homem selvagem EXISTE RELACAO ENTRE MORAL E POLITICA? MAQUIAVEL Existem vicios benéficos e virtudes perniciosas VOLTAIRE A discordia € a peste, ¢ a tolerancia, 0 remédio ROUSSEAU O homem, nascido livre, esta acorrentado . FICHTE A primazia do povo alemao . .. . NIETZSCHE A moral dos vencedores e a dos perdedores O QUE EO ESTADO? MAQUIAVEL._O Principe deve ser tanto uma raposa quanto um ledo ....... 81 HOBBES O Estado soberano € um Deus mortal LOCKE Propriedade privada e divisao de poder LOCKE A tolerancia € os seus limites . ROUSSEAU A vontade geral, ¢ nao a da maioria KANT Por uma constituicao republicana mundial FICHTE O intelectual tem uma misstio HEGEL O Estado ¢ uma familia em grande escala MARX A historia € luta de classes AHISTORIA E PROGRESSO? COMTE As ciéncias na era do pensar positivo z MARX O movimento que abole o estado de coisas existente BERGSON_ Evolucao nao significa progresso . CROCE O desenvolvimento do espirito é circular . BERGSON Quando a ciéncia produz ndo senso A PAZ E POSSIVEL? HERACLITO A guerra é pai de todas as coisas ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA 10 SUGESTOES DE PESQUISA MAQUIAVEL Quando so necessarias a crueldade ea piedade .. .. 80 VOLTAIRE. Contra os fanaticos, a risada % itech acta Ok KANT A paz € possivel? ...........45 143 HEGEL A guerra 6 sade dos povos : 161 FREUD A paz € possivel? debate com Einstein. +188 QUEM E DEUS? ARISTOTELES Deus € 0 Motor Lmével AGOSTINHO. Se Deus € bom, quem criou o mal: PLOTINO A transcendéncia do Uno ........ DIONISIO. Tudo aquilo que Deus nao é CUSA Os opostos coincidem em Deus ESPINOSA Deus € 0 ser de que tudo se pode afirmar “ 105 LEIBNIZ O Grande Relojoeiro e a harmonia pré-estabelecida ...... 2 HEGEL Quando a consciéncia era infeliz ..... sos Swe sane TOO FEUERBACH Quem criou Deus? Ohomem .. . NIETZSCHE Deus esta morto. Nos 0 matamos! 163 182 PODE-SE PROVAR A EXISTENCIA DE DEUS? ANSELMO_ A prova ontologica da existéncia de Deus TOMAS DE AQUINO Duas das cinco provas da existéncia de Deus . PASCAL Convém apostar na existéncia de Deus ...... i ESPINOSA. Deus € substancia: nao precisa de nada para existir . KANT A existéncia de Deus nunca poder ser provada . .. COMO A SALVACAO E POSSIVEL? AGOSTINHO Uma recordacto da infancia: o furto das peras ERASMO A responsabilidade ética pressupde o livre-arbitrio LUTERO_ A vontade humana ¢ serva de Deus ou de Satanas KIERKEGAARD Abraao: profeta ou assassino? .......... FE E RAZAO: OPOSIGAO OU ACORDO? TOMAS DE AQUINO Entre fé ¢ razdo Deus nao reconhece divergéncias ..... . 58 GALILEU A Biblia deve ser interpretada a" : LUTERO Somente a fe, e nao as obras, conduz a salvagao . . HEGEL A filosofia explica o que a religiéo representa FEUERBACH De homens que creem a homens que pensam O QUE E A BELEZA? PLATAO Quem ama deseja o que nao tem... . PLOTINO A beleza ¢ sempre elevacao da alma . KANT Um furacao é belo? Nao, € sublime . . SCHELLING A arte éa revelacao filoséfica nos objetos . NIETZSCHE Apolo e Dionisio: o sonho ¢ a embriaguez .. . O QUE E A FILOSOFIA? SOCRATES fildsofo é um parteiro de almas . PLATAO_O destino do filésofo e 0 mito da caverna ARISTOTELES A filosofia nasce do assombro . . KANT O tribunal da razio HEGEL A filosofia sempre chega tarde demais . NIETZSCHE Socrates? Um homem muito doente “104 140 41 ‘ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA Siebel ae seas cn Sra hte ‘ind imuria tt st ace do ae = STIR RETE 2 Os Milésios: Tales, Anaximandro, Anaximenes Nitin Min, ymin dts don psa es fogs que o pecedcra, Ansttles ma que Tales eos Ses die polos de Mew. Anciimando « Atzximenes, fran os primetrs Misofes, Prue enfrentaram raciomalmeste =e portato, sm corer uma expen {ie mt “robles do pani nord ah em a) gi ida deriva. €fvente que el progres ds espintalldade hema nao Do- ‘eter corrode una nica vez Por ee, aafrativa cde Aristo deve ser fentendida como uma press deinieto aa ost, porque localiza a esencia {Sd novo esl de pentamento nao ne origitaidade des problemas, mas os processes uollzas para chepar a uma tesposta A i, et esumo, tm Inge quando 0 powanert e ers tacos mo sentido de pncura a panhar proces loge, sla no sentido de encontrar na eldade rows: que ‘Sistem asafrmagoes preluidas.F pr mals que he mos putea pobes, ts reposts de Tales c dos Misc, pels sistemtca recut 40 provavl a0 inmtaico,j 80 vialmenteraconase ‘A historia da esol Mlsaficade Milt, hojeuma cidade da Turqua, ext ala acs acontecimento plies na AsiaMenor ene om séeukes VLIW .C Depo de benelictar sede sus loalzgao,fvortel ao comercio, ede expe ‘mentar um grande desenvolvimento socioeconomic e wenlogeo, Meta Tot ocupada plon persia cine exes dese, oqo determin 0 in sin ecco fos, “Apesst do grande volume de welts, ao selbemos muta clea a respetio de ‘Tales (crea de 624-3453 6). Asa figira. cletvamente, es comdilonad 0 {ato de ele sr prima de una ste de loos ede sis imagstn conespoo™ derao estereono qu sez dese po de pesado: ales €0 observa turesa,ofventoe gens pico crpentady lta contra operas, lem degedenctra asubromo cum obsevador do éa io sten- toa poato de dstairsee cir num burseo de ra Desa fe «Mia's ager do loot qu, de Lo alsorioem profundasrlexbes, ni tem sis ‘ondigoes de enrentar a vida cotdina ‘Aparentesente, Tales nada escreveu, mas reste Um fagienio dos penssmentes de Ans mano (eer de 910537 4) de Anas tenes (cers de 306-525 AC) sus contrib (hose linia ofereces una psp dikrete 0 problema apreseatado por Tales. 13 i i Os MILésIos O principio é a 4gua (Tales) OPROBLEMA Qual é a origem do mundo? Existe um principio primordial (arché) do qual tudo de- viva? ATESE Segundo Tales, o principio primordial de- ve ser identificado na agua. A resposta pode pare- cer insatisfat6ria, mas a sua importéncia reside no fato de que pela primeira vez na historia do pen- samento busca-se uma solucao racional, nao mais mitico-fantéstica. Isso pode ser confirmado pelos motivos expostos por Tales: as sementes, como todo alimento, sao timidas. Conhecemos 0 pensamento de Tales somente por meio de testemunhos deixados por outros filoso- fos. Entre esses, destaca-se Aristoteles, que dedi- cou as primeiras paginas de Metafisica a um breve resumo sobre as pensadores que o precederam., 4s primeits filosofas eam | © A maior parte daqueles que filosofaram pela primeira vez O principio é 0 infinito (Anaximandro) OPROBLEMA Qual ¢a origem do mundo? Existe um prinefpio primordial do qual derivam todas as coisas? ATESE Com notavel avanco intelectual em rela- cao a Tales, Anaximandro identifica o arche nao mais em um elemento natural, mas no dpeiron, termo grego que indica o ilimitado, o infinito, uma realidade primigenia e diferenciada, sem mites e sem fronteiras. Provavelmente, 0 racioci- nio que o levou a essa conclusio € 0 seguinte: ca- da parte do universo € resultado de uma oposicao centre forcas antagonicas (a terra, a gua, 0 ar, o fo- 0) — ou seja, todos os elementos naturais sao efei- tos (em uma situagao de momentaneo equilibrio) de pares apostos: 0 quente opde-se ao frio, 0 seco ‘opoe-se ao timido, Mas também o cosmo, em seu conjunto, deve ser produto de um antagonismo fundamental; e como 0 universo se mostra defini- do, limitado, determinado em cada um dos seus componentes, deve-se pensar que ele se tenha ori- ginado e seja sustentado por um principio diame- tralmente contrario: 0 dpeiron. “naturalisticas”, ou seja, buscavam tua explcacao excusivamente natural para os fendmenos natural O arché € 0 principio, aquilo que permanece na transformacao. As argumentacées de Tales baseiam-se na observacao mo racicinio. pensava que o principio de todas as coisas era somente de or- dem material. De fato, eles afirmam que aquilo de que todos 095 seres s4o constituidos, do qual se originam e no qual se ex- tinguem € elemento e principio dos seres, pelo fato de consti- wir uma realidade que permanece identica mesmo na trans- mutacao das stias afeicoes... Por esse motivo, acreditam que nada € gerado e nada € destrutdo, posto que uma tal realidade se conserva sempre. Nao costumamos falar que Socrates € gerado, em sentido ab- soluto, ao se tornar belo ou misico, muito menos dizemos que ele morre ao perder essas caracteristicas. Pelo simples fato de © substrato (neste caso, 0 proprio Sécrates) continuar existin- do, também devemos dizer que nao se corrompe, em sentido absoluto, nenhuma das outras coisas: efetivamente, deve ha- ver alguma realidade natural (s6 uma ou mais do que uma) da qual derivam todas as outras coisas, enquanto aquela continua a existir, imutavel, Entretanto, esses fildsofos no esto de acordo quanto ao ntimero e a espécie de tal principio. Tales diz que esse princi- pio € a agua (por isso, afirma que a Terra flutua sobre a agua), exiraindo sem chivida essa convic¢ao da cons- tatacao de que o alimen- to de todas as coisas é umido, e de que até mes- mo o quente € gerado do . umido ¢ vive no umido. Ora, aquilo do qual to- | das as coisas sto geradas é, justamente, o princt- pio de tudo, ea aguaéo |\. principio da natureza C ~ das coisas umidas. Tudo ¢ agua. ANTOLOGIA TLUSTRADA DE FILOSOFIA 14 Anaximandro — filho de Praxiades, sucessor e discipulo de Tales ~ utiliza pela primeira vez 0 termo principio e afirma que o infinito € o principio e o elemento dos seres. Diz, ain- da, que o principio nao € a agua nem qualquer outro dos cha- mados elementos, mas uma outra natureza infinita, da qual provém todos os céus e os mundos que nele existem. (Cita- do por Simplicio.) MONISMO As doutrinas dos Milésios constituem um primeiro e rudimentar exemplo de monismo, termo atribuido a todas as filosofias que imaginam que a realidade multiforme deriva de umn Unico principio. Em metafisica, ©’ monismo contrapde-se ao dualismo — defendido de maneira diferente por Platao e por Descartes - e ao pluralismo de Aristételes. Tudo indica que Anaximandro foi o primeiro a usar o termo arché, que em grego indica o principio, o fundamento, aquilo do qual tu- do se originou e que mantém o mundo vivo. Os Milésios identifica- ram oarché em um elemento natural (a agua, 0 ar, o dpeiron), mas filosofos da geracio seguinte foram mais longe: Herdcito identifi cou 0 arché no devir, e Pitagoras, no ntimero. O termo foi utili- zado por Platdo e A‘ist6teles para ceferir-se, genericamente, A matéria da qual as coisas sao feitas, seja 8 forca que da vida a natureza, seja finalmente a /e/ que a governa O principio é o ar (Anaximenes) See ‘A Origem do Universo (Rajasthan, século XVM). OPROBLEMA Qual €a origem do mundo? Exis- te um principio primordial originario? ATESE Talvez marcando um certo retrocesso em relagao 4 solugéo apresentada por Anaxi- mandro, Anaximenes voltou a identificar o ar- chéa um elemento natural: 0 ar. E provavel que ele tenha dado ao termo a mesma conotagao que 05 gregos dariam, logo em seguida, a ex- ressao pneuma, ou seja, o vento quente ¢ rare- Fete, de natureza mais espiritual do que mate- rial, que esta presente em cada ser vivo e se exa- la do corpo com o ultimo suspiro. Mais do que uma substancia natural, o ar de Anaximenes € 0 principio da vida. 15 ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA 0 ar como principio infinito. Todos 0s elementos derivam oar, por transformacéo. Também o ar, como 0 infinito, 1ndo tem limites, © Conhecimento do Univer- 30 (Rajasthan, século XVID. Herma de Herdclito, em « Anaximenes, filho de Euristrato, foi amigo de Anaximandro. Fle também diz que una, infinita ¢ determinada é a substancia que serve de substrato. E chama essa substancia de ar. Oar diferencia-se, nas substancias, por rarefacao e conden- sacao. Atenuando-se, torna-se fogo; condensando-se, vento; ao crescer a condensacao, transforma-se em agua; e depois em terra, pedras ¢ o resto. Ele também supoe ser eterno o movi- mento pelo qual se faz a transformacao Diversos sao 0 infinito ¢ 0 finito quanto ao numero (que € proprio daqueles que admitem a multiplicidade de principi- 08). Diversos s40 0 infinito e o finito quanto a grandeza, co- mo afirmam Anaximandro e Anaximenes, que admitem, sim, um tinico elemento, mas infinito quanto a grandeza. (Citado por Simplicio.) APEIRON—_ A traducao literal deste termo € sem limite. Anaximandro utiliza-o para indicar a mistura que originou todas as coisas, indefinida, in- distinta e caética, a partir da qual — por meio de sucessivas divisdes, causadas pela alternancia de quente e frio — foi gerado o mundo tal como 0 conhecemos. Os gregos nao elaboraram uma ideia de infi- nito semelhante 4 dos pensadores modernos, ¢ associaram essa i deia 2s nogdes de indeterminacao, falta, negatividade. ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA. 16 HERACLITO Heraclito cerca de 540-480 a.C. embro de uma familia aristocratica — tal- vez descendente de antigos reis -, Hera- clito sempre mostrou grande desprezo pelas massas e pelos principios democraticos, mesmo morando em uina cidade (Efeso, co- lonia ateniense localizada na costa da Lidia) dominada pelo partido popular. Distante da atividade politica, ele se manteve em altivo isolamento e em oposi¢ao ao resto da socie- dade. Essa postura transparece nos seus es- critos, especialmente quando contrapée os melhores (homens) a maioria, como sugere =~ Cae uma das suas maximas célebres: um soho- | BUS] OS™ mem vale dez mil, se for 0 melhor. O seu comportamento as vezes contradito- HBRAC LIEYS rio talvez explique algumas extravagancias, a Ses pe theron comecar pela estranha forma com a qual —a0s _gravura de Bellort, 1685. 0 semblante 60 anos, conforme a tradicao ~ decidiu matar- de todos os flosofos antes de Socrates ¢ -se: devorado por caes, na praca putblica de Syecase romanas também sao fruto da Efeso, depois de se ter coberto de esterco. imaginacao, Mas, com certeza, sua personalidade justifica o estilo intencionalmente obscuro dos seus escritos (tanto que recebeu 0 epi- teto de obscuro). Escrever, para Herdclito, significava gravar frases curtissi- mas, aforismos tao profundos quanto ambiguos, sobre finas laminas de ouro que depois ele mesmo depositava no cofre do templo citadino, ordenando aos sacerdotes que so tornassem publico o seu contetdo apds a sua morte. Por- tanto, em um certo sentido, quis ser um filésofo péstumo, recusando-se a falar aos pobres compatriotas (que, sem meio-termo, definia adormecidos) para dirigir-se a humanidade do futuro. Provavelmente, foi ao refletir sobre a propria existéncia que ele elaborou sua doutrina mais conhecida, que pode ser resumida na formula pdnta rhet: “tudo flui”. De fato, Herdclito permaneceu na historia como o filésofo do devir, mas a cri- tica contemporanea ja demonstrou que essa interpretacéo é redutiva: sob as aparéncias mais mutaveis, ele entrevé uma lei, um principio unitario. Essa lei de interdependéncia dos contrarios, segundo a qual cada par de opostos for- ma uma indivisivel unidade, € 0 légos, a raz4o que governa todas as coisas. Mas os homens, na sua maioria, s40 incapazes de ouvi-lo. ‘A producao de Heréclito foi reunida no texto Sobre a Natureza. Restam apenas 130 fragmen- os — entte eles, esto alguns trechos selecionados para esta antologia. 17 ‘ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA Todos tém o /6gos, mas s6 os despertos 0 sabem O PROBLEMA Qual € a ei que governa o mundo? Em que consiste o pensamento? ATESE A lei que governa 0 mundo e, portanto, a mente do homem, é o logos, palavra de dificil tra- ducio: € 0 pensamento, a razdo, a inteligencia, 0 discurso (quando afirma a-verdade e se afasta da opiniao); mas ¢ também o principio de tudo, a let que regula o funcionamento do cosmo. Toda ho- mem, enquanto parte do universo, participa do 14- gos universal, mas existem profundas diferencas entre o modo de pensar dos individuos. Alguns, os adormecidos, limitam-se as percepedes imedia- tas, vivem como que num sonho e desenvolvem opinides subjetivas; outros — os filésofos ou os despertos — uiilizam 0 logos de modo consciente e conseguem penetrar profundamente na verdade da natureza. Na sua origem, a filosofia coloca-se em oposicao a mentalidade comum, no mesmo rio. Cada coisa é € nao é, ao mesmo tempo, Todo o universo esta submetido a um eter- no fluir e a vida requer contradigao, antagonismo, guerra. Nos mesmos somos e nao Somos, porque existir, viver, significa tornar-se, ou seja, mudar a podemos dizer que nao nos banhamos duas vezes HERACLITO a propria condicao atual por uma outra, Cada coisa esta submetida ao tempo e a transformagées infi- nitas: nao hd nada no mundo verdadeiramente es- tatico e mesmo o que parece parado ou constante €na realidade mutavel, como a agua do rio. Em resumo: o ser das coisas ¢ o seu devir. © Nao € possivel entrar duas vezes no mesmo rio nem tocar duas vezes uma substancia morta no mesmo estado. A vida é uma crianga que brinca, que movimenta as pegas do tabuleiro. Todds os homens pensar 05 processos pelos quals 0 ‘pensamento se desenvale so cdesconhecidos do préprio. pensamento, O pensamento torna-se possivel pla sua intrinseca recionalidade. A racionalidade ¢ analisével em si mesma, independentemente dos pprocessos pelos quais se desenvoive, (Qs melhores aspiram 8 fra eterna, A flosofa néo se dlrge diretamente a0 mundo, mas chega a ele por meio da indagacao da alma, © O logos é comum a todos. Os homens nao entendem esse légos — que é, sempre — nem antes nem depois de té-lo ouvido. Mesmo que todas as coisas acontecam segundo esse logos ¢ as pessoas provem — por meio de palavras e aces, da mesma forma que eu {aco ~ que distin- guem a natureza de cada coisa, ainda assim elas parecem inex- perientes. Mas aos homens permanece oculto 0 que fazem quando despertos, do mesmo modo que nao sao conscientes do que fazem dormindo. E preciso que aqueles que falam utilizando a mente se apoiem no que é comum a todos, como uma cidade em rela- cdo a lei, ¢ ainda mais do que isso. Todas as leis humanas, na verdade, alimentam-se de uma unica lei divina: ja que esta do- mina tudo 0 que deseja, basta para todas as coisas e ainda sobra. Ninguém, entre todos aqueles cujos discursos onvi, chegou aisto: reconhecer que a sabedoria € distinta de todas as coisas. Os melhores preferem uma tinica coisa em relacao a todas as outras; a gloria eterna em confronto com as coisas passagei- ras. A maioria, no entanto, pensa somente em se satisfazer co- ‘mo animais. Eu indaguei a mim mesmo. Os confins da alma nunca po- ders encontrar, por mais que percorras os seus caminhos, tao profundo € o seu logos. Nao nos banhamos duas vezes no mesmo rio OFROBLEMA O mundo possui uma estrutura co- _raclito em alguns aforismos esta entre as mais co- erente ou € contraditorio? E estavel ou esta sujei-_nhecidas e importantes de toda a historia do pen- to a. uma perene transformacao? samento ocidental: nada existe de estavel e defini- ATESE A tese do devir universal sugerida por He- tivo na natureza; tudo muda continuamente—dat, ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA 18 Tudo flui e nada permanece. O Sol € novo a cada dia. O termo /égas é talvez o mais importante de todo 0 vocabulario filosfico, mas nao pode ser traduzido facilmente porque con- tem uma pluralidade de significados ligados entre si: palavra, enun- ciado, definicao, discurso, explicacao, célculo, medida, avaliacéo, razao, causa, pensamento, necessidade, e outros mais. A afir maga0 de que 0 /égos é universal mente difundido significa que a racionalidade nao é uma peculiaridade do homem, mas a subs- tancia mesma da inteira realidade. - O principio é o fogo (ou o dinheiro) O PROBLEMA Qual é a origem do mundo? Existe um prinefpio fundamental de que tudo deriva? ATESE O arche, 0 princtpio gerador da realidade, consiste no fogo. De fato, tudo se origina do fogo eno fogo todas as coisas Se transformam. Em um certo sentido, a resposta de Herdelito parece apro- ximar-se daquela formulada pelos pensadores de Mileto, que ja haviam identificado 0 principio fundamental em um elemento material (ver itens 1,2 €3). No caso de Hericlito, 0 fogo constitui mais uma metifora do que um elemento natural especilico, e isso é demonstrado na comparacao ‘com a moeda: pela sua capacidade de transformar uma coisa em outra, o fogo pode ser substituido pelo simbolo do dinheiro, que, por stia vez, 6 ca- paz de trocar uma mercadoria por qualquer outra e Essa ordem universal, que € a mesma para todos, nao foi criada por nenhum dos deuses ou ho- mem, mas sempre foi e sera fogo, constantemente vivo, que sempre se acende ou se apaga na justa medida. Todas as coisas podein ser trans- mnutadas em fogo ¢ 0 fogo pode se transformar em todas as coisas, do mesmo modo que se troca 0 ouro por todas as coisas e todas as coisas sao trocadas pelo ouro. 19 ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA | HERACLITO 5 A guerra é pai de todas as coisas PROBLEMA Por que todas as coisas estio em de- vit? Qual € a energia que d4 vida ao mundo? ATESE O devir realiza-se por meio da continua passagem de um contrario a outro. Portanto, a lei que regula o mundo ¢ aparentemente a guerra, 0 contraste entre elementos opostos em perene e recfproca alternancia, Isto ¢ verdade, segundo Herdclito, mas € tambem superficial: sob o anta- gonismo dominante, pode-se perceber uma lei de harmonia, porque as coisas em oposi¢io, para existir, precisam umas das outtas. E verdade que 0s contrarios se opdem, mas € tanto mais yerda- de que, a0 opor-se, estabelecem um todo harmo- nico, assim como 0 escuro € necessério a luz € 0 dia € complementar a noite. A vida existe onde nao ha conciliagao dos contrarios (sindnimo de morte), mas luta e oposicao. Um vive a morte do ‘outro, como 0 outro morre a vida do primeiro. En- tre 0s opostos ha uma guerra constante, mas tam- bém uma secreta harmonia, uma mtua necessi- dade: nao existiria satide sem doenea, saciedade sem fome. Dito de outra forma: nao pode existit uma subida que, ao mesmo tempo, de um outro onto de vista, nao seja também uma descida ‘Nao pode existirvida_ | » A guerra é pai de todas as coisas, de todas € o rei; revela uns sem antagonism. | como deuses e outros como homens, de uns faz escravos e, de outros, homens livres. 0.serprofundo das | A mesma coisa sao 0 vivo ¢ 0 motto, o desperto ¢ 6 ador- coiss sempre uma | mecido, o jovem e o velho: estes, de fato, mudando, tornam- nidede de oposias. | -se aqueles, e aqueles, mudando, por sua vez se transformam nestes. Odeviréa passagem de cada | As coisas frias esquentam, as quentes esfriam; o que € timi- coisa 4 conaigao oposta. | do seca; o que é arido umedece-se. Para a divindade, todas as coisas sao belas, boas e justas; 05 homens, no entanto, consideram algumas coisas juistas ¢ ou- tras injustas. £m cade contradicao esta A harmonia escondida vale mais do que aquela que aparece. implicita uma harmania. O caminho em subida e em descida € um sé e 0 mesmo. Aquilo que esta em oposi¢ao se concilia; das coisas diferentes nasce a mais bela harmonia e tudo € criado pelos contrarios. Tudo é um, PANTARHED Em grego significa tudo flui, a sintese da doutrina heraclitia- na do devir. Os filésofos da escola de Mileto ja haviam nota- do a importancia dos fenémenos de transformacao que re- gulam a vida da natureza, vendo nesse dinamismo as altera- es progressivas do arché. Heréclito, ao contrario, percebe 9 principio primordial (arquétipo) justamente na prép transformacao da materia: tudo vem e tudo vai, incessante- mente, e nesse movimento reside a natureza das coisas. Herdclito descobre o devir. ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA 20 Pitagoras cerca de 570-500 a.C. Se a respeito de Pitagoras temos muitas lendas e pouquissimas informagGes com- provadas, é porque o fildsofo se tornou (ou quis tornar-se) um mito antes mesmo da sua morte. Sabe-se que cresceu na ilha de Samos e que, por volta dos 40 anos de idade, pro- vavelmente por motivos politicos, mudou- -se para Crotona, na Magna Grécia, onde fundou uma seita, uma ordem politica de forte conotacao mistica, que rapidamente se espalhou por numerosas colonias. Mas essa nao foi uma experiencia bem-sucedida, pois a orientacdo claramente aristocratica do poder pitagorico provocou uma violen- ta rebeliéo popular que culminou com a destruicdo da sua escola. Tudo indica que Pitagoras conseguiu salvar-se, morrendo pouco tempo depois em Metaponto. Como Cristo, Buda e Maomé, Pitagoras nunca escreveu: preferia difundir 0 seu en- sinamento por meio de breves sentencas OU Busia de Pitdgoras. O turbante no estilo de exemplos de vida. Ao contrario dos oriental ¢ uma mencao a viagem que o grandes patriarcas religiosos e da totalidade _Jilésojo teria feito ao Oriente ou ao Fgito. dos fil6sofos, nao desejava que o seu pensa- mento fosse divulgado e muito menos discutido. Formulava as suas senten- cas (em grego, mathémata) de modo peremptorio e definitivo (como dog- mas). Os seus discfpulos s6 podiam fazer perguntas apés longo processo de iniciacao, e os nedfitos (acusmaticos) apenas podiam ouvir. Nao permitia que se tomassem notas — assim sendo, € logico que, depois da morte do filosofo, se tenha tornado impossivel distinguir a sua doutrina da dos seus seguidores. Muitas historias revelam uma figura ainda parcialmente ligada a tradicdo pré- -filosofica. Acreditava na reencarnagao das almas (metempsicose), relacionava seus proprios pais a Apolo e parece que as vezes conversava com algum ani- mal, afirmando reconhecer nele a alma de um amigo falecido. Se Pitagoras, com todo direito, faz parte da historia da filosofia € porque considerou o saber como o principal instrumento da purificacdo religiosa: 56 amando a sabedoria podemos nos colocar em sintonia com a harmonia do universo — parece que 0 termo fildsofo foi inventado justamente por ele. Podemos notar a harmonia de que fala Aristoteles (Metafisica) no primeiro texto aqui mostrado (item 8): os chamados Pitagoricos viam no nimero o princtpio de todas as coisas. 21 ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA A musica é harmonia de numeros OPROBLEMA Qual éa estrutura do universo? Em que consiste a harmoni, em particular a harmo- nia musical? O que é um ndmero? ATESE Enquanto a escola filoséfica de Mileto identificava o arché—a natureza intima do todo, fundamento e causa de cada coisa — em um ele- ‘mento fisica (ver principalmente item 1) e Hera- lito localizava-o no devir (ver item 5), Pitagoras acreditava que esse fundamento residia no nume- ro. No entanto, diferentemente dos modernos, com 0 termo numero ele nao indicava um ente abstrato, puro contetido da mente, mas um ele- mento essencial da realidade. Por isso, 0 niime- 10 pitagérico possui também uma dimensio es- pacial, apresentando-se como um ente interme- diario entre a aritmética e a geometria. Pitagoras id Wu 0 arché — o ponto de partida, fundamento e causa, que 05 Millésios haviam encon- trado em um elemento fisico — no nlimero. Cada fi- gura geométrica e, portanto, cada corpo existente, pode ser pensado como uma quantidade finita de elementos-base unitarios: 08 nimeros. Tudo é nti mero e tudo pode ser quantificado em ndmeras. Com essa certeza, Pitagoras construiu a primeira matematica e elaborou uma metafisica, um ideal de order, racionalidade e harmonia universal. A ideia pitagorica de numero, todavia, diferencia-se da ideia moderna: um numero nao é um ente abstrato, mas (© mimero & 0 principio ordenador da realidade natural Aunidade é par impar, ‘no é par nem impar. O ntimero néo é um ente abstrato, coincide com a matéria e possui uma dimenséo espacial A diéncia dos ndmeros pode explcar cada aspecto da reaidade. A misica é um exemplo de harmonia matemética entre os sons. A harmonia musical rege & cordem do univers. ANTOLOGIA © Parece que os Pitagéricos ~ que afirmavam que o principio era o ntimero — pensavam o ntimero também como matéria ou qualidade acidental e condicao das coisas que so Elementos do mimero supunham o par ¢ 0 impar, um pen- sado como infinito ¢ 0 outro como finito; consideravam a rea~ lidade derivada de ambos (assim, diziam que ela ¢ par e impar). Da unidade pensavam que nascesse o numero ¢ que os nume- ros consistissem, como eu disse, o mundo todo... Os Pitagéricos também pensavam que o nimero é de um tinico modo, vale dizer, matematico, e nao o consideravam se- parado das coisas, mas diziam que as substancias perceptiveis dlos ntimeros sao compostas. De numeros de fato concebiam todo céu, mas nao de mimeros formados por unidades sem grandeza, pois atribuiam grandezas as unidades. Quanto a pri- meira unidade dotada de grandeza, como ela ¢ composta, pa- rece que eles nao sabiam dizer.. Os Pitagoricos foram os primeiros a dedicar-se as cigncias matemiticas, fazendo-as progredir. Como encontraram nessas ciéncias 0 proprio nutrimento, foram de opiniéo de que exis- tem e sao geradas, e afirmavam que uma determinada proprie~ dade dos nimeros se identifica com a justia, uma outra com a alma e com o intelecto... e que o mesmo vale, aproximada- mente, para cada uma das outras propriedades numéricas. Além disso, identificaram nos ntimeros as propriedades e as relagoes das harmonias musicais ¢, finalmente, era evidente para eles que todas as outras coisas tinham nos nuimeros 0 seu fundamento ¢ a sua inteira natureza, que os nuimeros cram. a esséncia primordial de todo o universo fisico. Por todos esses motivos, eles conceberam os elementos dos mimeros como elementos de toda a realidade, e 0 céu inteiro como harmonia e nimero. Recolhiam e adaptavam ao seu sis- tema todas as concordancias com as propriedades e partes do céu e coma inteira ordem universal que encontravam nos ni- meros ¢ nas harmonias. USTRADA DE FILOSOFIA 22 algo concreto é real, uma dimensdo essencial das coisas. Por isso, os ntimeros pitagéricos possuem também uma dimensio espacial: sao triangulares, quadrados e assim por diante. SEITA PITAGORICA A imagem que se perpetuou de Pitdigoras revela 0 filésofo e, também, o feiticeiro, o homem-me- dicina das culturas arcaicas. Isso 6 demonstrado pela lista de estranhas regras de purificacéo que impés aos proprios discipulos, verdadeiros tabus, acoes absolutamente proibidas por motivos reli- giosos. Aqui estao: 1) Nao comer favas; 2) Nao re- colher o que caiu; 3) Nao tocar em um galo bran- co; 4) Nao partir 0 pao; 5) Nao saltar sobre traves; 6) Nao aticar 0 fogo com ferro; 7) Nao morder um pao inteiro; 8) Nao partir as guirlandas; 9) Nao se sentar sobre um jarro; 10) Nao comer 0 coracao; 11) Nao se olhar em um espelho perto do fogo; 12) Alisar a marca do corpo ao le- vantar-se da cama. Note-se que a regra 4 nao pode lagicamente coexistir com a7 mUSICA COSMICA Uma das ideias de maior sucesso historico de Pitégoras é a de que 6 astros produzem no seu movimento uma misica perfeita e divi- na, literalmente celestial. Se no conseguimos auvi-la, é somente por causa do fendmeno psicalégico que faz com que um som con- tinuo torne-se despercebido pela consciéncia perceptiva O ar é cheio de almas cosmo como instrumento musical (A. Kircher, 1665). No alto, Apolo, como primeiro motor, rege a harmonia das nove Musas, correspondentes as esferas cosmicas. Na mitologia egipcia, a serpente jue as atravessa simbolizava a fovea vita O PROBLEMA O que é a alma? F imortal? O que confere vida ao animal, separando-se dele no mo- mento da morte? ATESE. Pitagoras foi o primeiro filosofo ocidental asustentara teoria da metempsicose, a transmigra- ‘cdo da alma de um corpo para outro no momento da morte. Devido a uma culpa original, a alma é 23 obrigada a reencarnar em sucessivas substancias corporeas (mem sempre humanas, mas tambem animais), em um ciclo que s6 € interrompido apos a purificacdo, As regras nas quais se inspiram as normas éticas ¢ os ritos de purificacao sto aquelas, exclusivamente matematicas, da harmonia e da proporeio (Citado por Didgenes Laércio). ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA econ: A.alma (imortal e presente em cada ser vivo) & constituida de éter, 0 ‘uinto elemento, uma substéncia material, mas muito sutil e invisivel. ‘A alma humana tem trés componentes. O coracéo é a sede da emogo; 0 cérebro, & do intelecto e dz mente. Também 0 pensamento & constituido de ter. Nao necessariamente a alma & controlada pela mente racional, Aalma sobrevive 20 corpo. Os sonhas séo mensagens emviadas pelas amas dos mortos. Também os animais sonham. O sito religioso estabelece um contato com as almas. ‘alma tende ao bem, mas 0 hhomem & em si um ser inqueto A producéo esperratica reside no cérebro © Os Pitagoricos afirmavam que dotadas de vida sao todas as coisas que participam do quente (para eles, as plantas também sao seres vivos), mas nem todas tem alma. Diziam que a alma é uma particula do éter {rio e do éter quente, diferindo da vi- da justamente porque participa tambem do éter fio: € imor- tal, porque imortal ¢ aquilo do qual se desprendeu... Afirmavam que a alma do homem divide-se em trés partes: intelecto, mente, animo — o intelecto € o animo sendo co- muns também aos outros animais, ¢ a mente sendo exclusi- va do homem. 5 Diziam que a alma comeca no coracao e chega ao cérebro, € que a parte que esté no coracao € o animo, e as que esto no cérebro sao o intelecto ¢ a mente; os sentidos so como gotas que vem de tais partes; e a parte racional ¢ imortal, enquanto as outras so mortais. Acreditavam que a alma € alimentada de sangue € os racio- cinias sto respiros da alma; ¢ que invisiveis sto a alma ¢ os ra- ciocinios, porque o éter também é invisivel.. Afirmavam que alma mantém-se unida pelas veias, pelas ar- térias ¢ pelos nervos, mas, se tiver forca ¢ ficar fechada em si mesma, sera mantida unida pelos raciocinios e pelas obras. Diziam que quando a alma € expulsa do corpo, vaga sobre a terra, no ar, semelhante a um corpo. E que Hermes ¢ 0 guar- dido das almas, sendo chamado de Acompanhante, Porieiro e Ctonico, porque € ele quem manda as almas saidas dos corpos para os lugares a elas destinados. Afirmavam que as almas pu- rificadas seguem em direcao ao alto, ao passo que as impuras nem se aproximam delas, nem se unem entre si, mas so pre- sas pelas Erinias a grilhoes infrangiveis. Afirmavam que todo o ar est cheio de almas e que tais eram considerados os demdnios e os herdis; e que por meio delas sio mandados os sonhos e os sinais das doencas nao somente aos homens, mas também aos rebanhos e a outros armentos. E para estes [para as almas dos demOnios e dos herdis] exis- tem as purificagdes e as ceriménias rituais, toda a arte divina- toria e os vaticinios, tudo o que ha nesse género. Afirmavam que a maior realizacio do homem ¢ levar uma alma para o bem, afastando-a do mal; o homem € feliz se tem. uma alma boa, mas ele nunca esta tranquilo, nem segue a mes- ma corrente. Afirmavam que 0s animais so gerados de animais por meio do semen. A terra nao pode gerar. O semen ¢ wma gota de cé- rebro, contendo vapor quente, Quando ele penetra na matriz, 24 rico deixa ali a umidade e 0 sangue do cérebro, formando-se de- pois as carnes, os nervos, os ossos e 05 pelos, enfim, todo o corpo, a0 passo que do vapor nascem alma e sentido. Preconizavam que o embriao ganha forma em quarenta dias; depois, a crianga completa-se e vem a luz em sete, nove ou, no maximo, dez meses, segundo as relacoes da harmonia. Afirmavam que a crianga contém em si todas as relagoes da vida, e que estas, conectando-se, a mantém unida, acrescen- tando cada parte no momento devido, segundo as relacdes da harmonia. Acreditavam que os sentidos, em geral, ¢ a vistio, em particu- lar, sao constituidos de um vapor muito quente, gracas ao qual podemos ver através do ar e da Agua; porque 0 quente é mai tido compacto pelo frio circundante ~ se 0 vapor que esta nos olhos fosse frio, dispersaria-se em contato com o at igualmen- te frio. Por isso, algumas vezes chamavam os olhos de portas do Sol. Diziam também as mesmas coisas dos outros sentidos. A gestacéo fetal acompanha as cardens decimais da numeragéo matematica. Existe vida enquanto os componentes do indvitro permanecem em relacao ‘harmédnica. Dado que conseguimas ver também através da dgua, a visé0 deve eceber urn fuido muito suti, como um vapor quente, Busto de Pitagoras, A serpente sobe pelo ombro direito do Jiacojo tdice, simbolicamente, que ele pertencia @ ordem sacerdotal. 25 ‘ANTOLOGIA TLUSTRADA DE FILOSOFIA i PITAGORAS oes Virtudle morale sade fica sso | A justica ¢ fidelidade aos juramentos e, por isso, Zeus € deno- cevemplos de hamonia. | minado o seu protetor. A virtude é harmonia, e assim também a satide, o hem e a divindade: por isso, o todo € composto se- gundo a harmonia. A amizade ¢ igualdade harmonica Bxstem substincias impuras, que Os Pitagoricos afirmavam que é preciso honrar os deuses € clevem ser evitades porque | os herdis, mas nao do mesmo modo: os deuses, com elogios, consttuem fonte de contaminaggo. | em veste branca e em pureza; e os herois, a partir da metade do dia. A pureza obtém-se mediante os rituais de purificacao, as ab-lucdes, mantendo-se longe de lutos, de contatos sexuais ede qualquer outra impureza, abstendo-se de carnes jt toca- das ¢ daquelas de animais mortos de morte natural, € das tri- Thas, dos melanuri, dos ovos, dos animais oviparos, das favas e das outras coisas das quais se devem abster também aqueles que fazem as iniciacoes nos templos A doutrina de Pitagoras devia ficer E de se admirar o cuidado que tiveram de manter secretas as coberta pelo segredoe ser | suas doutrinas. Em muitas geragdes, ninguém encontrou si- transmitida oralmente, | nais dos Pitagoricos. Filolau foi o primeiro a divulgar os trés livros famosos, que se diz terem sido comprados por cem mi- nas [N. D. T.: moeda grega.| por Dion de Siracusa a pedido de Platao, quando Filolau se viu em dura e grave pobreza. Filo- lau fazia parte da seita dos Pitagoricos e por isso conseguiu ob- ter os livros. METEMPSICOSE __ pe Ea teoria segundo a qual a alma é imortal e transmigra de um corpo para outro apés a morte. Professada ainda hoje no Orien- te pelas religides hinduista e budista, a doutrina da reencarnacao chegou a Grécia com a seita misteriosa dos Orficos e com o ensi- namento de Pitagoras, A sua importancia na historia da filosofia reside em ter sido depois assumida por Platéo como explicacao mistico-filoséfica da anamnese. ANTOLOGIA ILUSTRADA DE Fi PARMENIDES E ZENAO | Parménides e Zenao cerca de 515-450 a.C. Si existe uma coisa com a qual todos os filosofos do passado e do presente po- deriam concordar € a grandeza perturba- dora do pensamento de Parménides. Pelo rigor das suas argumentagoes e pela pro- fundidade das suas andlises, Platao 0 de- finiu como venerando e terrivel, dedicoua ele um didlogo especifico (0 Parménides) e 0 reconheceu como pai espiritual, a ponto de achar que ao divergir de algu- mas das reflexGes do mestre cometia uma espécie de parricidio. Esse prestigio € justo: Parménides foi o primeiro a sustentar a superioridade da inter- pretacdo racional do mundo ¢ a negar a vera- cidade da percepcao senstvel: ver, ouvir, es- . cutar nao produz certezas, somente cren- Parménides em ilusiracio renascentista. A case opinloes.Erra quem (como Heracles aguig a to) deixa-se enganar pelos sentidos e con- _fisiognomonia (arte de interpretar 0 cardter sidera a realidade em devir, pois a trans- PY meio dos tracos fisionomicos). formacao — uma passagem do ser a um nao ser — nao é em si pensavel. O ndo ser ndo € jamais pensdvel, nao mais do que ver a escuridao (0 nao ser da luz) ou escutar o siléncio (o nao ser do som). Sabe-se muito pouco sobre a vida de Parménides — até mesmo as datas de nas- cimento e de morte sao incertas. Membro de uma familia aristocratica, ele nasceu e viveu em Eleia (hoje chamada Velia), proxima ao Cabo Palinuro, fundando ali a escola denominada Eleata. Foi também o autor das leis aplicadas em sua cida- de. Tudo indica que nos tltimos anos de sua vida foi com o discipulo Zenao para Atenas, onde encontrou Sécrates. Certamente, as suas doutrinas tiveram um forte impacto no ambiente ateniense — Plutarco conta que Péricles assistia as suas aulas com interesse. Da sua obra, restam somente 154 versos do poema filosofico Sobre a Natureza — do qual propomos aqui as leituras 10-14 -, estru- turado em hexametros e dividido em duas partes: Verdade e Opinido. ZenAo, o discipulo mais proximo e predileto de Parménides, também nasceu em Eleia, provavelmente 25 anos depois do seu mestre. Fez da defesa da doutri- na do ser o escopo do seu filosofar, acentuando o carater provocador das argumen- tagGes parmenidianas até as ultimas e perturbadoras consequéncias: se 0 mo- vimento é uma passagem de um corpo da situacao de estar em um lugar para a de ndo-estar-mais naquele lugar, entao 0 movimento nao existe; assim como nao existe 0 tempo, a velocidade, 0 espaco. aT ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA PARMENIDES E ZENAO. A viagem em diregao a verdade PROBLEMA Pode-se distinguir 0 verdadeiro co- nhecimento da opinido? Em que condigdes se po- de alcangar a verdade? ATESE A alta densidade simbolica dificulta a in- terpretagto do poema de Parménides, principal- ‘mente na primeira parte, dedicada a ilustrar, por meio da metafora da viagem, 0 processo que con- duz ao conhecimento. © percurso em direcio & verdade inicia-se nas casas da Noite, o bairro popu- lar da cidade de Eleia, simbolo da escuridao em que vive o homem que se deixa levar pelas sentidos. A vviagem termina diante das portas do tempo, no in- terior do qual, depois de alt ser admitido com difi- culdade, Parménides recebe a doutrina do Ser, i- deia central da sua filosofia, diretamente da boca da deusa Necessidade. O sentido da metafora € que a verdade ndo € alcangavel sem esforco e, principal- mente, nao ¢ alcangavel por todos. A meta de Parménides. As joversindicam aquilo que impuliona a verdade; reresentam, talvez, 0 pensamento. A porta simboliz a passagem do erro ( escurido) para a verdade (vz). Avverdade que Parménides comunica ¢ futo de uma revelacéo divina (a passagem atrav’s da porta sagrade) ‘A deusa Justca personifica as nnagées de racionalidade, necessidade, destino. A verdade é, metaforicamente, uma esfera: homogénea, compacta, Anica e sempre igual a i mesma, © As éguas que me levam até onde o meu desejo quer chegar me acompanharam, aps me conduzirem e me colocarem no cami- nho que diz muitas coisas, / que pertence a divindade e que con- duz 0 homem que sabe a todos os lugares,/ Para la fui levado. De fato, para ld me levaram as sagazes éguas, tirando meu carro, /¢ as jovens a indicar o caminho. / O eixo do meao sol- tava um silvo agudo, incandescendo-se (porque premido en- tre dois rotantes, circulos de um lado e de outro), / enquanto apressavam 0 passo, ao me acompanhar, as jovens Filhas do Sol, / apos deixar as casas da Noite, em direcdo a luz, retiran- do com as mos os véus da cabeca. La estd a porta das veredas da Noite e do Dia, / tendo nos dois extremos uma arquitrave e um umbral de pedra;/ ea por- la, erguida no éter, ¢ fechada por grandes batentes, / dos quais a Justica, que muito pune, tem as chaves que abrem e fecham. As jovens, entao, dirigem-lIhe suaves palavras, / e sutilmen- tea persuadem a que os ferrolhos / sem tardar removesse da porta. E logo esta, ao se abrir, / dos batentes fez uma vasta abertura, fazendo girar / nos gonzos, em sentido inverso, os brénzeos umbrais / ajustados com pregos com ombreiras. Logo, por Id, através da porta, / direto para a estrada mestra, as jovens levaram carro € éguas. Ea deusa benévola me acolheu, ¢ com a sua mao a minha mao direita tomou, / ¢ assim comecou a falar, dizendo-me: / “0 jovem, companheiro de imortais boleeiras, tu, que chegas conduzido pelas éguas a nossa morada, alegra-te, pois nao foi infausto o destino que te fez percorrer este caminho / (de fato cle esta fora da via seguida pelos homens), mas a lei divina e a Justica”. E preciso que tu tudo aprendas: / 0 sdlido coragao da bem redonda Verdade / e as opinides dos mortais, nas quais nao ha verdadeira certeza. / E, no entanto, também isso aprenderas: como as coisas que parecem deviam verdadeiramente ser, sen- do todas em todos os sentidos. ANTOLOGIA ILUSTRADA Dé FILOSOFIA 28 ae Ser é 0 termo fundamental do pensamento fi- ioséfico ocidental. A sua ambiguidade nasce do fato de poder ser usado em dois modos distintos: como cépula - ou seja, como forma verbal ligada a um sujeito (Sécrates 6...) ou, entao, em absoluto, tomando-se ele mesmo sujeito: o ser (que por sua vez & ou no 6). A possibilidade de usar uma palavra como atri- buto ou em absoluto nao exclusividade do verbo ser: autras nocdes podem sofrer o mes- mo tratamento linguistico. Por exemplo, o ter- mo belo pode ser entendido camo adjetivo ou como substantive (0 belo, em absoluto). ONTOLOGIA OU METAFISICA Ambas definem o estudo do ser em geral. O mundo é feito de coisas multiplices, mas to- das, enquanto sao, participam da categoria do existir - ou seja, do ser. A metafisica, pres- cindindo dos aspectos acidentais presentes em todas as coisas, estuda 0 ser enquanto ser. As posicées podem ser diferentes, por- que, como Parménides, pode-se colocar a hi- potese da unicidade do ser (monismo), a sua duplicidade (dualismo de ideia-realidade pa- ra Platéo, mente-corgo para Descartes) ou, ainda, o pluralismo metafisico proposto por Aristételes. VERDADE E OPINIAO A conttraposicao posta por Parménides entre verdade (alétheia) e op- nido (doxa) tornaria-se um tema classico do pensamento ocidental Opiniao é a crenca que se baseia em dados sensiveis e perceptiveis, mesmo quando estes parecem certos e evidentes; verdade é a con- viccao baseada em argumentacées racionais, mesmo quando esas argumentacées parecem em total oposicao 4s evidéncias sensiveis. Os enganos do verbo ser Retrato de Zendo. No mundo grego, a faixa em torno da cabeca simbolizava a sacralizacao. © PROBLEMA E possivel formular em termos lé- gicos a ideia de verdade? ATESE A revelacao recebida por Parménides con- siste na doutrina do ser, sintetizada na célebre for~ mula o ser €, o ndo ser nio €. Toda a argumentacio baseia-se na redugao da ontologia (0 estudo do ser) a linguistica e, assim, a procura da realidade ultima do mundo coincide com a andlise linguts- tica do verbo ser. E enquanto aquilo-que-¢ pode » Pois bem, eu te direi e tu acolhes a minha palavra: / quais sto 05 tinicos caminhos de busca que se podem ser dito ~ portanto, pensado =, aquilo-que-nao-€ afasta-se, por definicdo, de qualquer formulagao linguistica e intelectual. E impossivel pensar 0 na- da, No cotidiano, usamos o verbo ser de modo im- proprio e acabamos por atribuir realidade a con- digbes de auséncia, a coisas que ndo existem: a es- cutidao eo silencio, por exemplo, so condicdes de nao ser da luz e do som, portanto, pela légica, nao existem. Somente o ser pode ser pensado. pensar: / um diz 29 ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA ___ PARMENIDES E ZENAO Ondo ser é uma noa0 contraditéria em si mesma. que € € que nao € possivel que nao seja, / é a vereda da Persua- sao (porque acompanha a Verdade); 0 outro diz que nao é e que € preciso que nao seja, / eu te digo que esta € uma vereda em que nada se pode aprender. De fato, nao poderias conhecer 0 que no é, porque tal ndo € fativel, / nem poderias expressi-lo... ; PARMBNIDES E ZENAO O ser 6 uma esfera bem redonda 14 12 Homens com duas cabegas O PROBLEMA O devir € pensavel? ATESE Todas as vezes em que afirmamos uma ne- gacio, ou seja, a existencia de uma condicao de indo ser, incorremos em um erro légico. Por isso 0 devir, que Herdclito colocava como fundamento de toda realidade, nao existe. Como passagem de uma condigao de’ser a uma de nao ser, toda mu- tacdo, qualquer que seja a sua espécie, € sempre pura aparéncia: a verdadeira estrutura do mundo consiste em um ser imutavel e eterno. OPROBLEMA Fm que consiste a realidade? Qual de nao existéncia ao de existéncia), a morte (pe- €0 seu fundamento tiltimo? ATESE Os atributos do ser nao podem ser en- contrados por via experimental ou sensorial, mas deduzidos com coeréncia l6gica do préprio con- ceito de ser. Isso significa que € imposstvel que existam todos os modos em que se explicao nao ser: 0 nascimento (como passagem de um estado Jo motivo inverso), o movimento (como passa- gem do estar em um lugar a no mais estar) € wo- das as formas de devir. O que € serd, portanto, por definicao, eterno, imperectvel, homogeneo. So teses contrarias ao senso comum, que suge- rem a evidencia do devir, mas conduzidas com igor logico formalmente incontestavel Os homens que usam tanto 0 verbo ser quanto o no ser acabam por raciocinar com duas cabecas. ‘Afar a existéncia do no ser leva 2 paradoxos insolives, 2B e E necessario dizer e pensar que o ser €: de fato, o ser 6, /0 nada nao é: te exorto a que consideres isso. / E, portanto, des- se caminho de busca te conservo distante, / mas, depois, tam- bem daquele sobre o qual os mortais que nada sabem seguem vagando, homens de duas cabecas: / de fato, é a incerteza que ao seu peito conduz uma desatinada mente. Estes so arrastados, / surdos e cegos a0 mesmo tempo, estu- pefatos, raca de homens sem juizo, / para os quais ser e nao ser sao considerados a mesma coisa/e a ndo-mesma-coisa; €, por- tanto, para todas as coisas, ha um caminho que ¢ reverstvel. 0 olho que nao vé OPROBLEMA Real € 0 que € constatavel pelos sen- Lidos ou o que € demonsiravel pela razio? ATESE Os cinco sentidos parecem testemunhar a todo momento a existencia de muitas formas do devir: 0 movimento dos corpos, por exemplo, pa- rece uma passagem de uma condicao de estar (em cum lugar) a uma de nao-estar-mais. Cada trans- formacao natural parece poder ser descrita coma a passagem de um estado a outro; como, por exemplo, negar que a morte € um devir? Tudo is- 0, segundo Parménides, ndo demonstra absoluta- mente a existéncia do movimento e da morte, mas somente que os sentidos enganam. E verdade que a vida cotidiana requer © uso dos 6rgaos dos sen- tidos, mas por meios deles nao se chega a verda- de. A razio, nao o olho, vé o real. ‘Neo jugues a outrina do sercom | @ Mas afastes desse caminho de busca o teu pensamento, /nem base em sensacdo, mes, sim, con | 0 habito, nascido de muitas experi€ncias, a esse caminho te base na égiesracioral. | obrigues / a mover o olho que nao vé, o ouvide que ribomba ea lingua, mas julgues com a razio a prova muito debatida / que por mim te foi fornecida. / E permanecas falando somen- te sobre 0 caminho / que diz 0 que é. ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA 30 ¢ Nao era uma vez, nem sera, porque € agora, ao mesmo tem- po,/uno, continuo. Que origem poderas dele encontrar? / Co- mo e de onde teria nascido? Do nao ser nao te concedo dize- -lo ou pensa-lo, / porque no € possivel dizer nem pensar 0 que nao ¢. Que necessidade te constrangeria a nascer, / depois ou an- tes, se derivasses do nada? / Por isso € necessirio que sejas por inteiro, ou que nao sejas por nada. E tampouco do ser se originara a forca de uma certeza que nasca de algo que esteja ao lado de uma outra coisa, / Por essa razio nem 6 nascer nem o perecer concedem a ele a Justica, /li- yrando-o das cadeias, mas prendendo-o fortemente. / A decisao quanto a tais coisas reside nisto: ¢ ou ndo é. / Decidiu-se, por- tanto, como € necessario, / que um caminho deve ser abando- nado, por ser impensavel e inexprimivel, porque nao € 0 cami- nho da verdade /e que, no entanto, 0 outro é, e ¢ verdadeiro. E como o ser poderia existir no futuro? E como poderia ter nascido? / De fato, se nasceu, nao é; € tampouco é, se devera ser no futuro. / Assim, 0 nascimento se apaga e a morte per- manece ignorada. E tampouco € divisivel, porque € inteiramente igual; / nem existe em algum Ingar um de mais que possa lhe impedir de ser unido / nem um de menos, mas todo inteiro esta pleno de ser. /Portanto, € continuamente todo intei to, se estreita com o ser. o ser, de fa- Mas imével, dentro dos limites de potentes liames, é sem um principio e sem um fim, / pois nascimento e morte foram ex- pulsos para longe ¢ os repeliu uma verdadeira certeza. /E per- manecendo identico € no idéntico, em si mesmo jaz, / e deste modo |é se mantém, firme. De fato, Necessidade inflexivel o mantém nos liames do li- mite, que o estreita todo em volta, / pois esta estabelecido que © ser ndo seja sem complemento: / de fato, nao carece de na- da; se, no entanto, o fosse, careceria de tudo... Osser é eterno. ser ndo pode ser gerado de um nao ser. do existe uma terceira possibildade: o ser & ou ndo & O:ser no pod estar submetido ao devir. 0 ser ¢ indie, no pode ser decomposto em partes. O ser é sempre id€ntico a si mesmo. Ao ser nada pode falta; deve, portanto, ser perfeito 31 ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA Todas as palevres que indicam uma condigdo de ndo ser so falas Acesfera ¢idéntica em cada uma das suas partes; possui perfeigéo, ‘homageneidade, unidade. E a ‘melhor imager do ser. Zenao. PARMENIDES E ZENAO De fato, nada € ou sera outra coisa além do ser, / pois a Sorte © obrigou a ser uno, inteiro e imével. / Por isso, serdo nomes todas aquelas coisas que os mortais definiram, convencidos de que fossem verdadeiras: / nascer e perecer, ser € nao ser, / tro- car de lugar € mudar a luminosa cor. Alem disso, posto que tem um limite extremo, est comple- to em cada parte, / semelhante a massa de bem redonda esfe- ra,/a partir do centro, igual em cada parte: de fato, nao deve ser maior / nem menor, de um lado ou de outro. Nem, de fato, existe um nao ser que The possa impedir de alcancar o igual, / nem é pos- sivel que o ser seja do ser mais de uma parte e menos da ou- tra, pois € um todo inviokivel./ De fato, igual em cada parte, de modo igual se mantém en- tre os seus limites O paradoxo de Zenao 0 movimento nao existe O PROBLEMA E possfvel demonstrar com argu- tama existéncia do nao ser. Por meio de raciocini- mentagoes racionais a verdade da dontrina de Par- menides, segundo a qual somente 0 ser existe? E posstvel demonsirar a existéncia do nao ser? ATESE Zenao nao tenta demonstrar diretamente a tese do mestre, mas sutilmente limita-se a refutar as teses dos opesitores, ou seja, aqueles que susten- 05 que provocam dor de eaheca (segundo a defini- ‘cao de Aristoteles, cujo testemunho foi extraido da obra Fisica), demonstra que afirmar a realidad de qualquer manifestacao do nao ser (o movimento, a translacao dos corpos,a multiplicidade, a velocida de) leva a conclusoes ainda mais paradoxais. Para realizar um movimento & preciso competar a metade dele, depois a metade da metade e ir subdividndo,sucessvamente sem jamais conclu Aguiles jamais akancard a tartaruga, porque antes faré a metade do ‘percurso, depois a metade da metade, depois a metade da metade, 20 infnto. © 1) A argumentacio da dicotomia (divisao). A primeira das argumentages sustenta a inexisténcia do movimento, pelo motivo de que o movido deve chegar primei- ro a metade, € nao ao final... Motivo pelo qual a argumentacao assume que no se pode percorrer elementos espaciais infini- tos ou tocar, na translacao, um a um, infinitos elementos es- paciais, em um tempo determinado 2) O paradoxo do veloz Aquiles. Esta argumentacdo sustenta que o mais lento nao sera jamais alcancado, na sua corrida, pelo mais veloz. De fato, € preciso que aquele que segue ao encalco chegue primeiro ao lugar de onde partiu aquele que foge, de modo que necessariamente 0 mais lento tera sempre uma certa vantagem. ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA 32 PARMENIDES E ZENAO | 3) O movimento nao ¢ real O raciocinio de Zenao, assumindo que tudo aquilo que ocu- pa um espaco igual a si mesmo ou se move ou esta parado, e que nada se move em um instante e que o movido sempre ocu- pa um espaco igual a si mesmo em todos os instantes, parece que se processa da seguinte forma: a flecha que se move, e que em cada instante ocupa um espaco igual a si mesma, nao se move, posto que nada se move em um instante; mas o que nao se move esta parado, posta que tudo au se move on esta parado; entao, a flecha que se move, enquanto se move, estd parada durante todo o tempo da translacao. 4) Esta argumentacao nega a multiplicidade, sustentando que se os entes sao muitos € necessdrio que sejam tantos quantos sao e nao a mais nem a menos. F se sao tantos quan- tos sdo, serao limitados, finitos. Mas se os entes so muitos, sao também infinitos: de fato, entre os entes sempre existem Se fotogrefarmas a leche ‘em cada instante do seu movimento, obteremas uma Série de instanténeas em que a flecha aparece parade, Mas um movimento néo pode nascer da soma de tantos ‘momentos de repouso. Se as coisas so multiplices, entéo deveriam ser tanto finitas (uma (quentidede determinada) quanto infiitas, porque separadas umas das outras por outras coisas (as outros, € entre esses, novamente outros. E, desse modo, os quais precisariam de outras cosas, entes sao infinitos, para resutarem segaredas) 33 AANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA DeEMOCRITO Democrito cerca de 460-360 a.C. (Caubesattios apenas duzentos curtos fragmentos dos escritos de Demécrito, mas isso basta para provar que foi um dos pensadores mais versateis da historia — a partir dos titulos de suas obras (cerca de setenta), nota-se o seu interesse por musi- ca, matematica, astronomia, geometria, geografia, meteorologia, histéria, linguis- tica ea arte da guerra, além da filosofia, naturalmente. Com efeito, é mais facil ci- tar as duas wnicas disciplinas que negli- genciou: politica e religiao. A amplitude desse programa de investigacao levou o fi- losofo a realizar numerosas viagens ao Egi- to e a Pérsia, talvez até mesmo a Etidpia e a India. Com certeza também esteve em Atenas, mas € igualmente certo que a sua presenca passou despercebida. Aristoteles e o médico Hipécrates citaram-no varias vezes, mas Platao, seu contemporaneo, ja- Drenden, redraiata por A. Coypel esi i i 1722). A expressao brincalhona dessa obra de mais falou a seu respeito 5 5 imaginagdo corresponde a imagem tradicional Democrito conseguiu combinar 0 inte- de Demécrito, filésofo ateu e materialista. resse enciclopédico a um excelente nivel de informacao, demonstrando estar sempre atualizado no campo cientifico e ser sensivel as instancias culturais da sua época. A propria concepcao atomis- ta —o fruto mais conhecido do seu pensamento — deve ser vista no quadro do desafio tedrico lancado por Parménides e Zenao. De fato, justamente para re- solver os paradoxos derivados da hipétese de uma divisibilidade infinita do espaco, De- mécrito chegou a elaboracdo da nocdo de dtomo: a particula minima, o material in- divisivel e invisivel do qual ¢ formada a realidade. Estabelecida a existéncia do atomo, era preciso, em seguida, explicar 0 mundo a luz da nova hipétese. Se os Atomos podem movimentar-se — premissa que deve ser levada em conside- ragao quando desejamos explicar a morte (separacdo de dtomos), a compaci- dade dos corpos (agregacao de 4tomos), o seu devir (recombinacao de 4tomos) e uma quantidade heterogénea de outros fendmenos (a percepgao visual, as leis da mecAnica) —, devemos admitir a existéncia de um espaco livre, vazio de matéria: 0 pleno e total ser do atomo contrapde-se ao nao ser do vazio. Os trechos aqui apresentados foram extraidos da antologia Demécrito, Testemunhos ¢ Frag- mentos, da editora italiana Laterza. ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA 34 feita de 4tomos A alma também é 16 OPROBLEMA E: possfvel subdividir uma porgao de es- paco fisico ou um objeto material qualquer ao infinito, em partes cada vez menores? Ou existe um limite tlti- mo? ATESE Demécrto chegou elaboracio da hipdvese ato- ‘mica tentando resolver os paradoxos postos por Parme- rides (ver item 15). Encontron a solnicio ao negar que, aa matéria do mundo fsico, valesse a mesma divisi- bilidade infinta de que gozam os clementos matemati- os. Pode-se subdividirm miimero ao infinito, mas par tindo-se de uma particula de matéria progressivamente chega-se a um minimo indivistvel (¢ invisivel): 0 tomo, expressio grega que significa, literalmente, sem divisao Otomo, identificado dessa forma, toma-se,comDemé- tito, o elemento basico para uma Sie de complexas es- peculagées: a sua existéncia pressupoe, antes de tudo, o vazio (no qual as atomos possam movimentar-se), im- plica tambem na homogeneidade estrutural do universo = formado por combinagées diversas clos mesmos ito- ose sugere a existéncia de infnitos mundes. © Princtpios de todas as coisas sto os étomos ¢ 0 vazio. Todo © resto € opiniao subjetiva. Existem infinitos mundos, os quais sao gerados ¢ corrupti- veis; nada vem do nao ser, nada pode perecer e se dissolver no nao ser. Os atoms sao infinitos sob 0 aspecto da grandeza e do mi- mero, Eles se movimentam no universo girando em yortice e, desse modo, geram todos os compostos: fogo, agua, ar, terra Porque também os compostos (fogo, agua, ar, terra) sao conjuntos de certos étomos em particullar, os quais, no entan- to, nao sao decomponiveis nem alteraveis, exatamente pela sua solidez. O Sol e a Lua também sao compostos por tais étomos, ou seja, por aqueles lisos e redondos; ¢ igualmente a alma, que forma uma unidade com o intelecto. Tudo se produz conforme a necessidade, porque a causa da formacao de todas as coisas € esse movimento em vortice que ele denomina exatamente necessidade. DETERMINISMO Consiste na conviccéo de que todos os fendmenos, tanto os na- turais quanto os psiquicos, estao ligados entre si por conexGes ne- cessarias e dependentes da lei de causa-efeito, excluindo qualquer explicacdo que introduza as nocées de acaso. Segundo os deterministas, conhecendo com precisdo qualquer proceso em curso, é sempre Possivel prever, com igual precisdo, os seus re~ sultados. Apés ter sido enunciada pela primei- ra vez por Democrito, a posicao determinista ressurgiu com grande forca no século XVII, du- rante a denominada Revolucéo Cientifica, e no século XIX, com 0 pensamento positivista ‘Néo ha senéo atomos e vazio, ‘Qs mundos sao infinitos. Um vértce césmico seleciona os ‘tomas segundo a grandeza, originando os quatro elementos. Todas as coisas séo combinacées de tomas. Também a alma e os compos celestes so ccombinacdes de étomos. A diferente combinagdo de étomos expla todos os fendmenos. Um outro retrato imagindrio de Democrito. 35 ‘ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA de das proprias coisas? Nao ha senado atomos e vazio O PROBLEMA Se cada coisa ¢ constitufda por uma combinando-se entre si, formar um numero in- agregacao de atomos, como se explicaadiversida-_finito de palavras. Entre os dtomos existem ape- nas diferengas quantitativas (grandeza, forma ATESE Para responder a essa objecao é sufici- _ geométrica) e, portanto, a diversidade qualitati- ente, segundo Demécrito, pensar como as pou- va das coisas (aparente) explica-se pelo grande cas letras que compdem um alfabeto podem, —mimero de combinacoes possiveis As qualidades sensiveis | © Opinio é a cor, opiniao é o doce, opiniao € o amargo, ver- séoaparentes. | dade sao os atomos € 0 vazio, diz Demécrito, considerando que todas as qualidades sensiveis, que ele supoe relativas a nés, das quais temos as sensacdes, decorrem da variada combinacio dos atomos, mas que, por natureza, nao existem absolutamen- te branco, preto, amarelo, vermelho, doce, amargo... ‘Néo ha sengo dtomose vazio, | Os homens acreditam que o branco e 0 preto, o doce e 0 portanto, as percepcdes também amargo, ¢ todas as outras qualidades do género, sao algo de 0 combinacoes de étomos. | real, quando na verdade s6 0 que existe é 0 ente eo nada — De- mécrito também usava esses outros termos, chamando os ato- mos de entes e o vazio de nada. O.atomo nao tem qualidades | Todos os dtomos, sendo corpos mimisculos, nao possuem sensivels, perceptieis somente | qualidades sensiveis, ¢ 0 vazio € um espaco em que tais corpiis- nos compostos. | culos se movimentam para cima e para baixo eternamente ou se entrelacando de diversas maneiras ou se chocando e ricoche- teando, de modo a irem se desagregando e se agregando em tais compostos; , desta forma, produzem todas as outras maiores agregacDes e 0s nossos corpos ¢ as suas afeicdes ¢ sensacoes. 0 étomo jamais sofre qualquer too | — Supdem, também, que os corpos primeiros sao inalteraveis de modifcacéo. | (alguns dentre os atomistas, mais precisamente os seguidores de Epicuro, porque acreditam que sejam infrangtveis pela sua dureza; outros, os seguidores de Leucipo, porque indivistveis pela sua pequenez), ou melhor, que tampouco sofrem (por meio de alguma forca externa) as modificacbes as quais todos os homens (que extraem a sua ciéncia das sensacdes) acredi- tam que eles estdo sujeitos. O dtomo néo sente os efeitos do Nenhum atomo pode aquecer-se ou resfriar-se, ressecar-se ambiente em que se encontra. | ou umedecer-se, tornar-se branco ow preto ou receber outras qualidades por qualquer modificacdo que se queira. ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA 36 Como os homens inventaram a linguagem OPROBLEMA Existe correspondéncia entre as pa~ indica o mesmo objeto, Pela primeira vez na his lavras e as coisas? A linguagem tem origem natu- _t6ria, coloca-se a tese do convencionalismo linguis- ral ou convencional? 18 tico (ver item 115); as palavras ndo possuem, em ATESE Contrariando a opinido dominante no si, como som, nenhum significado; sto puras con- mundo antigo, Demécrito afirma que as palavras —_vengdes que adquirem sentido somente pelo uso sfo estranhas as coisas que representam e s4o si-_ comum com base no critério de utilidade recipro- nais puramente convencionais. De fato, nas diver- ca, (Para uma resposta diferente ao mesmo pro- sas linguas empregam-se nomes diferentes para _blema ver item 130.) © Os homens das geracées primitivas, levando uma vida sem leis, semelhante a vida das feras, saiam para os pastos, disper- 30s, colhendo a erva que era mais agradavel ao paladar e os fra- tos que as arvores produziam. Eram continuamente agredidos pelas feras; a utilidade ensinou-os a ajudarem-se mutuamente; e, reunindo-se em sociedade sob o impulso do temor, comeca~ ram pouco a pouco a reconhecer-se pelo aspecto. Enquanto antes pronunciavam palavras desarticuladas € desprovidas de significado, aos poucos passaram a articular as, palavras, estabelecendo entre si expressoes convencionais pa- ra designar cada objeto. Mas posto que tais agrupamentos de homens se formaram em todas as regides habitadas da Terra, nao pode existir uma lingua de igual som para todos, pois cada um daqueles grupos combinou os vocabulos ao acaso: eis porque s4o variadissimas as caracteristicas das linguas e porque os primeiros grupos de- ram origem as diversas nacoes. Aqueles primeiros homens, portanto, viviam em meio a di- ficuldades, porque nada ainda se encontrara de tudo quanto € util 4 vida: eram desprovidos de qualquer vestimenta, nao estavam acostumados a ter uma habitacao e a usar 0 fogo, além de desconhecer totalmente alimento que nao fosse sel- vagem... Nao faziam qualquer provisao de frutos para a eventualidade de que estes viessem a faltar, motivo pelo qual, durante o inverno, muitos deles morriam, fosse de frio, fosse por falta de alimento. Mas nao tardou muito ¢ eles, instruidos pela experiencia, se refugiaram nas cavernas durante 0 inverno ¢ guardaram aqueles frutos que eram proprios para serem conservados. Conhecidos depois o fogo ¢ as outras coisas titeis a vida, en- contraram pouco mais tarde também as artes e todos os meios que podem trazer beneficio a vida em sociedade. Assim, 0 uso em si foi mestre de todas as coisas para os homens, tornando familiar o aprendizado de cada habilidade a estes seres bem- -dotados e que t@m as maos, a razio e a versatilidade da men- te como colaboradores para todas as eventualidades. O temor e a utildade reciproca fizeram nascer a sociedad A natureza des palavras 6 ppuramente convencional Dado que o ser humano no se arigina de um tnico tronco, no existe uma lingua universal A invengéo da linguagem favoreceu o nascimento das tenicase portant, da cilia. Todos 0s conhecimentos foram aprendidos por meio da experiénca, A intelgéncia reside fanto nas mos quanto na cabera. 37 ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA Como a vida nasceu do vortice atémico OPROBLEMA A hipotese atomista explica a estru- tura dos corpos, mas pode explicar tambem a sua origem? O que leva os atomos a se agregarem pa- ra formar compostos estaveis? ATESE Para responder a essas perguntas, Dem6- ctito formulou a teoria dos vortices, que obteria um grande sucesso no meio cientifico: a agrega- Gao dos étomos em corpos solidos e compactos deve-se a fendmenos puramente mecénicos, par- ticularmente a forca centripeta agregadora desen- volvida pelo movimento em vértice. Antes de tu- do, Demécrito tinha interesse em trazer a luz a afirmacao de que o nascimento da vida depende de processos automaticos (putrefacao, fermenta- G30), os quais ndo requerem a intervencao de qualquer inteligéncia divina. No cao iia ndo exstiam corpas diferenciados O diferente peso dos étomos produziu uma primeira separacdo. 05 corpos celestesformaram-se em consequéncia de um movimento em vortice. O nascimento da vido expla Se com processos de putrefacdo e fermentacao. ‘A.agéo do calor e do fio explica @ evolucdo dos processos vitas. As diferencas entre os animais: dependem da estrutura atémica, © Na primitiva comunhao de todas as coisas, 0 céu ea terra ti- nham um tinico aspecto, sendo misturada a sua matéria. Em seguida, separando-se os corpos uns dos outros, o mun- do foi assumindo todo esse ordenamento que nele se ve: 0 ar recebeu um movimento ininterrupto e a sua porgdo fgnea re- colheu-se as regides mais altas da atmosfera, pois essa matéria tendia para o alto devido a sua leveza, Por essa razao, 0 Sol ¢ a multidao de astros foram apanha- dos no vortice geral; a parte lamacenta e turva, com mescla de elementos umidos, depositou-se inteiramente em um lugar gracas a seu peso e, girando e volvendo-se continuamente so- bre si mesma, com 0 elemento liquido formou o mar. Com as partes mais s6lidas, formou a terra, lamacenta e mole. Eaterra, inicialmente sob o ardor do fogo solar, tomou consistén- cia, em seguida, o calor provocou fermentagées em sua superficie: em muitos lugares, as partes umidas incharam, produzindo-se em tomo delas putrefacdes envolias em sutis membranas, Isso pode ser observado ainda hoje nos charcos e pantanos: depois que essas re- gives se resfriam, o ar torna-se imediatamente escaldante, em vez de aquecer-se gracualmente E posto que aquelas partes umidas produziam embrides (pe- la elevacdo do calor) do modo que foi dito, esses embrioes re- cebiam alimento da neblina que descia da atmosfera a noite € se consolidavam com 0 calor do Sol durante o dia; enfim, medida que esses fetos tao fechados completavam 0 seu cres- cimento ¢ as membranas dissecadas se dilaceravam, vinham a luz as variadissimas espécies de animais. Dentre esses, aqueles que possuiam mais calor se alcaram nas regides do ar, tornando-se volateis; aqueles que tinham. uma constitui¢ao terrosa foram incluidos na ordem dos rép- teis e de outros animais terrestres; aqueles que alcancaram caracteristica particularmente tmida voltaram-se para o ele- mento proprio de sua natureza e foram denominados aqua- ticos. A terra, que se tornara cada vez mais dura pela acao do calor solar e dos ventos, nao teve mais condicoes de pro- ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA 38 duzir nenhum dos animais maiores, mas cada uma das es- pecies dos que estavam vivos comecou a se propagar pela muitua unido dos proprios seres. MATERIAL a Ea convicco de que todos os fendmenos, inclusive aqueles espi- rituais e psiquicos, sao resultado final de processos materiais mecénicos. Os materialistas negam a existéncia da alma e das substancias espirituais, reconhecendo somente a existéncia das substancias corporeas. Apesar de o termo ter sido cunhado no sé culo XVII, adapta-se bem doutrina de Demécrito, segundo a qual também a alma, o pensamento e até mesmo os deuses 40 compostos de atomos materiais. 39 ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA Os vortices atomicos numa ilustracao do século XVI. Os SOFISTAS Os sofistas: Protagoras e Gorgias m meados do século V, em Atenas, um grupo de intelectuais escandalizou 0s filésofos da €poca ao fazer do saber uma profissdo, oferecendo aulas de re- torica e de eloquéncia aos jovens da classe dirigente que pretendiam dedicar- -se A carreira politica, Esse grupo era chamado de sofista, do grego sophistés, que significa sabio. Como os atenienses de boa condicao social achavam in- decoroso pagar para serem servidos, os sofistas foram tratados com desprezo [haw O sofista, em uma pintura do século XIX. O relativismo cognitivo sustentado pelos sofistas, segundo 0 nao existe nenhuma verdade absoluta, mas somente um Shou entre opinides diferentes, acabou por ont rie do a lade de conferir wna importancia extraordindria a retorica, a arte do discurso e da persuasao, a capaci vencer toda polémica, alem até mesmo da intrinseca justeza das proprias razoes. ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA 40 Os SOFISTAS pela elite intelectual. De fato, eram todos metecos— ou seja, estrangeiros —, ex- cluidos, portanto, da vida politica e dos direitos derivados da posse da cida- dania. Obrigados pela sua profissao a deslocar-se continuamente de cidade em cidade, contribuiram enormemente para que a cultura grega nao se mantives- se nos limites das provincias e afirmaram, pela primeira vez, 0 principio do cosmopolitismo. A importancia do movimento sofista na histéria do pensamento nao pode ser subestimada. Seus fundadores foram os primeiros a colocar os problemas do homem no centro da reflexao filos6fica, antecipando assim a iminente re- volucao socratica; também forjaram o fundamental conceito de cultura - ou seja, da formacao integral do individuo no quadro da sociedade a qual perten- cia — e passaram a utilizar a razdo com tal desembarago que mereceram, na posteridade, o epiteto de iluministas gregos. PROTAGORAS Protagoras, o mais conhecido dos sofistas, nasceu em Abdera, em 483 a.C. O apreco que mereceu dos contemporaneos é testemunhado pela amizade pes- soal de Péricles e pela incumbéncia de escrever as leis para a colonia de Turi, fundada em 480. Esse prestigio social, todavia, nao o poupou de grandes pro- blemas com a justiga ateniense: apés ter escrito que nao se pode afirmar que os deuses existem nem que nao existem, foi acusado de sacrilégio, condena- do e banido de Atenas, e as suas obras foram queimadas na praga da cidade. Morreu em 410 a.C., em um naufragio, durante a fuga para a Sicilia. GORGIAS Nascido por volta de 485 a.C., em Leontinos, na Sicilia, Gorgias viveu quase 108 anos com perfeita satide. Sua vida foi marcada por sucessos e reveses: viajou por toda a Grécia, exercendo com grande sucesso a arte da retorica; acumulou uma vasta fortuna; e conduziu a formacao de numerosos seguidores. Era acompanha- do da merecida fama de dialético, capaz de cogitar raciocinios irrefutaveis para sustentar opinides muito distantes do bom-senso e dos valores comuns — por exemplo, a de que nada existe, a sua tese mais célebre, ou, ent4o, que Helena, a achiltera responsavel pela guerra de Troia, nao era culpada. 44 ANTOLOGIA TLUSTRADA DE FILOSOFIA O PROBLEMA Existe uma verdade ndo opinavel? No que consiste 0 conhecimento humano? ATESE A experiéncia individual € 0 unico critério real da verdade. Nao existem leis eternas e verda- des objetivas, somente opinises. Mas a relatividade de tado juizo nao deve levar ao derrotismo: o livre choque de opinies (dialética) seleciona sempre a melhor solucao, a mais util, Por isso, mesmo nao existindo qualquer verdade, a tarefa educativa do filésofo permanece essencial ~ € significative que Platdo respeitasse Protagoras a ponto de dedicar- -lhe um dos seus didlogos. Como todos os sofistas, Protigoras sustentava a inexisténcia de uma verda” O homem é a medida de todas as coisas de objetiva valida, mas afirmava também a neces- sidade do estudo e da educacao, na medida em que, se nao existem proposicdes verdadeiras em absolu- to, deve-se saber diferenciar entre as opinises me- lhores ¢ piores, mais ou menos tteis ao individuo e Asociedade. A tarefa do sofista abrange, portanto, também um aspecto construtivo e socialmente le- cundo ao encaminhar os cidadéos para os valores e as opcdes mais adequadas a uma determinada situ- agdo, O testemunho, extraido de Teeteto, de Platao, € uma apologia — ou seja, tenta exprimir os discur- 0s que Protiigoras, se ainda estivesse vivo, faria as objegoes de Séerates. (No existe um crtério de jutzo objetivo: tod verdade é verdade ‘para um sujeito, Todas as sensagdes sf0, subjetivas. Cada individic ppercebe o mundo & sua maneit Ensinar, portanto, significa néo buscar uma impossivel verdad, ‘mas predspor o interlocutor a ‘melhorar os seus concetos. O diferente sabor que os ‘ndvidios encontram nos alimentos & uma prova do subjetivsmo perceptive e ‘no pode consttir critéro de sabedoria, | sSOCRATES Protagoras afirma que a medida de todas as coi- sas € 0 homem: daquelas coisas que sao, pelo que sao, daque- las que nao sao, pelo que nao sao, entendendo por medida a norma de juizo € por coisas os fatos em geral. Logo, o homem. € a norma que julga todos 0s fatos: daqueles que sao pelo que sao, daqueles que nao sao pelo que nao sao. Por isso, ele admi- te somente aquilo que parece a cada individuo, introduzindo, dessa forma, 0 principio de relatividade. Segundo ele, portan to, quem julga as coisas € 0 homem. De fato, tudo 0 que pare- ce aos homens também é; ¢ o que nao parece a nenhum homem tampouco PROTAGORAS Eu afirmo, sim, que a verdade é mesmo co- jue cada um de nés é a medida das coisas que sio € que nao sao; mas existe uma diferenca infinita entre homem ¢ homem, exatamente por isso as coisas parecem e sto de um jeito para uma pessoa e, de outro jeito, para outra pessoa, Fstou longe de negar que existam a sabedoria e o homem sé- bio, ou, antes, que chamo sabio aquele que, transmudando aquilo que em certas coisas parece e € ruim, consegue fazer com que essas mesmas coisas parecam e sejam boas. E tu nao combatas o meu raciocinio se detendo em palavras, mas vé de entender assim, cada vez mais claramente, o que quero dizer. Lembras aquilo que ja dissemos antes? Para alguém que estd doente, os alimentos parecem e sao amargos; 20 contra- rio, para alguém que esta bem, eles sdo e parecem agradaveis, Mas nao € licito inferir disso que entre esses dois um é mais sabio que o outro (porque nao € possivel) e tampouco se de- ve dizer que 0 doente, por ter tal opiniao, € ignorante e que o sao € sabio, por ter opinido contraria, mas sim que é preciso mudar de um estado para outro, porque 0 estado de satide & melhor, E assim, também na educacdo € preciso mudar o ho- mem de um habito pior para um habito melhor. ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA 42 Ora, nessas mudangas, 0 sofista utiliza os discursos como 0 | Osébio & como um médico: deve médico usa os medicamentos. Mas ninguém jamais induziu quem quer que seja a ter opinides falsas ¢ a ter opinides ver- dadeiras; nem € possivel, com efeito, que alguém pense coisas que, segundo ele, nao existem ou coisas estranhas aquelas s0- bre as quais ele tenha, naquele momento, uma dada impres- sao, porque estas sto verdadeiras somente para ele, a cada vez. Pois bem, aquele que por um estado de animo inferior tem opinides conformes a natureza do seu animo, pode, creio eu, ser induzido por um animo superior a ter opinides diversas, con- formes a esse Animo superior: sao exatamente aquelas fantasias que alguns, por ignorancia, definem verdadeiras, mas digo que sdo simplesmente melhores: nenhuma € mais verdadeira, E quanto aos sabios, amigo Socrates, eu estou bem longe de considera-los batraquios. Quando cuidam dos corpos, eu os chamo médicos; quando cuidam das plantas, agricultores. E digo que esses agricultores introduzem nas plantas, quando al- guma adoece, sensacdes boas e salutares, nao somente verda- deiras, em vez de sensa¢des ruins; e os sabios e bons oradores fazem com que pareca justo as cidades o bem em vez do mal. ene prescrever a receita mais adequada 29 interlocutor. Deve curar as almas como o médico cura 0 corpo. Ecomo um agricultor: interwém conforme a necessidade. Protdgoras em uma historia em quadrinhos contemporanea. 43 ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA, 0:seu trabalho & importante: deve ‘ser bem pago e levedo em justa consideracdo por Stcrates Ado se pode mudar a opiniéo dhs indlvluos, mas elver a sue educacéo as prelspée a julzos mehhores, Os SOFISTAS Com efeito, o que para uma determinada cidade parece jus- to e belo de fato assim o € enquanto ela considerar e admitir que ¢ justo e belo: mas € sabio o homem que substitui cada coisa que parega md aos cidadaos por outras coisas que sejam € parecam boas. Pelo mesmo motivo, também o sofista, que € capaz de educar desse modo os seus alunos, é homem sabio e merece ser pago por esses altos com muito dinheiro Eassim, alguns sao mais sabios que outros, ¢ ninguém tem opi- nides falsas; e deves te resignar, querendo ou nao, a ser a medida das coisas. E nisso, como foi dito, que se fundamenta a firmeza da minha doutrina, a qual, se quiseres novamente contradizer, con- tradigas, opondo a ela uma argumentagao ininterrupta; e depois, se te agradares valer-te de perguntas, entao pergunta; porque cer- tamente este modo nao deve ser evitado, mas antes ser preferido a qualquer outro, por quem tem jutzo. FENOMENISMO Em filosofia, o termo fenémeno indica o que é aparente em uma coisa, em contraposi¢éo ao que ela é em si mesma. Chama-se de fenomenismno @ ideia de que o conhecimento humano jamais po- de levar em consideracao a realidad de modo absoluto ¢ objetivo, mas somente perceber as suas aparéncias — ou soja, exatamente os fenémenos. Os sofistas lancaram a doutrina fenomenista, conferin- doa esta um forte significado subjetivista, relativista e céptico: nao existem verdades e tampouco afirmac6es universais, tudo depen- de do sujeito e da situacao em que ele se encontra. RELATIVISMO Teoria segundo a qual nao existem verdades absolutes, porque qualquer afirmacao que se queira é sempre relativa a um ponto de vista pessoal, a sociedade a que pertence, ao modo de pensar tipi- co da espécie humana. As consideraces relativistas de Protégoras e dos sofistas pareciam encontrar confirmacéo na diversidade dos usos e costumes dos diferentes povos. RETORICA Os sofistas descobriram que o légos pode ser usado também para mentir, para seduzir e impressionar favoravelrnente os ouvintes. Por- tanto, a linguagem néo é simplesmente o espelho da realidade, co- mo supés Parmeénides (ver item 11), mas um meio pelo qual os ho- mens estabelecem as posicbes reciprocas de poder. Quem pensa possuir a verdade pode buscar argumentos convincentes, fundados na evidéncia de raciocinias resolutivos; quem, a0 contrario, nd pos- sui a verdade, empregara argumentos persuasivos, validos somente para um auditério particular, nem sempre baseados na logica, mas tocantes — ou seja, dirigidos 20 coragao, &s emocées. Frequente- mente, 0 segundo método obtém maior sucesso que o primeiro. ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA 44 Os SOFISTAS Nada existe, e mesmo 21 que existisse... OPROBLEMA Pensamento ¢ linguagem podem resol- ver a distingao feita por Parménides entre ser e nao ser? (ver item 12) ATESE As tr’s teses defendidas por Gorgias estdo en- tre as mais radicais da tradicao filosofica: 1) nada exis- te; 2) sealgo existisse, nao poderia ser pensaclo; 3) se algo existisse e pudesse ser pensado, nao poderia, de qualquer maneita, ser explicado. Muito se discutiu a respeito de como deveriam ser interpretadas ideas tio distantes do senso comum: trata-se de um trecho de bravura revrica, wma espécie de brincadeira dialética capaz de assustar os ouvintes, ou Gérgias queria efeti- ‘vamente sustentar tal cepticismo cultural, metafsico € _ghesiol6gico, on seja relativo a capacidadle de pensar ¢ de conhecer? O que desconcertava 0s fildsofos de sua Epoca —e que Gorgias nao se preocupava em esconder —era que ele, pessoalmente, parecia ndo acreditar abso- Jutamente nas teses que defendia, pois era capaz, desde que solicitado, de inventar argumentos cue provavam, atese contraria, transformando o verdadeiro em falso ¢ vice-versa. Era como se cle dissesse que nao existe uma verdacle absoluta e incontrovertivel, mas somente opi- nides; nao existe nenkum légos, nenluuma explicacao definitiva e inopinavel, mas somente retérica, per- suiasio, sedugao intelectual. [ss0 nao significava 0 fim da filosofia, que mantinha a fungio funda- ‘mental de orientacdo, ajudando os homens a escolher as opinides mais titeis, mais ou menos adequadas & situagdo real, porque, em um mundo dominado nao pela raztio, mas pelo acaso, torna-se importante saber aproveitar a ocasido. O testemunho ¢ de Sex- to Empirico. » Gorgias de Leontinos pertenceu ao grupo daqueles que ex- cluem uma norma absoluta de juizo... De fato, no seu tratado Do Nao Ser, ele estabelece tres principios, um resultante do outro, Aqui estio. 1) Nada existe; 2) Mesmo que algo existisse, nao seria com- preensivel ao homem; 3) Mesmo sendo compreensivel, seria certamente incomunicavel e inexplicavel aos outros. Que nada existe, ele argumenta deste modo: admitindo-se que algo exista, existe somente 0 que € ou 0 que nao é, ou en- to existe tanto 0 que é quanto 0 que nao €, Porém, nem o que € existe, como demonstrara, nem 0 que nao €, como nos con- firmara, nem, por fim, como também nos explicard, 0 ser e 0 nao ser juntos. Portanto, nada existe. E, na verdade, o nao ser ndo €; porque, supondo que o nao ser seja, ele ao mesmo tempo sera e nao sera; pois, enquanto € concebido como ndo ser, nao sera, mas, como existe como nao existente, por sua vez existira; ora, é absolutamente absur- do que uma coisa ao mesmo tempo seja € nao seja; portanto, nao ser nao ¢. E de resto, admitindo que o nao ser seja, 0 ser nao existira mais, posto que se trata de coisas contrarias entre si; dessa forma, se do nao ser se afirma o ser, do ser se afirma- rd o ndo ser. E como o ser de modo algum pode nao ser, assim. tampouco existira o nao ser. Mas tampouco existe o ser. Porque, se o ser existe, € eterno ou criado, ou é a0 mesmo tempo eterno € criado; mas ele néo nem eterno nem criado, nem wm ¢ outro ao mesmo tempo, como demonstraremos — portanto, o ser ndo existe. Porque, se © ser € eterno, nao tem nenhum principi¢ As trés teses nillistas. Nada exist. Nao existe 0 no ser. No existe o ser. 45 ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA O poder magico das palavras 22 OPROBLEMA Pode-se persuadir um interlocutor pot meio de vias nao racionais? Para que serve a Tinguagem? Por que a lingua pode com grande fa- cilidade ser usada para mentir? ATESE Gorgias responde a essas perguntas por meio da andlise de um caso bem conhecido na an- tiga Grecia: a traicéo conjugal de Helena, motivo desencadeador da Guerra de Troia. Utilizando um tom acentuadamente irdnico, Gérgias demonstra ando culpabilidade de Helena, argumentando que ela fot raptada contra a sua vontade, mas nao com violencia: teria se rendido, na verdade, ao poder das palavras de Paris, seu sedutor. Usando com destreza a linguagem, pode-se de fato produzir modificagées fisicas em quem escuta (por exem- plo, © choro e 0 rabor de vergonha) e até mesmo manipulara mente do interlocutor, aniquilar a sua vontade e seduzi-lo, Helena fo raptade pelo poder mégico das palevras. As palavras so capazes de moaitficar 0 estado psicoligico « interocutor. A poesia produz efeitos ssemelhantes 20s do encantamento. Existe uma relacao estreita entre retérica emmagia, A palavra pode enganar porque (0s homens néo possuem ‘Fepresentagdes seguras do passado e do futuro, Com palavras pode-se exercer uma verdadeira violéncia intelectual. | ¢ Se Helena foi raptada pela forca e, contra a lei, violentada ¢, contra a justica, ultrajada, € claro que a culpa é do raptor, en- quanto ultraje, como ¢ claro que a raptada, enquanto ultrajada, | sofreu uma desventura... Se foi a palavra a persuadi-la e a ilu- dir o seu anime, isso tampouco ¢ dificil desculpar e justificar. De fato, a palayra € um grande dominador que, com mintis- culo ¢ invisfvel corpo, realiza mui divinos empreendimentos, de fato, consegue acalmar 0 medo, eliminar a dor; suscitar a alegria e aumentar a piedade. E explicarei como isso se da. Porque € preciso demonstré-lo também ao juizo dos ouvin- | tes: a poesia nas suas varias formas, eu a considlero e denomino discurso com metro, ¢ quem escuta é invadido por um atrepio | de medo, por uma compaixao que arranca lagrimas, por um pungente anseio de dor, e a alma sofre, por efeito das palavras, um sofrimento que é préprio, escutando fortuna e infortinios de fatos e pessoas estrangeiras... Portanto, os inspirados encantamentos das palavras so por- tadores de alegria, libertadores do pesar. Jumtando-se, de lato, a disposicao da alma o poder do encanto, este a acalma e con. vence ¢ a arrasta com 0 seu fascinio. Por meio de fascinacao ¢ | magia foram criadas duas artes, que consistem em erros da al- ma ¢ em enganos da mente. E quantos, a quantos, tantas coisas fizeram e fazem crer, for- jando um falso discurso! E se todos tivessem, sobre todas as coisas, das passadas, lembranga, das presentes, consciéncia, das futuras, previsdo, nao teria igual eficacia o mesmo discur- so, tal como ¢ para aqueles que precisamente nao conseguem lembrar o passado nem meditar sobre o presente nem intuir 0 futuro; assim, na maior parte dos casos, a maioria oferece co- mo conselheira da alma a impressao do momento. Impressao esta que, por ser falaz e incerta, para falaz e incerto destino ar. rasta aqueles que fazem uso dela Que motivo, pois, impede de acreditar que Helena tenha si- do arrastada pelas lisonjas das palavras, ¢ nao tanto por sua ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFTA 46 oss: vontade, como se fosse raptada com violencia? Constatar- -se-ia assim o império da persuasio, o qual, mesmo sem ter a aparencia da inevitabilidade, tem, no entanto, o seu poder. De fato, um discurso que tenha persuadido uma mente constran- ge a mente que foi persuadida, a acreditar no que foi dito ea consentir no que ¢ feito. Logo, quem persuadi, ao exercer u- ma coacao, ¢ culpado; ao passo que, quem foi persuadida, sen- do constrangida pela forca da palavra, € injustamente difama- da. E como a persuasio, unida a palavra, consegue conformar como quiser a alma, deve-se aprender, em primeiro lugar, 0 raciocinio dos meteorologistas, os quais, trocando hipotese por hipotese, destruindo uma, construindo outra, fazem ver aos olhos da mente o inacreditavel e 0 inconcebivel Em se- gundo lugar, os debates oratorios de necessidade publica (po- Iiticos e judiciarios), nos quais um tnico discurso nao sugeri- do pela verdade, mas escrito com habilidade, costuma deleitar e perstiadir o grande publico. Em terceiro lugar, as escaramt- cas filosoficas, que mostram com que rapidez a inteligéncia fa- cilita a troca de convicgdes da opiniao. Existe entre o poder da palavra ¢ a disposicao da alma a mes- ma relacao existente entre a disposicdo dos remédios e a natu- reza do corpo. Como, com efeito, alguns remédios climinam do corpo certos humores, e outros, outros humores; e alguns O oraculo, (por certos cientistas, pelos advogados no tribunal e em discussbes flasofcas. poder da palavra & comparduel ao | A palaura &usada para ment dos remédlos e das crogas. 47 ANTOLOGIA TLUSTRADA DE FILOSOPIA a Os SOFISTAS interrompem a doenca, e outros, a vida. Assim também sao os | discursos: alguns produzem dor, outros, deleite, outros, me- do, outros inspiram coragem aos ouvintes, outros, enfim, com alguma persuasdo perversa, envenenam a alma e a enfeiticam. Fis explicado assim que se ela [Helena] foi persuadida pela pa- lavra nao teve culpa, mas desventura... Este Elogio de Helena deve ser Como € possivel considerar justa a desonra lancada sobre He- considerado um jogo dialético. lena ~ quer tenha agido como agiu por estar enamorada, quer porque lisonjeada pelas palavras, quer porque raptada com vi- olencia ou porque forcada por coacao divina — estando em to- dos esses casos livre de culpa? Destruf com a palavra a infamia de uma mulher, mantive-me fiel ao principio sugerido no inicio do discutso, tentei destruir a injustica de um ultraje ¢ uma opi- niao infundada. Quis escrever este discurso para que servisse & Helena como elogio e, a mim, como jogo dialético. (Extraido de Encomio di Elena ou Elogio de Helena.) ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA 48 SOCRATES i | Socrates 470-399 a.C. = inacreditavel como sabemos pouco Ea figura historica e até mesmo do pensamento efetivo daquele que € con- siderado o pai da tradicao filoséfica ocidental. O fato é que Sécrates, como Jesus € muitos outros profetas religio- sos, também decidiu nada escrever e confiar a sua mensagem aos coléquios entre individuos e a forca concreta do exemplo, tanto do modo de viver quan- to do de morrer, Se as suas ideias sobre- viveram € porque Platao, o melhor en- tre os seus discipulos, fez do mestre 0 protagonista de todas as suas obras — mas nao existe qualquer certeza de que o personagem dos di corresponda ao verdadeiro Socrates. De certo, sabemos que era filho do es- cultor Sofronisco e da parteira Fenarete, e que se casou com Xantipa, com quem teve varios filhos. Na juventude, desta- cou-se pela sua coragem na batalha de Potideia e interessou-se pelas ciéncias. Mesmo discutindo as posicoes relativis- tas e cépticas dos sofistas, foi por eles in- fluenciado, colocando decididamente o homem e os seus problemas no centro Sécrates (Museu do Louvre, Paris). Ainda que esse busio tenha sido esculpido apés sua morte, Sacrates foo primeirfildsofo a sr realiene retratadd. As imagens de todos os jildsofos pré- -socridticos sao frutos da imaginacdo. da reflexao filosdfica. Nao fundou ne- nhuma escola, mas exerceu a filosofia em praca publica, debatendo, contradi- zendo e provocando os concidadaos, como uma espécie de pregador laico Em consequéncia do papel de conscitncia critica assumido por Socrates — que se autodefinia 0 moscardo dos atenienses pela insisténcia em fazer pergun- tas embaracosas —, foi considerado por alguns atenienses como um elemento desestabilizador. Em 399, Anito e Meleto, dois concidadaos, acusaram-no de nao acreditar nos deuses e de corromper os jovens. Coerente com os préprios principios, 0 filésofo rejeitou qualquer tipo de compromisso e aceitou sem pro- testar a condena¢do a morte. Por meio da Apologia de Sécrates, escrita por Pla- tao, sabemos da serenidade com que bebeu cicuta apos uma ultima discussio com os seus discfpulos sobre o tema da imortalidade da alma. As suas ultimas palavras foram: Lembrai-vos que devemos um galo a Asclepios. 49 ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA | A importancia de saber que nao se sabe O PROBLEMA © que pode ser conhecido? E pos- sivel um conhecimento absoluto? ATESE Nao ¢ possivel conhecer alguma coisa sem reconhecer a propria ignorancia. Parece bvio, doxal; invertendo os valores do bom-senso, 0 elo- gio socrético do nao-saber provoca no interlocu- tor uma benéfica sacudida intelectual. No texto abaixo, extraido da Apologia de S rates, ‘mas Socrates observa como a presuncao de saber de Platdo, o fildsofo dirige-se aos jutzes que estao €0 maior obstaculo ao descobrimento, de modo em via de proferir a sua sentenca de morte. Pode- que o saber que ndo se sabe constitui um critério se notar como, de maneira polemica e irdnica, e- elicaz para diferenciar os verdadeiros ¢ os falsos la relaciona, como exemplos de falsos sabios, 0s sibios. Socrates defende esses argumentos com u- melhores clientes dos sofistas: poetas, oradores e ma abordagem ir6nica e intencionalmente para- politicos. A sentence do oréculo: ninguém & ‘ais sdbio do que Sécrates. Exatamente a busca da sabedoria seré a causa das desventuras de Sécrates. A questo central &:0 que é a sabedoria? De inicio Sécrates buscou a sabedoria em um mestre. ‘iste diferenca entre ser e acreaitar-se sabio. Conheceis, se ndo me engano, Querofonte. Meu amigo des- de jovem e amigo da maior parte de vés, convosco, nao faz muito tempo, esteve no exilio e depois regressou a cidade. Sa- beis com certeza como era Querofonte, como se apaixonava por qualquer coisa que fizesse. Assim, uma vez, indo para Del- fos, ousou consultar 0 oraculo acerca da questao de que esta- mos a falar. Jé vos pedi, atenienses, para nao rumorejar aqui- Jo que digo. Perguntou ele entao a Pitia se havia alguém mais sabio do que eu, e Pitia respondeu que nao havia ninguém. So- bre isso prestara testemunho 0 seu irmao, aqui presente, por- que Querofonte esté morto. Tendei em mente os motivos pelos quais vos conto essa his- toria: estou procurando demonstrar de onde se originou a ca- linia a meu respeito. Depois de saber do fato, refleti comigo mesmo: 0 que o deus pretendia dizer e o que escondia sob os seus enigmas? Eu, pe- To que me diz respeito, estou bem consciente de nao ser s4bio, nem muito nem pouco: ¢ entao o que ele quer dizer ao afirmar que sou o mais sAbio de todos? Certamente nao esté mentin- do, porque isso nao é possivel a um deus. Assim, fiquei mui- to tempo em diivida quanto ao sentido da resposta Depois me dediquei com todas as minhas energias a procu- rar resolver o enigma. Fui ter com um daqueles que tém fama de sabio com o intuito de encontrar elementos para refutar 0 ordiculo, se isso fosse possivel de alguma maneira, contrapon- do o fato de que cle mesmo era com certeza mais sdbio do que eu, quando o que se dizia era que o mais sabio de todos era eu. Interrogando, entao, tal pessoa (ndo importa o seu nome: basta dizer que quem me transmitiu a ideia que estou a vos re- {erir era um politico) e falando-the, tive a impressao de que de fato parecia a ele (€ a muitos outros também, mas principal mente a ele) ser sabio, mas na verdade nao o era. Entéo tentei demonstrar-lhe que ele se acreditava sabio, mas que na verda- de nao era assim. ‘ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA 50 sc ea Por isso, atraf sobre mim o seu ddio e também o de muitos dos que estavam presentes. No entanto, ao ir embora refleti comigo ‘mesmo que na verdade eu era mais sibio do que aquele homem: de fato, cada um de nos dois corre o risco de nao saber absolu- tamente nada de belo e de bom, mas ele acredita saber alguma coisa, quando na verdade nao sabe; eu, no entanto, nao so nao sei como nao acredito saber. Portanto, parece-me que eu seja mais sabio do que ele justamente por esta pequena diferenca, de que nao acredito saber aquilo que nao sei. Depois fui ter com um outro daqueles que pareciam ser mais sibios do que ele, ¢ tive identica impressao. E também nesse caso atrai sobre mim o seu ressentimento e o de muitos ou- ros. E assim prossegui sistematicamente repetindo as mesmas experiéncias, apesar de me dar conta com dor e temor de gran- jear somente odio. Mas mesmo assim me parecia necessario dar maior peso a resposta do deus: era preciso, portanto, que eu continuasse a perambular para entender 0 que o ordculo queria dizer em relacao a todos aqueles que pareciam mais proximos de ser sabios. Juro pelo Cao (eu vos devo a verdade), cidadaos atenien- ses, tenho a impressao de que estou para vos contar: justa- mente aqueles que eram levados em maior consideracao do que os outros se revelaram, por assim dizer, nas minhas in- vestigacdes, com base na palavra do deus, os menos dotados de sabedoria; aqueles que, ao contrario, pareciam tao modes- tos estavam mais proximos de ser sabios. Devo, pois, vos contar da grande tarefa que assumi no meu continuo perambular, para chegar a descobrir como 0 oraculo tomou-se para mim irrefutdvel. De fato, depois de me entreter com 0s politicos fui ter com os poetas, aqueles que escrevem uragédias, aqueles que escrevem hinos de louvor € outros, para tentar me descobrir mais ignorante do que eles. Tomando em mos, entre as suas composicoes, aquelas que 0 ignorante supe saber tudo, O sAbio sabe que nad sabe. Desmascarar a ignorénca dos fasos bios provoca rancor. | Averdadeira sabedoria é inversemente proportional 20 pretigo social ‘Nem a poltca nem a poesia nascer da sabedoria, Qualguer um, se quiser, tem me pareciam mais bem elaboradas, perguntei-lhes o que que- | condicdes de escrover um riam dizer, para que eu também aprendesse algo com eles. En- | texto liter. vergonho-me de vos dizer as coisas como sio, atenienses, mas devo falar: todos os presentes, por assim dizer, quase teriam condigoes de falar melhor do que eles mesmos sobre os versos que haviam composto. Assim, logo me dei conta novamente de que tampouco os | A poesia nasce de uma poetas fazem as coisas que fazem por sabedoria, mas por uma | inspiracio divin, semelhante espécie de inclinagéo natural, sob inspirago, como os adivi- | aguela do oréculo, nhos e os profetas. Estes também, com efeito, dizem tantas coisas belas, mas na- | Mesmo que os poetas da sabem do que dizem. Pareceu-me que com os poetas tam- | _possuissem uma sabedoria, bem sucede algo semelhante e ao mesmo tempo me dei conta | esta nio dervara dele. 51 ‘ANTOLOGIA TLUSTRADA DE FILOSOFIA isa SOCRATES A sabedora nao &conhecimento tecnico. Saber fazer, ainda que bem, uma Unica coisa ndo é sabedovia, um saber por defnicao no especializado, ‘A consciéncia da prépria ignaréncia #6 umea forma de conhecimento, Sabjo & aquele que admite ‘nao saber. Existe uma diferenca entre 0 saber divin e aquele acesiel ‘05 homens. 0 caso de Sécrates tem um valor simbsiico geral. Desmascarar os falsas sbios é um dever de elevado valor civico. de que estes, por causa da poesia, acreditam-se os mais sabios dos homens em comparacao a todo o resto, quando nao 0 sao. Por fim, fui ter com os artesdos: como estava intimamente convencido de ser, por assim dizer, totalmente ignorante a res- peito das coisas que fazem, imaginava que eles, a0 contrari soubessem muitas € belas coisas. A bem da verdade, quanto a isso eu nao estava enganado: eles sabiam efetivamente muitas coisas que eu nao sabia e eram por isso mais sabios do que eu. Mas, 6 cidadaos atenienses, os valorosos artesaos também me pareceram ter 0 mesmo defeito que encontrei nos poetas: pe- lo fato de saber exercer bem o seu oficio, cada um acreditava ser muito experiente também nos assuntos de Estado, ¢ esta pretensao ofuscava o seu real saber. Entao indaguei a mim mesmo, em nome do oraculo, se pre- feria ser como sou, isto é, totalmente ignorante das coisas que eles sabem, mas nao ignorante da minha ignorancia como eles o sao da propria, ou se eu teria preferido ter ambas as caracte- risticas neles encontradas. E finalmente respondi a mim mes- mo e ao ordculo que escolhia ser assim como sou. Sabei, cidadaos, que exatamente por essa investigacdo atrat sobre mim muitas inimizades, as mais maléficas e as mais gra- yes, que deram origem as numerosas caltinias a meu respeito eo titulo de sabio. De fato, aqueles que estao sempre presen- tes aos meus coléquios supdem que eu seja um especialista nas disciplinas em torno das quais pode se dar de eu convencer outrem da sua ignorancia. No entanto, atenienses, ninguém mais do que o deus acaba por se revelar sabio, ao afirmar com aquela resposta que a sa- bedoria dos homens vale pouco ou nada Parece, embora o deus nao se refira expressamente a Sécra- tes, que ele tenha usado o meu nome como exemplo para di- zer, 6 homens, que o mais sbio entre vés ¢ aquele que, como Socrates, reconheceu que, na verdade, quanto ao saber, nao vale absolutamente nada. Fis porque ainda hoje sigo na minha busca e na minha in- vestigacdo, sob o impulso do deus, e sempre que penso que al- guém entre 0s cidadaos ou forasteiros seja sabio e depois as- sim nao mais me pareca, demonstrando-lhe entao que nao é sabio, tenho uma ulterior confirmacao da resposta do deus. Nessa minha acupacao nao tive tempo de fazer algo que me- reca elogio, nem no nivel publico nem no nivel privado, e, ten- do-me dedicado totalmente ao servico do deus, encontro-me na mais absoluta pobreza. IROMIA ___ Quando se faz uso da ironia diz-se uma coisa pretendendo dizer ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA 52 outra, muitas vezes 0 seu exato contrério — por exemplo, exdamar “atimo!” a0 ouvir uma resposta nitidamente errada, Socrates fez da ironia 0 principal instrumento do seu método maiéutico. Formulava pergunias ao seu interlocutor, fingindo-se totalmente ignorante a res- peitoe,enfatzando a sabedora de out, sugeria uma sie de per gunias aparentemente ingénuas, mas na verdade em condicdes de envolver 0 interlocutor em contradicGes insoltiveis. MAIEUTICA Literalmente a arte da parteira ou a arte da obstetricia. Indica o mé- todo de investigacao de Socrates descrito por Platao no Teeteto. Sécrates jamais fornecia solucdes, limitando-se a levantar pergun- tas como expediente para que o interlocutor, oportunamente esti- mulado, descobrisse (ou parisse) a verdade dentro de si. HUMANISMO SOCRATICO Indica uma nova tendéncia inaugurada pelos sofistas e por Sécrates de colocar 0s problemas do homem — e nao os da natureza e do mundo fisico ~ no centro da reflexdo filosGfica. Sécrates acolheu a sugestao de Protagoras de fazer do homem a medida de todas as cosas, procurande ocrito da verdade no homem, emo fo ra dele CONCEITO Em sentido amplo, a palavra conceito designa qualquer contedido da mente; em sentido estrito, significa um termo universal, ou seja, capaz de indicar toda uma classe de objetos (por exemplo, cad ra, co, amor, vida, e assim por diante). Na vida comum, tados sa- bemos, grosso modo e no nivel intuitivo, o que esses substantivos significam; todavia, no temos condic6es de defini-los de manei- ra simples, clara e defini tiva. Isso acontece tanto” com termos que se refe- rem a valores morais ou abstratos quanto com aqueles que indicam ob- jetos concretos. £ impos- sivel, por exemplo, espe- cificar quais sejam as ca- racter'sticas individuais e coletivas necessarias pa- ra que um animal seja chamado céo. Sécrates descobriu o problema do conceito buscando defi- nigdes corretas para va- lores morais, como ami- zade e coragem; Platéo considerou 0 conceito como o conhecimento de uma ideia eterna e inata por parte da mente humana; Aristoteles re- duziu-o ao conhecimen- to da esséncia. A morte de Socrates (século XVII). As roupas ¢ a atitude dos amigos de Sécrates reportam-se d tradicional iconografia dos anjos e dos Apostolos. O significado € laro: a morte de Sécrates pode ser comparada a morte de Cristo. 53 ANTOLOGIA ILUSTRADA DE FILOSOFIA Conhece-te a ti mesmo O PROBLEMA Qual ¢ a tarefa da filosofia? A ver- de simesmo. A verdade € uma conquista pessoal e dade pode ser ensinada? a educacao ¢ sempre auto edueacao, um proceso ATESE A filosofia nao ensina a verdade, mas aju- de amaduurecimento interior que pode ser estimu- da o individuo a descobri-la sozinho. Nao oferece lado, mas nao provocado, a partir do exterior. O solugoes, mas um método para raciocinar a partir texto abaixo foi extraido de Alcebiades I, de Plato, O objetivo da filosofia é 0 aperfeicoamento do sujeto Como ensinam as técnicas,

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