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Emmanuel Levinas Etica e Infinito - O BIBLIOTECA DE FILOSOFIA CONTEMPORANEA BIBLIOTECA DE FILOSOFIA CONTEMPORANEA 7 Emmanuel Levinas examina com simplicidade e lucidez os principais temas da sua filosofia, sobretudo 0 see icetentiel esse na oposigao: 9 WON Digitalizado por @jacilenesil (twitter) | Titulo original Edhique et infin . Bisa & Frosona lis Evocagdo das intengdes ofuscadas do pensamento; a metodologia do trabalho fenomenoldgico esta tam- m na origem de algumas ideias que me parecem indispensiveis a toda a anilise filosfica. E 0 novo vigor dado a ideia medieval de intencionalidade da consciéncia: toda a consciéncia é consciéncia de algu- ma coisa, nao é descritivel sem referéncia ao objecto que cla «pretende». Focagem intencional que nao é um saber, mas que, nos sentimentos ou aspiracées, é, com © seu proprio dinamismo, (um ser). Com Heidegger, na palavra ser revelousse a cersatilidade=, 0 que nele € aconiecimento, 0 ou «é de noite». E nao ha nem alegria nem abundancia: € um ruido que volta depois de toda a negacio do ruido. Nem nada, nem ser. Emprego, por vezes, a expressio: 0 terceiro exclui- do, Nio pode dizerse deste . Hai aqui uma abundincia de formas muito sugestivas: fala da «desarrumacio» do ser, do seu -rumor-, do seu , 0 que nao significa nem morte nem infe- ©) LEcriture du désuste, Gallimard, 1981. 36 | Enica & INintro. licidade, mas como se o ser se separasse da sua fixidez de ser, da sua referéncia a uma estrela, de toda a existéncia cosmolégica, um desastre. Atribui ao subs- tantivo desastre um sentido quase verbal. Desta situa- do enlouquecedora, obsessiva, parece que, para ele, € impossivel sair, No livrinho de 1947, de que estou agora a falar, como no que se Ihe segue, com o titulo, Le Temps et UAutre, em 1948, as ideias que hoje defen- do ainda se procuram, acontecem muitas intuicdes que assinalam mais um percurso do que uma conclu- sdo. O que sc apresentou como exigéncia é uma tentativa de sair do «hi», sair do nao-sentido. No De Vexistence @ Vexistant analisava outras modalidades do ser, tomado no seu sentido verbal: a fadiga, a pregui- ¢a, 0 esforco. Mostrava, nestes fenémenos, um terror perante o ser, um recuo impotente, uma cvasio ¢, por consequéncia, também ai, a sombra do «hii. P_N. — Qual era entio a «solucio» que propunha? E. L. - A minha primeira ideia era que talvez 0 sente», 0 «algo» que se pode apontar com o dedo, corresponda a um dominio do «ha» que aterroriza no ser, Portanto, falava do e ? E. L.—Certamente. Rosto € discurso estio ligados. rosto fala. Fala, porque é ele que torna possivel e comeca todo o discurso. Recusei, agora mesmo, a nogio de visio para descrever a relacio auténtica com outrem o discurso e, mais exactamente, a resposta ou a responsabilidade, € que é esta relacao auténtica. P.N.— Mas, ja que a relacao ética esta para além do saber, € que, por outro lado, é autenticamente assumi- da pelo discurso, nao sera porque o préprio discurso € alguma coisa da ordem do saber? E. L.— Sempre distingui, com efeito, no discurso, 0 dizere o dito. Que o dizer deve implicar um dito € uma necessidade da mesma ordem que a que impde uma sociedade, com leis, instituicdes € relacdes sociais. Mas o dizer € 0 facto de, diante do rosto, eu nio ficar simplesmente a contemplito, respondothe. O dizer € uma maneira de saudar outrem, mas saudar outrem € jd responder por ele. E dificil calarmo-nos diante de | Erica € INFINITO alguém; esta dificuldade tem 0 seu tiltimo fundamen- to na significaco propria do dizer, seja qual for © dito. E necessirio falar de qualquer coisa, da chuva e do bom tempo, pouco importa, mas falar, responder lhe e ja responder por ele. P. N. — No rosto de outrem ha, diz 0 senhor, uma selevagiow, uma «altura». O outro € mais alto do que eu. Que entende por ist E. L. - 0 «Tu nao matards» é a primeira palavra do rosto. Ora, é uma ordem. Ha no aparecer do rosto um mandamento, como se algum senhor me falasse. Ape- sar de tudo, ao mesmo tempo o rosto de outrem esta nu; € 0 pobre por quem posso tudo € a quem tudo devo. E eu, que sou eu, mas enquanto «primeira pessoa», sou aquele que encontra processos para responder ao apelo. PN. - Apetece dizerthe: sim, em certs casos... Mas noutros, pelo contrario, o encontro com o outro fazse de acordo com a violéncia, 0 édio ¢ 0 desprezo. E. L. - Claro. Mas penso que, seja qual for a motivaco que explique esta inversio, a andlise do rosto tal como a acabo de fazer, com 0 dominio de outrem e da sua pobreza, com a minha submissio ¢ a minha riqueza, € primeira. E 0 pressuposto de todas as relagdes humanas. Se no existisse, nem sequer diriamos, diante de uma porta aberta: «Primeiro o senhor!» E um «Primeiro o senhor!» original que eu procuro descrever. Falou da paixio do édio. Receava uma objeccio muito mais grave: como é possivel poder castigar € O Rosto Ia redimir? Como € possivel haver uma justica? Respon- do que € 0 facto da multiplicidade dos homens e a presenca do terceiro ao lado de outrem que condicionam as leis ¢ instauram a justica. Se estou sozinho perante 0 outro, devo-he tudo; mas ha 0 terceiro. Saberei eu o que é 0 meu préximo relativa- mente ao terceiro? Saberei eu se 0 terceiro estd de acordo com ele ou € sua vitima? Quem é 0 meu préximo? Por consequéncia, € necessirio pesar, pen- sar, julgar, comparando o incomparavel. A relacio interpessoal que estabeleco com outrem, também a devo estabelecer com os outros homens; logo, ha necessidade de moderar este privilégio de outrem; dai a justica. Esta, exercida pelas instituigdes, que a0 jevitaveis, deve ser sempre controlada pela relacio interpessoal inicial. P.N.~Eis, portanto, na sua metafisica, a experién- cia crucial: a que permite sair da ontologia de Heidegger como ontologia do Neutro, ontologia sem moral. E a partir desta experiéncia ética que constréi ica»? Depois, a ética € feita de regras; sera necessario estabelecer estas regras? E. L.A minha tarefa nao consiste em construir a ética; procuro apenas encontrarthe © sentido. Com efeito, néo acredito que toda a filosofia deva ser programatica. Foi, sobretudo, Husserl quem teve a ideia de um programa da filosofia. Sem diivida, pode construirse uma ética em fungao do que acabo de dizer, mas nao € propriamente este 0 meu tema. P. N. ~ Pode precisar em que € que a descoberta da ética no rosto rompe com as filosofias da totalidade? mI E. L. - O saber absoluto, tal como foi procurado, prometido ou recomendado pela filosofia, é um pen- samento do Igual. O ser abrangido, na verdade. Ainda que se considere a verdade como jamais defini- tiva, hd a promessa de uma verdade mais completa adequada. Sem diivida, 0 ser finito que somos nao pode, no fim de contas, levar a bom termo a tarefa do saber; mas, dentro dos limites em que esta tarefa fica cumprida, ela consiste em fazer que o Outro se torne © Mesmo. Inversamente, a ideia do Infinito implica um pensamento do Desigual. Parto da ideia cartesiana do infinito, onde o ideatum desta ideia, isto é, 0 que esta ideia visa, é infinitamente maior do que o pré- prio acto pelo qual eu o penso. Ha desproporcio entre 0 acto € aquilo a que © acto da acesso. Para Descartes, reside aqui uma das provas da existéncia de Deus: 0 pensamento nao péde ter produzido algo que 0 ultrapassa: era necessirio que este algo tivesse sido posto em nés. Logo, ha que admitir um Deus infinito que pos em nés a idcia do Infinit. Mas nao é prova procurada por Descartes que aqui me interes- sa, Reflicto aqui no espanto perante a despropor¢ao entre 0 que cle chama a «realidade objectiva» ¢ a «realidade formal» da ideia de Deus, perante 0 pré- prio paracoxo - to antigrego — de uma ideia «posta» em mim, quando Sécrates nos ensinou que era impos sivel por uma ideia num pensamento, sem ai a ja ter encontrado. Ora, no rosto, tal como descrevi a sua aproxima- cdo, produz-se a mesma superacao do acto por aquilo a que ele conduz, No acesso ao rosto, ha certamente também um acesso & ideia de Deus. Em Descartes, a ideia do Infinito permanece uma ideia teorética, uma contemplacio, um saber. Penso, na minha opiniao, O Rosto 3 que a relacdo com 0 Infinito nao é um saber, mas um Desejo. Tentei descrever a diferenca entre o Desejo € a necessidade, pelo facto de 0 Desejo nao poder ser satisfeito; que o Desejo, de alguma maneira, se ali- menta com as préprias fomes ¢ aumenta com a sua satisfacao; que 0 Desejo € como um pensamento que pensa mais do que nie pensa, ou do que aquilo que pensa. Estrutura paradoxal, sem diivida, mas que 0 no é mais do que a presenca do Infinito num acto finito. Vill A RESPONSABILIDADE POR OUTREM PN. ~ No seu tiltimo grande livro publicado, Autrement quiétre ou au-dela de Vessence, 0 senhor falava” da responsabilidade moral. Huser! ja tinha falado da responsabilidade, mas de uma responsabilidade pela verdade; Heidegger tinha falado da autenticidade; que entende o senhor por responsabilidade? E. L. — No livro, falo da responsabilidade como da estrutura essencial, primeira, fundamental da subjectividade. E em termos éticos que descrevo a subjectividade. A ética, aqui, néo aparece como suple- mento de uma base existencial prévia; € na ética entendida como responsabilidade que se di 0 pré- prio né do subjectivo. Entendo a responsabilidade como responsabilida- de por outrem, portanto, como responsabilidade por aquilo que ndo fui eu que fiz, ou nao me diz respeito; ou que precisamente me diz respeito, é por mim abordado como rosto. P.N.— Como é que, tendo descoberto outrem no rosto, ele se descobre como aquele por quem se é responsavel? 80 | Ena & Inpro E. L. — Descrevendo positivamente 0 roste, ¢ nao apenas de um modo negative. O senhor lembrase daquilo que diziamos: a abordagem do rosto nao é da ordem da percepcio pura ¢ simples, da intencionalidade que se encaminha para a adequa- cdo. Positivamente, diremos que, desde que 0 outro me olha, sou por ele responsavel, sem mesmo ter de assumir responsabilidades a seu respeito; a sua responsabilidade incumbe-me. E uma responsabilida- de que vai além do que faco. Habitualmente, somos. responsaveis por aquilo que pessoalmente fazemos. Digo, em Autrement qu’étre, que a responsabilidade é inicialmente um por outrem. Isto quer dizer que sou responsavel pela sua prépria responsabilidade. PN. - Em que € que a responsabilidade por outrem define a estrutura da subjectividade? E. L. — Com efeito, a responsabilidade nado € um simples atributo da subjectividade, como se esta exis- tise ja em si mesma, antes da relagdo ética. A subjec- tividade nao é um para si: ela é, mais uma vez, inicialmente para outro. A proximidade de outrem esta apresentada no livro como 0 facto de que outrem nio esta simplesmente préximo de mim no espaco, ‘ou préximo como um parente, mas que se aproxima essencialmente de mim enquanto me sinto — enquan- to sou — responsivel por ele. E uma estrutura que, de modo algum, se assemelha 4 relacao intencional que nos liga, no conhecimento, ao objecto — a qualquer objecto, ainda que fosse um objecto humano. A pro- ximidade nao se reduz a esta intencionalidade; em particular nao se reduz ao facto de eu conhecer © outro. A RESPONSABILIDADE POR OUTREM [ar P. N. Posso conhecer alguém perfeitamente, mas tal conhecimento nunca seri, por si mesmo, uma proximidade? E. L.— Nao. O laco com outrem s6 se aperta como responsabilidade, quer esta seja, alids, aceite ou rejei- tada, se saiba ou nio como assumila, possamos ou nao fazer qualquer coisa de concreto por outrem. Dizer: eisme aqui. Fazer alguma coisa por outrem. Dar. Ser espirito humano € isso. A encarnagao da subjectividade humana garante a sua espiritualidade _ (no vejo como os anjos se poderiam dar ou como entreajudarse). Diaconia antes de todo o didlogo: analiso a relacao inter-humana como se, na proximi- dade com outrem “ para além da imagem que faco de outro homem — , 0 seu rosto, 0 expressive no outro (€ todo © corpo humano é, neste sentido mais ou me- nos, rosto), fosse aquilo que me manda servi-lo. Em- prego esta frmula extrema. O rosto pedeme € orde- na-me. A sua significacao nao é uma ordem significada. Pemmita-me dizer que, se o rosto significa uma ordem a meu respeito, ndo é da maneira como um signo qualquer significa 0 seu significado: esta ordem é a propria significancia do rosto. P.N.—O senhor diz ao mesmo tempo «pedeme» € (#*), em que a profecia parece apresentarse como o facto funda- mental da humanidade do homem. Sendo assim, ao lado da exigéncia ética ilimitada, a profecia interpre- ©) Ammés, 3, 8 96 | Ena Ivniniro tase sob formas concretas, em que se fez texto € livros. Nestas formas concretas, tornadas reli homens encontram consolacoes. Mas algum poe em diivida a estrutura rigorosa que proci- rei definir, em que sou sempre eu que sou respon: vel € que suporto o universo, seja qual for a continua- cao da historia, A propésito destas poucas reflexdes que acabo de fazer, perguntaram-me se a ideia messianica ainda tinha para mim um sentido, € se era necessirio conser- var a ideia de um estidio tiltimo da histéria em que a humanidade jé nao seria violenta, em que a humanida- de teria definitivamente atravessado a crosta do ser, em que tudo se esclareceria. Respondi que, para ser digno da era messianica, era necessirio admitir que a ética tem um sentido, mesmo sem as promessas do Messias. P. N. — As religides positivas ou, pelo menos, as trés grandes religides do Livro que se reconhecem no Ocidente, cada qual se define pela sua relacio com um texto definitivamente estabelecido, contendo a Revela- Go; ora, quando © senhor fala da «revelacio» trazida pelo «testemunho>, parece encontrar outra origem para a verdade religiosa, e no priprio presente. _ E. L. =O que ai digo s6 a me compromete! F neste pressuposto que respondo A pergunta. Que a Biblia seja o resultado de profecias, que nela o teste- munho ~ no digo a «experiéncia» — ético esteja declarado em forma de escrituras, estou disso conven cido. Mas isto harmonizase perfeitamente com a humanidade do homem enquanto responsabilidade por outrem, que ja se expés nos nossos didlogos. Que a critica hist6rica modema tenha demonstrado que a A Dureza DA FiLosoria | 97 Biblia tinha miiltiplos autores, distribuidos por épocas muito diferentes, contrariamente ao que se acreditava ha alguns séculos, em nada muda esta convicgio, pelo contririo. Sempre pensei que 0 grande milagre da Biblia nio est de modo algum na origem literdria comum, mas, inversamente, na coniluéncia das litera- turas diferentes para um mesmo contetido essencial. O milagre da confluéncia é maior do que o milagre do autor Unico. Ora, 0 pélo desta confluéncia é a ética, que domina incontestavelmente todo este livro. P. N. — Iria ao ponto de afirmar que qualquer homem ético poderia, em qualquer tempo ou em qualquer lugar, proporcionar testemunhos, escritos ‘ou orais, que poderiam constituir eventualmente uma Biblia? Ou que, entre homens que pertencem a tradi- bes diferentes on que nio se reconhecem em qual- quer tadicao religiosa, poderia haver uma Biblia comum? E. L. - Sim, a verdade ética € comum. A leitura da Biblia, ainda que seja diversa, exprime na sua diversi dade © que cada pessoa traz A Biblia. A condigéo subjectiva da leitura é necessdria 4 leitura do proféti- co. Mas é certamente necessirio acrescentarlhe a necessidade do confronto € do diilogo e, com isso, surge todo o problema do apelo a tradi¢io, que nao € uma obediéncia, mas uma hermenéutica. P.N. — Isso vale, sem diivida, para a leitura da prépria Biblia pelos judeus ¢ cristios. Mas a minha pergunta ia mais longe. Queria dizer: se é o testemu- nho da ética que revela a gloria do Infinito, ¢ nio um texto contendo um saber, qual € 0 privilégio da 98 | Enea £ Ineo. propria Biblia? Nao se poderd ler, como uma Biblia, Plato, ou grandes textos em que a humanidade reconheceu um testemunho do Infinito? E. L. - Ao descrever ha pouco — de passagem — 0 humano como uma aberta que se produz no ser € pie em questéo a orgulhosa independéncia dos seres na sua identidade que ela submete a0 outro, nao invoquei as profundezas «insondaveis» e ut6picas da «interio- ridade». Falei da Escritura ¢ do Livro. Pensei na sua firmeza que ja se adensa, dura como um versiculo, em todas as linguas, antes de se terem tornado letras tracadas pelo estilete ou a pena. O que se diz estar escrito nas almas esta primeiramente escrito nos livros, cujo estatuto foi sempre demasiado depressa banaliza- do entre os utensilios ou os produtos culturais da Natureza ou da Hist6ria; ao passo que a sua literatura leva a cabo uma ruptura no ser e se reduz também pouco a pouco a nao sei que voz intima ou A abstraccao normativa dos «valores», que o préprio mundo em que estamos nao se reduz a abjectividade dos seus objectos. Penso que através de toda a literatura fala — ou balbu- cia, on adapta ima atitude on Inta cam a sua caricatura =o rosto humano. Apesar do fim do europocentrismo, desqualificado por tantos horrores, creio na eminéncia do rosto humano expresso nas letras gregas e nas nossas letras que thes devem tudo. E gracas a elas que a nossa histria nos envergonha. Ha participacao na Sagrada Escritura nas literaturas nacionais, em Homero € Plato, em Racine e Victor Hugo, como em Pushkin, Dostoievsky ou Goethe, como, claro esta, em Tolstoi ou em Agnon. Mas estou certo da exceléncia profética incomparavel do Livro dos Livros, que todas as letras do mundo esperavam ou comentam. As Sagradas Escri- A Dureza pa Fitosoria [99 turas nao significam pelo relato dogmatico da sua origem sobrenatural ou sagrada, mas pela expresso do rosto do outro homem antes de a si mesmo ter conferido uma atitude ou posicao, que elas esclare- cem. Expressio to irrecusivel como sio imperiosas as preocupacdes do mundo quotidiano dos seres histéri- cos que somos. Significam, para mim, por tudo o.que despertaram ao longo dos séculos nos seus leitores € receberam das suas exegeses € da transmissio destas. Prescrevem toda a gravidade das rupturas em que, no nosso ser, se pde em questo a boa consciéncia do seu estarai. E nisto que reside a sua propria santidade, fora * de toda a significacio sicramental; estaruto Gnico, € irredutivel aos dos sonhos das «belas almas», se € que podemos chamar estatuto a este vento de crise - ou este espirito — que sopra e dilacera apesar dos nés da Hist6ria que voltam a apertarse. P. N.—A aproximacio do Infinito é, pois, essencial- mente a mesma para todo o homem. Contudo, s6 as religides particulares proporcionam aos homens con- solacdes. A exigéncia ética é universal, mas a consola- cdo & um assunto de familia? E. L.-Com efeito, a religido nao ¢ idéntica a filosofia, a qual nao proporciona necessariamente as consolacées que a religido sabe outorgar. A profecia e a ética ndo cexcluem de modo algum as consolagdes da religio; mas repito ainda: s6 pode ser digna destas consolagdes uma humanidade que pode passar sem elas. P. N. - Falemos dos seus trabalhos mais recentes. Ainda hoje continua a sua meditacao sobre a respon- sabilidade por outrem, mediante a meditacdo sobre a 100] Ena & INeNITO responsabilidade pela morte de outrem. Que se deve entender por tal? E, L.— Penso que na responsabilidade por outrem se é em tiltima anilise, responsivel pela morte do outro. A rectidao do olhar nao sera uma exposicao por exceléncia, que € exposicio a morte? O rosto, na sua verticalidade, € 0 que € visado «4 queima-roupa» pela morte. O que nele se diz como pedido significa certa- mente um apelo ao dar € a0 servir—ou o mandamento de dar e de servir — mas acima disso, ¢ incluindo isso, a ordem de nao deixar outrem sozinho, ainda que seja perante o inexorivel. O que € provavelmente o funda- mento da socialidade, do amor sem eros. O temor da morte do outro esta, com certeza, na base da respon- sabilidade por outrem. Um tal temor nao é a mesma coisa que 0 medo. Penso que a nocao do medo pelo outro homem sobressai em brilhantes andlises, que Heidegger fez, da afectividade: dos sentimentos, da emogio, da Befindlichkeit, Toda a emocao tem, segundo ele, 0 que chama uma dupla intencionalidade: é emocao diante de qualquer coisa e por qualquer colsa. © medy € medo do que € assustador € sempre medo por mim. Heidegger insiste no facto de, em alemao, os verbos que exprimem a emocao serem sempre reflexos, como em francés os yerbos, comoverse, assustarse, entriste- cerse, etc. Segundo ele, a angtistia é uma emocio excepcional em que o dee © por coincidem: anguistia da finitude, ela é angiistia pela minha finitude e, em certo sentido, toda a emocao, devido a este voltar a si, vem a dar na angtistia. Pareceu-nos que o medo pelo outro nao tem este retorno a si, Nao é nela que a nocio de temor de Deus reencontra 0 seu sentido A Dureza pa FILosoria fron separado de toda a referéncia a ideia de um Deus mento? P.N. - Em qué? E. L. - Temor desnter-essado; timidez, vergonha. Em todo 0 caso, nunca temor da sancao. P. N. - Mas se se teme por outrem € nao por si mesmo, pode apenas viverse? E. L.-E, com efeito, a questio que, por tiltimo, se deve colocar. Seré que me devo ao ser? Sera que existindo, persistindo no ser, eu ndo mato? P. N.- Com certeza, agora que o paradigma biolé- gico se nos tornou familiar, sabemos que toda a espécie vive 4 custa de outra e que, no interior de cada espécie, todo 0 individuo substitui outro. Nao se pode viver sem matar. E. L.- Nao se pode, na sociedade tal como funcio- na, viver scm matar, ou, pelo menos, scm preparar a morte de alguém. Por consequéncia, a questo mais importante do sentido do ser nao é: por que é que ha qualquer coisa e no nada — questo leibniziana tio comentada por Heidegger ~ mas: nao sera que mato, existindo? P. N. - Enquanto outros, da constatacio de que nao se pode viver sem matar ou pelo menos sem luta, tiram a conclusio de que, de facto, é necessario matar, e que a violéncia serve a vida e dirige a evolucao, 0 senhor recusa esta resposta? 102 Enta & Inentro E. L.—O desabrochar do homem no ser, a aberta do ser de que falei ao longo destes didlogos, a crise do ser, 0 de outro modo que ser, estio, com efeito, marcados pelo facto de que o mais natural é 0 que se torna mais problematico. Sera que tenho o direito de ser? Ser que, ao estar no mundo, nao ocupo o lugar de outro? Impugnacao da perserveranca, ingénua ¢ natural, no ser! P. N. — Cita, em epigrafe de Autrement qu’étre, uma frase de Pascal: «Este € © meu lugar ao sol. Eis 0 ‘comeco ¢ a imagem da usurpacao de toda a terra» «Servimo-nos da concupiscéncia como pudemos para a por ao servico do bem piiblico. Mas isto é s6 fingimento ¢ uma falsa imagem da caridade. No fundo, nao passa de édio»(). Porém, se conviermos que esta questio € a tiltima questo, ou a primeira, da metafisica, como € que empenha a sua propria resposta? Chegaria ao ponto de dizer que nao tem o direito de viver? E. L. — De modo algum quero ensinar que o suicidio deriva do amor ao préximo e da vida verda- deiramente humana. Quero dizer que uma vida ver- dadciramente humana nao pode permanecer uma vida satisfeita na sua igualdade ao ser, vida de quiew- de, que cla desperta para 0 outro, isto é, vai perdendo as ilusdes, que 0 ser nunca é - contrariamente ao que dizem tantas tradic6es tranquilizadoras — a sua pro- pria razio de ser, que © famoso conatus essendi nao é a fonte de todo 0 direito € de todo o sentido. () Pascal, Pensées, Br. 295 © 451. INDICE CAPITULO I~ Batis Filosofia CAPITULO It ~ Heidegger: CAPITULO m - 0-H = CAPITULO IV ~ A Solio do Ser CAPITULO V- 0 Amor € a Fiiagio CAPITULO VI ~ Segredo ¢ Liberdade . CAPITULO VII 0 Rosto CAPITULO Vit ~ A Responsibitidae por Outrem CAPITULO IX — A Gira do Testemunbo CAPITULO X ~ A Dureza da Filosofia € as Consolaies Da Religio..93

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