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A ORDEM DO DISCURSO: DA ARTICIPACAO A POLITICA* ANDRE CORTEN A participagio € um termo muito presente no vocabulario politico brasileiro (€ latino-americano), especialmente na expresso "de- mocracia participativa" (Benevides, 1991). No esquema ético-politico da esquerda brasileira a participacfo polftica é buscada como um fendmeno expressivo!. Num modelo politico representativo, contudo, a participagio com freqiiéncia € puramente instrumental. Ela visa conferir legitimidade aos dirigentes e sustenté-la, A democracia participativa existe, quando muito, no nivel da politica local (Jacobi, 1994). A patticipacdo nao passaria entio de uma utopia? Ela € uma utopia na medida em que a participacio na politica nacional s6 existe de maneira muito limitada, mas sobretudo porque ela ndo pode desenvolver- se, devido a uma "ordem determinada do discurso"2. E uma utopia no sen- tido de Mannheim (1930). Tendo-se demonstrado como a participagio € impossfvel numa ordem dada do discurso pode-se enfrentar como ela seria possivel quando essa ordem nao mais se impde. O Brasil esta realmente determinado por essa ordem? Se nao, a utopia estaria nele mais préxima? Nao existe a participacio na politica porque ela nao cor- responde ao modo de funcionamento atual do discurso social? (Angenot, * Este texto faz parte de uma pesquisa subvencionada pelo Conseil de Recherches en Scien- ces Humaines du Canada (CRSH). Trata-se de versdo muito modificada de exposigdo apre- sentada ao semindrio sobre heuristica € método do Centre Interuniversitaire d'Analyse du Discours et de Socio-critique des Textes (CIADEST), Montréal.Tradugao de Gabriel Cohn, | Sobre isso ver 0 debate sobre a caracterizagao tedrica dos movimentos sociais por Ana Ma- tia Doimo (1995). 2 Numa acepgaio mais restrita que a de Foucault (1971). Aqui, uma ordem determinada do discurso € definido pelos modos de circulagées que definem os tipos de discursos caracteriza- dos pelos seus "efeitos". 192 LUA NOVA N° 31 —96 1988) tal como pode ser definido a partir de Hobbes ¢ de Austin. E uma utopia (ndo-realizdvel) em politica porque resulta, no interior do discur- so social, de um outro tipo de discurso. A participagao € 0 “efeito" de um discurso, mas esse discurso nao € 0 discurso politico. Esse discurso é 0 discurso teolégico. O discurso que busca as paixdes das massas pode ex- ceder 0 campo das religides (Sanchis, 1995) mas ele funciona como um discurso teol6gico’, O discurso da teologia da libertagdo parece ser 0 caso por exce- léncia dessa “interferéncia", na medida em que esses telogos politizam 0 discurso teoldgico. Esse Angulo de aproximagao é em parte ilus6rio quan- do se fica adstrito A analogia Iéxica. A articulagdo entre o discurso teoldgico e 0 politico no discurso social moderno dé-se no nivel da circu- lagdo discursiva. Esse conceito, que se encontra em Michel Foucault (1972), em Jean-Pierre Faye (1972) e especialmente na escola francesa de Andlise do Discurso (Maingueneau, 1991; Orlandi, 1987) pode ganhar em precisio quando retrospectivamente descoberto em Thomas Hobbes (1671) e em John Austin (1962). Este texto teérico visa distinguir os diferentes tipos de discurso (politico, teolégico e juridico)° a partir de diferentes modos de circulagao discursiva. Esses tipos nao sao dados, determinados pelo seu “contetido”. A ordem do discurso define, num discurso social dado, os “efeitos” que podem ser esperados de cada tipo de discurso. Dois conceitos so princi- palmente mobilizados: modo de circulagéo discursiva e efeitos. Sua com- preensio permite apreender como num discurso social dado a participagio como efeito discursive no é da ordem do discurso politico, porque nao € 3 Tomo o conceito de discurso social numa acepedo ainda mais ampla que a de Angenot, para quem se trata do discurso de uma época determinada. O discurso social que aqui se tem em vista € 0 discurso social que ocorre com a modernidade. “...0 Discurso Social de uma periodo determinado, mesmo quando uma divisto de trabatho diferencia discursos canénicos, suas temiéticas, retéricas, sua eficécia social e seu estatuto, ndo € simplemente feito de uma Justaposigao de sistemas semiéticos aut6nomos, que evoluem conforme sua prOpria légica € sob a influéncia de metas e questdes locais. E porisso que falo de uma interdiscursividade generalizada ... € 0 Zeitgeist da histéria tradicional das idéias, a “ideologia dominante'nas verses mecdnicas do materialismo hist6rico, da hegemonia cultural, da epistemeé transdiscur- siva, das ‘structures of feeling’ dominante (emergente ou recessivo), isto é, um conceito glo- bal que pretende dar conta de um momento da produgtio simbdlica como exibindo uma espé- cie de ‘unidade organica’ ou pelo menos antagonismos regulados e inteligiveis” (Angenct, 1988b: 6-7). 4 Isto ainda € uma mera hipétese. Ela pode explorada no plano dos movimentos sociais, no plano do estudo do sentimento nacionalista ¢ dos movimentos ut6picos (Lowy, 1990). 5 De fato a realidade popde ser vista como construida por um processo de linguagem. Ver a definigdo de Seguin (1994) do discurso. o discurso € um “processo de liguagem de con- strugdio da realidade”. ‘A ORDEM DO DISCURSO: DA PARTICIPACAO A POLITICA, 193, produzido pelo modo de circulagao que dé ao discurso politico sua especi- ficidade. A participagdo pode influir tangencialmente a politica quando mobiliza uma "multidao" que cré na verdade de uma versio narrativa. Essa mobilizagdo no é em si politica mas religiosa. Ela pode entrar em contradigdo com procedimentos politicos, em especial os da democracia. Este texto visa propor de modo fundamental a questo da participagfo na politica, Ele no oferece solugdo alguma. Pelo contrério, no seu pessimis- mo ele se pretende provocador. HOBBES E AUSTIN Como novo esforgo centrado na discursividade, usando concei- tos e téenicas em parte tomadas da Lingufstica moderna, a Andlise do Dis- curso apenas existe a partir do final dos anos 60 (Pécheux, 1969, 1975; van Dijck, 1985). De hd muito existiam teorias do discurso. Pode-se des- cobri-las retrospectivamente em Hobbes. J4 se encontram nele muitos dos elementos da teoria dos performativos e dos atos ilocutérios do filésofo in- glés da liguagem John Austin. Também encontram-se aplicados por ele os conceitos de efeitos de discursos e de circulagao discursiva. A nocao de efeito de discurso j4 aparece no Leviatd. Releiamo-no mais rente. Hobbes especifica que, quando se fala de palavra de Deus, isso "nao designa uma parte do discurso que os graméticos denominam nome ou verbo, nem pa- lavra isolada alguma (...) mas um discurso ou propésito completo, pelo qual aquele que fala afirma, nega, ordena, promete, ameaca, deseja ou in- terroga (Hobbes, 1971:443). Em seguida ele fala dos "efeitos da palavra de Deus, ou seja, a coisa mesma que a palavra de Deus afirma, ordena, faz temer ou promete’. Esté em questio o fiat do primeiro relato da criaggo. "No comego Deus criou o céu e a terra. (...) Deus disse: ‘Faca-se luz’, e a uz se fez" (Génese, I, 1, 3). "Faga-se luz" € um enunciado que nao € nem verdadeiro nem falso. E do mesmo tipo que a enunciagao dos famosos exemplos de Austin (1962) "batizo esse navio Queen Elizabeth” ou o "sim" do casamento. Registre-se, € certo, uma diferenca fundamental de nfvel: entre Deus e sua criatura! "A enunciago da frase é a execugao de uma agao", diz Austin (1962:5). Para vol- tara Hobbes, como ele bem nos diz, apalavra de Deus nao éum termo isolado, 6 um discurso. Deus ndo diz "luz" como um conferencista que terminou a projecio de transparéncias. Ele diz, relata-nos Génese, "que se fagaaluz". Nao se trata portanto do poder das palavras tal como € retomado numa teologia pentecostal na moda’ — "questo ingénua", nos diz Bour- dieu (1982:103) — mas do "efeito do discurso”. E o que Austin bem com- 194 LUA NOVA N°37—96 preendeu ao superar a concepgao dos verbos performativos com sua teoria dos “atos ilocutérios". Bourdieu vé as palavras portadas por agentes auto- rizados, Austin vé 0 discurso e seus efeitos. E por isso que sua teoria dos “atos ilocutérios” ¢ sem diivida mais importante que a dos “atos perlo- cutérios", ainda que Searle (1969) tenha em seguida limitado a teoria do “ilocut6rio" ao tentar definir a "convengdo" que torna tais atos possiveis. Com efeito, Searle define os termos da convengo de enunciago pondo peso nas condigdes sociais da enunciagiio, enquanto em Austin tudo ainda esté aberto para ver-se essa convengio no proprio discurso. Neste texto trés tipos de discurso — jurfdico, politico, teolégico — siio definidos pelos seus "efeitos". Trata-se de mostrar como essa "con- vengéo" de que fala Austin est4 inscrita no préprio discurso, no “interior das relag6es de discurso" (Ducrot, 1972:15) ou naquilo que se pode de- nominar circulag&o discursiva, Para tanto teremos ainda que voltar a Hobbes, pois este permite esclarecer 0 questionamento de Austin quando fala de "consecugao légica" — nés diremos circulagdo Idgica, Isso permi- tiré ver com nitidez como uma enunciagdo ndo tem apenas um efeito de verdade ou de falsidade (sem que haja, de resto, correspondéncia entre logica e efeitos de verdade e falsidade) mas também outros "efeitos". S40 esses outros "efeitos" que se denominam “atos ilocutérios", ¢ séo eles que permitem, por seu turno, ver a verdade e a falsidade como um "efeito de discurso". Esses efeitos ndo so da mesma ordem que os dos "atos perlo- cutérios" (que tém conseqtiéncias externas ao discurso enunciado) dos quais 0 fiat divino parece ser a forma inaugural (a criagdo) e que de modo mais trivial podem ser descritos na eficdcia de um discurso eleitoral para convencer pelo sim e pelo nao e para levar a votar. Para dar aos conceitos toda a sua preciso retomemos textual- mente a distingdo entre atos "locut6rios", "ilocutérios” ¢ "perlocutérios", tal como Austin os expde na sua oitava conferéncia: "Entendemos /pelo ato locutdrio! sumariamente, a produgdo de uma frase dotada de um senti- do e de uma referéncia, com esses dois elementos constituindo aproxima- damente a significagéo — no sentido tradicional do termo. Sustentamos, em segundo lugar, que nés produzimos também atos ilocutdrios: informar, comandar, advertir, empreender ete — vale dizer, enunciages com um va- lor convencional, Finalmente, definimos os atos perlocutdrios — atos que provocamos ou realizamos pelo fato de dizer uma coisa. (...) As agdes des- sas trés classes so — enquanto tais, bem entendido — submetidas as difi- 60 poder das palavras pronunciadas com fé de "remover montanhas" éw o tema de uma dos grandes best-sellers pentecostais atuais. Ver Don Grosset (1979), Hoje na 23.2 edigo, € pre~ gado textualmente na Igreja Internacional da Salvagao do pastor R. R. Soares, por exemplo. A ORDEM DO DISCURSO: DA PARTICIPAGAO A POLITICA 195 culdades ¢ restrigdes proprias as ages, a saber, & necessidade de distinguir a tentativa do éxito, o intencional do ndo-intencional etc. Feito isso, cum- pre examinar em pormenor essas trés classes. Devemos distinguir 0 ilo- cutério do perlocutério, estabelecer a diferenca entre "ao dizer isso (ao estar em condigdes de dizé-lo) eu 0 preveni" e "pelo fato de dizer isso (pelo contetido) eu o convenci, surpreendi, retive", O presente texto comporta quatro partes e uma conclusio. Na primeira parte trata da circulagdo légica conforme € analisada por Hobbes. Trata-se de uma forma elementar de circulagdo discursiva, A se- gunda, terceira e quarta precisam, a partir do conceito de “ato ilocut6rio", 0s trés diferentes modos de circulagdo discursiva que dio conta dos trés efeitos diferentes que caracterizam os discursos juridicos, politicos e teoldgicos. A conclus%o retorna ao "ato perlocutério". Como "conse- giiéncia nao-convencional” do discurso teol6gico, a participacao nao pode- ria ser reinscrita no discurso politico? CIRCULACAO E EFEITO LOGICO ‘A concep¢ao de Hobbes € nominalista. A representagio das coi- sas se faz nas palavras — denominagdes convencionais (que permitem de- ter a degradagao das sensages) — ¢ ndo no espfrito. Ndo se conhece "a consecugiio que vai de uma coisa a outra, mas a que vai de uma denomi- nagdo de uma coisa a uma outra denominagao da mesma coisa” (Hobbes, 1971260). "A razo nao € sendo 0 céleulo (ou seja, a adigao e a substraco) das conseqtiéncias das denominagdes gerais sobre as quais nos pusemos de acordo para notar e significar nossos pensamentos" (Hobbes, 1671:38). Es- sas conseqliéncias nao se calculam somente no interior de um texto medi- ante uma argumentaco, Elas circulam entre textos. "Os autores que tratam de politica adicionam entre si os pactos para encontrar os deveres dos ho- mens; 0s jurisconsultos adicionam entre si as leis e os fatos para encontrar ‘© que é justo ou injusto na conduta dos particulares" (Hobes, 1971:37).. ‘As denominagdes gerais produzem efeitos no discurso, con- seqiiéncias: por exemplo, permitir enunciar 0 que € justo e injusto. Essas consegiiéncias resultam de uma circulagdo e essa circulagao 6 regrada por um cdlculo por adi¢do e subtracao. E precisamente no discurso que se faz © encadeamento, pois a consecugéo nao € entre coisas mas entre diversas denominagdes (eventualmente de uma mesma coisa). Hobbes € contudo obrigado a distinguir dois tipos de discurso. Um comega por definigdes de palavras e, por um célculo I6gico — "ma- temético" — chega a uma conclusio. E chamado ciéncia, diz Hobbes. O 196 LUA NOVAN*37-—96 outro comega por uma opinido ou por algumas afirmagées de um outro ho- mem no qual se tem fé, e chega numa crenga, O discurso cientifico € uma representacdo da circulagdo ldgica entre as categorias. A crenga é uma representacdo de uma relagao entre pessoas. De fato os dois tipos de "con- seqiiéncias” sdio mescladas. Assim, por exemplo, quando se examina cuidadosamente a sua famosa definigao da instituicao da Republica (no capitulo XVI do Leviata) na qual ele formula sua concepgao do pacto social, nota-se que a represen- tago resulta de uma consecugao légica através do contrato de cada qual com cada qual, mas que a autorizagdo (que nao aparecia no De Cive) supde que se ponha fé na existéncia de "um grande ntimero de homens" reunidos (correspondendo de fato a um espago nacional). A conseqiiéncia légica no discurso permite dizer 0 que "é justo dizer em todas as cir- cunstancias, para ndo importa que fim, a ndo importa quem etc..." — 0 que Austin considera 0 aspecto locutério. Mas jé a autorizagdo envolve a ilo- cugdo e a perlocugo. Autorizar é um performativo. A autorizagio nao se faz em todas as circunstfncias, para nao importa que fim nem a nao impor- ta quem. Ela se faz porque se sabe que um grande mimero de pessoas jd esto Id para realizar um acordo e passar uma convengao. O ideal de uma locugao pura, diré Austin, é as vezes atingido. Mas nao € 0 caso geral. O que nos interessa aqui, contudo, é outra coisa. O fato de que a circulagdo Idgica tem conseqiiéncias no discurso produz por- tanto um “efeito de discurso". Nao se trata de um poder das palavras mas de uma resultante da sua circulagao. E precisamente esse “efeito" que de- nominamos ldgico. Mesmo esse efeito ndo pode ser qualificado em ter- mos de verdadeiro e falso. Ao nominalismo interessa p6r isso em evidén- cia. Pode-se assim concluir pelo fracasso do "efeito légico” sem dizer que ele é falso ou, ao contrério, pelo seu "sucesso" sem dizer que é verdade. O que indica ao mesmo tempo que 0 efeito de verdade poderia ser produzido por outros procedimentos (de circulagdo). JUR{DICO:"EFEITO DE NORMATIVIDADE" "O direito, diz Legendre, apresenta-se como uma acumulagao de escritos (...) Uma massa textual em movimento ininterrupto" (Legen- dre, 1988:298). Mas desde Bakhtin (Holquist, 1981), introduzido na Andlise do Discurso por Kristeva, admite-se que todo discurso est4 em permanente movimento pelo seu cardter dialégico. Legendre precisa: 0 discurso juridico produz efeitos de normatividade porque ele se inscreve “num universo genealégico de textos", ‘A.ORDEM DO DISCURSO: DA PARTICIPAGAO A POLITICA 197 Temos entdo trés nogdes para definir: textos, genealégica, efeitos de normatividade. O direito € uma massa textual que se constitui por um "est4 escrito” inaugural, por um corpus monumental de "esté escri- to”, Isto aplica-se igualmente 4 Common Law, explica Legendre. Um "esté escrito” que se inscreve num tempo mitol6gico mais do que historico. Essa elag&io no discurso organiza-se numa geneal6gica, devendo-se entender este termo no sentido forte. A genealgica ndo é a mera sucesso do tempo hist6rico, a genealégica é a ordem da filiagao. A filiagdo € uma encenagao — maior — da fungo biolégica da reprodugdo. E sob 0 modo da filiagao € de todo o seu simbolismo que se opera 0 movimento dos textos, Seria aprecidvel uma preciso dessa genealégica dos textos, sua definigéo por marcas formais. Nao € esse 0 propésito de Legendre. E 0 trabalho estd para ser feito. Mas ela permite entrever como ela pro- duz um efeito de normatividade, se tetomamos a formulagao de Searle segundo a qual um "ato ilocutério" € um ato que indica ao auditor que “a situagdio especificada pela regra R est realizada” (Searle, 1972:91). Gragas & genealégica esas regras nao sao (estritamente) convencionais, pois elas mesmas sao vélidas porque a situago especificada por regras anteriores realizou-se. Por seu turno, essas regras anteriores sao vélidas porque a situagao especificada por regras ainda anteriores se realizou, € assim por diante. Na concep¢ao de Austin o efeito de normatividade poderia ser qualificado de "valor ilocut6rio" produzido por uma — ou talvez varias — classe(s) determinada(s) de enunciagao. O efeito de normatividade nao € 0 efeito de coagéo. Ele se caracteriza pela maneira pela qual se sabe e se sente como certos enunciados devem ser recebidos. Em Austin ele & da or- dem dos verbos vereditivos (Austin, 1962:152). No final da sua obra apre- senta-se uma lista de vereditivos (contestada por Searle): quitar, sustentar (em virtude da lei), avaliar, condenar, interpretar como, avaliar, pronunciar (como um fato), compreender, fixar etc. O discurso juridico mediante es- ses verbos produz um sentido univoco quando é enunciado (Landowski 1989:77). "Dizendo" ele reduz a pluralidade de interpretagdes a uma Unica, E precisamente nessa medida que ele teve éxito. O discurso juridico produz o efeito de fazer compreender que essa é a Unica solugio mantida. Ble ndo tem a ver com o verdadeiro e o falso; ele sustenta, ele se pronuncia, ele fixa. O carater prescritivo do enunciado — no sentido de que ele levaria @ obediéncia — nao é explicito; ele € uma conseqiiéncia que no esté contida no "dizendo” mesmo quando esse "dizendo” fixa sang@es se a solugio fixada nao for aceita. A redug&o a um sentido unfvoco € um efeito no discurso. Esse efeito é normative na medida em que ele fixa a regra de compreenséo da 198 LUA NOVA N° 37 —96 situagdo. As atitudes que esse efeito tem por consequéncia nao sfio mais diretamente da ordem do discurso: atitudes de adesdo, de desvalorizacao, de culpabilidade, de transgressao ou de rebelifio. Mas essa reduco s6 se distingue verdadeiramente do discurso quando desemboca num ato (de obediéncia ou de transgressdio — a transgresso reforgando a regra fixada ao levar os alocutores a se posicionar em relagdo & regra). Essas atitudes sao da mesma ordem que o sentimento de dever responder a uma interro- gacdo. Em outras palavras, "significando" nao se transmite somente uma informagao de ordem cognitiva mas afetiva. Austin nos diz: "A execugdo de um ato ilocut6rio inclui portanto a garantia de ter sido bem compreendi- do" (Austin, 1962:116). Essa compreensao ndo & somente cognitiva, e é precisamente isso que caracteriza 0 efeito normativo no préprio discurso. POLITICA: O “EFEITO DE NARRATIVA" O discurso politico parece muito pobre em comparacao com 0 discurso jurfdico. Dubois (1962) 0 vé como uma combinagao de discurso didatico e polémico. Ainda que vise a persuadir, seu aspecto "perlo- cut6rio" (convencer a votar pelo sim ou pelo nao) parece ter primazia so- bre seu aspecto "ilocutério". O fato de dizer que 0 candidato adverso teve aventuras extra-conjugais ou consumiu drogas no é verdadeiramente re- cebido como um discurso politico: basta que essas assergdes tenham por efeito levar os eleitores a ndo votar nele. Nao é portanto por acidente que as campanhas eleitorais so sujas. Do contrério, so magantes. O discurso politico é pobre porque os efeitos, ao invés de operar no discurso, parecem exteriores. Nao é tampouco por acaso que se tenha privilegiado métodos de anélise que desuperficializam os textos (Pécheux, 1969). Tem-se a impressdo de uma luta de palavras, de palavras-chave — de que se langa mao para a ocasiao (Veron, 1978) — inseridas em frases predicativas simples (nas quais se dé um atributo — frequentemente apre- ciativo — a um objeto). As categorias politicas circulam numa topografia. Elas sdo sus- tentadas por posigdes sociais, Seu cardter "entimematico” (Angenot, 1982) & razoavelmente explicito. As regras so de tomar ou conservar o poder. E assim que 0 discurso "democratico” com freqiiéncia parece conservador, contra a participagdo (Solervicens, 1995): trata-se de "defender a democra- cia", de conservar o poder. projeto de Jean-Pierre Faye 1972) de uma narrativa geral — que jamais foi retomado de maneira global — oferece uma saida a essa concepgio, talvez demasiado entimemdtica. No final de um erudito e ‘A ORDEM DO DISCURSO: DA PARTICIPAGAO A POLITICA 199 apaixonante estudo sobre a liguagem totalitéria, ele propde a hipétese de que essa circulagdo de categorias possui uma sintaxe propria. Ao invés de permanecer no plano da topografia ele nos conduz ao plano de uma topo- logia. Por topologia ele concebe de certo modo uma topografia da propria lingua politica, por oposigio a uma topografia das posigdes sociais, O material de base dessa topologia so narragées imediatas. So- bre o incéndio do Reichstag ha varias versdes narrativas imediatas. O que importa para a compreensio da topologia nao € saber qual € a versio ver- dadeira e quais as falsas. Reencontramos aqui, no plano narrativo, as preo- cupagées que tinha Austin no plano proposicional. Na querela de nar- ragdes que constitui o enquadramento da circulagdo das categorias politicas produz-se um efeito que tora mais ativa uma das versdes. Faye denomina esse efeito um "efeito de narrativa". Esse efeito resulta de uma transformagdo da sintaxe profunda, que torna enunciével algo que ndo o era, que no podia ser ouvido. Na querela de narragées sobre 0 incéndio do Reichstag, a versio — sao os comunistas, os criminosos (comunis- tas=judeus) — tornou-se ativa (vale dizer, de certo modo verdadeira no plano narrativo) porque algo tornou-se enuncidvel: a solugdo € 0 ex- terminio dos judeus. Transformac&o de um enunciado que se encontra em 1924 em Mein Kampf: “nas circunstancias em que a raga resiste vitoriosa- mente os mesticos sucumbem". Em que sentido devemos entender esse efeito de narrativa em relagdo ao que entendemos como "efeito ilocutério"? O “efeito ilocutério" € um efeito no discurso, o "efeito de narrativa" é um "efeito" sobre a narra- tiva. Nas transformagées profundas da lingua politica resultantes da circu- lagao das categorias algo se torna enuncidvel; em consequéncia, um efeito se produz na narrativa, na histéria. A hist6ria narrada que, nesse nivel, (salvo numa critica da economia narrativa, diz Faye) nfo se pode distin- guir do que chamamos a hist6ria real, é doravante essa. O efeito de narra- tiva & esse fato de tornar aceitdvel o que até agora era inaceitavel. Esse “efeito" ndo se situa sobre o eixo verdadeiro/falso mas sobre 0 eixo aceitavel/inaceitavel. Para retornar ao cardter "entimematico" do discurso politico — entimemético no sentido de que se reporta a regras (tomar ou conservar 0 poder) — ele caracteriza seu funcionamento na medida em que este, no seu Carater diddtico e polémico, oculta os efeitos sobre a narrativa e por- tanto a emergéncia de novas categorias politicas. Isso se traduz no discur- so das organizages revoluciondrias, do qual se mostrou o cardter miméti- co relativamente ao discurso do "poder" Na histéria do Brasil varias versdes narrativas existem sobre a dificuldade do Brasil se constituir em nag&o (Oliveira, 1994). Cada uma 200 LUA NOVA N°37 —96 dessas versées caracteriza um perfodo de sua histéria. Desde a época colo- nial, quando através do patronato se formou um principio de unidade do social (dilacerado de resto pela violéncia das relagdes de opressiio) no sis- tema de mediages (através dos santos) nenhum efeito de narrativa insti- tuiu no perfodo contemporaneo uma nova lingua politica propriamente brasileira. Pelo contrario, no seu cardter diddtico e polémico o discurso da “nova reptiblica" oculta os “efeitos de narrativa" mais profundos. Esses so- mente se manifestam no cardter inaceitdvel de certos enunciados. Os con- flitos religiosos apresentados como "guerra santa” so um signo dessa ina- ceitabilidade. TEOLOGICO: 0 "EFEITO DE PIEDADE" O interesse despertado pelo discurso teolégico resulta do que acaba de ser dito concernente & ocultagdo no discurso politico dos efeitos sobre a narrativa, efeitos que no entanto exprimem a sintaxe da lingua politica. A tese de Carl Schmitt sobre a teologia politica (1922) de certo modo abriu essa trilha de pesquisa, a0 mostrar a homologia de estruturas sistemdticas das categorias teolégicas e politicas. Ou, para simplificar, a0 mostrar a influéncia semantica das categorias teoldgicas sobre as categori- as politicas. Trata-se aqui de ultrapassar esse plano da influéncia semAntica, como de resto Schmitt faz em parte em seu texto de 1969. Esse interesse € também justificado por uma hipétese de minhas proprias pesquisas, que, partindo do estudo dos movimentos sociais no Brasil, conduziu & consideragado de que o discurso teoldgico teria a ver com aquilo que se chama participagdo nos movimentos sociais no Brasil (Corten, 1990). Retomada aqui essa hipotese formula-se assim: o discurso teolégico caracteriza-se pela produgdo de um efeito de piedade, ou, em termos secularizados, um efeito de participagao. Antes de entrar no estudo desse efeito de piedade ou efeito de participagdo na perspectiva do "efeito ilocutério" (e no somente "perlo- cutério") € necessério distinguir a teologia dogmética, que se aproximaria mais do discurso jurfdico — que alids saiu dela — e o discurso teolégico, que, como o definiu Schleiermacher (1821), evangeliza mas também sim- plesmente entretem o sentimento religioso da comunidade (eclesial). Na sua relagdo com a revelago esse discurso tem um carater profético. E o caso do discurso da teologia da libertagdo, que reivindicou explicitamente esse cardter profético (entendido como dentincia) mas também do discurso pentecostal. Ambos representam formas do discurso do “romantismo teoldégico latino-americano" (Corten, Fridman, Deret, Doran, 1995). Esse ‘A ORDEM DO DISCURSO: DA PARTICIPAGAO A POLITICA 201 discurso fala & imaginag&io mais que A razo (sem no entanto cair no ir- racionalismo). Na sua fase de refluxo (desde 1985) — a teologia da liber- taco acentua entretanto 0 aspecto racionalizante (Mariz, 1992). ‘A questiio dos verdadeiros e dos falsos problemas chamou a atengdo dos pensadores politicos cldssicos. Hobbes lhe dedica longas pas- sagens no Leviatd, Ele conclui que a palavra profética nao pode conduzir a um efeito de obediéncia (contrariamente & instituigdo da Reptblica). O que quer dizer — mas esse nao é 0 propésito da sua argumentago, voltada para submeter a teologia a politica — que essa palavra tem efeitos no proprio discurso. O profeta é aquele que pela sua imaginagio vé signos dos tempos nos eventos. Tradicionalmente os signos da presenga de Deus so os milagres, os sacramentos, a prépria Igreja, vale dizer 0 "povo de Deus" (Corten, 1991). A profecia consiste em discernir esses signos. “movida pela fé, conduzida pelo Espfrito" (para retomar a formulagao do Vaticano If) mas ela propria é signo do Espirito. A palavra do profeta € nesse aspecto a palavra de Deus, a palavra com seus efeitos talvez dimi- nufdos mas animados pelo fiat divino inaugurado na primeira narrativa da criagdo: "Deus disse: ‘Que se faga luz’ e a luz se fez". Quais sao os verdadeiros profetas? Os que fazem milagres? Este efeito "perlocutério" forte nao € exigido na tradigao bfblica. Os que anun- ciam o futuro? Sim, mas eles podem retomar algo j4 anunciado em outra profecia. Além disso, é somente "movido pela fé" que seu séquito pode discernir os signos do designio de Deus. De fato o profeta & aquele que, pelo seu discurso — e sua vida exemplar — anima essa fé. Seu discurso recebido como um discurso de fé. Eo que também diz Schleiermacher ad- mirador de Spinoza. O profeta aquele que produz um efeito de piedade. Ele discerne signos dos tempos mas sua palavra deve ser discernida como signo e isso s6 é possivel no funcionamento de um discurso que produz um efeito de piedade, um entusiasmo — etimologicamente, um transporte divino — uma paixdo. Chegamos ao ponto: os pensadores politicos classicos — Hobbes e Spinoza — enxergam no teélogo aquele que "agita as paixdes da multidao", A profecia corresponde exatamente a uma “ilocugao" como a define Searle: o profeta afirma que "a situaco especificada pela regra R esté realizada". Contrariamente ao discurso jurfdico, as regras R so reve- ladas uma vez por todas na Biblia (e somente na Biblia na tradigao protes- tante). Em primeiro lugar, se profeta pode afirmé-lo, € porquanto tem uma vida exemplar — mas a tradicdo registra excegdes. O profeta afirma que o que estd enunciado num corpus de textos sagrados realizou-se. Ele 0 afirma porque discerne um signo. Nao € pois somente sua vida de piedade que Ihe permite afirmar e ser ouvido, é 0 discernimento de um signo dos 202 LUA NOVA N°37—96 tempos. O efeito de seu discurso é de ser escutado mas ser escutado supde a compreensao de palavras freqtientemente enigmiticas. E recebido como um discurso de fé, de mistério. O efeito "ilocutério" é um "efeito de ver- dade", Para além da razo (que permite julgar 0 verossimil) o discurso do profeta é recebido como "verdadeiro”®. O "efeito perlocutério" de seu dis- curso € de sucitar um transporte divino. E 0 que o pensamento politico cléssico traduz por agitar as paixdes. Hobbes na Inglaterra pretende opor- se a essa agitacio das paixes sucitada pela revolugdo puritana; é por essa razio que ele consagra a metade do Leviatd (1651) a questées teoldgicas. Spinoza nas Provincias Unidas critica a agitacdo das paixGes das seitas calvinistas que poem em perigo a ef€mera reptiblica. Isso justifica seu Tractatus Teologico-politicus (1670). Estudemos agora a circulagéo do discurso profético. B como essa circulagdo produz efeitos. De um lado hé um corpus de textos sagra- dos*— para os evangélicos (entre os quais os pentecostais) somente a Biblia, Esse corpus é ativado na profecia, pelo discernimento dos signos dos tempos. Os signos dos tempos so “eventos, exigéncias, demandas”. Esses eventos, exigéncias, demandas tornam-se realidade pelo discurso teolégico. So construidos em termos de linguagem pelo discurso (Seguin, 1994), Para o crente, tornam-se ao mesmo tempo palavra: palavra de Deus. Os eventos so encenados num discurso e produzem efeitos de entu- siasmo. Os eventos apenas sao signos através da palavra. O discurso pro- fético pode telescopar a tradigao. Ele néo regido por uma “filiagdo”. Ain- da que afirme que o que fora anunciado num texto sagrado realizou-se, nao é a geneal6gica que produz 0 efeito de entusiasmo. E o discernimento do signo que produz esse efeito, Esse discernimento resulta do poder visionério ou das capaci- dades de imaginacao fora do comum do profeta, diz Spinoza. Ele escapa a toda circulagao ldgica. De testo, ele nao torna enuncidvel 0 que nao 0 era, pois 0 profeta afirma que 0 que havia sido anunciado — e portanto dito ainda que as vezes de modo enigmético — realizou-se. Trata-se de um modo de circulagao diferente do discurso jurfdico e do discurso politico. Na falta de termo melhor chamarei esse modo de especular, para designar © fato de que o profeta discerne signos mas é signo pela sua palavra. O dis- curso da revelagdo e o discurso do referente circulam paralelamente; no deslumbramento tornam-se um. O signo que incendeia o discurso da reve- 8 Nos cultos pentecostais as afirmag6es do predicante siio pontuadas pelos "é verdade” da as- sembléia, 9 Estou consciente de que ficam fora de meu campo de estudos as religides afro-brasileiras, nas quais nfo existe um corpus de escritos. ‘A ORDEM DO DISCURSO: DA PARTICIPAGAO A POLITICA 203 lagao por um efeito de “espelho ardente” € descoberto pela imaginagao do profeta. Os procedimentos de citagdo implicitos ou explicitos so entdo procedimentos constitutivos do funcionamento do discurso teolégico (Pa- nier, 1978; Almeida, 1979). © "povo de Deus" torna-se inteiramente profético quando re- conhece a palavra do profeta. Ele participa do discernimento dos signos dos tempos, dos signos da presenga e do designio de Deus. E nesse sentido que se pode falar de efeito de piedade, isto €, de efeito de participagao. Apresentado de modo secularizado como o tenta Spinoza, dir-se-ia que esse “efeito de participagao" corresponde & agitago — 2 manipulago — das paixdes da multidao. O "efeito ilocutério” toca assim um registro que ndo € 0 do verdadeiro e do falso, nem do normativo, nem do aceitével; é 0 registro das paixdes longamente estudado pelos fildsofos (Meyer, 1991) € mesmo hoje pelos analistas do discurso (Parret, 1986; Greimas, 1991). Mas 0 "efeito de participag’o" nao € somente da ordem do "perlocutério", ele € também do "ilocutério". O "povo de Deus", que é uma identidade co- letiva, € recebido como palavra de Deus, verdade. Para terminar, convém salientar as implicagdes do que vem de ser dito no plano da andlise politica. O discurso politico € entimemitico, tendo por regras tomar e sobretudo conservar o poder. Ele visa conter as paixdes da multidao e sobretudo manipuld-las. Aquilo que se denomina participago tem a ver assim no discurso social moderno com um campo que nao € do politico, com um campo aqui tomado como o do discurso teolégico profético. Isso permite dar uma chave de interpretacio ao estudo dos movimentos sociais — que durante séculos foram de fato movimentos religiosos, no mais das vezes "heréticos". CONCLUSAO A superestimagao pratica e tedrica do ato “perlocutério", assim como a interpretagao sociologista do “ato ilocutério”, so responsdveis pe- las ilusdes sobre a participagdo na politica, O ato de perlocugio € produzi- do, diz Austin, pelo fato de dizer algo, ou seja, ele produz efeitos — ou conseqiiéncias — nos outros ou em si préprio. Como precisa Austin: "Os efeitos suscitados pelas perlocugées sto verdadeiras conseqiiéncias, desti- tufdas de qualquer elemento convencional" (Austin, 1962:102). Con- seqiiéncias verdadeiras: para o discurso juridico, a obediéncia ao que foi pronunciado, para o discurso politico: votar por ou contra. Para o discurso teolégico, o entusiasmo na participagiio. Esse entusiasmo como "con- seqiléncia desprovida de todo elemento convencional" mede-se pelo fato 204 LUA NOVA N° 37 —96 de que as reunides estdo repletas, as igrejas esto cheias, as conversées de multiplicam — as cifras de crescimento espetacular do movimento pente- costal (tirante os exageros, € muito rapido para os pentecostais — da or- dem de 7% por ano) constituem uma ilustragdo de conseqiléncia "ndo con- vencional". O discurso teolégico produz um efeito de piedade, ele arrebata. Mas esse efeito "perlocutério", essa conseqiiéncia "néo convencional”, pode ainda menos ser separada do efeito "ilocutério" do que em outros dis- cursos. O discurso teolégico deve ser recebido como fé, piedade, mistério, nesse sentido como verdade. Ele mantém a piedade na comunidade, dizia Schleiermacher (1988; Thouard, 1994) porque ele é recebido como um discurso de fé. Ele produz a fé porque é recebido como fé. Efeito "perlo- cutério" e "ilocutério” so duas faces do mesmo fendmeno. Observemos entretanto a conseqiiéncia "nao convencional" em si mesma. A multidéo mobilizada, como conseqiiéncia "nado convencional", pode interferir em outros modos de circulagdo do discurso? A circulagao propria & politica traz 4 cena e pée em competicao diversas versdes narrati- vas contando a historia, A forga dessas versGes resulta do cardter mais ou menos verossimel relativamente ao que elas relatam. Se uma versao narrati- va € sustentada em bloco, nao por ser mais verossimil mas por ser "revela- da", € de se cogitar de uma influéncia do teolégico sobre o polftico. Para Hobbes, € claro, os portadores “fandticos" dessa verso desviam-se da politica. No que concerne a Spinoza, as interpretagdes divergem. O poder da multidao pode tornar-se, segundo Negri, uma realidade auténoma!®, Poderé 0 "perlocutério" ser "reinjetado" no discurso, um pouco sob 0 modo da televisao interativa? Sim, pode, mas por meios discursivos (0 que telescopa a televisio interativa). Ele pode fazé-lo pelos meios con- vencionais, diria Austin. Vale dizer, meios que supdem um contrato enun- ciativo entre interlocutores (discursivamente mas no desde logo sociolo- gicamente autorizados como pensa Bourdieu). Os pensamentos e os sentimentos do auditério podem encontrar suas marcas no discurso. O ora- dor, na medida em que sente que sua ilocugéio é bem sucedida, insere os pensamentos e os sentimentos de seu auditério em marcas do seu discur- so. Isso tem a ver com 0 aspecto dial6gico do discurso, 0 que designa o campo da circulagdo discursiva. A mobilizagao participativa como "efeito perlocutério” (conseqiiéncia independente do discurso) pode ser "reinjeta- da" no discurso teolégico. 10 Na interpretagdo de Spinoza certos autores, como Negri (1982), ao fazerem a distingio en- tre poder e poténcia, mostram que o desvio ndo € entretanto necessario. ‘A.ORDEM DO DISCURSO: DA PARTICIPAGAO A POLITICA 205 Por que nao pode ser "reinjetada” num outro discurso? No dis- curso politico, por exemplo? Este foi sem divida o proprio objetivo da teologia da libertagdo. A participacio — a paixdo da base — suscitada pelo discurso teolégico de conscientizacéo na leitura do Evangelho deve- ria poder entrar no discurso politico. Era essa a especificidade da relagao especifica das CEBs (Comunidades Eclesiais de Base) com os movimen- tos sociais e o Partido dos Trabalhadores. E verdade, também, que a parti- cipagdo ndo foi objeto de rejeig&io — como vimos, ela esté mesmo muito presente no Iéxico politico brasileiro (e latino-americano). Pelo contrério mesmo, a participagdo permitiu o crescimento de um novo discurso politico, o discurso da "nova esquerda" (Corten, 1990). Mas, na medida em que esse discurso ganhava forga, a mobilizagdo da participagao baixa- va (Doimo, 1995). Isso nao € uma simples constatacao. A andlise que se pode fazer do PT (Corten, 1995:99-134) & que quase era necessério que a l6gica do poder eclipsasse num momento dado a “paixao de base". Quando ela nao é desviada na pretensao a "verdade" de versio narrativa, a participaco produzida pelo discurso teolégico néo pode ser "reinjetada" num outro discurso. A razio disso encontra-se em que 0 "con- trato enunciativo" que permite a "reinjeg3o" e portanto um aumento continuo da participagdo n&o é 0 mesmo no discurso teolégico que no dis- curso politico. O primeiro repousa sobre um corpus sagrado, constitufdo Por uma massa quase ilimitada de enunciados enigmaticos, a partir dos quais o discurso do referente seré continuamente transformado sobre a base de um contrato enunciativo de verdade. Ao passo que 0 segundo re- pousa sobre um corpus muito pobre de enunciados didéticos e polémicos relativamente fechados, encarregados de assegurar uma certa coesdo sobre a base de uma crenga no verossimil e a consciéncia daquilo que ¢ ndo- enuncidvel. O que se denomina o “refluxo" dos movimentos sociais € 0 obstéculo no plano da ordem do discurso a passagem de um "contrato enunciativo" a um outro. ANDRE CORTEN é professor de Ciéncia Politica e de Anélise do Discurso na Universidade de Quebec (Montreal) e pesquisador- visitante no CEDEC. 206 LUA NOVA N°37—96 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS Almeida, Ivan 1979. "Trois cas de rapports intra-textuels: fa citation, la parabolisation, le commentaire". Sémiotique et Bible, n.0 15. 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THE ORDER OF DISCURSE: FROM PARTICIPATION TO POLITICS, On the basis of Discourse Analysis and with regard to the Bra- zilian case it is argued that political participation should be seen in its dis- course dimension, as secularization of the “piety effect” which is distinc- tive of the theological discourse.

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