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GABRIEL DE TARDE AS LEIS DA IMITAGAO rés Consutor cient fica Paulo Ferreira da Cunha Fieve orginal ALES LOISDE LIMITATION» Trauglo de Carlos Fernandes Maia com a colsboragiio de Moria Manuela Mais Reservados 0s direitos desta edigao por RES-Editora, La, Pr. Marqués de Pombal, 78, 4000 PORTO PORTUGAL PREFACIO. da segunda edicdo Desde @ primeira edigdo deste tivro, j4 publiquei @ sua continuagao e 0 complemento, com titulo Légica Social. Por isso, creio ter j& respondido implicitamente @ certes objecgdes que a leitura de Leis da Imitagao Pudesse ter feito nascer. Nao é contudo, initil dar a este respeito algumas breves explicacoes. Censuraram-me aqui e acold por "ter muitas vezes chamado imitagéo @ factos 20s quais este rome nao con- vém de forma alguma". Reparo que me admira por vir da Pena de um fildsofo. Com efelto, sempre que o fildsofo tem necessidade de um termo para exprimir uma genera- lizagao nova s6 Ihe resta a escolha entre dues caidas: ou © neofogismo, se nae pode fazer de outro modo, ou, 0 gue vale incontestavelmente muito mais, a extenséo de um antigo vocadulo. Toda a questdo esté em saber se eu sstend abusivamente — no digo sob o ponto de vista das definigées de dicionério, mas a partir de uma nogéo Mais profunda das coisas — o significado da palavra imi- tagao. Ora, eu sei perfeitamente que nao esté conforme 20 uso corrente dizer de um homem, quando ele sem dar conta € involuntariamente reflecte uma opiniée de outro ou se deixa sujestionar por uma acgéo de outro, que ele Imita essa ideia ou esse acto. Mas, se 6 consciente Geliberadamente que ele recebe o seu vizicho uma forma de persar ou de agir, concorda-se que 0 emprego do termo de que se trata 6 aqui legitimo. Nada, contudo, & menos cientifico do que esta separagéo sbsoluta, esta descontinuidade avivada, estabelecida entre o voluntério e 0 inwoluntério, entre o corscierte e o inconsciente. Nao se passa por graus insersfveis da vontade reflectida para o hébito mais ou menos mecarico? E um mesmo ‘acto muda absolutamente de ratureza durante esta passa gem? Nao € que ou regue a importancia da mudanca psicolégica como produto do acaso; mas, no seu aspecto so Gial, 0 fendmeno permaneceu o mesmo. Néo se teria o di- Feito de criticar como abusivo o alargamento do significado do termo em questdo a nao ser que, a0 estendé-lo, eu o tivesse deformado e tornado insignificante. Mas eu dei- xei-lhe um sentido sempre muito preciso e caracter(stico: o de uma acgao & distancia de um espirito sobre um outro, e de uma acgéo que corsiste ruma reproduce quase fotogréfica de um cliché cerebral pela placa sen- sivel de um outro cérebro (1). Se num certo momento a placa fotogréfica se tornasse consclente do que se imprimiu neta, 0 fenémeno mudaria essencialmente de ratureza? — Entendo por imitacao toda a gravacao foto- gréfica inter-espiritual, por assim dizer, quer seja querida ou no, passiva ou activa. Se repararmos que em qualquer lado orde hd uma relacao social qualquer entre dois seres Vivos hé uma imitagao neste sentido (seja de um pelo outro, sej2 de outros pelos dois, como, por exemplo, ‘quando se conversa com alguém falando a mesma lingua, fazendo rovas provas verbais de muito antigos clichés), concordar-se-4 que 0 socidlogo esteja autorizado a por em evidéncia esta nocao. A titulo bem mais justo me poderiam censurar por ter estendido para além da medida o sentido do termo lnvengéo. E certo que eu atribu’ este nome a todas as iniciativas individuais, nao somente sem ter em conta o seu grau de consciéncia — porque muitas vezes 0 individuo (1) Ou do nesno cérebro. se se tratar da initagdo de si nestos porque © mendria e 0 hébito, que so 0s dois ranos dels, dever ser relacionados, para seren ben compreendidos, con a initagio de outro, a Gnica de que nos ocupamos aqui. 0 psicolégico expl pelo socil, previsanente porque o social nasce do psicolégico. 6 inova no seu fntimo, e, para dizer a verdade, o mais imitador dos homens inovador por qualquer lado — mas ainda sem reparar absolutamente nada na maior ou menor dificuldade e no mérito da inovacto. Nao é que eu des- conhega a_importancia deste Jitimo ponto de vista, e tais invengdes sejam tao faceis de conceber que se possa admitir que elas estéo presentes quase por todo o lado, sem qualquer influéncia, nas sociedades primitivas, e que © acidente da sua apari¢ao aqui ou acolé pela primeira vez pouco importe. Outras descobertas, pelo contrério, so tao arduas que o feliz acaso de um génio que as atinge pode ser visto como uma oportunidade singular entre todas e de uma importancia maior. Pois bem, apesar de tudo, creio que mesmo aqui tive razao para fazer & linguagem comum uma ligeira violéncia ao classificar de invengdes ou descobertas as inovacdes mais simples, tanto mais que as mais féceis nem sempre s8o as menos fecun- das, nem as mais diffceis sao as menos inéteis. que 6 realmente abusivo, em compensacao, é a acepgao elés- tica dada por muitos socidlogos ‘naturalistas @ palavra hereditariedade, que thes serve para exprimirem indistin- tamente a transmissao de caracteres vitais por geracio, a transmisséo de ideias, de costumes, de coises sociai por tradi ancestral, por educagdo doméstica, por i tagio-hébito. Do resto, o que hé talvez de mais fécil relativa- mente & concepgao é um neologismo tirado do grego. Em vez de dizer invengéo ou imitagéo, teria podido forjar, sem muita dificuldade, duas palavras noves. — Mas deixe- mos esta pequena questao sem interesse. — 0 que 6 mais grave, 6 que me acuseram, por vezes, de exagero no emprego das duas nogdes em questo. Censura um pouco banal, 6 um facto, @ a qual todo o novato deve esperar, mesmo que tivesse pecado por exces- so de reserva na expresso do seu pensamento. Estai se- guros de que, logo que um filésofo grego pensou dizer que 0 sol era talvez muito maior que o Peloponeso, os seus melhores amigos foram undnimes em reconhecer que navia qualquer coisa de verdadeiro no fundo do seu enge: nhoso paradoxo, mas que, evidentemente, ele exagerava. — Em geral, néo se tomou grande cuidado com o fim que eu me propunha e que era de separar dos factos humanos 7 © seu lado scciolégico puro; feita a abstraceéo, por hi- potese, do seu lado biolégico, insepardvel, contudo, sei-o eu muito bem, do primeiro. O meu plano sé me permitiu indicar, sem grande desenvolvimento, as relacies das trés formas’ principais da repetigao universal, nomeadamente da hereditariedade com a imitacao. Mas ja disse bastante sobre isso, creio eu, para nao deixar dtvida alguma no meu pensamento, @ respeito da importancia da raca e do meio fisico. Por outro lado, dizer que o carécter distintivo de qualquer relaggo social, de qualquer facto social, 6 ser imitativo, 6 dizer, como certos leitores superficiais pare- ceram acreditar, que haja, a meu ver, outra relagao social, outro facto social, outra causa social, para além da imi- tagéo? Igualmente, valeria a pena dizer que toda a fungao social viva se reduz & geragéo e que todo o fenémeno vivo se reduz & hereditariedade, porque em todo o ser vivo tudo 6 gerado e hereditério. As relagées sociais so miltiplas, t8o numerosas e to diversas que podem ser os objectos das necessidades e das ideias do homem e@ os apoios ou os obstéculos que cada uma destas necessidades e cada uma destas ideias oferece ou opde as tendéncias @ Bs opinides de outro, semelhantes ou diferentes. No meio desta complexidade infinita, convém reparar que estas relacoes sociais tao variadas (falar e escutar, pedir @ ser pedido, comandar e obedecer, produzir e consumir, etc.) se referem a dois grupos: uns tendem a transmitir de um homem a outro, por persuaséo ou autoridade, por vontade ou & forga, uma crenga; os outros, um desejo. Dito de outro modo, uns so variedades ou veleidades de ensinamento, outros so variedades ou veleidades de co- mando. E 6 precisamente porque os actos humanos im tados tém esta caracteristica dogmdtica ou imperiosa que a imitagéo é um laco social; porque o que liga os homens 6 0 dogma (1) ou o poder. (Sé foi vista metade desta variedade, e viu-se mal, quando se disse que 2 caracteristica dos factos sociais era de serem coagidos e 1) 0 dogma quer dizer toda a ideia, religiosa ov nao, politica, por exemplo, ov outra qualquer, que se implants no espirito de cada associado or pressao da ambiente. 8 forgados. € descenhecer o que neles hé de espontaneidade na maior parte da credulidade e da docilidade populares). = Nao 6, portanto, por exagero que eu pequei nes~ se livro; por isso, fi-lo reimprimir sem qualquer supresséo. — € por omisséo, acima de tudo. Nunca nele falei de uma forma de imitagdo que desempenha um grande papel nas sociedades, sobretudo nas sociedades contempordneas; @ apresso-me a tapar aqui essa lacuna, Com feito, ha duas maneiras de imitar: fazer exactamente como o seu modelo, ou fazer exactamente o contrério. Daf a neces- sidade dessas divergéncias que Spencer constata, mas nao explica, pela sua lei da diferenciacéo progressiva. Nao se saberia afirmar nada sem sugerir, num meio social por pouco complexo que seja, néo somente a ideia que se afirma, mas também a negacao dessa ideia. Eis porque © sobrenatural, afirmando-se na aparigao das teologias, sugere 0 naturalismo que é @ sua negagao (ver Espinas a este respeito); eis porque o espiritualismo, ao afirmar-se, dé a ideia do’ materialismo; a monarquia, ao estabelecer- -se, d& a ideia da repiblica, etc. Diremos, portanto, agora com maior amplitude, que uma sociedade 6 um grupo de pessoas que apresentam entre elas semelhangas produzidas por imitacao ou por contra-imitago. Porque os homens contra-imitam-se muito, sobretudo quando eles nao tém nem a modéstia de imitar pura @ simplesmente, nem a forca de inventar; @ ao contra-imitar, quer dizer, ao fazer, ao dizer tudo ‘oposto 30 que querem fazer ou dizer, assim como ao fazer ou dizer precisamente o que se faz ou o que se diz & sua volta, vdo assimilando cada vez mais. Para além da conformidade com os costumes, em questdes de enterro, casamentos, ceriménias, visitas, cortesias, naca ha de mais imitative do que lutar contra a sua prépria inclina- do para seguir esta corrente e fingir superé-la. J& na Idade Média a missa negra nasceu de uma contra-imitagao da missa catélica, — Na sua obra sobre a expressao das emogées, Darwin concede, com razéo, um lugar de desta~ que & necessidade de contra-exprimir. Quando é proclamado um dogma, quando um progra ma politico & afixado, 03 homens classificam-se em duas categorias: 05 que se inflamam a favor e os que inflamam contra, Nao hé manifestacZo que ndo vé recrutando mani festantes © que ndo provoque a formagao de um grupo de contra-menifestantes. Toda a afirmagao forte, 0 mesmo tempo que arrasta consigo os espirites medianos @ monétonos, suscita, nalgum lado, num cérebro nascido rebelde, 0 cue nao quer dizer nascido inventive, uma negacao diametralmente contréria e de forca mais ou menos igual. Isto recorda as correntes de indugao em fisica. — Mas tanto uns como outros tém o mesmo con- teddo de ideas e de projectos, sao associados apesar de adversérios ou porque adversérios. Distingamos bem entre a propagagéo imitativa das questdes e a das solugdes. Que uma solugéo se propague aqui e uma outra algures, isso ngo impade de o problema ser propagado tanto aqui ‘como noutro lado. Nao € claro que em cada época, entre 6s povos com relacées frequentes, sobretudo na nossa época (porque jamais as relacoes internacionais foram téo variadas), a ordem de dia dos debates sociais e dos debates politicos € a mesma por toda a parte? E esta semelhanga néo é devida a uma corrente de imitagao explicdvel ele mesma por necessidades e ideias expandidas por contagios imitativos anteriores? Néo é por esta causa que as questées operdrias neste momento sio agitadas por toda a Europa? — A propésito de uma ideia qualquer avangada pela imprensa cada dia, repito-o, 0 piblico divide-se em dois campos: os que "sao desse parecer e 0s que "nao séo desse parecer". Mas estes ndo mais do que aqueles, néo admitem que alguém se possa preocupar, nesse momento, com outra coisa do que com a questao que Ihes 6 assim posta e imposta. Sozinhos, alguns es- plrites rebeldes, estranhos, com 0 seu toque de finedos, no tumulto co oceano social em que estdo merguihados, ruminam aqui e acolé problemas bizarros, absolutamente desprovidos de actualidade. E séo estes os inventores de amanha. E preciso tomar muito culdado para nao confundir com a invengao a contra-imitagao, seu disfarce perigoso. Nao 6 que esta nao tenha a sua utilidade. Se ela alimen- ta 0 espirito de partido, 0 espirito de divisio belicosa ou Pacitica entre os homens, ela inicia-os no prazer muito social da discussao, atesta a origem simpética da prépria contradicao, pela razéo de que as préprias contra-corren- tes nascem da corrente.~ E preciso nao confundir também 10 a contra-imitagéo com a nao-imitagdo sistemética de que deverei falar também neste livro. A nao-imitagao nem sempre 6 um simples facto negativo. O facto de no se imitar, quando néo se esté em contacto — om contacto social, pela possibilidade prética das comunica- gdes — & simplesmente uma relagio nao-social; mas 0 facto de nao imitar tal vizinho muito préximo poe-nos numa relacdo realmente anti-social. A obstinagao de um povo, de uma classe de um povo, de uma cidade ou de uma’ aldeia, duma tribo de selvagens isolados num conti~ nente civilizedo, em nao copiar as roupas, os costumes, a linguagem, as inddstrias, as artes, que constituem @ civilizagéo da sua vizinhanca € uma continua declaracéo de antipatia dirigida a essa forma de sociedede que se proclama absolutamente estrangeira e para sempre; e, de forma semelhante, quando um povo se poe, com um pre~ conceito sistemético, a ndo reproduzir os exemplos dos seus antepassados, em matéria de ritos, de usos, de ideias, isso 6 uma verdadsira dissaciagéo dos pais e dos filhos, rotura do cordao umbilical entre a nova e a velha socie- dade. A nao-imitagéo voluntéria e perseverante, neste sentido tem um papel purificador, bastante andlogo a0 que desempenha o que eu chamei duelo Iégico. Do mesmo modo que este tende @ purificar 0 amontoado social das ideias e das vontades misturadas, a eliminar as disparidades © as dissonancias, a facilitar de algum modo a acco organizadora da uniao Iégica, assim a néo-imitacéo dos modelos exteriores @ heterogéneos permite a0 grupo harmonioso modelos interiores de estender, prolongar, enraizar em hébito @ imitacdo de que eles sio objecto; e, pela mesma razéo, a ndo-imitagao dos modelos ante- lores, quando chegado o momento de uma revolucao civilizadora, trava 0 caminho & imitacdo-moda que j4 no encontra entraves & sua ac¢ao conquistadora. Esta obstinagdo invencivel — momentaneamente invencivel ~ de nao-imitagao tem por causa tnica ou principal, como escola naturalista era levada a pensar hé alguns anos, ainda, a diferenga de raga? De forma alguma. Primeiramente, quando se trata da néo-imitagdo dos exem- plos paternais, em épocas revoluciondrias, € claro que causa indicada ndo poderia ser posta em primeiro lugar uma vez que a nova geracdo é da mesma raga que as 1" geragées anteriores das quais ela rejelta as tradigdes. Depois, se se tratar da ndo-imitaco do estranho, a obser- vagao histérica mostra que esta resisténcia as influéncias do exterior esté longe de se proporcionar com as disse- melhangas dos caracteres fisicos que separam os povos. De todas as nagées conquistadas por Roma nenhuma delas estava mais préxima dela pelo sangue do que as popula gdes de origem grega; e estas sdo precisamente as tnicas que escaparam & propagagao da sua Ifngua, a assimilacao da sua cultura e do seu génio. Porqué? Porque sozinhas, a despeito da sua derrota, elas tinham podido e devido guardar 0 seu tenaz orgulho, o indelével sentimento da sua superioricade. Em favor’ da idela de que as racas distintes eram impermedveis, por assim dizer, a trocas reciprocas, um dos mais fortes argumentos que se podia citar ainda hé uns trinta anos era o encerramento her- mético oposte pelos povos do Extremo Oriente, Japao ou China, @ tode a cultura europeia. Mes a partir do dia, bastante recente, em que os japoneses, téo distanciados de nés pela cor, os tragos, a constituicéo corporal, sen- tiram, pela primeira vez, que nés hes 6ramos superiores, cessaram de impedir a irradiagdo imitativa da nossa civi- lizagéo pelo écran opaco de outrora; pelo contrério, pro curaram-na com ansiedade. E o mesmo acontecerd com @ China, se jamais ela pensar em reconhecer que em certos aspectos, — néo em todos, espero eu — nés somos superiores. Objectar-se-ia em vao que a transformacao do Japao no sentido europeu é mais aparente do que real, mais superficial que profunda, que ela 6 devida a inicia~ tiva de alguns homens inteligentes, seguidos por uma parte das classes superiores, mas que @ grande massa de nago permanece refractéria a esta penetracdo do estrangeiro. — Objectar assim seria ignorar que toda a Fevolugdo intelectual @ moral, destinada a modificar pro- fundamente um povo, comega sempre deste modo. Sempre uma élite importou exemplos estrangeiros pouco a pouco Propagados por moda, consolidados em costume, desenvol- vidos @ sistematizados pela Iégica social. Quando o cris- tianismo entrou pela primeira vez num povo germano, selavo ou filandés, comegou da mesma maneira. Nada de mais conforme &s “leis da imitacao". Quer isto dizer que a ac¢ao da raga sobre 0 curso a civilizagao seja negado pela minha maneira de ver? De 12 forma nenhuma. Eu disse que ao passar de um meio étnico para um outro meio étnico a irradiacdo imitativa se re~ fracta; e acrescento que esta refracgao pode ser enorme, sem que da/ resulte uma consequéncia contréria por pouco que seja &s ideias desenvolvidas no presente livro, Somente, a raga, tal como ela se nos mostra, 6 um produto nacio- nal em que se fundem, no cadinho de uma. civilizagao especial, diversas rages pré-histéricas, cruzadas, destruidas, assimiladas. Porque cada civilizagéo dada, formada de ideies de génio proveniente de um pouco por todos os lados e harmonizadas logicamente em qualquer parte, faz-se através da sua raga ou das suas ragas em que ela se encarna por um tempo; e no é verdade, ao inverso, que cada raga faca a sua civilizagéo. Isto significa, no fundo, que as diversas ragas humanas, bem diferentes nisto das diversas espécies vivas, séo tao colaboradoras como concorrentes; que elas séo chamadas nao somente a combater-se e a se inter-destruir para maior proveito de um pequeno némero de sobreviventes, mas 2 se entre- ~ajudar na execucdo secular de uma obra social comum, de uma grande sociedade final, cuja unidade seré o fruto da sua prépria diversidade. As leis da hereditariedade, tao bem estudadas pelos naturalistas, nao contrariam entao em nada as nossas "leis da imitacao". Eles completam-nas acima de tudo, € nao existe sociologia concreta que possa separar estas duas ordens de consideraces. Se eu as separo aqui, 6, repito-o, porque o objecto préprio deste trabalho é a sociologia pura e abstracta, Por outro lado, eu nao deixo de indicar o seu lugar nas consideragdes biolégicas que eu negligencio de forma premeditada, porque as reservo para os mais competentes que eu. E isto por trés razdes. Primeiro, ao fazer nascer a nacéo da famflia, — porque o bando, também primitive, 6 feito de emigrados ou expul- sos da familia — afirmei claramente que, se o facto social € uma relacéo de imitagao, o Lago social, o grupo social, 6 por sua vez, imitative e hereditério. Em segundo luger, 2 invengio de que eu fago tudo derivar socialmente, nao @ aos meus olhos um facto puramente social na sua origem: ela nasce do reencontro do génio individual, erup- go intermitente © caracteristica da raga, fruto saboroso de uma série de casamentos felizes, com correntes @ ra~ 13 diagdes de imitaco que se cruzaram um dia num cérebro mais ou menos excepcional. Admiti, se o quiserdes, com M. de Gobineau, que as racas brancas sdo as Gnicas in- ventivas, ou, com um antropélogo contemporaneo, que este previlégio pertence exclusivamente &s racas dolicocéfalas: isto interessa pouco para o meu ponto de vista. E além disso eu poceria pretender que esta separacéo radical, vital, estabelecida assim entre a inventividade de certas racas previlegiadas e a imitatividade de todas é prépria pera fazer ressaltar — um pouco abusivamente, seria caso parao dizer — a verdade da minha maneira de ver. — Enfim, no que diz respeito & imitagao, nao s6 reconheci a in~ fluéncia do melo vital em que ela se propaga quando se refracta, como eu o disse mais acima, mas ainda, 20 apresentar a lei do regresso normal da moda ao hébito, do enraizamento habitual @ tradicional das inovacdes, nao dei ainda uma vez mais & imitacao por apoio necessério a hereditariedade? Mas pode-se acordar no ponto de vista biolégico dos factos sociais a mais alta importancia, sem ir até estabelecer entre as diversas ragas, supostas primi~ tivas e pré-soclais, uma separacdo estanque que torne im- possfvel toda a endosmose ou exosmose da imitacéo. E é a Gnice coisa que eu nego. Entendida neste sentido abusive @ erréneo, a ideia de raga conduz o sociélogo que a toma Por guia @ representar-se o termo do. progresso social como uma amdlgama de povos separados, entrincheirados, fechados uns aos outros @ em guerra eterna uns com os outros. Também se encontrar geralmente esta variedade de naturalismo associada & apologia do militarismo. Ao contrério, as ideias de invengao, de Imitacdo e de légica social, escolhidas como fio condutor, levam-nos & pers- Pectiva mais animadora de um grande confluente futuro = se nao, quem dera! préximo — das miltiplas humanidades numa Gnica familia humana, sem conflitos bélicos, Esta idela do progresso indefinido, téo vaga como tenaz, nao ganha um sentido claro e preciso senao sob este ponto de vista. Das leis da imitagao deriva a necessidade dum caminhar em frente para um grande fim longinquo cada vez melhor atingido, apesar de através de recuos notérios mas passageiros, isto 6 (sob a forma imperial ou sob for- ma federativa, néo importa), 0 nascimento, 0 crescimento, @ expansdo universal de uma sociedade Unica. E, de facto, 14 permitir-me-ao observer que, entre as previsdes de Con- dorcet relativas aos progressos futuros, os tnicos que foram considerados justos — por exempio a respeito da extensao e do nivelamento graduais da civilizagao euro- peia — so consequéncias das leis de que se trate. Mas se ele tivesse reparado nestas leis, teria dado 20 seu pensamento uma expresséo ao mesmo tempo mais exacta @ mais precise. Quando ele prevé, especialmente, que a desigualdade das diversas nagdes iré diminuindo, 6 diss melhanga social que ele deveria ter dito ¢ ndo desigual- dade: porque entre os mais pequenos e os maiores Estados, a desproporgo de forcas, de extenséo, e da prépria ri- queza vai, pelo contrério, aumentando, o que nao impede © progressos incessantes da assimilagao internacional. Seré mesmo certo que, sob todos os aspectos, a desigual- dade entre os individuos deve diminuir sem cessar, como previu o ilustre fildsofo? A sua desigualdade relativamente 2 ideias e a talentos? De forma nenhuma. Relativamente 20 bem-estar e &s riquezas? E duvidoso. & verdade que a sua desigualdade relativamente a direitos acabou por desaparecer ou acabaré om breve por desaparecer; mas porqué? Porque a semelhanga crescente dos individuos entre os quais todas as barreiras habituais da imitacdo reciproca foram rompidas,e que se entre-imitam cada vez mais livremente, ento, mas cada vez mais necessaria~ mente, fé-los sentir com uma forca crescente e irresis- tivel, por fim, a injustica dos previlégios. Entendamo-nos bem, contudo, sobre esta semelhanca Progressiva dos individuos, longe de abafar a sua originali- dade prépria, ela favorece-a e alimenta-a. O que é con- trério & valorizagéo pessoal é a imitacdo de um dnico homem, sobre o qual alguém se modela em tudo; mas quando, em vez de se regular sobre algum ou sobre alguns, se recebe de cem, de mil, de dez mil pessoas consideradas cada uma sob um aspecto particular, elementos de ideia ou de acg&o que se combinam em seguida, a prdpria natureza @ a escolha destas cépias elementares, assim como a sua combinagio, exprimem e acentuam a nossa personalidade original. E tal 6 talvez o beneficio mais Aitido do funcionamento prolongado da imitacéo. Poder- -se-ia perguntar até que ponto a sociedade, este longo sonho colectivo, este pesadelo colectivo téo frequente, 15 vale o que custa om sangue © em légrimas; se esta dis- ciplina dolorosa, este prestigio ilusério e despético, nao serviria precisamente para libertar o individuo suscitando Pouco a pouco do mais profundo do seu coracao © impeto mais livre, 0 olhar mais ousado lancado sobre a natureza exterior e sobre si mesmo; e, despontando por todo o 'ado j& néo as cores de almas videntes e violentas de cutrora, as individualidades rudes, mas feigdes de alma profundas e unidas, tio marcadas como civilizadas, desa- brochar ao mesmo tempo do individualismo mais puro, mais forte, e da soclabilidade consumada. G. Te Maio de 1895 16 PREFACIO da Primeira Edicao Neste livro tentei deduzir, com a maior nitidez possivel, © lado puramente social dos factos humanos, Bo contando com aquilo que neles 6 simplesmente vital ou fisico. Mas, precisamente, sucedeu que o ponto de vista em favor do qual eu marquei bem esta diferenca me mostrou entre os fenémenos socials © os fenémenos de ordem natural, as mais numerosas analogias, as mais seguidas, as menos forgadas. Ha j4 longos anos que enun- ciel e desenvolvi aqui e acolé, na Revista Filoséfica, a minha ideia principal — "cheve que abre quase todas as fechaduras", teve 2 amabilidade de me escrever um dos nossos maiores filésofos historiadores; °, como o plano desta obra estava desde entéo no meu pensamento, varios dos capitulos de que se trata puderam sem dificuldade entrar na composigao desta sob a forma de capitulos (1). Nao fiz mais, a0 refundi-los, do que tiré-los da forma do (1) Sao os capitulos PRINEIRO, TERCETRO, QUARTO © QUINTO, modifica- dos ou anpliados. 0 primeiro foi publicado en Seteabro de 1882, 9 terceiro en 1884, 9 quarto en Outubro e Novenbro de 1883, 0 quinto em 1868. — Wao julguei bem dever reproduzir aqui muitos cutros artigos sociolégices publicados na mesma recolha, mas des- tinados @ una revisao ulterior. Numa outra obra (A FILOSOFIA PENAL), desenvolvi a aplicagio do tu ponto de vista s0 lado criminal @ penal das sociedsdes, como Ja 0 tinha tentado na minha CRIMINALIDADE COMPARADA. 7 seu primitivo destino. Os sociélogos que me deram a hon- ra, algumes vezes, de reparar na minha maneira de ver poderao agora, se 0 julgarem conveniente criticé-la com conhecimento de causa endo a pertir de fragmentos iso- lados. Desculpar-ihes-ia terem sido severos para comigo se tivessem sido benevolentes para com a minha ideia, 0 que ndo seria impossivel. Ela pode, com efeito, ter razao de se queixar de mim, como a semente da terra, mas desejo, nese caso, que na continuacao desta publicacao ela caia num espirito melhor preparado do que o meu para Ihe dar valor. Esforcei-me, portanto, por esbocar uma sociologia pura. E 0 mesmo que dizer uma sociologia geral. As leis desta, tal como eu a compreendo, aplicam-se a todas as sociedades actuais, passadas ou possiveis, como as leis da fisiologia geral a todas as espécies vivas, extintas ou concebivels. E muito mais facil, nao discord disso, pér e prover estes princfpics, de uma simplicidade igual & sua generalidade, do que segui-los nos meandros das suas aplicagdes particulares; mas néo 6 menos necessério for mulé-tos. Por filosotia da histéria, pelo contrério, ¢ por filosofia da natureza, entendia-se antigamente um sistema de explicagao histérica ou de interpretaco cient ifica que procurava explicar o grupo inteiro ou a série inteira dos factos da histéria ou dos fenémenos naturais, mas apresentados de tal maneira que @ possibilidade de qual- quer outro agrupamento e de qualquer outra sucesso fosse exclufda. Daf o insucesso destas tentativas. O real no 6 explicével sendo ligado & imensidade do possivel, isto 6, do necessério sob condicao, em que ele navega como a estrela no espaco infinito. A prépria ideia de lei & a concepcao deste firmamento de factos. Certamente, tudo est rigorosamente determinado, © a realidade nao podia ser diferente, dadas as suas con— diges primordiais e incégnitas. Mas porqué estas e nao outras? Na base do necessério existe o irracional. Também. no dominio fisico e no dominio vivo, como no mundo social, 0 realizado parece nao ser mais do que um frac- mento do realizavel. Veja-se o cardcter disperso e frag- mentério dos céus, com a sua disseminac&o arbitréria de s6is e de nebulosas; 0 ar bizarro das faunas e das floras; 18 © aspecto mutilado e incoerente das sociedades que se justapoem, confusdo de vestigios e de ruinas. Sob este ponto de vista, como em tantos outros aspectos que assi- nalarei de passagem, os trés grandes compartimentos da realidade assemelham-se muito bem. Um capitulo deste livro, o que se intitula as leis Iégicas da imitag&o, s6 6 aqui colocado como a primeira pedra duma obra ulterior destinada a completar esta. Se tivesse dado ao assunto todos os desenvolvimentos que ele comporta, este volume néo teria chegado. ‘As ideias que eu exprimo poderiam fornecer, creio eu, solugdes novas para as questées pol/ticas ou outras que nos dividem agora. Nao acho bem dever deduzi-las, e a categoria de leitores & qual me dirijo nao me reprovard de ter negligenciado este atractivo de actualidade. Nao © teria podido fazer, por outro lado, sem sair dos limites do meu trabalho. Uma palavra ainda para justificar a minha dedica~ téria, No sou nem o aluno, nem mesmo o discipulo de Cournot. Nunca o vi nem conheci. Mas tive multa sorte na minha vida em té-lo lido muito quando saf do colégio; muitas vezes pensei que the faltou unicamente ter nascido inglés ou alemao e ter sido traduzido num francés abun- dante de solecismos para ser ilustre entre nés; sobretudo, jamais esquecerei que, num perfodo nefasto da minha juventude, doente dos olhos, tornado por forga unius libri, devo-Ihe néo ter morrido completamente de fome mental. Mas rir-se-iam de mim, de certeze, se ndo me apressasse 2 juntar que a este sentimento desmedido de gratidao intelectual a0 qual obedego se acrescenta um outro, muito menos desinteressado. Se 0 meu livro — eventuelidade que um filésofo em Franca deve sempre encarar, mesmo apesar de ndo ter tido ainda sendo do que contentar-se com a benevoléncia do piblico — fosse mal acolhido, a minha dedicatéria oferecer-me-ia a propésito um objecto de con- solago. Ao sonhar, entao, que Cournot, esse Seinte-Beuve da critica filoséfica, esse espirito tao orignal como sensato, tao enciclopédico e compreensivo como penetran- te, esse gedmetra profundo, esse Idgico fora de série, esse economista extraordindrio, precursor desconhecido dos novos economistas e, numa palavra, esse Augusto 19 Comte aperfeicoado, condensado, clarificado, pensou du- rante toda a sua vida no homeme que nem mesmo depois da sua morte € muito conhecido, como ousaria eu quei- xar-me por ndo ter tido mais sucesso? 20 cAPfTULO I A repeticgo universal I Hé lugar para uma ciéncia ou somente para uma histéria © ainda mais para uma filosofia dos factos so- ciais? A questdo & sempre pendente, ainda que, para fa~ lar verdade, estes factos, se os olhermos de perto e sob um certo angulo, sejam susceptiveis, tal como os outros, de se resolverem em séries de pequenos factos similares @ em férmulas chamadas leis que resumem essas séries. Porqué, entao, a ciéncia social ainda esté a nascer ou a acabar de nascer no meio de todas as suas irmas adultas @ vigorosas? A principal razéo, a meu ver, 6 que se dei- xou aqui a presa pela sombra, as realidades pelas pala— yras. Ninguém acreditou poder dar & sociologia uma feigéo cientifica sendo dando-Ihe um ar biolégico, ou, melhor ainda, um ar mec&nico. Era procurar esclarecer 0 conhe- cido pelo desconhecido, era transformar um sistema so~ lar em nebulosa nao resoltivel para melhor o compreender. Em matéria social tem-se & mao, por um especial privi- \égio, as causas verdadeiras, os actos individusis de que 98 facts so feitos, 0 que esté absolutamente fora dos Nossos olhos em qualquer outra matéria. Esté-se, portan~ to, dispensado, parece, de ter de recorrer, para a expli- cacao dos fenémenos da sociedade, a estas causas, ditas Gerais, que os fisicos e os naturalistas so obrigados a criar com o nome de forcas, de energias, de condicées de existéncia @ de outros paliativos verbais da sua igno- rncia sobre 0 fundo ni'tido das coisas. 2 AS LEIS DA IMLTAGKO ~ Mas considerar os actos humanos como os inicos Factores da histéria...! Isso 6 muito simples. Impés-se a obrigagao de forjar outras causas sobre o tipo destas ficgdes, Gteis que tém, por outro lado, um curso predeterminado; € felicitamo-nos por ter assim dado por vezes aos factos humanos, vistos de muito alto, perdidos de vista, por assim dizer, uma cor completamente impessoal. Acautelemo-nos deste idealismo vago; acautelemo-nos também do individua- lismo banal que consiste em explicar as transformacées so- ciais pelo capricho de alguns grandes homens. Digamos an~ tos de mais que elas se explicam pela aparigao, acidental em certa medida, quanto ao seu lugar @ a0 seu momento, de algumas grandes ideias, ou antes, de um numero conside- rével de Ideias pequenas ou grandes, féceis ou dificeis, 0 mais das vezes imperceptiveis & nascenga, raramente glo- riosas, em geral anénimas, mas ideias sempre novas, que em razdo desta novidade eu me permitirei de bapti- zar colectivamente de invengdes ou descobertas. Por estes dois termos entendo uma inovacéo qualquer ou um aperfei- goamento, por mais ténue que seja, acrescentado a uma inovagéo anterior, em qualquer ordem de fendmenos so- ciais (linguagem, religiéo, polftica, direito, inddstria, arte). No momento em que esta novidade, pequena ou grande, & concebida cu resolvida por um homem, nada mudou apa— rentemente no corpo social, como nada mudou no aspecto fisico de um organismo em que um micrébio, quer nefas- to, quer benéfico, entrou; e as mutagdes graduais que acarreta a introdugao deste elemento novo no corpo so- cial parecen dar continuagao, sent descontinuidade vist- vel, &s mutagdes anteriores na corrente das quais elas se inserem. Daf uma enganadora iluséo que leva os fild-. sofos historiadores a afirmar a continuidade real e funda mental das metamorfoses histéricas. As suas verdadeiras causas, contudo, resolvem-se numa série de idelas muito Rumerosas na verdade, mas distintas e descontinuas, ain~ da que unidas entre elas pelos actos de imitagao, muito mais numerosos ainda, que as tomam por modelos. E preciso partir daqui, isto 6, de iniciativas reno- vadoras, que, trazendo ao mundo ao mesmo tempo necessi- @ A REPETTGIO UNIVERSAL dades novas e novas satisfagdes, nele se propagan em se- guide ou tendem a propagar-se por imitacao forgada ou espontanea, electiva ou inconsciente, mais ou menos ra- pidamente, mas em passo regular, 8 mansira cuma onda luminosa cu de uma familia de formigas. A regularidade de que falo néo 6 de forma nenhuma evidente nos factos sociais, mas descobrir-se-& se os decompusermos em tan- tos elementos quanto neles haja, até ao meis simples dentre eles, Bs invengées distintas combinadas, cos clardes de génios acumulados @ tomados luzes banais: anélise, é verdade, bem diffcil. Socialmente, néo passa tudo de in- vegies e imitagdes, © estas sdo os rios de que aquelas so as montanhas; nada menos subtil, de certeza absoluta, que esta viséo; mas, seguindo-a ousadamente, sem reser- va, desdobrando~a desde 0 mais pequeno detalhe até a0 mais completo conjunto dos factos, talvez se observe co- mo ela 6 apta a pér em relevo todo o pitoresco e, por sua vez, toda a simplicidade da histéria, para revelar pers- Pectivas ou tao bizarras como uma paisagem de rochedos ou t&o regulares como um planalto. Isto 6 ainca idealis- mo, se se quiser, mas idealismo que consiste em explicar We @ historia peles ideias dos seus autores e nao pelas do historiador. & Antes de mais, ao considerar sob este Angulo a ciénc social, vé-se a sociologia humana atrelar-se as sociolo- gias animais (por assim dizer) como a espécie 20 género: espécie singular @ infinitamente superior &s outras, quer dizer, fraterna. No seu belo livro sobre as Sociedades animais, que 6 muito anterior & primeira edigdo da pre~ sente obra, M. Espinas diz expressamente que os traba~ thos das formigas se explicam muitfssimo bem pelo pri cipio "da iniciativa individual seguida da imitaggo". Esta iniciativa 6 sempre uma inovacéo, uma inveng&o igual as Nossas em arrojo de espfrito. Para ter a idela de cons- truir um arco, um tine! aqui ou acold, antes aqui do que acold, uma formiga deve ser dotada de uma inclina- $80 inovadora que iguala ou ultrapassa a dos nossos en- Genheiros construtores de fstmos ou de montanhas. Entre Paréntesis, segue-se daqui que a imitacao destas iniciati- 23 AS LEIS OA IMITAGKO A REPETICRO UNIVERSAL vas tio novas pela massa das formigas desmente de uma maneira evidente o pretenso misoneismo dos animais (1). Muitas vezes M. Espinas, nestas observaces sobre 0s nos- sos irmos inferiores, ficou impressionado com o papel importante que neles desempenha a iniciativa individual. Cada menada de bois selvagens tem os seus leaders, a5 suas cabecas influentes. Os aperfeicoamentos do instinto dos passaros, segundo o mesmo autor, explicam-se por “uma invencdo parcial, transmitida em seguida de geracéo fem geragio por ensinamento directo". Se se pensa que as modificagdes do instinto se ligam provavelmente ao mesmo principio que as modificagdes da espécie e da génese de novas espécies, talvez se seja tentado a pergun- tar se o principio da invencao imitada, ou de qualquer outra coisa andloga fisiologicamente, nao seria a expli- cacao mais clara possfvel para o problema sempre pen- dente das origens especificas. Mas deixemos esta questo @ limitemo-nos a constatar que, animais ou humanas, as sociedades se deixam explicar por esta maneira de ver. Em segundo lugar, ¢ & a tese especial do presente capitulo, sob este ponto de vista nota-se que o objecto da ciéncia social apresenta uma analogia considerével com outros dominios da ciéncia geral @ se reincorpora tam~ bém, por assim dizer, no resto do universo no seio do qual fazia efeito de um corpo estranho. Em qualquer domfnio de estudos, as constatagées puras e simples excedem prodigiosamente as explicagdes. E por tudo 0 que &simplesmente constatado entende-se os (A) Nas espécies superiores de formigas, segundo M. Espinas, "0 IN- DIVEDUO DESENVOLVE UMA INICIATIVA ESPANTOSA", Como iniciam os tra~ fli casa ligrag tes de farmigeattest Edgor:-an/Aepllsvtcdand feted” tintivo, espontine, partido de todos os associados 20 meso tespo, sob a prestio das circunstincias exteriores suportadas 20 mesmo tempo por todas as formigas? lio; un individuo isola-se, mete-se a0 trabalho em priveiro, e bate nos seus vizinhos con a5 sua antenas para os advertir que t@n de Ihe dar a sua mio forte. 0 contégio initativo faz 0 resto. primeiros dados, acidentais © bizarros, premissas © origens donde deriva tudo 0 que 6 explicado. Hé ou houve certas nebulosas, certos globos celestes, de certa massa, de certo volume, a certa distncia; hé certas substancias quimicas; hd certos tipos de vibragées etéreas, chamadas luz, electricidade, magnetismo; hé certos tipos organicos principais, e, antes de mais, hé animais, hé plantas; hé certas cadeias de montanhas, chamadas os Ajpes ou os Andes, etc. Quando nos ensinam estes factos capitais donde’ se deduz tudo o resto, 0 astrénomo, 0 quimico, © fisico, © naturalista, 0 gedgrafo tém papel de cien- tistas propriamente ditos? Nao, fazem uma simples cons tatagado e nao diferem em nada do cronista que relata a expedigéo de Alexandre ou a descoberta da imprensa. Se hé uma diferenga, vé-lo-emos, 6 antes de mais do his- toriador. Que sabemos nés, portanto, no sentido erudito da palevra? Alguém responderé, sem divida: as causas e 3 fins; e quando nés conseguimos ver que dois factos diferentes so produzidos um pelo outro ou colaboram para o mesmo fim, chamamos a Isso té-los explicado. Entretanto, suponhamos um mundo em que nada se asse- melha e nada se repete, hipdtese estranha, mas inteligi- vel em rigor; um mundo todo de imprevisto e de novidad no qual, sem meméria de qualquer espécie, a imaginagao criadora fizesse carreira, em que os movimentos dos as. tros ndo tenham ciclo, as agitagées do éter ndo tenham ritmo vibratério, as geracdes sucessives néo tenham ca- tacteres comuns nem tipo hereditério. Nada impede, ape- sar disso, que cada eparicfo nesta fantasmagoria seja produzida e determinada por uma outra, que ela trabalhe mesmo para conduzir a uma outra. Poderia af haver ainda fins e causas. Mas haveria lugar para uma ciéncia qual- quer nesse mundo? Nao; @ porqué? Porque, uma vez mais, no haveria af nem semelhangas nem repeticdes. ‘Aqui est4 o essencial. Conhecer as causas, isso per- mite prever, por vezes; mas conhecer as semelhangas, isso Permite numerar e medir sempre, ¢ a ciéncia, antes de mais, vive de ndmero © de medida. De resto, essencial nao significa suficiente. Uma vez encontrado 0 seu campo de 25 AS LETS DA TMEIAGKD semelhancas e de repetigées préprias, uma ciéncia nova deve compard-las entre si e observar o Iago de solidarie- dade que une as suas variages concomitantes. Mas, para dizer a verdade, 0 espirito ndo compreende bem, ndo ad- mite a titulo definitivo 0 lago entre causa e efeito, a nao ser na medida em que o efeito se assemelha a causa, re- pete 2 causa, quando, por exemplo, uma ondulagéo sonora gera outra ondulagéo sonora, ou uma célula outra célula semelhante. Nada de mais misterioso, dir-se-4, do que esas reproducdes. € verdade; mas, aceite este mistério, nada de mais claro do que tais séries. E cada vez que pro- duzir nao significa reproduzir-se, tudo se torna escuridao para nds (1). Quando as coisas semelhantes séo as partes de um ‘todo ou julgadas tais, como as moléculas de um mesmo volume de hidrogénio, ou as células lenhosas duma mesma 4rvore, ou 0s soldados de um mesmo regimento, a seme- Ihanga recede 0 nome de(quantidade)e néo simplesmente de@rupo> Quando, dito de outra maneira, as coisa que se repetém permanecem unidas umas as outras ao multipli~ carem-se, como as vibragées caldricas ou eléctricas, que, a0 acumularem-se no interior de um corpo, o aquecem ou electrizam cada vez mais, ou como as formacées de células similares que se multiplicam no corpo duma crian- ga em vias de crescimento, ou como as adesdes a uma mesma religiéo pela converséo dos infigis, @ repeticao, entao chama-se (crescimento)e nao simplesmente (série. Em tudo isto ndo vejo nada que singularize o objecto da ciéncia social. (1) "0 conhecinento cientifica néo deve partir necessarianente das ais pequenas coisas hipotéticas © desconhecidas. Cle encontra o seu comego em qualquer lado onde a matéria formou unidades de orden senelhante, que podem conparar-se entre elas e nedirem-se uns Yas outras; en qualquer Lady unde estas unidades se reunem en unt Gades conpostas. de orden aais elevada, forsecenio elas mesnas a nedida de conparacto destas Gltinas". (Von Naegeliy OISCURSO Wi CONGRESO DOS NATURALISTAS ALEMAES, en 1877). A REPETIGHO INTVFRSAL Interiores ou exteriores, aliés, quantidades ou gru~ pos, crescimentos ou séries, as semelhangas, as repeticdes fenomenais séo os temas necessérios das diferengas e das variagdes universais, as tramas destes bordados, as pautes desta misica. O mundo fantasmagérico que eu supunha hd pouco seria, no fundo, o menos ricamente diferenciado dos mundos possiveis. Como nas nossas sociedades o trabalho, acumulacgéo de accdes decalcadas umas sobre as outras, néo € mais renovador que as revolugies! E que hd de mais monétono do que a vida emancipada do selvagem compa- rada com a vida subjugada do homem civilizado? Sem a hereditariedade haveria um progresso orgénico possivel? Sem a periodicidade dos movimentos celestes, sem o ritmo ondulatério dos movimentos terrestres, a exuberente varie~ dade das idades geolégices e das criagdes vivas teria des- pontado? As repetigdes existem pelas variagies. Se se admi- tise o contrério, a necessidade da morte — problema con- siderado quase insoliivel por M. Delboeuf no seu livro so- bre a matéria bruta e a matéria viva — ndo se compreen- deria; pois porque & que o pido da vida, uma ver langado, nao rodaria eternamente? Mas se as repetigdes sé tém uma razdo de existir, ade mostrar sob todas as suas faces uma originalidade Unica que procura tornar-se clara, nesta hipétese a morte deve fatalmente sobrevir com 0 esgota- mento das modulagées expressas. Observemos de passa- gem, a este propésito, que a relacéo do universal com o particular, alimento de toda a controvérsia filoséfica da Idade Média sobre o nominalismo eo realismo, é precisa- mente o da repeticao na variacéo. O nominalismo 6 a doutrina segundo a qual os individuos sao as Unicas rea- lidades que contam; e por individuos é preciso entender os seres encarados pelo seu lado diferencial. © realismo, pelo contrério, nao considera como dignas de atengao e do nome de realidade, num dado individuo, a nao ser os caracteres pelos quaio clo so assemelha a outros indivi- duos e tende a reproduzir-se em outros individuos seme~ Ihantes. © interesse deste género de especulagio aparece quando se pensa que © liberalismo individualista em poli- 27 As LEIS DA InrTAGKO tica 6 uma espécie particular de nominalismo, e que o socialismo & uma espécie particular de realismo. Qualquer repeticao, social, organica ou fisica, nao importa, isto 6, imitativa, hereditdria ou vibratéria (para ligarmos unicamente as formas mais impressionantes ¢ mais tipicas da Repeticao universal), procede de uma ino— vagao, como toda a luz procede de um fogo; e assim o normal, em toda a ordem do conhecimento, parece deri- var do acidental. Porque, assim como a propagaco de uma forga atractiva ou duma vibracio luminosa a partir de um astro, ou a de uma raca animal a partir de um primeiro casal, ou a de uma idela, de uma necessidade, de um rito religioso, numa nagao inteira, a partir de um cientista, de um inventor, de um missionério, s30 aos nos- sos olhos fenémenos naturais e regularmente ordenados, também a ordem em parte informal na qual apareceram ou se justapuseram os focos de todas estas irradiacdes, por exemplo, as diversas indistrias, religides, instituicdes sociais, os diversos tipos organicos, as diversas substéncies quimicas ou massas celestes, nos surpreendem sempre pe~ la sua estranheza. Todas estas belas uniformidades ou estas belas séries — 0 hidrogénio idéntico a si mesmo na infinita multidéo dos seus &tomos dispersos por todos os astros do céu, ou a expansao da luz de uma estrela na imensidade do espago; o protoplasma idéntico a si mesmo de um extremo ao outro da escala viva, ou a continua- G80 invariével de incalculéveis geracdes de espécies ma- thas desde os tempos biolégicos; as rafzes verbais das Hinguas indo-europeias idénticas em quase todas a huma~ nidade civilizada, ou a transmissao notoriamente fiel das Palavras, de Ifngua copta dos antigos Egipcios até nés, etc. — todas estas multidées incontestéveis de coisas se- meihantes ¢ semelhantemente ligadas, de que admiramos @ coexisténcia ou a sucessio igualmente harmoniosas, re- lacionam-se com acidentes fisicos, bioldgicos, sociais, ‘euja ligagéo nos confunde. Ainda aqui a analogia prossegue entre os factos Sociais e os outros fenémenos da natureza. Se, contudo, os Primeiros, considerados a partir dos historiadores e mesmo 28 A REPETIGRO UNIVERSAL dos socisiogos, nos dio a impressdo de um caos, enquanto que 0s outros, encarados @ partir dos fisicos, dos quimi- cos, dos fisiologistas, deixam a impresséo de mundos mui- to bem ordenados, néo ha que ficar surpreendido com isso. Estes Ultimos cientistas s6 nos mostram o objecto da sua ciéncia pelo lado das semelhangas e das repetigdes que Ihe so prdprias, relegando pare uma sombra prudente o lado das heterogencidades e das transformagées {ou trans~ substanciagées) correspondentes. Os historiadores @ 0s s0- cidlogos, ao invés, langam um véu sobre a face monétona @ regular dos factos sociais, sobre os factos sociais na medida em que eles se assemeinam ¢ se repetem, @ nao apresentam aos nossos olhos a ndo ser 0 seu aspecto aci~ dentado e interessante, renovado e diversificado ao infini- to. Se se trata dos Galo-Romanos, 0 historiador, mesmo filésofo, nunca teré idela, imediatamente depois da con- quista de César, de nos passear passo a passo por toda a Gélia para nos’ mostrar cada palavra latina, cada rito romano, cada ordem, cada manobra militar, em uso pelas legides romanas, cada offcio, cada uso, cada servigo, cada lei, cada ideia especial, enfim e cada necessidade especial importadas de Roma, em vias de irradiar progressivamente dos Pirinéus ao Reno e de ganhar sucessivamente, apés uma luta mais ou menos viva contra as antigas ideias ¢ 0s antigos costumes celtas, todas as bocas, todos os bra~ 0s, todos os coragées e todos os espiritos gauleses, co- pistas entusiastas de César e de Roma. Certamente se ele nos obrigasse a fazer uma vez esta longa caminhada, no no-la faria refazer tantas vezes quantas as palavras ‘ou as formas gramaticals da !/ngua romana, quantas as formalidades rituais da religio romana ou as manobras ensinadas aos legionérios pelos seus oficiais de instrugao, quantas as variedades de arquitectura romana, templos, basilicas, teatros, circos, aquedutos, casas de campo com © seu trio, etc., quantos os versos de Virgilio ou de Hordcio ensinados ‘nas escolas a milnares de alunos, quan- tas as leis da legislacao romana, quantos os processos industriais e artisticos transmitidos fieimente ¢ indefini- damente de operério a aprendiz e de mestre a aluno na 29 AS LEIS 04 TMITAGKO civilizag&o romana. Contudo, € 86 por este prego que se pode ter uma ideia exacte da dose enorme de. regular dade que as mais agitadas sociedades contém. Depois, quando o cristianismo tiver aparecido, o mesmo historiador teré muito cuidado, sem divida alg ma, em nos fazer recomecar esta cansativa peregrinacéo a propésito de cada rito cristéo que se propague na Gélia pag’, néo sem resisténcia, & maneira de uma onda sonora num ar jd vibrante. — Em contrapartida, ensinar-nos-é que, em tal data, Jdlio César conquistou a Gélia, e que em tal outra data certos santos vieram pregar a doutrina crista nesta regido. Enumerar-nos-4 talvez também os di- versos elementos de que se compdem a civilizagéo romana ou a f6 @ a moral cristas, introduzidas no mundo gaulés. © problema, entéo, pér-se~4 para ele em compreender, em apresentar com uma feicdo racional, Idgica, cientifi- ca esta sobreposicao bizarra do cristianismo ao romanis~ mo, ou melhor, da cristianizacio gradual & romanizagao gradual; © a dificuldade ndo seré menor em explicar ra~ cionalments, no romanismo © no cristianismo tomados & parte, a justaposigéo estranha de fragmentos etruscos, gregos, orientais © outros, muito heterogéneos entre si, que constituem um, ¢ de ideias judias, egfpcias, bizanti- nas, muito pouco coerentes também, mesmo em cada gru- Po distinto, que constituem o outro. &, contudo, esta dr- dua tarefa que o fildsofo da histéria se propord; ndo acre ditard poder iludi-la se quiser fazer obra de cientista, e cansardé a cabeca a pér ordem nesta desordem, a procurar a lei destes acasos e a razio destes encontros. Seria melhor procurar como e porqué ele sal por vezes destes encontros de harmonias e em que 6 que estas consistem. Tenté-lo-emos mais adiante. Em suma, 6 como se um boténico pensasse em ne- Gligenciar tudo 0 que diz respeito & geracéo dos vegetais de uma masma espécie ou de uma mesma variedade, o também 0 seu crescimento © a sua nutricao, espécie de geracdo celular ou de regeneragao dos tecidos; ou ainda € como se um fisico desdenhasse do estudo das ondula- ges sonoras, luminosas, caldricas, e do seu modo de pro~ 30 A REPETIGAO. UNIVERSAL pagagao através dos diferentes meios, eles préprios ondu~ |atérics. Apresenta-se-nos um persuadido de que 0 objec to préprio @ exclusivo da sua ciéncia é 0 encadeamento dos tipos especificos dissemelhantes, desde a primeira aiga até & ditima orquidea, e a justificagao profunda des- te encadeamento; e outro convencido de que os seus os- tudos tém por fim Gnico procurar por que razio hé pre- cisamente os sete modos de ondulagéo luminosa que nés conhecemos, assim como a electricidade e 0 magnetismo, e nao outras espécies de vibragéo etérea? Questdes inte- ressantes seguramente e que o filésofo pode agitar, mas no 0 clentista, porque a sua solu¢do néo parece nunca susceptivel de comportar 0 alto grau de probabilidade exigido por este ditimo. & claro que a primeira condicao para ser anatomista ou fisiologista 6 0 estudc dos teci dos, agregados de células, de fibras, de vasos semelhan- tes, ou o estudo das fungées, acumulagdes de pequenas contracgdes, de pequenas enervacées, de pequenes oxida- ges ou desoxidagées semelhantes, entim, e antes de tu- do, a f6 na hereditariedade, esta grande obreira da vida. E nao 6 menos claro que, para ser quimico ou fisico, an- tes de tudo 6 preciso examinar muitos volumes gasosos Iiquidos e s6lidos, feites de corpusculos muito perecidos, ou as chamadas forcas fisicas que so massas prodigiosas de pequenas vibragées similares acumuladas. Tudo se res- tabelece, com efeito, ou estd em vias de se restabelecer, no mundo ffsico, na ondulagéo; af tudo se reveste cada vez mais de um cardcter essencialmente ondulatério, do mesmo modo que no mundo vivo a faculdade geradora, a propriedade de transmitir hereditariamente as mais peque- fas particularidades (nascidas a maior parte das vezes, do se sabe como) est cada vez mais considerada ine- Fente A mais pequena célula. Por conseguinte, reconhecer-se-4 talvez, ao ler es~ te trabalho, que o ser social, na medida am qua 6 social, € imitador por esséncia, © que a imitacéo desempenha nas sociedades um papel andlogo ao da hereditariedade Ros organismos ou da ondulagao nos corpos brutos. Se as- sim 6, dever-se-4 admitir por conseguinte, que uma in- 31 AS LEIS 0A IMITAGKO venedo humana, pela qual um novo género de imitagéo é inauigurado (uma nova série aberta, por exemplo, 3 in- vengao da pdivora de canhdo (1), ou dos moinhos de ven- to, ou do telégrafo de Morse), esté para a ciéncia social como a formulagéo duma nova espécie vegetal ou mineral (ou ainda, na hipétese da evolucdo lenta, cada uma das modificagées lentas que a introduziram) esta para a bio logia e como estard para a fisica 0 aparecimento de um nove modo de movimento vindo tomar lugar ao lado da electricidade, da luz, etc., ou como esté para a qui- mica a formago de um novo corpo. Ao filésofo historia dor que se esforca por encontrar uma lei de invengdes cientificas, industriais, artfsticas, politicas sucessivamente aparecidas ou bizarramente agrupadas, seria preciso com- parar, pera fazer uma justa comparacao, ndo 0 fisiolo~ gista ou o ffsico tal como nés o conhecemos (Claude Bernard cu Tyndall especialmente) mas um fildsofo da na~ tureza como Schelling 0 foi, tal como Haeckel parecia sé-lo nas suas horas de embriagués imaginativa. Apercebia-se entéo que a incoeréncia indigesta dos factos da histéria, todos resoldveis em correntes de exem- plos diferentes de que eles sdo o encontro (este mesmo destinado a ser copiado mais ou menos exactamente), na- da prova contra a regularidade fundamental do mundo so- cial @ contra a possibilidade de uma ciéncia social; que, para falar verdade, esta ciéncia existe, em estado disper 80, na pequena experiéncia de cada um e que basta reu- nir-Ihe os fragmentos. Quanto ao resto, a recolha dos fac~ tos histéricos estaré longe de parecer mais incoerente, de certeza, do que a colecgao dos tipos vivos e das subs~ tancias quimicas; e porque se exigiria do fildsofo da his- téria a bela ordem simétrica @ racional que nem sequer se (1) Quando digo invongdo da pélvore de canhfo, ou telégrafo, ou caminhos de ferro, etc.y & bem entendido que quero dizer 0 grupo de invengées ecumuladas (distintas portanto © nunerosas) que foram necessérias para produzir a pélvora do canhéo, o telégrafo, os caminhos de ferro. 32 A-REPETICKO UNIVERSAL EE regents iS) So sonha em pedir ao filésofo da natureza? Mas h& qui uma diferenca totalmente a favor do primeiro: 6 que enquanto 0s naturalistas sé conseguiram recentemente com alguma clareza ver que as espécies vivas procedem umas das ou- tras, os historiadores nao esperavam um tempo téo longo para saber que os factos da histéria se encadeiam. Quanto aos quimicos @ aos fisicos, néo falemos disso. N&o ousam ainda prever a época em que Ihes seré permitido organi- zer, por sua vez, a drvore genealégica das substéncias simples e em que um deles publicaré sobre a Origem dos &tomos um livro destinado a tanto sucesso como a Origem das espécies de Darwin. € verdade que M. Lecog de Bois- boudran e M. Mendeleef acreditaram entrever uma série natural de corpos simples e que as especulagées totalmen- te filoséfices do primeiro @ este respeito nao séo estra- nhes & descoberta do Gallium. Mas se repararmas de per- to nisso, talvez no se encontre nestes notévels ensaios, @ também nos diversos sistemas dos nossos evolucicnistas sobre a ramificacdo genealégica dos tipos vivos, mais pr cisdo certeza do que se vé brilhar nas ideias de Herbert Spencer ¢ mesmo de Vico sobre as evolugées sociais di- tas periédicas @ fatais. A origem dos dtomos é bem mai misteriosa que a das espécies. A qual o 6 bem mais que @ das diversas civilizages. Podemos comparar as espécies. vivas, actuals, as espécies que as precederam e de que ‘és encontramos os vestfgios nas camadas do solo; mas Go nos resta o menor trago das substancias quimicas que deveram preceder, na pré-hist6ria astronémica, por assim dizer, em insondévels e inimagindveis passados, as subs- tancias quimicas actualmente existentes sobre a terra ou Nas estrelas. Por conseguinte, @ quimica, para a qual néo Pode mesmo pér-se_o problema das origens, esté menos avangada, neste sentido essencial, do que a biologia; e 6 Pela mesma razao que a biologia 0 est4, no fundo, menos do que a sociologia. Do que precede, ressalta que uma coisa é a cién~ Cla, outra coisa 6 a filosofia social; que a ciéncia social deve orientar-se exclusivamente, como outra qualquer, sobre 33 AS LETS DA IMAGINAGAO factos similares miultiplos, cuidadosemente guardados pe~ los historiadores, © que os factos novos e dissemelhantes, os factos histéricos propriamente ditos, sao 0 dominio re~ servado para a filosofia social; que sob este ponto de vis~ ta a ciéncia social poderia muito bem estar tao avencada como as outras ciéncias e que a filosofia social o esté mais do que as outras filosofias. No presente volume, 6 da ciéncia social somente que nos ocupamos; assim, ndo haveré aqui outra questo para além da imitagdo e das suas leis. Para além disso, @ mais tarde, iremos estudar as leis ou as pseudo-leis da invengao, 0 que 6 uma questfo diferente, embora no inteiramente separével da primeira (1). Ir Terminados estes longos preliminares, devo retirar uma tese importante que af se encontra envolvida © obs- cura. Nao existe ciéncia, disse eu, a nao ser das quanti~ dades e dos créscimentos, ou, em termos mais gerais, das semelhancas e das repetigdes fenomenais. = Mas, para dizer 2 verdade, esta distingao & supér- flua e superficial. Cada progresso do saber, com efeite, tende a fortalecer-nos na convicgao de que todas as se- methangas so devidas as repetigdes. Haveria, creio eu, que desenvolver esta proposicao nas trés leis seguintes 12 Todas as semelhancas que se observam no mundo quimico, fisico, astronémico (4tomos de um mesmo cor po, ondas de um mesmo raio luminoso, camadas concén~ trices de atracgao de que cada globo celeste é 0 centro etc.) tém como tinica explicagao e causa posstvel movi- mentos periddicos ¢ principalmente vibratérios. 29 Todas as semethangas, de origem viva, do_mundo vivo, resultam da transmissao hereditria, da geragao seja intia sia extra orgénica. pelo parentesco dae células (1) Depois destas linhas terem sido escritas, esbogamos uma teoria da Invengéo na nossa Lagica social (F. Alcan, 1835). @ A-REPETICAO UNIVERSAL e pelo parentesco das espécies que se explicam hoje as analogias ou homologias de todas as espécies reveladas pela anatomia comparada entre as espécies; e pela his tologia, entre os elementos corporais. > 32 Todas as semelhancas de origem social que se observam no mundo social sao 0 fruto directo ou indirec- to da imitacdo sob todas as sues formas: imitagdo-cos~ tume ou imitagao-moda, imitagao-simpatia ou imitagao- -obediéncia, imitagao-instrugo ou imitacio~educagao, imi~ tagao-espontanea ou imitacao-reflectida, etc.. Dal a ex- celéncia do método contemporéneo que explica as dou~ trinas ou as instituigdes pela sua histéria. Esta tendén— cla 36 pode generalizer-se. Diz-se que os grandes génios, 5 grandes inventores se encontram; mas, antes de mais, estas coincidéncias so multo raras. Depois, quando sao provadas, elas tém sempre a sua origem num fundo da instrug&o comum onde beberam independentenente um @ outro 0s autores da mesma invengao; e este fundo con~ siste num amontoado de tradigdes do passado, de expe- rigncias brutas ou mais ou menos organizadas, e trans- mitidas imitativamente pelo grande vefculo de todas as imitages, a linguagem. Foi notemo-lo, baseando-se implicitamente sobre @ nossa terceira proposicao que os filélogos do nosso sé- culo, pela comparacéo analégica do sfnscrito com o la~ tim, 0 grego, o alemao, o russo e outras Iinguas da mes- ma familia foram levados a admitir que existe af uma familia, e que ela tem como primeiro antepessado uma mesma linguagem tradicionalmente transmitida com mo- dificages préximas, das quais cada uma foi uma verda- Geira invengao linguistica anénima, ela prépria perpetuada Por imitagao. Mas voltaremos a esta terceira tese para @ desenvolver e a rectificar, no capitulo seguinte. Nao existe sendo uma Gnica grande categoria de semelhencas universais que nao parece & primeira vista Poder ter sido produzida por uma repeticao qualquer: 6 a Semelhanga das partes consideradas justapostas e iméveis do espago imenso, condicées de todo o movimento quer vibratério, quer gerador, quer propagador e conquistador. 35 AS LEIS OA TMETACKD Mas néo paremos nesta excepgio aparente, que nos basta indicar. A sua discussao lever-no-ia muito longe. Deixando, portanto, de lado esta anomalia, talvez ilus6ria, tomemos por verdadeira a nossa proposigao geral, @ assinalemos uma consequéncia que dai deriva directa mente. Se quantidade significa semelhanga, se toda a se- melhanga provém de uma repeticao, e se toda a repeti- go & uma vibrac3o, (ou outro movimento periédico qual- quer), uma geraco ou uma imitaco, segue-se daf que, na hipétese de nenhum movimento ser ou ter sido vibra tério, nenhuma func&o hereditéria, nenhuma ace ou Idela aprendida e copiada, nfo haveria absolutamente nenhuma quantidade no universo, e as mateméticas nao teriem af emprego possivel, nem aplicacio conceblvel. Segue-se também que, na hipétese inversa, se 0 nosso universo ff- sico, vivo, social, desdobrasse mais vastamente ainda as suas actividades vibratérias, genitais, propagadoras, o cem- po do céiculo seria af ainda mais estendido e profundo. Isso 6 visfvel nas nossas sociedades europeias em que os progressos extraordindrios da moda sob todas as formas (da moda aplicada &s roupas, aos alimentos, 3s habita~ Ges, Bs necessidades, as ideias, As instituicdes, as artes) esto em vias de fazer da Europa a edigao de um mesmo tipo de homem com tiragens de vérias centenas de mi- Ihares de exemplares. Nao se v8, desde os seus infcios, este prodigioso nivelamento tornar possivel 0 nascimento @ 0 desenvolvimento da estatistica ¢ do que téo bem se chamou a flsica social, a economia politica? Sem a moda e 0 costume, nao haveria quantidade social, especialmen- te valor, dinheiro, ©, portanto, ciéncia das riquezas @ das finangas. (Como 6, portanto, possivel que os economistas tenham gensado em dar teorias do valor em que a ideia de imitagao nunca intervém?). Mas esta aplicagao do ni- mero ¢ da medida o sociededes, que 90 tent no presen te, n&o poderia ser ainda sendo timida e parcial, 0 futu~ Fo reserva-nos sobre este assunto muitas surpresas! 36 A REPEITGRO UNEVERSAL 11 Seria aqui o momento de desenvolver as analogias flagrantes, as diferencas néo menos instrutivas © as re- lagdes midtuas que apresentam as trés principais formas da repeticéo universal. Acharfamos bem procure a razéo destes ritmos grandiosos escalonades e entrelagados, per- guntamo-nos se a matéria destas espécies se Ihes asse- melha ou néo, se o substracto activo e substancial destes fenémenos bem ordenados participa da sua sétia unifor- midade, ou se ngo contrestaria telvez com eles pela sua heterogensidade essencial, tel como um povo em que nada apresenta, & superficie administrativa @ militar, originalidade tumultuosas que o constituem @ que fazem andar essa méquina. Este duplo assunto seria muito vasto. Todavia, sobre © primeiro ponto, hé analogias menifestas que nés deve- mos assinalar. E, primeiramente, estas repetigoes séo ao mesmo tempo multiplicagdes, transmissbes que se espa- tham. Uma pedra cai na dgua, e a primeira onda produ- zida repete-se alargando-se até aos limites do charco; acendo um fésforo, ¢ a primeira ondulagéo que imprimo ao éter propaga-se num instante num vast espaco. Basta um par de formigas brancas ou de filoxeras transportado para um continente para o devastar em alguns anos; o Erigeron do Canadé, erva daninha importada pela Euro- Pa muito recentemente, abunda jd por toda a parte nos Campos incultos. Conhecem-se as leis de Malthus e de Darwin sobre a tendéncia dos indivfduos de uma espécie Para progredir geometricamente; verdadelra lei da irra diacéo geradora dos individuos vives. Do mesmo modo, um dialecto local, em uso por algumas famflias, torna-se pou- £0 a pouco, por imitacio, um idioma nacional. No infcio das sociedade, a arte de talhar o silex, de domesticar o Bo, de fabricar um arco, mais tarde de fazer levedar o Pao, de trabalhar o bronze, de extrafr 0 ferro, etc., pro- Pagou-se contagiosamente, sendo cada flecha, cada bocado de pio, cada fivela de bronze, cade sflex talhado ao mes- Mo tempo cépia e modelo. Assim se opera em nossos dias 37 AS LEIS DA IMLIAGKO a difusdo irradiante das boas receitas de toda a espécie, com a pequena diferenca de que a densidade crescente da populagao © os progressos conseguidos aceleram prodi- giosamente esta extensio, como a rapidez do som se faz em razo da densidade do meio. Cada coisa social, isto 6, cada invencdo ou cada descoberta, tende a estender-se no seu meio social, meio que, ele préprio, acrescentarei eu, tende a estender-se, dado que se compée essencialmente de coisas semelhantes, todas ambiciosas ao infinito. Mas esta tendéncia, aqui como na natureza exte- rior, 6 insucedida o mais das vezes por efeito da concor- réncia das tendéncias rivais, 0 que importa pouco em teo- ria, Por outro lado, ela & metaférica; néo mais & onda e & espécie do que & ideia se poderia atribuir um desejo Préprio, @ & preciso entender por isso que as forgas dis Porsas, individuais, inerentes aos inumerdveis seres de que Se compie 0 meio onde estas forcas se propagam se atri- buiram uma direcgéo comum. Assim entendida, esta ten déncia_supde que o meio em questéo seja homogéneo, condig&éo que o meio étereo ou aéreo da onda parece realizar numa boa medida, 0 meio geogréfico e quimico da espécie muito menos, € 0 meio social da ideia num grau infinitamente mais fraco ainda. Mas ndo se tem o direito, creio eu, de exprimir esta diferenga dizendo que © meio social 6 mais complexo que os outros. & ao con- trério, talvez porque ele & numericamente bem mais sim- ples, que ele esté mais longe de apresentar a homogenei dade requerida, porque uma homogeneidade superficial mente real basta. Também, & medida que as aglomeracdes humanas se estendem, a difuséo das ideias, seguindo uma Progressdo geométrica regular, 6 mais vincada. Levemos até ao fim esta argumentacéo numérica: suponhamos que a esfera social onde uma ideia se pode espalhar seja com- posta ndo somente por um grupo bastante numeroso para fazer desabrochar as principais variedades morais da es- pécle humana, mas ainda de coleccées completas dessa espécie repetidas uniformemente milhares de vezes, de tal _modo que a uniformidade destas repetigdes torne o todo homogéneo & superficie, apesar da complexidade inter 38 A-REPETICAO UNIVERSAL —. terna de cada uma das suas partes. No temos algumas razdes para pensar que esté af o género de homogeneida- de prdprio de tudo 0 que a natureza exterior nos apre- senta de realidades simples e uniformes em aspecto? Nes- ta hipétese, § claro que o sucesso mais ou menos grande, a velocidade de propagacao maior ou menor de uma ideia, © dia da sua aparicao, daria a razao matemética em qual~ quer espécie da sua progressao ulterior. Desde agora, os produtores de artigos que respondem a necestidades de primeira ordem e por conseguinte destinados a um con- sumo universal, podem predizer, a partir da procura de um ano a tal prego, qual seré a procura do ano seguinte a0 mesmo prego, se pelo menos nenhum entrave proi cionista ou outro intervier, ou se nenhum artigo similar e mais aperfeicoado for descoberto. Diz-se: sem capacidade de previséo, nada de cién- cia. Rectifiquemos: sim, sem faculdade de previséo con- diclonal. Ao ver uma flor, 0 boténico pode dizer de ime- diato qual seré a forma, a cor do fruto que ela produ- ziré, @ menos que a seca a mate ou que uma variedade individual nova @ inesperada (espécie de invenc&o biold- gica secundéria) aparega. O fisico pode anunciar que es- te tiro de espingarda safdo neste mesmo instante seré ou- Vido num certo niimero de segundos, a tal disténcia, con- tando que nada intercepte o som sobre o trajecto ou que, neste intervalo de tempo, um berulho mais forte, um tiro de canhao, por exemplo, nao se faga ouvir. Pois bem, é pre- cisamente a este mesmo titulo que sociélogo merece o nome de sdbio propriamente falando; sendo dado que hé hoje certos focos de irradiagéo imitativos e que eles ten- Gem a caminhar separadamente ou concorrentemente com velocidades aproximadas, ele esté em condigées de pre- dizer qual seré 0 estado social em dez, em vinte anos, com a condigéo de que nenhuma reforma ou revolugao Politica venha a entravar esta expanséo e de que ndo sur- jam focos rivais. Sem duvida 9 acontecimento condicional & aqui mui- to provével, talvez mais provavel que |4. Mas sé 6 uma di~ Ferenga de grau. Reparemos, por outro lado, que numa cer 39 AS LETS DA IMITAGRO tamedida (que € a tarefa da filosofia e ndoda ciéncia da histéria), as descobertas, as iniciativas jd feitas e propa~ gadas com sucesso determinam vagamente o sentido no qual terdo lugar as descobertas e as iniciativas bem su- cedidas do futuro. Depois, as forgas socials que agem com uma importancia real numa dada época compéem-se nao de irradiagées imitativas necessariamente ainda fracas, emanadas de invengdes recentes, mas sim de irradiagoes imitativas emanadas de invengdes antigas, ao mesmo tem- po mais estendidas e mais intensas porque tiveram 0 tem- po necessério para se desdobrarem e se estabelecerem em habitos, em costumes, em "instintos de ragas" ditos fisiolégicos (1). Portanto, a ignorancia em que estamos Acerca das descobertas inatingidas que se realizario den- tro de dez, vinte, cinquenta anos, acerca das obras-primas renovadoras da arte que af aparecerso, Acerca das bata~ thas e dos golpes de estado ou de forca que af faréo o seu barulho n&o nos impediré de predizer quase de cer- teza absoluta, na hipétese em que me coloquei mais aci- ma, segundo que direccéo e a que profundidade correrd © rio das aspiragdes e das ideias que os engenheiros po- Mticos, os grandes generais, os grandes poetas, os gran- des misicos terao de descer ou de subir, de canalizar ou de combater. Como exemplos em apoio da progressio geométrica das imitagées, poderia invocar as estatisticas relativas ao consumo do café, do tabaco etc., desde a sua primeira importagio até & época em que o mercado comegou a estar inundado dele; ou ainda relatives ao ndmero de lo- comotivas construidas desde a primeira, etc. (2). Citarei (A) Ninguée se dignaré atribeir-ae a ideia absurda de negar en tudo isto a influéneia da rage nos factos sociais. Mas cu creio que, pelo nimero dos seus tragos adquiridos, a raga é filha e néo mée doates factus, © & sonente por este aspecto esquacide que ele ne parece entrar no dominio préprio do sociélog. @) Mguém ae objectard que as progresstes crescentes ov decrescen- tes rovelates por estatisticas continua nun certo nfmero de anos 40 A-REPLTIGRO UNIVERSAL uma descoberta menos favordvel na aparéncia & minha te~ se, 8 descoberta da América. Ela foi imitada no sentido em que a primeira viagem da Europa & América, Imagina~ da e executada por Colombo, foi repetida um numero sem~ pre crescente de vezes por outros navios com variantes de que cada uma foi uma pequena descoberta, enxertada so- bre a dow grande Genovés, teve, por seu turno, imitadores. Aproveito deste exemplo para abrir um paréntesis. A América poderia ter sido aportada dois séculos mais cedo ou dois séculos mais tarde por um navegador de ima- ginacao. Dois séculos mais cedo, em 1292, no reinado de Filipe, 0 Belo, durante as desavencas deste monarca com Roma e a sua tentativa audaciosa da laicizagdo e de cen- tralizagéo administrativa; uma tal safda dum mundo novo oferecida & sua ambicio no poderia ter deixado de a so~ brexcitar e de precipitar 0 advento do munde moderno. Dois séculos mais tarde, em 1692, ela teria aproveitado & Franga de Henrique IV, mais do que & Espanha, segura~ mente, que, néo tendo tido esta rica presa para devorar durante duzentos anos ficou menos rica e menos préspera entéo. Quem sabe se, na primeira hipétese, @ guerra dos Cem Anos nao teria sido evitada, e, na segunds, o Impé- tio de Carlos V? Em todos os casos, a necessidade de ter colGnias, necessidade criada e satisfeita ao mesmo tempo pela descoberta de Crist6vio Colombo, @ que de- sempenhou um papel téo capital na vida politica da Europa (cont) nunca so regulares e so frequentenente cortadas por pa~ agens ov por novinentos inversos. Son entrar neste detalhe, devo dizer que na minha naneira de ver estas paragens ou estes recuos sto senpre 0 inifcio da intervengéo de qualquer nova intervengéo que se torna, por sua vez, contagiosa. fxplico da mesma nancira % progressées decrescentes, donde seria preciso evitar de in- duzir que a0 fim de alqum tempo, depois de ter sido initada cada Yer mais uma coisa social tende @ ser DESIMITADA. N80; a sua ten Géncia para invadir 0 mundo permanoce sempre a mesa; 0 so ela No & desinitada, mas sin cada vez menos initada, o mal deve-se 205 seus rivais. 4 AS LETS DA IMITAGAO desde 0 século XV, nasceu no século XVII somente; nes sa altura, a América do Sul seria francesa, a América do Norte néo contaria politicamente. Que diferenca para nés! E nao faltou tanto como um cabelo para que Cristévao Colombo fracassasse no seu_empreendimento! — Mas aca- bemos com estas especulacdes sobre os passados contin— gentes, ndo menos importantes, contudo, a meu ver e néo menos fundados que os futuros contingentes. Qutro exemplo, e 0 mais elucidativo de todos. 0 império romano cafu; mas, j4 foi dito muito bem, a con- quista romana vive e prolonga-se sempre. Por Carlos Magno, ela estendeu-se aos Germanos que, a0 cristianizarem-se, se romanizaram; por Guilherme, o Conquistador, aos Anglo. ~Sexdes; por Colombo, & América; pelos Aussos € os In- gleses, 8 Asia, & Austrdlia, e em breve & Oceania in- teira. © Japao, por seu lado, j4 quer ser invadido; somen- te a China parece dever oferecer uma séria resisténcia. Admitamos que ela também se assimila um dia. Poder-se- ~4 dizer, entao, que Atenas e Roma, @ Jerusalém inclut= da, isto 6, 0 tipo de civilizagéo formado pelo facho das suas inciciativas e das suas ideias de génio, coorde- nadas e combinadas, conquistaram todo 0 mundo. Todas as ragas, todas as nacionalidades tera concorrido para este contdgio imitativo ilimitado da civilizagao greco-ro~ mana. Néo teria acontecido 0 mesmo certamente se Dario ‘ou Xerxes tivessem vencido e reduzido a Grécia a provin- cia persa, ou se o Islamismo tivesse triunfado sobre Carlos Martel e invadido a Europa ou se a China, depois de trés mil anos, tivesse sido téo guerreira quanto industrial e virado para as armas téo bem como para as artes da paz © seu espirito de invengao, ou se, no momento da desco- berta da América, os europeus nao tivesse ainda inventado @ pélvora @ a imprensa e se se tivesse encontrado num es~ tado de inferioridade militar face aos Aztecas @ aos Inces, Mas 0 acaso quis que de todos os tipos de civilizacao, de todos us feixes ligados de invengoes irradiantes que tinham espontaneamente brotado em diversos pontos do globo, 0 tipo ao qual nés pertencemos os tenha superado, Se ele nao tivesse prevalecido, todavia, um outro teria 42 A REPETIGKO UNIVERSAL ee eee acabado por triunfer, porque 0 que era certo e inevité— vel era que a longo prazo um qualquer de entre eles se tornaria universal, dado que todos pretendiam a universa~ lidade, isto 6, todos tendiam a propagar-se imitativamente segundo uma progresséo geométrica como qualquer onda luminosa ou sonora, como qualquer espécie animal ou ve~ getel. Ww Indiquemos agora uma nova ordem de analogias. As imitagSes (palavras de uma lingua, mitos de uma religiao, segredos de uma erte militar, formas literdrias, ete.) mo- dificam-se ao passarem de uma raga ou de uma nagao para outra, dos Hindus aos Germanos, por exemplo, ou dos Latinos aos Gauleses, como as ondas fisicas ou os tipos vivos ao passarem de um meio para outro. Em cer~ tos, casos, as modificagdes da espécie constatadas foram bastante numerosas para permitir observar o sentido ge- ral @ uniforme segundo o qual elas se operam. E 0 caso das Ifnguas em especial: também se pode dizer das leis de Grimm e melhor ainda de Raynouard em filologia que so leis de refraccéo em lingufstica. Ensinam-nos estas que, ao passar do meio romano para o meio espanhol ou gaulés, as palavras latinas di~ versas foram transformadas de uma meneira idéntica e caracteristica, tornando-se cada letra uma cutra letra determinada; e aqueles que tal consoante do alemao ou do inglés equivale a uma tal outra consoante do sAnscrito ou do grego, o que significa no fundo que ao passar do meio ariano primitive para o meio germénico, heleno ou hindu, a lingua-mae permutou as suas consoantes no sen- tido ‘indicado, aqui substitufndo o aspirado pela forte, acolé a forte pela aspirada, etc. 2 Se as religides fossem tio numerosas como as Iin- gues (que eles prdprias nao 0 sao demasiado para dar uma base de comparacio suficiente para observagies gerais formuldveis em leis) e sobretudo se, em cada religiao, as ideias religiosas fossem t8o numerosas como 0 sao as pa~ 43 AS LETS 08 IMITAGRO lavras em cada lingua, poderia haver em mitologia com: parada leis de refraccdo mitolégica andlogas as preceden- tes. Ora, podemos muito bem seguir um dado mito, o de Ceres ou de Apolo através das modificagées que Ihe im— primiu 0 génio dos diversos poves que o adoptaram. Mas hé t&o poucos mitos da espécie a comparar que n&o se poderia ver nas marcas que eles receberam em separado de um povo tragos comuns palpéveis e outra coisa para além de um ar familiar. Apesar de tudo, no estudo das formas de que as mesmas ideias religiosas se revestiram a0 passarem do vedismo (1) para 0 bramanismo ou para Zoroastro, do mosefsmo para Cristo ou para Maomé, ou ao circularem através das seitas cristés dissidentes © das diversas igrejas, grega, romana, anglicana, galicana, nao hd muites observagdes ‘a fazer? Ou, entio, tudo o que é possivel observar foi dito em matéria semelhante e néo hd mais nada a fazer do que seleccionar 0s criticos de arte também néo falharam ao pres- sentirem confusamente o que se poderia chamar as leis da refraccéo artistica prépria de cada povo, de cada um dos seus momentos, de cada regio artIstice determinada holandesa, italiana, francesa, em pintura, em musica, em arquitectura, em poesia. Nao insisto mais. Contudo, serd uma pura metéfora ou uma infantilidade dizer que Teécrito se refractou em Virgilio, Menandro em Teréncio, Platéo em Cicero, Eurfpides em Racine? i Outta analogia. Hé interferéncias de imitactes, de coisas sociais, tal como interferéncias de ondas ¢ de ti pos vivos. Quando duas ondas, duas coisas fisicas mals ou menos semelhantes, depois de se terem propagado sepa- radamente a partir de dois centros distintos, se vém a encontrar num mesmo ser fisico, numa mesma particula da matéria, as suas impulsdes fortalecem-se ou neutra- lizam-se, conforme tém lugar no mesmo sentido ou em dois sentidos precisamente contrérios sobre a mesma linha direita. No primeiro caso, uma onde nova, complexe e mais (A) Nome europeu da religi8o 44 A REPETTELO WEVERSAL forte surge, a qual tende ela prépria a propagar-se. No segundo caso, hd luta e destruicéo parcial até que uma des duas rivals eve a melhor sobre a outra. Do mesmo modo, quando, apés se terem reproduzido separadamente de geracio em geracao dois tipos especificos bastante Vizinhos, duas coisas vitals, se vém a reencontrar, no sim- plesmente num mesmo lugar (animais diferentes que se digladiam ou se comem), 0 que seria um encontro. pura- mente ffsico, mas além disso, num mesmo ser yital, numa mesma oélula ovular fecundada por uma unigo. hibrida, nico género de encontro e de interferéncia verdadeiramen- te vital, sabe-se 0 que acontece entéo. Ou o produto, de uma vitalidade superior & dos seus pais, e a0 mesmo tempo mais fecundo e mais prolifero, transmite a uma posteridade sempre mais numerosa as suas ceracteris cas distintivas, verdadeira descoberta da vida; ou entao, muito mais fraco, d4 origem a alguns descendents dege- nerados em que caracteres incompatfveis dos progenitores, violentamente aproximados, ndo tardam em operar o seu divércio pelo triunfo definitive de um e a expulsao do outro. — Do mesmo modo, ainda, quando duas crengas e dois desejos ou um desejo e uma crenga, quando duas coi- sas sociais, numa palavra (porque nao existe sendo isto em dltima andlise nos factos 'sociais, sob os noes diver- s03 de dogmas, de sentimentos, de leis, de necessidades, de hébitos, de costumes, etc.), fizeram durante um cer to tempo e separadamente o seu caminho no mundo, em virtude da educacZo ou do exemplo, quer dizer da imi~ tagao, elas acabam muitas vezes por se encontrar. & pre- ciso, para que o seu encontro e a sua interferéncia ver- Gadeirarente psicolégica e social tenha lugar, néo somen- te que elas coexistam num mesmo cérebro e facam ao mesmo tempo parte de um mesmo estado de espfrito ou de coragao, mas, por outro lado, que uma se apresente, quer como um meio, ou um obstéculo em face da outra, que: como um principio de que @ outra 6 consoquéncia ou uma afirmagao de que a outra é a negagio. Quanto quelas que parecem nem se ajudar, nem se prejudicar, nem se confirmar, nem se contradizer, elas nao saberiam 45, AS LEIS DA TMITAGKO interferir mais do que duas ondas heterogéneas ou dois tipos vivos muito distanciados para se poderem unir. Se elas parecem ajudar-se ou confirmar-se, combinam-se 6 pelo facto desta aparéncia, desta percepgio, numa des- coberta nova, prética ou tedrica, destinada a espalhar-se por sua vez como as suas componentes num contdgio imi- tativo. Houve, neste caso, aumento de forca de desejo ou de forca de £6; como nos casos correspondentes de in- terferéncias fisicas ou biolégicas felizes, houve aumento de fora motriz e de vitalidade. Se, pelo contrdrio, es coisas sociais interferentes, teses ou projectos, dogmas ou interesses, convicgdes ou paixdes, se estorvam ou se contradizem numa alma ou nas almas de um povo, hé es- tagnacao moral dessa alma, desse povo, na indeciséo ¢ na ddvida, até que, por um esforgo brusco ou lento, essa alma ou esse povo se separa em dois e sacrifica @ sua crenga ou a sua paixdo menos querida. Assim faz a vida @ sua opco entre dois tipos mal acoplados. Um caso ligeiramente distinto do precedente e particularmente im- Portante 6 aquele em que as dues crengas, os dois dese- Jos ou ainda a crenga e 0 desejo que interferem de uma maneira favordvel ou destavordvel no espirito do individuo, Pertencem nao somente a esse homem mas em parte a ele, em parte a qualquer um dos seus semelhantes. A interferéncia consiste entéo em que o individuo de que se trata percebe a confirmaco ou o desmentido dados Pela ideia de outro, a vantagem ou o prejulzo causados Pela vontade de outro & sua ideia e & sua vontade prd- prias. Daf uma simpatia e um contrato, ou entéo uma antipatia e uma guerra (1). (1) A senethanga que eu estabeleci entre a hereditariedade ¢ a ini- tagdo verifica-se até na relago de cada uma destas dus formas da Repeticlo universal com 2 forma de Criage, de Invengdo, que Ane & especial. Quanto mais tenpo una sociedade & jovem, ascenden— te, transbordante de vida, mais nds af venos 9s invengdes, os pro- Jectos novas, as inkeiativas consequidas, sucederen-se com rapider © acelerar as trenformacées sociais; depois, quando a seive inven 46 A-REPETEGKO UNIVERSAL Mas tudo isto tem necessidade, eu sinto-o, de es- clarecimento. Distinguimos trés hipétese: interferéncia fe~ liz de duas crengas, de dois desejos, de uma crenca e de um desejo; e subdividimos cada uma destas divisdes con- forme as coisas interferentes pertencam ou néo ao mes~ mo indivfduo. Depois diremos uma palavra acerca das in- terferéncias desfavoréveis. 12 Quando uma conjectura que eu olhava como bas~ tante provdvel vern a coexistir em mim, no mesmo estado de espirito, com a leitura ou a reminiscéncia de um fac~ to que eu tenho por quase certo, se eu me eperceber de repente que este facto confirma essa conjectura, que dai deriva (quer dizer que a proposigao particular exprimindo este facto esté inclufda na proposicéo geral que exprime essa hipstese), em breve essa hipstese se torna muito mais provével a meus olhos, e ao mesmo tempo este facto me (cont.) tive se esgota, ® imitagao, contudo, prosseque o seu curso, como na India, como na China, como nos iltinos séeulos do. Inpério fonano. Ora, no mundo vive, & 2 mesma coisa. € por exenplo, nos ENCADEAMENTOS D0 MUNDD ANIMAL (perSodo secundério) ¥. Gaudry diz incidentenente 2 propdsito dos CRINGIDES (equinodernes): “eles perderan esta naravilhose diversidade de formas que foi un dos lu x0s dos tonpos prinitivos; NAO TENDO JR A FORGA PARA SC TRANSFOR MAR MUTTO, GUABDARAM AIKDA A DE REPROOUZER INOTVIDUCS SEMELMANTES A ELEM. Mas nen sexpre & assin. Cortas fanflizs, certos gfneras de animais desaparecem nos tempos geolégicos depois do seu perfodo de maior fragnentagao. Assim foi com a amonite, este maravilhoso fos- Sil que nos tenpos secundirios se expandiu na exiberante diversida- de das suas nutagées © depois desaparecou para soapre. Assin foi tanbén con essas brilhantes e broves civilizagdes que se acende- fan um dia e que bruscamente se extinguiram cozo estrelas efémeras 0 chu da histéria: 2 Pérsia de Ciro, certas repliblicas gregas, ® serigionel da franga no momento d= guerra dos Albigenses, a3 repiblicas italianas, etc. Quando estas civilizagtes ficaran can ‘Sadas de produzir, nao lhes restou mais forca para se reproduzi- ren. £ verdade que, o mais das vezes, elas foran nisso impedidas Pela sua destruigo violenta. 47 AS LETS 0A ImLrAgKo parece inteiramente certo. De tal sorte que houve ganho de fé em todo o processo. E o resultado & uma descober ta. Porque nao se trata de outra coisa para além da Percepeao dessa incluséo Iégica. Newton néo descobriu outra coisa quando, depois de ter conjecturado a lei da aco, @ confrontou com o céiculo da distancia da uz B terra e percebeu a confirmagéo dessa hipstese por este facto. Suponda que todo um. povo, tedo um século, ha continuagdo de um dos seus doutores, de S. Tomas de Aquino, por exemplo, ou Amaud, ou Bossuet, constata ou €r8 constatar um acordo semelhante entre os seus dog- mas @ 0 estado momenténeo das suas ciéncias, e vereis espalhar-se este rio transbordante de fé que tecunda o éculo Xill, argumentador, inventive e guerreiro, © tam. bém 0 século XVII, jansenista e galilaico. Essa harmonia, também ela, ndo passa de uma descoberta de que a sG- mula, 0 catecismo de Port-Royal e do clero de Franga, © em diversos graus todos os sistemas filoséficos da mes_ ma €poca desde Descartes até Leibniz, séo a expressao diversa. Modificamos um pouco a nossa hipétese geral agora. Inclino-me a admitir um principio que um dos meus amigos, com quem eu converso, néo admite de forma ne- nhuma. Mas eu aprendo por ele factos que ele tem por verdadeiros e cuja prova, no meu pensar, ndo foi feita, Depois, parece-me, ou melhor mostrava-se-me, que es tes factos, se fossem provados, confirmariam plenamente o meu principio. Desde entao, inclino-me também a aceitd los; mas nao houve aumento de fé a no ser relativamen- te ao que Ihes diz respeito, nao relativamente ao print. pio. Também esta espécie de descoberta estd incompleta € nao teré nenhum efeito social antes que o meu amigo tenha ccnseguido comunicar-me a sua crenca, superior & minha, ra cealidade destes factos, fornecendo-me as pro- vas, OU que eu tenha conseguido eu préprio demonstrar- rine @ verdade do meu principio. Mus trata-se justamen to da primazia ue um comércio intelectual mais livre e mais vasto. 22 © primeiro comerciante da Idade Média, ao mesmo tempo vido e vaidoso, desejoso de enriquecer pelo 48 A REPETICRO UNIVERSAL, ee comércio € aflito por néo ser nobre, que previu a possi bilidade de fazer servir a sua avidez aos fins da sua vai dade e de adquirir mais tarde para si e para os seus a nobrez2 @ prego de dinheiro, julgou fazer uma bela des- coberta. E de facto teve muitos imitadores. Nao 6 ver- dade que a partir dessa perspectiva inesperada ele sen- tiu redobrar ao mesmo tempo as suas duas peixdes, uma porque o ourc tomava um novo valor a seus olhos, © ou- tra porque o objecto do seu sonho ambicioso e desmorali- zado se tornava acessivel? Sem ir to longe talvez no passa- do, também nao foi uma muito m4 ideia nem uma inicla— tiva pouco seguida a do primeiro advogado que teve a idela contrdria de fazer politica para fazer a sua fortu- na. ~ Outros exemplos: estou apaixonado e tenho a ins- Piragao de versificar, © Fago servir 0 meu amor, que se exalta, para inspirar ‘a minha veia versejadora, qué se tor ma acentuada, Quantas obras poéticas nasceram de uma interferéncia semelhante! Sou filantropo e gosto de fazer falar de mim, @ procuro esclarecer-me para fazer melhor aos meus semelhantes ou para Ihes ser util para me da- fem um nome, etc., etc. Encarado historicamente, o mes— mo facto exprime-se especialmente pelo espirito das cru- zadas, devido ao miituo apoio que se presteve & paixdo das expedicées guerreiras e ao fervor cristéo, depois de terem sido muito tempo opostos, ou ainda pela invasio do Isldo, pelas revoltas de 89 e dos anos seguintes e por todas as revolucées, em que tantas paixdes vis se atrelam 8 peixdes nobres. — Mas, por acaso, mais contagioso ain~ a, indo & origem das sociedades, foi o exemplo do pri- meiro homem que disse: eu tenho fome e o meu vizinho tem frio, oferecamos-Ihe esta roupa que me 6 indtil em troca daquele alimento que ele tem a mais, e assim a minha necessidade de comer serve para satisfazer a sua Pecessidade de se vestir, e reciprocamente. Excelente dela, bem simples hoje, bem original no comeco da his- S6tla, e donde © trabalho, o cumérciv, a moda, o direito & todas as artes nasceram (néo digo de onde nasceu a Sociedade, porque ela existia j sem duvida, antes da tro- fa, desde o dia em que um homem qualquer copiou um outro). 49 AS LETS DA IMITAGKO Note~se que cada novo género de trabalho profis~ sional, cada novo offcio nasceu na continuagéo de uma descoberta andloga & precedente, 0 mais das vezes ané- nima, mas no menos certa, n&o menos importante por isso. 32 Como importancia histérica, contudo, nenhuma interferéncia mental iguala a de um desejo e de uma crenge. Mas nao preciso fazer entrar nesta categoria os ¢as0s numerosos em que uma convic¢ao, uma opiniao que se vem enxertar numa tendéncia s6 age sobre ela susci- tando um desejo diferente. Eliminados estes casos, resta ainda um niimero considerdvel em que a ideia surgida age enquanto proposigéo sobre 0 desejo encontrado e redobra~ do por ela. Eu queria muito ser orador no Parlamento, e um cumprimento de amigo me persuade de que eu acabo de revolar de repente um verdadeiro talento oratério; es~ ta persuasio aumenta a minha ambica, que contribui, de resto, para me delxar persuadir. Pela mesma razo nao 6 com erro histérico, com caltinia atroz ou extrava- gante, com loucura que se acredita facilmente a favor de uma paixéo politica, que ela concorre precisamente pera avivar. Uma crenca, aliés, aviva um desejo, tanto por- que ela faz julgar mais realizdvel o objecto deste, como porque ela 6 a aprovacao dele. Sucede também, para con tinuar até ao fim o nosso paralelismo, que um homem Percebe 0 proveito que ele pode tirar para os seus desig- nios préprios de uma crenga prépria de outro ainda que nfo pertilhe dela e que o outro nao partilhe do seu de- sfgnio. Esta descoberta 6 um achado, que muitos impos- tores exploraram ou exploram ainda. Este género especial de interferéncias e as desco- bertas inumerdveis e maiores que séo fruto delas contam no meio das forgas capitais que governam o mundo. Que € © patriotismo do Grego ¢ do Romano sendo uma pai- xo alimentada de uma ilusdo e vice-versa: uma palxio, a ambigo, a avidez, 0 amor da gidria; uma iluséo, a fé exagerada na sua superioridade, o preconceito antropo— e@ncrico, 0 erro de se imaginar que este pequeno ponto No espago, a terra, era o universo, e que sobre este pe- 50 A REPETIGRO UNIVERSAL queno ponto s6 Roma ou Atenas seriam dignas do olhar dos deuses? E que 6 em grande parte o fanatismo do Arabe, 0 proselitismo cristéo, a propaganda jacobina revolucionéria sendo tais crescimentos prodigiosos de pai- x6es, sobre ilusdes, ilusées sobre paixdes, umas alimentan- do 28 outras? E 6 sempre a partir de um homem, de um centro, que estas forcas nascem (muito antes, é verdade, do momento em que elas rebentam e formam corrente historicamente). Um homem apaixonado, rofdo pelo de- sejo impotente de conquista, de imortalidade, de regene- ragéo humana, encontra uma ideia que abre 3s sues as- piragdes uma safda inesperada: a da ressurreicdo, do milénio, 0 dogma da soberania do povo e as outras férmulas do Contrato social. Ele abraga-a, ela exalta-o; e ei-lo que se faz apéstolo. Assim se espalha um contagio politico ou religioso. Assim se opera a conversio de todo um povo a0 cristianismo, ao islamismo, ao socialismo, tal- vez amanha. No que precede s6 foi assunto as interferéncias— ~combinagdes de que resulta uma descoberta, uma adic&o, um crescimento de desejo e de f6, as duas quantidades Psicolégicas. Contudo, a histéria, essa longa sequéncia de Speracées de aritmética moral, faz despontar pelo menos tantas interferéncias-lutas, tantos antagonismos internos que, quando se produzem entre desejos ou crengas pré- Prigs de um mesmo indivfduo, mas no fora deste caso, S80 acompanhadas de uma baixa de maré, de uma sub- tracgéo destas quantidades. Quando estas interferéncias tém lugar aqui e acold, obscuramente, em individuos iso- fades, séo fenémenos pouco reparados, a n&o ser pelo psi- logo; temos ento: 12, por um lado, as decepcdes e a Glivida gradual dos tedricos temerérios, dos profetas po- \iticos, que vém os factos desmentir as suas teorias, rir as suas previsdes; a frustracao intelectual dos crentes sinceros @ instruidos, que sentem a sua ciéncia em con- lite com a sua religiao ou com os seus sistemas; por Sutro lado, as discussces privadas, judiciais, parlamentares, €m que a fé se reanima, pelo contrério, em vez de se *sfriar. Temos ainda: 29, por um lado, @ inacgao forcada, 51 AS LEIS 0A IMITAGRO pungente, 0 suicfdio lento de um homem que se bate en- tre dues aptidées ou duas correntes incompativeis, entre 0s seus apetites de ciéncia e as suas aspiragées liter tias, entre o seu amor ea sua ambicdo, entre a sua pre- guiga @ 0 seu orgulho; por outro tado, as competicdes de toda a espécie que péem em actividade todos os esforcos, © que se chama nos nossos dias a luta pela vida. Temos, enfim: 32, por um lado, a doenga do desencorajamento, estado de uma alma que quer muito forte e cré muito for te no poder, abismo em que caem os amorosos © os par- tidos cansados de esperar tanto a angiistia do escripulo como a do remorso, estado de uma alma que juige mau © objecto dos seus desejos ou que julga bom o objecto das suas repulse; por outro lado, as resisténcias feites ‘aos empreendimentos e as paixdes das criancas, que que- rem muito fortemente qualquer coisa, pelos seus pais que créem firmemente que ela 6 impossivel ou perigosa, ou ainda aos empreencimentos e &s palxdes de quaisquer ino~ vadores pelas pessoas prudentes e exerimentadas: resis~ téncias de forma nenhuma acaimantes, sabe-se bem. Realizados em grande escala, multiplicados pela virtude de uma larga corrente social, de um potente ar~ rebatamento imitativo, estes mesmos fenémenos, sempre ©s mesmos no fundo, obtém com outros nomes as honras da histéria, Eles tornam-se: 12, por um lado, o cepticismo enervante de um povo preso entre duas religides ou duas rejas opostas, ou entre os seus sacerdotes © os seus sdbios que se contradizem; por outro lado, as guerras re~ ligiosas de um povo com outro quando elas tém o desa~ cordo das erengas por Unico ¢ principal motivo; ~ 29, por um lado, a inércia e 0 fracasso de um povo ou de uma classe que criou necessidades novas opostas aos seus interesses permanentes (a necessidade do conforto e da Paz, por exemplo) quando um redobramento do espirito militar Iho ceria indispensével, ou paixdes facticies con~ trérias aos seus instintos naturais (quer dizer, no fundo, a Paixdes que comegaram também por ser facticias, impor- tadas e adoptadas, mas que so muito mais antigas); por outro lado, a maior parte das guerras polftices exteriores; 52 AS LEIS DA REPETIGRO — 38, por um lado, 0 desespero amargo de um povo ou de uma classe que entra por degraus no nada histérico, de onde um impeto de entusiasmo ou de fé 0 tinha fei- to sair, ou ainda o mal-estar e a opressio pencsa de uma sociedade cujas velhas méximas tradicionais, cristés © ca- yalheirescas ndo condizem com as suas aspiragées novas, laboriosas e utilitérias; por outro lado, as oposigdes pro- priamente ditas, as lutas dos conservadores e dos revolu- ciondrios, e as guerras civis. Ora, quer se trate de individuos ou de poves, es- tes estados dolorosos, cepticismo, inércia, desespero, © ainda mais os estados violentos, disputas, combates, opo- sigdes, pressionam o homem a transp6-los. Mas como os Ultimos, embora mals penosos, séo até certo ponto e mo- mentaneamente, fontes de fé © de desejo, séo precisa~ mente esses que ele nunca transpde ou de que ele nao sai sendo para neles em breve entrar, enquanto que, mui- tas vezes © por longos perfodos, consegue libertar-se dos Primeiros, que séo enfraquecimentos imediatos das suas duas forcas mestras. Daf estas interminéveis dissid&nclas, ri- validades, contrariedades, entre homens de que cada um se pés finalmente de acordo consigo mesmo pela adopcao de um sistema Iégico de ideias e de uma conduta conse- quente. Dai a impossibilidade ou a quase impossibilidade, Parece, de eliminar a guerra e os processos de que toda @ gente sofre, apesar da batalha interna dos desejos @ das opinides de que alguns sofrem conduzir o mais das vezes neles 9 tratados de paz definitivos. Daf o renascimento Infinite dessa hidra de cem cabecas, dessa eterna ques- to social, que nao 8 prépria da nossa época mas de to- Gos os tempos, porque nfo consiste em perguitar como terminarao os estados debilitantes, mas como terminarao 98 estados violentos. Noutras palavras, no consiste em Perguntar: da ciéncia ou da religifo, qual prevaleceré ou deverd prevalecer na mainridade dos espfritos? E a neces- Sidade de disciplina social ou os impetos de inveja, de orgulho e de raiva em revolta que prevalecerdo © devem Prevalecer finalmente nos coracdes? & por uma resignacéo Sorajosa, activa, e uma ebdicagao das suas pretenses pas~ 53 AS LEIS DA IHITAGAO sadas, ov, ao contrério, por uma nova exploséo de espe- tanga e de fé no sucesso, que as classes antigamente dirigentes sairao, por sua honra, do seu torpor actual? E a nova sociedade refundiré legitimamente a moral e o ponto de honra da sua imagem, ou a velha moral teré a forca e © direito de ferir de novo a sociedade? Problemas que certamente nao tardaréo muito a ser resolvidos e de que 6 facil desde jd pressentir a solucao. Mas, pelo contrério, Arduos ¢ diffceis de exterminar séo os problemas seguin- tes, que constituem verdadeiramente a questdo social: é um bem, € um mal, que a unanimidade completa dos es- piritos se estabeleca um dia para a expulséo ou a con- verso mais ou menos forcada de uma minoria dissidente, e vé-la-emos alguma vez estabelecer-se? E um bem, é um mal, que a concorréncia comercial, profissional, ambiciosa dos indivfduos e também a concorréncia politica e militar dos povos venham a ser suprimidas pela organizagio tao sonhada do trabalho ou pelo menos pelo socialismo de Es- tado, por uma vasta confederacdo universal ou pelo menos Por um novo equilfbrio europeu, primeiro passo para os Estados Unidos da Europa; © 0 futuro reserva-nos isso? E um bem, ou seré um mal que, libertando-se de todo o controlo'e de toda a resisténcia, uma autoridade social forte e livre, absolutamente soberana e susceptivel de muito grandes coisas, se mostre enfim, pelo poder aberto ou convencional de um partido ou de um povo, o mais filantrépica aliés e 0 mais inteligente que se possa ima- ginar; e € preciso esperarmos por esta perspectiva? Els a questao e & porque ela 6 assim colocada que 6 temivel. Porque n&o existe humanidade, nem homem que se sacritique sempre no sentido da maior verdade e do maior poder, da maior soma de convicg¢do e de con- fianga, de f8, numa palavra, a obter; e pode-se duvidar se € pelo desenvolvimento da discusséo, da concorréncia e da critica, ou, ao invés, pelo seu abafamento, pela ex- pans imitativa ilimitada de um pensamento Unico, de uma vontade tnica, consolidada ao expandir-se, que este maximum pode ser atingido. 54 A REPETIGIO UNTVERSAL v Mas a digresséo que precede fez-nos antecipar al- gumas das questdes que serdo melhor tratades algures. Voltemos ao assunto deste capitulo e, depois de ter pas- sado em revista as principais analogias das trés formas da Repeticao, digamos uma palavra sobre as suas diferen- Gas, que nao séo menos instrutivas. Primeiro, a solidarie— dade destas trés formas 6 unilateral, nao reciproca. A geracéo nao saberia passar da ondulacdo, que nao tem necessidade dela, e a imitagdo depende das outras duas, que nao dependem dela. Apds dois mil anos, 0 manuscrito da Reptblica de Cicero & encontrado, imprimem-no e inspiram-se nele: imitago péstuma que nao teria tido lugar se 2s _moléculas do pergaminho nao tivessem durado € certamente vibrado (e isto a néo ser por efeito da tem- Peratura ambiente) e se, por outro lado, a geracgo hu- mana nao tivesse funcionado sem interrup¢ao desde Cicero até nds. E notdvel, aqui como em qualquer parte, que o termo mais complexo, mais livre, 6 servido pelos que o so menos. A desigualdade dos trés termos a este res- peito é, com efeito, manifesta. Enquanto que as ondas Se encadeiam, insécronas e contfguas, os seres vivos, de uma duragéo bastante varidvel, destacam-se e separaram- =8, cada vez mais independentes quanto mais séo eleva- dos. A geragéo é uma ondulacéo livre cujas ondas fazem mundo & parte. A imitagéo faz ainda mais, exerce-se, no sé de muito longe, mas com grandes intervalos de tempo. Ela estabelece uma relacdo fecunda entre um Inventor @ um copista separados por milhdes de anos, en- tre Licurgo © um convencional de Paris, entre o pintor Fomano que pintou um fresco de Pompeia e o desenhador Moderno que se inspira nele. A imitacio ¢ uma geracao A distancia (1), Dir-se-& que estas trés formas da Repeti- (1) Se, como acredita Ribot, a monéria néo § senfo a forma core bral da nutrigdo; se, por outro lado, a nutrigao nao passa de uaa Geragdo interna; se, enfin, a Imitag3o nfo é aais do que uma we: 55 AS LEIS D4 IMITAGRO ‘A REPETIQRO UNIVERSAL ‘gio so trés repetigdes de um mesmo estorgo para esten- der o campo em que ela se exerce, para fechar sucessi~ vamente qualquer safda & rebeligo dos elementos sempre prontos a quebrar o jugo das leis, e para constranger @ sua multid&o tumultuosa, por processos cada vez mais en- genhosos e poderosos, a caminhar a passo em multiddes cada ver mais fortes e melhor organizadas. Para mostrar ‘© progresso alcancado nesse sentido, comparemos um fura~ co, uma epidemia, uma insurrei¢8o. Um furacéo propa~ ga-se pelo mais préximo e nunca se v8 uma onda desta- car-se para ir lever ao longe, omisso medio, o virus da tempestade. A epidemia atacada de outra maneira, fere & direita e & esquerda, poupando tal casa, ou tal cidade entre vérias outras, muito distanciadas, que ela atinge qua~ se ao mesmo tempo. Mais livremente ainda se espalha a ral_em capital, de fabrica em fébrica, a partir de uma noticia anunciada pelo telégrafo. Por ve- ze8 0 contdgio vem mesmo do passado, de uma época morta. Outra diferenga importante. A obra imitada é-0 de ordindrio no seu estado de desenvolvimento completo, sem passar pelas tentativas do primeiro obreiro. Este processo artistice 6, portanto, superior em celeridade ao processo vital: suprime as fases embrionérias, a infancia e a ado- leseéncia. Ndo é que a vida ignore ela mesma a arte das abreviagées; se a série das fases embriondrias repete, co- mo se cré (ndo sem restricéo), a série zoolégica e pa- leontolégica das espécies anteriores e parentes, esté cla ro que este resumo individual da lenta elaboragao viva se tornou prodigiosamente sucinta com o tempo: mas na con- tinuagdo das geracdes que vo passando sob os nossos olhos néo se observa nada para além da duragdo da gesta— (cont.) méria social (cfr. a nossa obra LOGICA SOCIAL a este res- peito), segue-se daf que entre a Geracdo e a Imitaco ndo nf so~ mente anclogie, como eu o demonstrel, mas identidade fundamental. A Imitag4o, fendmeno social elenentar e continuo, seria a continua~ G80 @ 0 equivalente social da Geragao, entendida em sentido vas~ to, nele compreendida a Nutrigio. 56 go © do crescimento que se vai abreviando. Tudo © que ge constata neste ponto de vista é que as doencas © quais~ quer caracteres individuals, transmitidos por um pai aos seus filhos, produzem-se nestes numa idade um pouco mais precoce que a idade da sua aparico naquele. Compara-se este ténue progresso aos des nossas fabricagées: os nossos félégios, 08 nossos tecidos, os nossos alfinetes, os nossos artigos de todos os géneros, fabricam~se dez vezes, cem vezes mais depressa do que na origem. Quanto & ondula~ gdo, em que medida infinitesimal ela participa nesta ocul~ fagdo de aceleracdo! As ondas que se seguem seriam ri- gorosamente isdcronas, isto é, levariam 0 mesmo tempo a nascer, crescer e morrer, se a sua temperatura perma- necesse Constante. Mas a sua agitacdo (Laplace, pelo me~ nos, ao corrigir neste ponto de vista a férmula de Newton, salientou este facto no que diz respeito Bs ondas sonoras) tem por efeito necessdrio aquecer 0 seu melo ¢, por con~ sequéncia acelerar a sua sucessdo. Contudo, ganha-se bem pouco tempo com o acaso, ganha-se infinitamente mais pelos mecanismos repetitivos préprios da vida, e so~ bretudo da sociedade, dado que as obras de imitacéo, dissemos nés, esto inteiramente libertas da obrigagéo de atravessar, mesmo em resumo, as etapas dos progressos anteriores. Também as transformagdes da natureza viva 8 bem menos répidas que as do mundo social. Por mais partidério que se possa ser da evolucdo brusca e nfo len~ ta, admitir-se-4 sem custo que a asa dos péssaros nao substituiu o primelro par de patas dos répteis tao rapi~ damente como as nossas locomotivas substituiram as. di~ ligéncias. Esta observacéo, entre outras consequéncias, Felega para o seu verdadeiro lugar o naturalismo histé~ rico, segundo o qual as instituigdes, as leis, as idelas, a literatura, as artes de um povo devem necesseriamente © Sempre nascer do seu intimo, germinar com lentidao © espalhar-se como rebentos, sem que seja permitido criar alguma coisa totalmente sobre 0 solo de uma nacdo. Es- ta tese estd certa quando um povo nao esgotou a fase natural da sua existéncia, aquela em que, sob o império dominante da imitagao-costume, como o diremos mai: 7 AS LEIS DA IMITAGKO adiante, ele permanece nas suas mudangas tao dominado pela hereditariedade como pela imitacdo pura e simples. Mas & medida que esta se emancipa, quando se encontra em presenga de um radicalismo qualquer que ameaga apli- car 0 seu programa revoluciondrio da noite para o dia, seré preciso evitar atirmar-se excessivamente contra a possibilidade deste perigo baseando-se em pretensas leis da vegetagdo histdrica. O erro, em politica, esté em nao acreditar no inverosfmil © em nunca prever o que nunca se viv. 58 capfTuLo IT As semelhancas sociais e a imitacSo No capftulo precedente, enunciamos, sem a desen- volver, esta tese: toda a semelhanga social tem a imita- go por causa. Mas esta férmula nao poderia ser aceite de nimo leve, © importa compreendé-la bem para re- conhecer a sua verdade assim como a das duas outras f6rmulas anélogas relatives 3s semelhancas bioldgicas e fisicas. Numa primeira vista lancada sobre as sociedades, parece que as excepcdes e as objecqdes abundam. 1. — Em primeiro lugar, hé muitas vezes entre duas espécies vivas pertencendo a tipos distintos grande quan- tidade de tracos de semelhanga, quer anatémicos, quer fisiolégicos, que nao se podem explicar, parece, pela re- peticao hereditéria, uma vez que, em muitos casos, 0 pro- genitor comum ao qual & permitido relaciond-las uma e outra, era ou devia ser desprovido destes caracteres. A configuragdo exterior, pela qual a baleia se assemelha aos Peixes, nao Ihe vem seguramente do antepassado hipoté- tico comum aos peixes e aos mamfferos, e a partir do Qual estas duas classes se teriam formado. Com mais for- te razéo, se a abelha lembra o péssaro pela fungéo do Woo, nao é que o pdssaro e a abelha tenham herdado a asa ou o élitro do seu antigo avoengo, rastejante e no voador. A mesma observagao aplica-se aos instintos se- melhantec quo apresentarn muitos animais de espécies Muito distantes, como o observaram Darwin e Romanes; Por exemplo, ao instinto que faz simular a morte para escapar a um perigo, instinto comum & raposa, aos insec~ 59 AS LEIS DA IMTAGKO tos, &s aranhas, as serpentes, aos pésseros. Aqui, 6 so- mente pela identidede do meio fisico de que estes se- res heterogéneos procuraram tirar partido com vista a satisfazer necessidades fundamentais, essenciais a toda a vida, e idénticas em cada um deles, que se explica a se- melhanga observada. Ora, a identidade do meio fisico, o que & sendo a propagacéo uniforme das mesmas ondula~ gées luminosas, calorfficas ou sonoras através do ar ou da Agua, compostas elas mesmas de 4tomos vibrando sem- pre e sempre da mesma maneira? Quanto & identidade das funcdes e das propriedades fundamentals de toda a célula, de todo o protoplasma (a nutric&o, por exemplo, @ a irritabilidade), néo preciso procurar a causa na constituigéo molecular dos elementos quimicos da vida, sempre os mesmos, isto 8, por hipdtese, nos seus ritmos Interiores de movimentos indefinidamente repetides mais do que nas singularidades prépries, transmitidas por gera- 0, cissfpara ou outra, do primeiro nucleo de protoplas~ ma, admitindo que s6 tenha formado um s6 espontanea- mente na origem? Por consequéncia, as analogias de que eu falo encontram a sua fonte na repeticéo, & verdade, mas na forma flsica, ondulatdria, e ndo na forma vital, hereditdria, da Repeticao. Hé, do mesmo modo, sempre, entre dois povos che- gados por vias independentes a uma civilizaco original, semelhangas gerais sob 0 ponto de vista linguistico, mi- tolégico, politico, industrial, artistico, literério, em que a imitagéo de um pelo outro ndo entra em nada. "Na 6poca em que Cook visitava os Neo-zelandeses, diz Qua~ trefage (Espécie humana, pdg. 336) estes ofereciam se~ melhangas estranhas com os Montanheses Escoceses de Bob-Roy e de Mac Yvov"'. Esta semelhanca entre a or- ganizagao social dos Maoris e os antigos clas da Escécia 6 certamente devida a algum fundamento comum de tradig6es, © os linguistas ndo se divertirio a fazer de var as suas linguas de uma mesma Iingua-mae. A che- gada de Cortez ao México, os Aztecas possuiam, como tantos outros povos do antigo continente, um rei, uma hobreza, uma classe agrfcola, uma classe industrial; a 60 AS SEMELHANGAS SOCEATS E A IMITAGKD sua agricultura, com as suas ilhas flutuantes e sue irri~ gagdo aperfeicoada, lembrava a China; a sua arquitectu- fa, @ sua pintura, a sua escrita hieroglifica, lembravam 0 Egipto; o seu calendério, apesar da sua estranhesa, atestava conhecimentos astronémicos préximos dos nossos na mesma época; a sua religiéo, embora sanguinéria, néo deixava de se assemelher A nossa por alguns dos seus sacramentos, especialmente o baptismo e a confissio. As coincidéncias de pormenor so por vezes téo especta- culares que af se viram razdes para acreditar (1) numa importagao directa das instituigdes e das artes do antigo mundo por alguns naufragados. Mas sob estas aproxima- gdes e uma infinidade de outras do mesmo género, ndo 6 mais verosimii perceber, por um lado, a unidade fun- damental da natureza humana, a identidade des suas ne- cessidades orgénicas cuja satisfacio é 0 fim de toda a evolugdo social, e a identidade dos seus sentidos, da sua gonformacao cerebral; por outro lado, a uniformidade da natureza exterior que, oferecendo a necessidade quase semelhantes mais ou menos os mesmos recursos, e a olhos quase semelhantes mais ou menos os mesmos espectécu- los, deve provocar inevitavelmente por toda a parte in- distrias, artes, percepgdes, mitos, teorias bastante se~ melhantes? Estas semelhangas, como aquelas de que se fa~ G) 0 facto & que as aproxinagies sio muitas e marcantes. A civi- Lzegao, na Axérica como na Europa, passou sucessivanente "da ide- de de pedra a idade do bronze por sétodos ¢ sob formas. idénticas. Os TEOCALLI, do México correspondem 3s pirdmides do igipto, como 5 MOUNDS da Anérica do Norte corresponden aos T\MULI, da Bretanha © Citia, cono os PYLONES do Per corresponden aos da étrdria © do Egipto". (Clémence Royer, REVISTA CIENTIFICA, 31 Julho de 1886). O que & mais surpreondente ainda, é que 2 Lingua basca sé apresenta Afinidates con certas Minguas anericanas. — 0 que enfraquece al~ ance destas semelhangas é que os pontos de conparagao do dai ex- teaidos un pouco artifictalnente, néo entre dues civilizagtes, mas @ntre um grande nimero de civilizagées diferentes, quer do anti~ 99, quer do novo mundo. 6t AS LETS DA TMITAGRO fou mais acima, entrariam, portanto, & verdade, no prin- cipio geral de que toda a semelhanga nasceu de uma re~ petigao; mas embora sociais, elas teriam por causa re- petigdes de ordem biolégica © de ordem fisica, transmis- s6es hereditérias de fungdes e de érgaos que constituem as ragas humanas, e transmissdes vibratérias de tempera- turas, de cores, de sons, de electricidade, de afinidades quimicas, que constituem os climas habitados e os solos cultivados pelo homer. Eis 2 objeccio ou a excepgdo em toda a sua for a. Apesar da sua gravidade visivel, resulta daf simples- mente que hé lugar para estabelecer em sociologia uma distingéo decalcada sobre a das analogias © das homolo~ gias, usual em anatomia comparada. Ora, as conformida~ des do primeiro género que foi assunto acima, por exem- plo, a comparagao do élitro do insecto com a asa do pés- saro, parecem superficiais e insuficientes ao naturalista; por mais notérias que possam ser, ele ndo se digna parar af, quase as nega, enquanto atribui o mais alto valor &s semelhangas contrariamente profundas precisas sob o seu ponto de vista entre a asa do p&ssaro, a pata do rép- til e a barbatana do peixe (1). Se esta maneira de julgar Ihe 6 permitida, néo vejo porque se recusaria 20 socié~ logo 0 direito de tratar as analogias funcionais das di- yersas Iinguas, das diversas religides, dos diversos gover- nos, das diversas civilizagées, com um desprezo igual, e as suas homologias anatémicas com um respeito igual. Os lingufstas e 03 mitélogos jé esto imbuldos deste espirito. A palavra teotl, na lingua dos aztecas, pode bem signi- ficar deus assim como a palavra théos em grego; nenhum (1) Ele presta mais atengao aos casos de MIMETISMO, enigna até aqui indecfrivel, mas que, se 2 selecgdo natural desse verdadei: Tanente a chave dele, encontrar-se-ia explicada pelas leis ordi nérias da hereditariedade, pela fixagio e acunvlagao hereditérias das variajdes individuais vais favoréveis § salvagao da espécie, provida de sorte para revestir como um disfarce a Libré de um ov- tro. AS SEMELHANGAS SOCTAIS E A IMITAGHO. lingufsta veré af outra coisa que n@o seja um acaso (1) e, por conseguinte, nao reconhecerS que teotl e théos so a mesma palavra, mas provaré que bischop é a mes- ma palavra que episcopus. A razdo esté em que um ele- mento de uma Ifngua nado poderia ser, num dado momen- to da sua evolug&o, separado de todas as suas transfor~ magées anteriores, nem considerado & parte dos outros elementos que ele reflecte e que o reflectem; donde se segue que uma semelhanca constatada entre uma das suas fases isoladas e uma das fases de um outro vocdbulo recebido de uma outra familia de Ifnguas e separado mesmo de tudo o que faz a sua vida e a sua realidade, 6 uma relacdo facticia entre duas abstracgées, nao um elo verdadeiro entre dois seres reais. Esta consideragao pode ser generalizada (2). (1) 0 encontro & tanto sais singular elias quanto TL en TEOTL ndo conta, dado que este jungao de consoantes 6 a terminagio habitual das pelavras mexicanas. Téo e Théo (no dative) tén absolutanente a nesno sentido e 0 mesmo son. (2) Se 0 costune de mutilagies de diversas espécies, da circunciséo, Por exerplo, da tatuagem, dos cabelos cortados, en sinal de subor- ‘SinagBe 9 um deus ou a ue chefe, existe sobre os mais distantes ontos do globo, na Anérica e na Polinésia, como no aunio antigo; se 9s totens dos selvagens da Anérica do Sul Leabran mesmo um pouco 45 brasBes dos nossos cavaleiros da Idade Média, etc. pode-se ver Bimplesnente nestes ENCONTROS, estas senelhancas, a prova de que 8 acgées so governadas pelas crengas © que as crengas, em gran- de medida, sfo sugeridas a0 honen pelas inclinagBes inatas da sua fatureza idéntica, no fundo, por toda a parte e pelos fenémenos 2 natureza exterior, muito mais serelhantes entre eles do que di- ferentes, apeser da diversidade dos climas,. — Estas analogias, & verdade, podem ben nfo ter a imitaglo por causa. Mas tanbén no Prose de grosseiras, vagas, sem significado sociolégico, absolu- tanente cono o facto, para os Insectos, de possuir meavros tal co- 80 0s vertebrados, olhos © asas como os péssaros, 6 Insignifican- fe biologicanente. A asa do passaro e 2 do morcego, ambora muito Siferentes no aspecto, fazem parte da neswa evolug’o, tén 0 mesao 63 AS LETS OA IMITACAO Mas esta resposta, que consiste, no fundo, em ne- gar as semelhangas embaragosas ndo poderia bastar. To- mo por verdadeiras @ sérias, pelo contrério, muitas seme- Ihanges que se produziram espontaneamente entre civili- zagdes deixadas sem comunicagéo conhecida nem provével limas com as outras; e admito, em geral, que uma vez langado na vida das Invengdes e das descobertas, o gé- nero humano se encontra apertado por um conjunto de ‘condigSes internas ou externas, como um rio por outeiros, entre limites estreitos de desenvolvimento, de onde resul~ ta, em bacias mesmo afastadas, uma certa semelhanga aproximativa do seu curso; € mesmo por acaso menos frequentemente, contudo, do que se supée, o paralelismo de ideias genials (1), quer muito simples, quer por vezes bastante complicadas, aparecidas independentemente e equi- (cont.) passado € a possibilidade de un esto futuro; estes orgios tocan-se por uta infinidade de pontos das suas transformagdes. su- cessivas; tanbén 80 homdloges; enquanto que a asa do insecto @ do passaro nfo tée qualquer coisa de comum 2 tio ser una das fe- ses des suas evolugies muito dissenelhantos. A circuncisso nos fztecas era acompanhada das nesnas cori énias, tinha o nese sentido reLigioso que nos Hebreus? Nao; tal ono 2 sta confissio nfo se assenelhava & nossa. Este pormenor das cerinénis & contude, o que interessa socielnente, porque @ a par te prépria do weio social na direcgio das actividades individual. E esta parte vai crescendo sen cessor. (1) Com muito mais razéo, de ideias muito sinples e que do oxigen cenfo um téme estorgo de inaginagbo. £0 caso de muites particu- Laridades de costumes, mesmo dos mais singulares. Por exenplo, 0 ler 2 obra de Me danetel sobre @ China, ou tinha sido surpreendido por ver relatado nela o uso do ARROTO POR DELICADEZA entre os con- Wivas, no fin de una refeigio. ra, segundo N. Garner © M. hiyowet (A NOVA GRECTA, 1889), os gregos modernos praticam a mesma obser= vancia cerinonial...tvidertesente, aqui e 18 2 necessidade de for~ necer a prova evidente de que se esti saciado sugeriu a ideia ri- d{fcula, nas natural, deste bizarro costune, 64 AS SENELHANGAS SOCTAIS E A IMITAGKO valentes, se néo idénticas (1). Mas, primeiro, enquanto o homem foi constrangido, pela uniformidade das suas ne- cessidades orginicas, a’ seguir este mesmo caminho de ideias, tratou-se de semelhangas de ordem biolégica e nao social, ¢ 6 entio a minha segunda, ndo a minha terceira férmula, que é aplicdvel. E assim que desde que as con- digdes completamente semethantes dos fenémenos lumino~ $03 OU sonoros a perceber em vista dos seus fins obrigam 08 animais de diversas ramificagdes a ter olhos e orelhas que nao existem sem qualquer relagao, a sua semelhanca este aspecto & fisica, nao vital, e, como tal, dapende da ‘ondulacdo, conforme a nossa primeira formula. Em seguida, como e porqué o génio humano percor- teu 0 caminho em questéo, se néo em virtude cas causas iniciais que 0 arrancaram ‘do seu primeiro torpor, e que, acordando-o, fizeram também sair pouco @ pouco do seu sono as necessidades virtuais e profundas da alma humana? E que causas so estas a n&o ser algumas descobertas € algumas invencdes primordiais, capitais, que, tendo co- megedo a espalhar-se por imitagdo, deram aos seus imitadores 0 gosto de descobrir e de inventar? Na origem um antropéide imaginou (conjecturarei mais adiante como) 8 rudimentos de uma linguagem informe @ de uma gros- seira religido: esse paso diffcil que franqueava eo homem ® porta do mundo social foi um facto tinico, sem o qual este mundo, com todas as suas riquezas ulteriores, teria Continuado mergulhado nos limbos dos possfveis irrealiza- dos. Sem essa fatilha, 0 incéndio do progresso jamais se feria deciarado na floresta primitiva cheia de selvagens; @ a ‘Sla, € a sua propagacao por imitagao, que é a verda~ Gsira ‘causa, @ condicao sine que non. Este acto original Ge imaginacao teve por efeitos no s6 os actos de imi- G80 directamente emanados dele, mas também todos os ier exenplo, as mesmas necessidades deran a ideia, no antigo Bars Se totesticar 0 bot, ane sniricn de domeh 0 biscate synptate (re. tourdan, Conaista D0 MiROO ANIA, pfs. 212); 0 11 18, de domar o canelo, aqui, de domar o lama. 65 AS LETS DA IMITACKO AS SEMELHANGAS SOCIATS EA INTTAGEO actos de imaginagao que ele sugoriu © que eles prdprios sugeriram de novo, e assim sucessivamente. Assim, tudo se refere a ele, toda a semelhanga so~ cial provém desta primeira imitagao de que ele foi ob- jecto; e creio poder compard-lo a esse evento néo menos excepcional que, muitos milhares de séculos antes, se ti- nha produzido sobre 0 globo quando, pela primeira vez, uma pequena massa de protoplasma se formou, nao se sabe como, ¢ se pds a multiplicar-se por geracao cissipar. Desta primeira repetigéo hereditéria procedem todas as semelhangas que se observam no momento actual entre todos os seres vivos. Nao serviria de nada, por outro lado, conjecturar, muito gratuitamente, que os primelros centros de criagéo protoplésmica, tal como de criagao linguistica e mitoldgica, foram n&o Unicos mas mtitipios: com efeito, na hipStese desta multiplicidade, nao se poderia negar que, apés uma concorréncia e uma luta mais ou menos longas, 0 melhor, 0 mais fecundo dos esbogos diferentas, aparecidos assim espontaneamente, triunfou sozinho @ ex- terminou ou absorveu os seus rivais. € preciso nao perder de vista, por um lado, que a necessidade de inventar e de descobrir se desenvolve, co- mo qualquer outra, satisfazendo-se; por outro lado, que qualquer invencdo se reduz ao cruzamento feliz, num cé- ebro inteligente, de uma corrente de imitagao, seja com outra corrente de imitacio que o reforga, seja com uma Percepcao exterior intensa, que faz aparecer com um as~ ecto imprevisto uma ideia recebida, ou com o sentimen to vivo de uma necessidade da natureza que encontra num Procedimento usual expedientes inesperados. Mas se decom- Pusermos as percepgdes e os sentimentos de que se trata, veremos que eles préprios se resolvem quase inteiramente, e cada vez mais completamente, & medida que a civiliza~ 98 avanga, em elementos psicolégicos formados sob a influéncia do exemplo. Qualquer fenémeno natural & visto através dos prismas e das lentes coloridas da linguagem materna, da religio nacional, de uma preocupacao do~ minante, de uma teoria cientifica reinante, de: que 2 ob- servagéo mais livre e mais fria néo poderia despojar sem 66 se negar.~ E qualquer necessidade organica 6 sentida de uma forma caracterfstica, consagrada pelo exemplo am biente, e pela qual o meio social, ao precisé-la, ao actua- lizé-la, a bem dizer se apropria dela. Chegou-se até a necessidade de se alimentar, tornada necessidade de co- mer pao escuro ou pao branco e tais ou tals cares num lado; arroz e tais ou tais legumes noutro; chegou-se até & necessidade mesma de relagdes sexuais, tornada neces- sidade de se casar aqui ou acold, segundo teis ou tais ritos sacramentais que se transformaram em produtos na— cionais, por assim dizer. Com mais forte raz30 é isto ver- dadeiro acerca da necessidade natural de distracco, tor- nada necessidade de jogos de circo, de tourada, de tra- gédias cldssicas, de romances naturalistas, de xadrez, do Piguet, do Whist (1). Por conseguinte, desde que aparece pela primeira vez, no século passado, a ideia de utilizar a méquina a vapor, empregue jé nas fébricas, para satis fazer a necessidade de viajar ao longe sobre os mares, necessidade nascida de todas as invengdes navais anterio- res e da sua propagacéo, devemos ver nessa ideia de gé- nio 0 cruzamento de uma imitago com outras; assim co- mo na ideia, aparecida mais tarde, de adapter a hélice 80 navio a vapor, uma e outro jé conhecidos desde hd fo tempo. E quando a constatacéo visual das vélvulas dos navios, encontrando-se no espirito de Harvey com a FecordacSo dos seus antigos conhecimentos anatémicos, © fez descobrir a circulagéo do sangue, esta descoberta no passava, em suma, do encontro de ensinamentos tra~ dicionais com outros (@ saber, com os métodos e as pré- ticas que, muito tempo seguidos docilmente por Harvey, Giscipulo, Ihe tinham sozinhos permitido fazer um dia a Sua constatagao magistral); tal como, ou quase, a apro~ ximagao de dois teoremas j4 ensinados faz surgir um ter- ceiro a um gedmetra. Todas as dimenstes e todas as desenhertas, por- tanto, sendo compostos que tém por elementos imitagdes (1) Como o Wnist, também o piquet era um jogo de cartas (N.T.). AS LEIS DA IMITAGAO anteriores, salvo quaisquer achegas exteriores infecundas por si mesmas, e sendo estes compostos, por sua vez, imi tados, destinados a tornarem-se os elementos de novos compostos mais complexos, segue-se daf que hé uma ér- vore genealdgica destas iniciativas bem sucedidas, um en- cadeamento nfo rigoroso mas irreversfvel, da sua apari- Ao que faz lembrar o relacionamento das causas sonhado pelos antigos filésofos. Qualquer invengao que surge é um possivel realizado entre mil, entre os possivels di- ferentes, quero dizer, entre os necessérios condicionais, que a invencéo-mae donde ela deriva trazia no seu ventre; @ a0 aparecer ela torna impossfveis doravante a maior parte desses possiveis, tora possiveis uma multiddo de outras invengdes que antes o néo eram. Estas existirao ou néo existiréo, segundo a direccéo e a extensdo do raio da sua imitagio através das popsaisas j& esciarecidas com tais ou tais outras luzes. verdade que, entre as que existirio, s6 as mais Uteis, se se quiser, sobreviverao, mas entenda-se por isso as que responderéo melhor aos problemas do tempo; porque qualquer invencgo, como qual- quer descoberta, 6 uma resposta a um problema. Mas pa- ra além destes problemas (1), sempre indeterminados, co- mo as necessidades de que eles sao a tradugao vaga, com—- portarem as mais variadas solucdes, a questao ¢ de saber como, porqué © por quem eles séo colocados, numa data @ nao noutra, e em seguida porque tal solucdo foi adop- tada de preferéncia aqui ¢ a tal outra noutro lado (2). (1) fm politica @ isto que se chama QUESTOES: a questdo do Orien- te, a questo social, etc. (2) Acontece algunas vezes que em quase toda a parte a solug3e aceite seje a nesna embora o problena comportasse outras. £ que essa solujlo, dir-se-i, era a mais natural. Sin, mas nao é justa~ mente por isso, talvez, que, apareciéa sonente nun lado, ¢ nio en todos ao wesao tempo, els acabou por se espalnar en todos os lugares? — for exempla a morada dos ortos infelizes foi quase por toda a parte considerada, entre os povos prinitivos, como sub~ terranea, ¢ a dos felizes cono celeste. A semelhanga vai nuitas ve~ 68 AS SENELHANGAS SOCLATS £ A IMTTAGHO ari seca Isso depende de iniciativas individuais, depende da natureza dos inventores e dos sébios anteriores, recuan— do até aos primeiros, talvez os maiores que do alto da histéria precipitaram sobre nés a avalanche do progresso. Temos dificuldade em imaginer como as ideias mais simples exigiram génio e oportunidades singulares. Pode-se crer & primeira vista que, de todas asiniciativas, ‘a que consiste em dominar, para os explorar, em vez de simplesmente os cacar, os animais inofensivos espalhados por um territério, € a mais natural, néo menos a mais fecunda; e é-se levado a julg4-la inevitdvel. Contudo, sa- bemos que o cavalo, depois de ter feito parte desde longa data de fauna americana, tinha desaparecido da América no momento da descoberta deste continente, e acorda-se fem explicar o seu desaparecimento admitindo, diz Bourdeau (Conquista do Mundo Animal), "que o cagadores deveriam t8-lo destrufdo (parao comer} em muitos lugares (porque © facto se produziu também no mundo antigo), antes que os pastores pensassem em domesticé-lo". A ideia de o aprisionar estava longe de ser dominada. Foi necessério um acidente individual para que o cavalo se tenha torna- do doméstico em qualquer lado, de onde, por imitacao, a sua domesticagao se espalhou. Mas o que é verdade Acerca deste quadrupede 6-0 sem duvida acerca de todos © animais domésticos e de todas as plantas cultivadas. = Ora, imagine-se 0 que podia ser a humanidade sem es- tas invencSes-mies! Em geral, se se quer que as semelhangas sociais dos povos separados por abstéculos mais ou menos intrans- Poniveis (mas que puderam nao o ter sido no passado) ndo 8@ expliquem por um modelo primitivo do qual se perdeu toda a recordagéo, nao resta, o mais das vezes, para os explicar senao a extraccdo em cada um deles, de todas as invengdes possiveis sobre um dado assunto e a eliminacao (cont.) 2es muito lange. 0s Indios Saliles de Orégon, segundo Tylor, izen que os naus vio habitar depois da sua morte un lugar coberto de moves eternas, "onde, verdadeiro suplicio de Tantalo, vaen per= etuasente caga que néo poden matar e 4gua que ndo podem beber™. (89 AS LEIS DA IMITAGKO de todas as ideias indteis ou menos indteis. Mas esta di- tima hipétese é contrariada pela esterilidade relativa de imaginagéo que caracteriza os povos embrionérios. Convém, portanto, ater-se de preferéncia & primeira e nunca renun- ciar a ela sem razéo manifesta. € certo, por exemplo, que a ideia de construir habitagdes lacustres, comum aos’ an- tigos habitantes da Sufca e da Nova Guiné, Ihes tenha vin do sem sugestio Imitativa? A mesma questao relativamen- te A idela de talhar os sflex ou de os polir, de coser com as espinhas de peixe e tendées, de friccionar dois pedagos de madeira para daf fazer saltar fogo. Antes de negar a possibilidade da difusdo destas ideias por uma lenta e gradual imitacio que teria acabado por cobrir quase to- do o globo, & preciso lembrar-se primeiro da imensa du- ragéo de que dispée a pré-nistéria, e pensar também que temos a prova de relagdes mantidas a grandes distancias no somente pelos povos de idade do bronze, que deviam por vezes mandar vir o estanho de muito’ longe, mas ainda pelos povos da pedra polida e talver da pedra las- cada, As grandes invasées conquistadoras que flagelaram todos os tempos deveriam facilitar e universalizar frequen- temente, mesmo na pré-histéria, ou sobretudo na pré-his- t6ria, porque as grandes conquistas séo mais facilitadas quanto os povos a conquistar s3o mais dispersos e mais Primitives, @ difusio das ideias civilizadoras. O apareci- Mento dos Mongéis no século XII! 6 uma boa amostra destes dilivios periédicos; © nés sabemos que ele teve co- mo efeito romper, em plena Idade Média, as barreiras dos povos mais fechados, pér a China e 0 Indostéo em comunicagao entre eles e com a Europa (1). (1) Mun artigo mvito interessante publicado pels REVISTA 00S 0015 MUNDOS; do 1 de Yoio de 1890, M. Goblet d'Alviella faz correctas reflexdes sobre a rapidez e a facilidade com que as s{mhalns religio- 805 se espalhan graas as viagens, & escravatura e as HOEDAS, que s4o verdadeiros baixos-relevos méveis. Acontece 0 mesmo con os sin- bolos pol{ticas. Por exenplo, a AGUIA COM DUAS CABEGAS das armas do ‘impersdor da fustria e do Czar da Rissia vem-lhes do antigo imério 70 AS SENELHANGAS. SOCLALS EA IMITAGHO Mas, mesmo na falta destes acontecimentos violen~ tos, a troca universal de exemplos nunca deixou de se ope- rar a longo prazo. A este respeito fagamos uma observa~ giao geral. A maior parte dos historiadores so levados a hao admitir a influéncia de uma civilizagéo sobre a outra a néo ser quando conseguem constatar entre elas a exis- téncia de relagdes comerciais ou de lutas militeres. Pare- ce-lhes, implicitamente, que qualquer acgéo de uma na- do sobre uma outra nago distanciada, por exemplo do Egipto sobre a Mesopotamia ou da China sobre o Impér Romano, supde um transporte de tropas, um envio de na~ Vios ou uma viagem de caravanas de uma para a outra. Nao admitem, por exemplo, que a corrente da civilizacao babildnica e a corrente da civilizagéo egipcia tenham co- municado conjuntamente antes da conquista da Mesopota~ mia pelo Egipto, por volta do século XVI antes da nossa era. Ou entéo, ao inverso, mas sempre em virtude do mesmo ponto de vista, desde que, pela semelhenga cons- tetada de obras de arte, de monumentos, de tumbas, de restos funerérios, a acgao de uma civilizacéo sobre uma outra Ihes parega demonstrada, eles concluem daf ime- diatamente que deveria ter havido entre uma e a outra Querras ou transacgdes regulares. Esta opiniéo pré~concebida, se repararmos nas re~ lagSes que eu estabeleci entre as trés formas da Re- Petic¢ao universal, assemelha-se ao preconceito dos antigos Gont.) germdnico. Ora, este s6 enpregou este signo a partir da expedigao de Frederico II, no século XIII, ao Oriente e ele trou- Xt-a dos Turcos. Por outro lado, hé razbes para pensar, segundo ® autor citado, que @ senelhanca t8o evidente entre essa Squia de Guas cabecas ea quia iqualnente bicéfala que figura nos baixos- televos mais antigas 2 Mesopotimia, 6 devida a una sequéncia de Imitagtes.ver ainda, no mesmo artigo, o que se rofero 4 difusdo inita- iva, téo espelhada, de CRUZ GAMMDA ‘como talismi da felicidade—Por outro lado, 20 contrério, & provével que a ideia de sinbolizar pe~ la-eruz a deus dos vantos ou a rosa dos ventos veio espontaneanen- te, sem qualquor ini tagio da Mesonotinia e do Império Azteca. n AS LEIS CA IMITAGAO As seme IANGAS SOCIATS £ 8 IMITAGKO ffsicos que, em qualquer lado onde constatessem uma acgao fisica, tal como a iluminagdo ou aquecimento, exer- cido por um corpo sobre um outro corpo distanciado, viam nelaaprova de um transporte de matéria. O préprio Newton no acreditava que @ propagacao da luz solar era produzi- da por uma emissio de particulas projectadas pelo sol no espago imenso? O meu ponto de vista, neste aspecto, esté téo distante do ponto de vista ordingrio como a teoria da ondulagéo, em dptica, o esté da da emissio. Nao nego, certamente, a acgio social exercida ou, antes, provocada, pelos movimentos de exércitos ou de navios mercantes, mas contesto que ela seja 0 modo unico ou mesmo prin- cipal pelo qual se opera o contégio irradiador das civili- zagdes. A partir das suas fronteiras, onde elas se encon- tram independentemente de qualquer choque bélico e de qualquer troca comercial, os homens que as representam tém uma inclinagdo natural para se copiar; e, sem terem necessidade de se deslocarem no sentido da propagacao dos seus exemplos, eles agem continuamente uns sobre os outros, a distncias indefinidas, como as moléculas de Agua do mar que, sem se desiocarem no sentido das suas vagas, as enviam muito longe diante delas. Muito antes, Portanto, de um exército faraénico ter vindo a Babilénia, fumerosos ritos ou segredos industriais tinham passado de m&o em mao, de qualquer modo, do Egipto para a Ba— bildnia. Eis 0 que 6 preciso admitir A cabega da histdria. E reparemos como essa acgao & contfnua, poderosa, irre sistivel. Ela ird infalivelmente até acs limites da’ terra, desde que se Ihe d& o tempo necessério. Ora, & por cen: tenas de milhares de anos que se deve conter o passado humano. Portanto, hé muito lugar para crer que, desde as épocas muito préximas a que damos o nome de anti- guidade, ela devia ter-se estendido a todo o universo. E, para isso, néo é necessério que a coisa propa- gado_oeja Util, razcdvel ou bela. Eis um exemplo. Como, se nao for por imitagao, este grotesco costume que con- siste em mandar passear sobre um asno, sentados de cos- tas, 0s maridos mal tratados pelas suas mulhéres, se po- 72 deria ter estabelecido na Idade Média, onde o encontra~ mos em téo diferentes lugares? £ manifesto que uma ideia t8o absurda néo pode brotar espontaneamente ao mesmo tempo de cérebros distintos. Isto no impede M. Baudrillart, levado pelo preconceito corrente, de se per- suadir de que as festas populares se fizeram sozinhas, em Gualquer iniciativa individual, consciente e deliberada. 0 que estabeleceu, diz ele, as festas da Tarasque, em Tarascon, da Graouilli, em Metz, de Loup vert, em Ju- migges, de Gargoullle, em Rouen, © tantas outras ndo foi, com toda a certeza, algum decreto decidido em conselho (concordo com isso), algume vontade premeditada (aqui esté 0 erro); 0 que os tornou periddicos, foi uma aprova- Gao undnime e espontnea..." Apresentam-se milhares de pessoas concebendo ao mesma tempo e realizando espon= taneamente singularidades semelhantes! Em resumo, tudo o que 6 social © nao vital ou ff- sico, nos fenémenos das sociedades, tanto nas suas seme- Ihangas como nas suas diferencas, tem a imitagao por causa. Também nao ¢ sem razéo que se dé geralmente o epiteto de natural, em toda a espécie de factos sociais, &s semelhangas espontaneas, nao sugeridas, que se produ- zem entre sociedades diferentes. Tem-se 0 direito, quando se esgota de olhar as sociedades por este lado esponta— neamente semelhante, de chamar a este aspecto as suas leis, 05 seus cultos, os seus governos, os seus usos, os seus delitos, 0 direito natural, a religiéo natural, a po- Iftica natural, a indéstria natural, a arte natural (nao digo naturalista), 0 delito natural... Ora, estas semelhan- 88 so certamente necessérias. Mas o mal esté em que, 20 querer precisd-las, perde-se o tempo, e por este ca- récter de vago e de arbitrdrlo incurdveis, elas devem acabar por desanimar um espfrito positive, habituado s Precisées cientificas. Podem-me fazer ver que, se a imitacio 6 coisa so~ Sil, 0 que n&o ¢ social, o que é natural num grau su- Perior, 6 @ preguica instintiva de onde nasce a tendéncia a imitar para evitar o trabalho de inventar. Mas esta mes~ Ma tendéncia, se precede necessariamente o primeiro fac~ 73 AS LEIS ON IMITAGKO AS SEMELIANGAS SOCIATS € A IMTTAGKO to social, o acto pelo qual ela se satisfaz, & muito varid- vel em intensidade e em direcc&o, conforme os habits de imitagao j& formados. — Podem-me dizer ainda: esta ten- déncia ndo & sen&o uma das formas de uma necessidade considerada por vés inata e profunda, e donde fazeis deri- var (v8-lo~emos mais longe) todas as leis da Iégica social, isto é, a necessidade de um m&ximo de f6 forte e sélida. Se estas leis existem, como a sua origem néo pode ter nada de social, as semelhancas que elas produzem nas ins- tituigées @ nas ideias dos povos tém uma causa nao so- cial mas natural. Por exemplo, a explicaggo das doencas Por ume possesséo diabélica, por uma entrada de espiti- tos maus no corpo de um doente, apresentou-se tanto aos selvagens americanos como aos selvagens africanos ou asidticos, coincidéncia j& bastante singular; depois, uma vez adoptada esta explicagao, fez-se derivar dela logica~ mente, tanto no antigo como no novo mundo, a ideia de curar por via de exorcismo. — Mas eu respondo que se ume certa orientago Idgica do homem pré-social nao é negével, a necessidade de coordenacao légica, acrescida @ precisada pela influéncias do meio social, esté sujeita as mais extensas variagdes, as mais estranhas, e forti- fica-se, dirige-se_como qualquer outra, na medida e no grau das satisfagses que recebe. Veremos adiante a pro- va disso. Il, — Isto conduz~me a examinar uma outra objec- 80 capital que me pode ser feita. Eu nao teria ganho grande coisa, com efeito, em provar que todas as civili- zagées, mesmo as mais divergentes, sdo raios de um mes- mo centro primitivo, se h& razdes para pensar que, pas- sando um certo ponto, a sua divergéncia vai diminuindo em vez de crescer, © que, qualquer que tenha sido o pon- to de partida, a evolugio das linguas, dos mitos, das profissées, das leis, das ciéncias e das artes se teré apro- ximado cada vez mais da via seyuida, ve modo que, ine vitavelmente, 0 termo devia ser sempre 0 mesmo, prede- terminada, fatal. 7a Resta saber se esta hipdtese ¢ vordadeira. Nao o 6. Mostremos primeiro a consequéncia extrema que ela implica. Seque-se que, nao importa por que vie especula- tiva, mediante um tempo suficiente, o espfrito cientifi- co devia chegar, em mateméticas, a0 cdlculo infinitesi- mal; em astronomia, & lei de Newton; em fisica, & uni dade das forcas; em quimica, ao atomismo; em biologia, A selecgao natural ou a qualquer outra forma ulterior de transformismo, etc. E como é sobre esta ciéncia dita una @ inevitével que devia apoiar-se a imaginacdo industrial, militar ou artfstica, em busca de respostas a necessidades virtualmente inatas, a invencdo, por exemplo, da locomo- tiva e do telégrafo eléctrico, dos torpedos e dos canhdes Krupp, da dpera wagneriana e do romance naturalista, era coisa necessdria, mais necesséria, talvez, que a arte do oleiro reduzida & sua mais simples expressao. Ora, ou eu me engano muito ou mais valeria dizer que, desde os seus primeiros infcios, através de todas as suas’ metamor- foses, a vida tendia a fazer desabrochar certas formas vivas determinadas, e que, por exemplo, o ornitorrinco ou © cacto, o lagarto ou a orquidea, ou mesmo o homem, Go podiam nao aparecer. Nao parece mais plausivel ad- mitir que o problema posto a cada instante pela vida es- tava indeterminada em si, susceptfvel de mdltiplas soluges? A iluséo que eu combato deve a sua verosimelhan- G2 a uma espécie de quiproquo. & certo que o progresso a civilizagéo se reconhece no nivelamento gradual que ela estabelece sobre um territério cada vez mais vasto, de tal modo que um dia, talvez, um mesmo tipo social, estével © definitive, cobriré toda a superficie do globo (1), antigamente retalhado em mil tipos socials diferentes, (1) Yer-se-8, contudo, mais @ frente que, finalmente, 0 COSTUME, isto 8 2 initagdo exclusiva deve prevalecer sobre a MODA, sobre a imitagéo sectéria, © que na continuagio desta lei, o fracciona- nenta da hunanidade en estados distintos, on civilizagies diferen- tes, somente menos nunerosas ¢ mais vastas que no presente, pode Muito ben ser o estado final, tanto actual como passato, das so iedades. 15 2 AS LEIS OA IMITAGRO estranhos e rivais. Mas esta obra de uniformizagdo uni- versal, 2 qual assistimos, revela 0 menos possivel_uma orientagéo comum das sociedades diversas em direcgao a um mesmo pélo? — De forma nenhuma, dado que ela tem Por causa manifesta a submersio da maior parte das ci- vilizagées originais sob o dildvio de uma delas, cujo fluxo avanga em extensdes de imitacdo alargadas constantemen- te. Para ver até que ponto as civilizacdes independentes esto longe de tender para convergir espontaneamente, comparemos duas civilizagoes chegadas ao seu termo e que nele pararam: 0 Império Bizantino da Idade média, por exemplo, ao Império Chinés da mesma época. Uma e outra civilizag&o tinham entéo, desde h4 muito tempo, dado todo o seu fruto e atingido o seu limite extremo de crescimento. A questao esté em saber se, neste es- tado de consumagao final, elas se pareciam mais entre si do que nao se tinham parecido no passado. Nao é nada disso e 0 contrdrio parece-me bem mais verdadeiro. Com- parem Santa Sofia com os seus mosaicos a um pagode com as suas porcelanas, es misticas miniaturas dos ma- Ruscritos aos pratos pintados dos oleiros, a vida de um mandarim ocupado com fragmentos literdrios, e entretan- to dando © exemplo de trabalhador, & vida de um bispo de Bizancio apaixonado por subtilezas de teologia entre~ meadas com astiicias diplomdticas; © assim sucessivamen- te. Tudo é contraste entre 0 ideal de jardinagem esmera- da, de familia fervilhante, de moralidade rebaixada, caro a um destes povos, e o ideal de salvacio crista, de celi- bato monéstico, de perfeigéo ascética, de que o outro esté alucinado. Tem-se dificuldade em submeter a0 mes- mo nome de religiéo o culto dos antepassados sobre o qual esté baseado um deles, ¢ 0 culto das pessoas divinas ou dos santos que é a alma do outro. Mas se um recuar as mais antigas idades desses Gregos e desses Romanos cuja dupla pintura se misturou © completou no Baixo-Im- pério, encontra af uma organizagao familiar que se diria decalcada sobre a da China. Na antiga familia ariana, com efeito, e eu acrescento semita, como na familia chinesa, encontramos nao somente o culto do fogo do lar e da alma 76 AS SEMELHANGAS SOCTAIS £ A IMITAGA dos antepassados, mas ainda os mesmo procedimentos ima~ ginados para honrar 0s mortos, quer dizer, as oferendas de alimentos © 0 canto de hinos acompanhados de genu- flexdes, e também as mesmas simulacées especialmente a adopgao, para atingir, a despeito da esterilidade aci- dental das mulheres, o fim capital, que é perpetuar com ‘a familia a pequena religiao do lar. Ter-se-4 a contra-prova desta verdade se, em vez de compararmos dois povos originais em duas feses suces- sivas da sua histéria, se puser em paralelo duas classes ou duas camadas sociais de cada uma delas. Na verdade, © viajante que atravessa vérios paises da Europa, mesmo fos mais atrasados, observa mais diferenca entre as pes- s0as do povo que permaneceram fiéis aos seus velhos cos~ tumes do que entre as pessoas das classes superiores. Mas 6 porque estas foram as primeiras a ser tocadas pelo cla~ rao da moda invasora: aqui a semelhanga é visivelmente filha da imitag3o. Pelo contrério, quando duas nagdes per- maneceram hermeticamente fechadas uma & outra, os membros da sua nobreza ou do seu clero diferem certa~ mente mais entre eles pelas suas ideias, os seus gostos @ 08 seus hdbitos que os cultivadores ou os pedreiros. ‘A razao est4 em que quanto mais uma nacéo ou uma classe se civiliza, mais ela escapa &s margens estri- tas onde a serviddo das necessidades corporais, por toda a parte as mesmas, encerram o seu desenvolvimento, @ desagua no livre espaco da vida estética, onde a nave da arte voga ao sabor dos ventos que o seu préprio passado lhe sopra. Se 2 civilizagéo sé fosse o pleno desenvolvi-~ mento da vida organica pelo meio social, néo seria assim; mas dir-se-4 que a vida, ao expandir-se 20 acaso, procu- ra, antes de tudo, emancipar-se fora dela mesma, romper © seu préprio circulo e s6 tende a florir para progredir; ‘como se nada the fosse mais essencial, como talvez a toda a realidade, do que se libertar da sua prépria es~ séncia. O supérfiuo, entéo, o luxo, 0 belo (eu entendo o belo especial que cada época e cada nagao cria), é, em qualquer sociedade, o que ela tem de mais eminentemente social, e € razéo de ser de tudo o resto, de todo o nes~ 7 AS LEIS DA IMITAGKO AS SEMELAANGAS SOCIATS EA IMTTAGEO sério e de todo o Util. Ora, vamos ver que a origem ex- clusivamente imitativa das semethancas se torna cada vez mais incontestdvel & medida que a gente sobe da segunda para a primeira destas duas ordens de factos. Os hdbitos artisticos da vista, nascidos de antigos caprichos indivi- duais da arte, tornam-se necessidades hiper-organicas as quais 0 artista & obrigado a dar satisfagao, e que limitam singularmente © campo da sua fantasia; mas esta limita- $80, que nao tem nada de vital, 6 o que hd de mais varlével segundo os tempos ¢ os lugares. E assim que o olho do Grego, a partir de uma certa época, tinha neces- lade de ver, no que se refere 2 colunas, uma forma js- nica e corintia, enquanto que o olho egipcio, no antigo Império, exigia um pilar quadrado e, no médio império, uma coluna terminada em flor de lotus. Aqui, nesta es- fera da arte pure, ou, antes, quase pura (porque a ar- quitectura permanece sempre uma arte industrial), a mi- nha férmula relativa & imitago, considerada como a cau- sa Unica das semethangas sociais verdadeiras, j4 se apli- ca a letra. Ela aplicar-se-ia mais exactamente ainda em es- cultura, em pintura, em mésica, em poesia. As ideia do gosto, com efeito, © os julzos do gosto, aos quais a arte Tesponde, néo Ihe pré-existem; néo tém nada de fixo nem de uniforme como as necessidades corporais e as percep- Ses dos sentidos que predeterminam em certa medida &s obras da indistria e as forgam a repetir-se vagamen- te em povos diversos. Quando uma obra releva ao mesmo tempo da inddstria @ da arte, 6 preciso, entéo, atender-se 0 que, semelhante pelas suas caracteristicas industriais & outros produtos de proveniéncia estrangeira e indepen— dente, difere deles pelo seu lado estético. Em geral este elemento diferencial parece de reduzida importancia ao homem positivo; no 6 s6 pelo pormenor que se diferen- clam os monumentos, os vasos, quaisquer mévels, os hinos, a poces das diversas civilizagées? Mas este 'pormenor, esta tonalidade caracteristica, este tom de frase, este colorido préprio, é 0 estilo e a maneira que interessam 20 artista acima de tudo. £ 0 simbolo ao mesmo tempo 78 mais visfvel e mais profundo de uma sociedade, aqui a ogiva, acold o fronto, mais além o arco perfeite, a for ma magistral que se impde as utilidades em lugar de as syportar, @ nisto & perfeitamente compardvel a esses ca- racteres morfol6gicos, dominadores das fungSes, pelos quais 0s tipos vivos se reconhecem. Eis porque 6 permiti- do neger esteticamente, quer dizer, do mais puro ponto de vista social, a semethanga verdadeira de obras que se distinguem somente por um pormenor. E permitido dizer, por exemplo, que 0 gracioso pequeno templo egipcio de Elefantina nao se parece com um templo grego peripté- rico, apesar da aparéncia, e afastar a questéo de saber se esta semelhanga no seria uma prova de que a Grécia copiou 0 Egipto, como pensava Champollion. — Em defini~ tivo, isto leva @ dizer que a férmula se aplica tanto mais exactamente quanto se trata de obras semelhantes que respondem a necessidades facticias, menos naturais, quer dizer, de uma ordem menos vital, mais social. De onde se pode induzir que se as obras jamais se encontrassem, inspiradas por motives de ordem social, absolutamente estranhos 8s fungdes vitais, este principio verificar-se-ia com todo o seu rigor. Falou-se muito, entre os estetes, de uma pre- tensa lei do desenvolvimento das belas-artes que as obi garia a girar & volta do mesmo circulo e a reeditarem-na indefinidamente. O mal 6 que nunca ninguém conseguiu formulé-la com alguma preciso sem se opér ao desmen- tido dos factos; e esta observacdo ndo deixa de se apli- car também, mas muito menos, como se deveria esperar depois do que foi dito antes, as leis ditas do desenvolvi~ mento das religides, das lingues, dos governos, das leis, das morais, das ciéncies. Partilhando completamente des- te preconceito da nossa época, M. Perrot, na sua Histéria da Arte, & forcado a confessar que a evolugéo das ordens de arquitectura nao atravessou no Egipto e na Grécia fa~ Ses andlogas. Sem diivida, 16 como cé a coluna de pedra das mais antigas eras, sucedendo ao poste de madeira, come- G0u por imité-lo mais ou menos fielmente e conservou Muito tempo a marca dessa falsificacéo; e num e noutro 79 AS LEIS DA IMZTAGKO [AS SUNELHANCAS SOCIATS E A IMITAGKO pais séo as plantas locais, 0 acanto num, o lotus ou a palmeira no outro, que foram reproduzidas sobre os ca- Pitéis pera os embelezar. Sem duvide, ainda, grego ou eaipcio, o pilar, macigo e inteiro no principio, fol-se subdividindo em trés partes, o capitel, o fuste ¢ a sua base. Sem duvida, enfim, a decoragéo do capitel na Grécia e da coluna inteira no Egipto, foi-se complicando, sobre- carregando-se de oramentos novos. Mes destas trés analogias a primeira néo faz mais do que atestar uma vez mais o nosso primeiro principi a imitatividade instintiva do homem social; e a terceira deduz uma consequéncia forcada deste principio: a acu- mulagéo gradual das invencdes que se no contradizem, gragas & conservacéo e & difuséo de cada uma delas pe la imitagio irradiante de que ela 6 0 centro. Quanto & segunda, ela 6 uma dessas analogies funcionais de que fa- lei mais acima: esta diviséo tripartida da coluna era, com efeito, mais ou menos recomendada pela natureza dos materiais empregues e a lei da gravidade, desde que a ne- cessidade de abrigo chegou a exigir habitagdes de uma certa elevacéo. ~ Se se quiser dar as pseudo-leis do de~ Senvolvimento religioso, politico ou outro, que eu acabo de criticar de passagem, a sua parte de verdade, ver-se- <4 que esta se resume em semelhangas que entram nas tr@s categorias precedentes. Se existe alguma coisa que néo se pode fazer entrar nelas, é porque a imitagao inter velo. Por exemplo, os pontos de semelhanga entre o cristia— nismo @ obudismo, mas sobretudo entre o cristianismo @ © culto de Krishna, séo téo variados que pareceram sufi- cientes a varios dos mais autorizados cientistas, especial— mente Weber, para afirmar uma filiagéo histérica destas feligibes semethantes. A conjectura tem tanto menos ra- 280 para edmirar quando se trata de religides prosélites. Por outro lado ~ e aqui as divergncias significati- vas vao aparecer ~ entre os gregos "as proporedes dos supertee modificeram-se sempre no mesmo sentido; 6 por um ndmero cada vez mais elevado que se exprimiu a re- lagéo que representa a altura da fuste comparada com o Seu didmetro. © dérico do Partenéo é mais fino do que o 80 dos velhos templos de Corinto; 6-0 menos do que o dé- rico romano...Ndo aconteceu 0 mesmo no Egipta: as for- mas nfo tenderam para se adelgagar & medida que os sé- culos passavam. A coluna de dezasséis faces © a coluna fasciculada de Béni-Hassen nao t&m proporcdes mais cui- dadas do que as colunas dos monumentos muito posterio res''. Encontra-se mesmo 0 contrério, precisamente o in verso da evolugao helénica. H4, portanto, conciul o au- tor citado, na marcha da arte egfpcia, oscilacdes capri- choses. Esta marcha 6 menos regular do que @ da arte cldssica: parece ndo governada por uma Iégica interna tio severa. ‘ Eu direi mais: segue-se daf que a arte no quer deixar-se encerrar numa férmula, dado que este férmula, se 6 que hé nisso férmula, tanto parece aplicar-se, tanto no se aplica manifestamente de maneira nenhuma, e 6 precisamente nisto que consistem, aos olhos do conhece- dor, os caracteres mais importantes, mais expressivos, mais profundos. Quando se trata da coluna olhada sob o Ponto de vista utilitério, as condigdes exteriores circuns- erevem estreitamente 0 campo da intervengao arquitec— tural @ impdem-Ihe certas ideias fundamentais, como te~ mas a variar. Mas uma vez ultrapassado este estreito, a0 longo do qual todas as escolas deviam seguir um ca~ minho quase paralelo, cada uma delas rumou em direc- 980 & parte, orientadas de forma diversa, néo mais livres do resto, mas cada uma delas obedecendo s6 as inspira~ ges do seu préprio génio. Desde entio, as coincidéncias id n&o se produzem e as diferencas aprofundam-se (1). Torma-se entao preponderante, soberana, a influéncia in dividual dos Mestres, quer passados, quer actusis, sobre as transformacées da sua arte. Assim se podem oxplicar 28 "caprichosas oscilagdes" da arquitectura egfpcla; e se 0 (1) io se encontran analogies com o oblisco para alée do Cgipto? Eque 0 obtisco respondia nfo 2 una necessidade principelnente na- tural, como as portas, as janelas, os colunas enquanto suportes, fas 2 una necossidade quase inteiranente social. 3a AS LEIS 04 INITAGKO desenvolvimento da arquitectura grega parece mais recti- Ineo, néo seré isso uma ilusio? Se n&o nos limitamos a considerar dois ou trés séculos notéveis deste desenvol~ vimento, se abragarmos o desenvolvimento inteiro da arte grega desde os seus inicios mal conhecidos até as suas Ultimas transformagSes bizantinas, no veremos a necessi- dade da ligagéio crescente apontada por M. Perrot dimi- uir’ ai partied: umad certesGpaca iE paroxisno 0 éa10 protissional, da aninosidsde confraternal & 0 previlégio do corpo médico, © eu acrescento de todas as corporagies, tals como 2s dos fermacduticos, dos notirios, © da maior parte dos conerciantes, onde o trabalho isola os rivsis. CH AS LEIS DA IMTIACAO Que £ UMA SOCTEDADE? mesmo tempo cada vez mais. Nao me parece demonstrado que estas uniformidades mdltiplas para as quais nés corre- mos (de linguagem, de instrugdo, de educagao, etc.) sejam © que hd de mais préprio para assegurar a realizacéo das necessidades inumerdveis que os individuos associados di- videm entre si, que as nacdes dividem entre elas. Por se tornar letrado, um camponés poderd muito bem nao ser _um trabalhador mais habil, um soldado poderd muito bem nao ser mais disciplinado nem mesmo — quem sabe? — mais bravo. Mas quando se objectam estas eventualidades ameacadoras aos adeptos do progresso enquanto tal, 6 Porque @ gente ndo se coloca no seu ponto de vista’ de que eles préprios ndo tém talvez a minima consciéncia, O que eles querem € a socializag3o 0 mais intensa possivel @ ndo, o que & muito diferente, a organizacao social o mais alta possivel. Uma vida social transbordante num organismo social diminufdo bastar-Ihes-ia com toda a certeza. — Resta saber em que medida este fim 6 dese- jdvel. Guardemos esta questao. A instabilidade e a inquietagdo das nossas socieda~ des _modemas devem parecer inexplicdveis aos olhos dos economistas, @ em geral de quaisquer socidlogos que ba- seiem a sociedade na utilidade reciproca. Com efeito, a reciprocidade dos servigos que trocam as diversas classes das nossas nagdes, e as diversas nagdes entre elas, é ma- nifesta e cresce cada dia, gragas ao concurso dos costu- mes e das leis com toda a rapidez humanamente possivel. Mas esquece-se que os individuos destas classes e destas nagées tendem a uma assimilacdo imitativa muito maior, muito mais répida, que encontra ainda nos costumes ¢ mesmo nas leis irritantes entraves, tanto mais irritantes talvez quanto se _mostram menos desencorajantes. Depois de ter durante tanto tempo cavado, alargado, engrandecido 0 intervalo que separa o homem da mulher, @ civilizagao tende nos nossos dias, em Franca, na Amé- rica, na Inglaterra, em todos os pafses mouernizados, a diminuir a diferenga intelectual dos dois sexos abrindo' ao mais fraco a maior parte das carreiras do outro e fazen- do-o participar nas vantagens de uma educacdo ou de 90 uma instrugdo quase comum. Nisto, @ clvilizagéo trata a mulher como tratou 0 camponés, o trabalhader agricola livre de que ela tinha feito por graus uma casta & parte, @ que ela reincorpora agora no grande grupo social. Ora, aqui como 14, eu direi: é com um fim de utilidade social, € para permitir a0 camponés e & mulher desempenhar melhor as suas préprias fungdes, a cultura dos campos, 0 aleitamento e 0 cuidado des criangas, que estas trans- formacées se operam? Nao; @ mesmo muitos espiritos melancdlicos, dos quais eu sou um, véem chegar 0 mo- mento em que, na continuacdo destas mudangas, j4 nao se encontrar operdrios agricolas, nem amas, nem mesmo mes que possam ou queiram alimentar criencas cada vez mais raras. — Mas quis-se alargar o cfrculo social, e 6 porque a assimilagéo das mulheres aos homens, dos camponeses aos citadinos, € uma condigao_indispensdvel desta socializagdo, que se teve de os assimilar desta forma. i Jé no século XVIII, num cfreulo social mais restri- to, 0 da alta sociedade de entao, a vida de salao, comum aos dois sexos, 0s tinha tornado mais semelhantes um 20 outro pelas ideias e pelos gostos do que eles eram na Idade Média; ¢ sabe-se que esta vantagem social tinha sido comprade pelo preco da fecundidade e da prépria honestidade das familias. Contudo, era-se feliz assim; Porque uma necessidade superior arrasta o circulo so- cial, qualquer que ele seja, para crescer sem cessar. Estou eu em relacdo social com os outros homens na medida em que eles tém o mesmo tipo fisico, os mesmos orgdos e os mesmos sentidos que eu? Estou eu em rela go social com um surdo-mudo nao instrufdo que se me assemelha mais no corpo e no rosto? Nao. Ao inverso, 98 animais de La Fontaine, a raposa, a cegonha, o gato, © cdo (1), apesar da distancia especitica que os separa, (1) fm A EVOLUGKO MENTAL NOS ANIMAS, de Ronanes, hi un capftulo Awito interessante consagrado @ influéncia da imitagio sobre 2 formagio eo desenvolvimento dos instintos. {sta influéncia 91 AS LEIS oA mTTAGKO QUE € UMA socrEDADE? vivem em sociedade porque falam uma mesma lingua. Come-se, bebe-se, digere-se, anda-se, grita-se, sem so ter aprendido. Também isto € puramente vital. Mas para falar 6 preciso ter owido falar; 0 exemplo dos surdos-mu- dos prova-o, porque eles séo mudos por serem surdos. Portanto, eu comego a sentir-me em relagao social, bem fraca, € verdade, e insuficiente, com qualquer homem Que fala, mesmo em lingua estrangeira; mas com a con- digéo de que as nossas duas linguas me parecam ter uma fonte comum. © lago social vai-se estreitando & medida (cont.) muito maior e esti muito mais espalhada do que se supée. Nao sonente os individuos da mesma espécie, parentes ou nio paren tes, se imltam ~ muitos passaros canoros tim necessidade de que as s0a5 mes ou os seus colegas Ines ensinen a cantar — mas ainda individuos de espécie diferente trocan entre si particularidades iteis ou insignificantes. Aqui se revela a necossidade profunda de initar por initar, fonte primeira das nossas artes. Viu-se um felro reproduzir de tal modo 0 canto de um golo que as prdprias galinhas se enganavam. Daw in julgou observar que as abelhas tinhan tirado de un vespio a ideia engenhosa de sugar certas flores per- furando-as pelo lado. Wa passaros, insectos, sen qualquer talento, © 0 talento, mesmo no mindo animal, pode comtar com um certo su- cesso, ~ Sonente, sem a linguagon estes esdo¢os sociais sio insu- codidos. —Nio é unicamente o honen, & todo 0 aninal que, enquanto ser spiritual a diversos graus, aspira a vida social como a condi- Gao sine qua son do desenvolvimento do seu ser mental. Pocqué? Porque a fungdo cerebral, 0 espirito, se distingue das outras fungées naquilo en que ela nao @ ume simples adaptacio a un fin preciso por um meio preciso, mas una adaptagdo a fins aGltiplos e indeterminados que devon ser precisados mais ov menos fortuita- mente pelo préprio meio que serve para os conseguir ¢ que & imenso, 2 saber pela initagao do exterior. Este exterior infinit, este exterior pintado, representedo, IMITADD pela sensagio e pela ine teligéncia, § antec de mais a ‘notucoza universal que exerce sonre 9 cérebro, depois sobre o sistena muscular do animal, una sugestio continua @ irresistivel; mas en seguida, ¢ sobretudo, & 0 meio social. 92 que outros tragos comuns se juntam a esse, todos de erigem imitativa. Daf esta definigéo do grupo social: ums coleccdo de seres enquanto esto em vias de se imitar entre si, ou enquanto, sem se imitarem actualmente, se assemelham @ 05 seus tragos comuns sao cépias antigas de um mesmo modelo. Bed Distingamos bem do grupo social o tipo social tal como, numa data e num pats dados, ele se reproduz mais ‘ou menos incompletamente em cada um dos membros do grupo. De que se compée este tipo? De um certo némero de necessidades ¢ de ideias criadas por milhares de in- vengdes e de descobertas acumuladas com a continuacdo das idades; necessidades mais ou menos concordantes entre si, isto é, concorrendo mais ou menos para o triunfo de um desejo dominante que é a alma de uma época e de uma nacao; e ideias, crengas mais ou menos concordantes entre elas, isto 6, ligando-se logicamente umas as outras ou pelo menos ndo se contradizendo na generalidade. Este duplo acordo, sempre incompleto e ndo sem notas discor- dantes, estabelecido a longo prazo entre coisas fortuita- mente produzidas @ agrupadas, 6 perfeitamente compa- rével ao que se chama adaptagao dos érgaos de um corpo iv. Mas tem a vantagem de néo ser afectado pelo mistério inerente a este ditimo género de harmonia, e de significar em termos muito claros relagdes de meios com um fim ou de consequéncias com um principio, duas felagdes que, em definitive, ndo fazem seno uma, a Gltima. Que significa a incompatibilidade, o desacordo de dois érgaos, de duas conformacées, de dois caracteres buscados de duas espécies diferentes? Nao sabemos nada Acerca disso. Mas quando duas ideias sao incompativeis € porque uma, sabe-mo-lo nés, implica a negacdo do que 8 outra afirma. Do mesmo modo, quando elas séo compa- tiveis 6 porque nao implicam ou nao parecem implicar esta negagado em qualquer grau. Enfim, quando elas estéo 93 AS LETS Dk IMITAGAO a mais ou menos de acordo 6 porque por um maior ou menor ndmero das suas faces uma implica um nimero maior ou menor das coisas que a outra afirma. Afirmar @ negar: nada de menos obscuro, nada de mais luminoso do que estes actos espirituais aos quais toda a vida do espirite se refere; nada de mais inteligivel do que a sua opesigao. Nela se’ resolve a do desejo © da repulséo, do velle © do nolle. Um tipo social, entdo, o que se chama uma civilizagao particular, 6 um 'verdadeiro sistema, uma teoria mais ou menos coerente cujas contradicées’ inte lores se fortificam ou rebentam a longo prazo ea for- gam a separar-se em duas. Se assim 6, compreendemos Claramente porque hé tipos puros © fortes de civilizagao ® outros misturados e fracos; porqué, & forca de se enri- quecer de novas invengdes que suscitam desejos novos ou crengas novas e que alteram a proporcao dos antigos desejos ou das antigas fés, os tipos mais puros se alte- ram @ acabam por se desarticular; porqué, dito de outra maneira, néo so acumuldveis todas as invengdes © muitas 36 so substituiveis, a saber, as que suscitam desojos ¢ crengas implicita ou explicitamente contraditérias em toda a preciso Idgica da palavra. Néo hd, portanto, nas flutuagées inconstantes da histéria sendo adigées ou’ sub— tragdes perpétuas de quantidades de f6 ou do quantida- des de desejo que, levantadas por descobertas, se acres- centam ou se neutralizam como ondas que interferem. Tal 6 © tipo nacional que se repete, dizemos nés, em todos os membros de uma nagéo. Pode comparar-se a um carimbo muito grande cuja marca é sempre parcial sobre os lacres mais ou menos estreitos aos quais se aplica, e que néo se poderia mesmo reconstruir intelra. mente sem o confronto de todas as marcas. >t qr Para dizer a verdade, 0 que eu defini mais acima 6 menos @ sociedade, tal ‘como comumente se entende, do que a socialidade. Uma sociedade 6 sempre, em di- versos graus, uma associacdo, e uma associagdo 6 para a (9 QUE £ UMA socteDaDE? socialidade, para a imitatividade, por assim dizer, o que a orgenizagéo ¢ para a vitelidade ou mesmo o que a constituicao molecular é para a elasticidade do éter. Esto aqui novas analogias para juntar aquelas que jd se me proporcionou apresentar em grande nimero nas trés grandes formas da Repeticéo Universal. Mas talvez convenha, para melhor entender a socialidade relativa, a Unica que nos é apresentada em diversos graus pelos factos sociis, imaginar, por hipétese, a socialidade abso- luta e perfeita. Ela consistiria numa vida urbana tao intensa que a transmisséo a todos os cérebros da cidade de uma ideia nova aparecida em qualquer lugar no. seio de um deles estaria em todos instantaneamente. Esta hipétese & andloga & dos fisicos, segundo os quais, se a elasticidade do éter fosse perfeita, as excitagdes lumino- sas OU outras se transmitiriam nele sem intervalo de tempo. Por seu lado, os bidlogos nao poderiam utilmente conceber uma irritabilidade absoluta, encarnada numa espécie de protoplasma ideal que thes serviria para apre~ ciar a vitalidade maior ou menor dos protoplasmas reais? Partindo daqui, se quisermos que a analogia se man- tenha nos trés mundos, é preciso que a vida seja simples- mente a organizagao da irritabilidade do protoplasma, ¢ que a matéria seja simplesmente a organizagao da elas~ ticidade do éter, do mesmo modo que a sociedade nao 6 sendo a organizacéo da imitatividade. Ora, é Gtil apenas observar que a concepcao de Thompson, adoptada por Wurtz, sobre a origem dos dtomos @ das moléculas (a saber, a hipétese tao iluséria como verosimil dos étomos- -turbilhdes), responde perfeitamente a uma das exigéncias da nossa maneira de ver, téo bem como a teoria proto- pldsmica da vida hoje aceite por todos. Uma quantidade de criangas educadas em comum, tendo recebido a mesma educagio no mesmo meio, e nao ainda diferenciadas em Classes @ am profissdas: tal é a matéria-prima da socie~ dade. Ela amassa isso, e forma com ela, por efeito da diferenciacao funcional, inevitdvel e forcada, uma nagao. Uma certa massa de protoplasma, isto 6, de moléculas Organizdveis mas nao organizadas, todas parecidas, todas 95

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