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SeSiees 18 Capitulo VIII Visita domiciliar: a dimensdo psicoldgica do espaco habitado Ligia Corréa Pinho Lopes “Nos vos pedimos com insisténcia nao digam nunca isso € natural! Sob o familiar descubram 0 insélito sob 0 cotidiano desvelem o inexplicivel que tudo 0 que & considerado habitual provogue inquielagao na regra descubrant o abuso e sempre que 0 abuso for encontrado encontrem o remédio,” Bertold Brecht Encontra-se disponivel na literatura uma gama variada de re- feréncias a visita domiciliar. Grande parte dessas referéncias coloca a necessidade das visitas em face das diversas impossibilidades de © paciente comparecer ao consultério, como no caso de consultas 14 SILVIA ANCONA-LOPEZ médicas, de reabilitacio fisioterdpica ou de pacientes que tiveram a sua mobilidade fisica comprometida apés acidentes traumaticos, ou ainda que, diante destes, passaram a necessitar de acompanhamen- to psicoter4pico: Padilha, Carvalho, Silva e Pinto (1994); Mazza (1994); Colacique (1996); Barbosa (1998); Oliveira (1999); Palma, Barros © Macieira (2000); Parra, Palau, Barrueco, Amilibia, Leén, Oltra e Escarrabill (2001); Burns, Cain e Husaini (2001); Darden, Ector, Moran e Quattlebaum (2001). No Ambito da Psicologia, também encontramos relatos de psi- coterapeutas que vao ao encontro de seus pacientes em hospitais ou nas residéncias destes, em fungao de suas dificuldades para se diri- gir ao consultério. No entanto, apesar de estas siluagdes apresenta~ rem-se como excepcionais para a reflexao da pratica clinica, tornam-se casos isolados, em que © protissional que se vé no exercicio desta pratica deixa de registrar o seu atendimento na literatura da area, até mesmo por receio de criticas da sua classe profissional, princi- palmente por tratar-se de pratica clinica diferente da comumente adotada por aqueles que trabalham em consultérios, com alteragées do setting terapéutico. Alguns psicélogos que atuam na area de terapia familiar consi- deram 0 espaco residencial um elemento a mais para a compreensao da dinamica da familia que esta em processo psicoterapéutico, Dentre eles destaco Berenstein (1988), Vidal (1999), Muxel (1999), Aubertel (1999), Darchis (1999). Para eles, a casa 6 0 primeiro nicho da identi- dade, e o espaco residencial da familia reflete, através de suas confi- mo grupal. Ressaltam ainda que o espaco negociado na coexisténcia das relagées familiares revela a experiéncia afetiva daqueles que o habitam. © ambiente familiar concretiza, de certa maneira, 0 corpo familiar e a organizacao das ocupacées cotidianas, e atualiza o modo de estar em familia. guracées, disposicao, orientagdes, divisdes ¢ organizagao, um psiquis- Outra critica comum se refere a alteragéo dos comportamentos habituais da familia em razo da presenca de um estranho, masca- rando informagdes que seriam importantes para a compreensio da PSICODIAGNOSTICO INTERVENTIVO 5 dinamica. A ela, Ackerman (1986, p. 137) respande que as mudancas se dao apenas em grau, e nao na qualidade. Podemos nao ver a mae perder a paciéncia com o filho em casa nem no consultério, mas, scja seu comportamento estritamente tipico ou nao, podemos observar a qualidade de suas atitudes e relacdes com o filho. Ainda segundo Ackerman (1986), os psicoterapeutas resistem a visita em razao da sua inseguranca e, consequentemente, tendem a consideré-la uma invasao e uma ameaga & familia, 0 que pode acar- retat complicagdes no processo psicoterapico. A pratica da visita domiciliar foi descrita por Ramos (1966) a0 abordar a avaliagéo da crianga portadora de “retardo mental”! Esta visita consistia em uma observagao da crianga em sua casa, manten- do-se o observador 0 mais neutro possivel. Em alguns casos, a visita nao era realizada pelo profissional que fazia 0 psicodiagnéstico, mas por alguém indicado por ele, visando manter a distancia necessaria para proceder a uma boa avaliacao. Na literatura pesquisada, sé foi encontrado um autor, Ackerman (1986), que realiza a visita domiciliar em diagndstico. Trata-se, no entanto, de um diagnostico familiar, cujos procedimentos diferem daqueles adotados no psicodiagnéstico interventivo de base fenome- nolégico-existencial. Sendo assim, a visita domiciliar tem fungdes diferentes nos dois contextos. Passo, entéo, a apresentar alguns dos principais pontos de vista deste autor. Em relago ao diagnéstico familiar, Ackerman (1986, p. 134) acredita que a primeira dificuldade que o profissional da area de satide mental encontra fazer diagnésticos corretos e agir inteligentemente para o sucesso do tratamento. & a obtengao de dados suficientes e seguros que o capacitem a 1. Conforme terminologia da autora 146 SILVIA ANCONA-LOPEZ Neste sentido, acrescenta que [..] na tentativa de explorar os problemas de satide mental da vida familiar, com 0 objetivo de relacionar 0 comportamento da familia como um grupo com 0 comportamento de um membro da familia, a visita aos ares torna-se um instrumento valioso (idem, ibidem, p. 135). A fungao da visita é basicamente observar os padrées de intera- cao familiar e a adaptagao ao papel familiar. Tem ainda um interesse especial no clima emocional da casa, na identidade psicossocial da familia e na sua expressao em um ambiente definido. Ela “é apenas um meio de avaliar a familia e deve ser integrada a outros achados” (idem, ibidem, p. 137). Apesar de apontar as vantagens do conhecimento prévio da demanda, acredita que as visitas também podem ser feitas “[...] sem © conhecimento prévio do problema ou antecedentes familiares” (idem, ibidem, p. 136). Sem que apresente detalhes de como é acor- dada essa visita preliminar, Ackerman (1986, p. 136) afirma que: “Uma certa ncutralidade emocional, falta de seletividade ¢ evitagio de preconceito é atingida quando a histéria clinica nao é conhecida” (p. 136). Ackerman propoe que a visita a casa deve ser informal e pode durar de duas a trés horas. O profissional que realiza tal visita deve fazer seu relatério de meméria, uma vez que fazer anotagdes na hora poderia prejudicar a espontaneidade da experiéncia; porém, ela deve ter em mente os dados que compéem um roteiro com direcionamen- tos para as observacGes a serem realizadas, 0 que, neste caso, confi- guraria uma visita semiestruturada As reacGes da familia ao visitante podem ser bastante interessantes. Algumas vezes 0 visitante 6 visto como aliado; sua aprovacao 6 neces- séria e sua atencao disputada. Outras vezes, ele é visivelmente exclui- do. Em muitas familias 0 v ante torna-se um vetor ou catalisador de interacGes familiares (Ackerman,1986, p. 137). PSICODIAGNOSTICO INTERVENTIVO 147 A visita domiciliar, no psicodiagndsticn que fago, tem outra for- ma de ser realizada e comporta objetivos diferentes dos apresentados até agora. Mas nem sempre ela foi realizada da mesma forma. As mudangas aconteceram no decorrer do tempo e da aquisicao de maior experiéncia profissional. Passo a contar, entdo, de que maneira isto se deu. Meu contato inicial com esta pratica se deu quando eu ainda era estudante. O objetivo principal da visita domiciliar era o de ampliar a compreensao das relagdes que se estabeleciam na familia. Na ocasiao, © uso desse procedimento no psicodiagnéstico de base fenomenolé- gico-existencial se justificava pela necessidade de compreender a crianga a partir da rede de relagGes na qual ela se encunttrava inserida. Mas, mesmo com esse argumento, dtividas me assaltavam: qual era entao a diferenca da visita domictlar para a entrevista tamiliar? Por que ir a casa do cliente, se poderiamos chamar a familia toda para uma ou mais sessées? A nao era apenas conhecer as pessoas da familia que nao participavam ssas perguntas seguiam-se respostas eyplicativas: a proposta do proceso psicodiagnéstico, ndo cra somente ampliar a compreen- sao das relacGes estabelecidas, mas também tinha como objetivo entrar em contato com 0 espaco da casa da crianca, ou seja, nado sé com quem ela vivia, mas como vivia. Essas explicagdes me aquietavam temporariamente, mas nao impediam que novas questdes me assediassem e. a partir delas, novos esclarecimentos fossem acrescentados, antes mesmo que eu pudesse vivenciar esse modo tao diferente de entrar em contato com os aspec- tos da crianca e tao diferente dos demais recursos comumente pro- postos no psicodiagudsticu. Entao, apés as entrevistas iniciais, de anamnese e as sessGes com a crianga, agendavam-se as visitas (escolar e domiciliar) com os pais, que jé tinham conhecimento delas, pois eram acordadas com eles e seus filhos por ocasiao do contrato. A visita domiciliar deveria ser marcada quando todos ou a maioria dos familiares ou a maioria deles estivessem presentes. 148 E importante destacar, ainda, que essa visita s6 se realizava me- diante a concordancia da crianca e dos pais. Ela nao era obrigatéria, isto é, nao era parte imprescindivel do processo. $6 famos quando achavamos que ela poderia confirmar as nossas hip6teses ou acres- cenlarlhes algo. Para a sua realizagao, recebfamos varias orientagdes. Dentre elas, a de permanecer por uma hora na casa do cliente. Nem mais nem menos. Por que uma hora? Por que nao cinquenta minutos? Ou uma hora e quinze? Porque este seria o tempo necessario € suficiente para a ocorréncia das observagées sem cansar o cliente — pais e crianga —ou a familia. Novas respostas para novos questionamentos. Também éramos orientados a observar cada membro da familia eas suas interacées; observar os aspectos da casa que mais chamavam a atengao; deixar que a visita ocorresse na parte da casa escolhida pelos familiares. As devalutivas acerca de nassas abservacties ¢ com- preenses deveriam ser feitas somente no setting terapéutico. Apenas observévamos, percebfamos, mas nao faziamos qualquer tipo de in- tervengdo. Nao questionavamos os motivos desta orientagao, mas acredito que um deles fosse 0 proprio objetivo — a observagao, e nao a intervencao — e, provavelmente, outro fosse um receio acerca da atuacao de estagidrios inexperientes. Enfatizavam-se orientagies gerais em relagdo & postura e atitude ética, jd que, como estagidrios, contavamos com “pouca” experiéncia (na verdade, nao tinhamos experiéncia alguma). Além do mais, esta nao era uma atividade das mais comuns dentro da pratica psicolégi- ca, como jé disse. Sentia-me motivada para fazer algo totalmente diferente. mas ao mesmo tempo insegura. Acreditava que 0 setting terapéutico de certa forma me abrigava, me acolhia, me protegia da minha pouca experiéncia. Apesar da recomendacio aos estagiarios para observar particula- ridades da casa, eu percebia que o ponto principal de nossas obser- vagées, durante a visita, deveria, sem diivida, girar em toro dos PSICODIAGNOSTICO INTERVENTIVO 9 membros da familia: como se relacionavam, qual a dinamica que se estabelecia etc. E este era o meu foco. Entretanto, depois de algum tempo na casa, com a atengao toda yoltada para os movimentos relacionais da familia, as vezes, sobra- vam-me alguns mimutos. H 0 que fazer com eles, ja que nao deveria encerrar a visita antes de uma hora? Ou, pelo menos, era assim que eu entendia. Na auséncia de uma direc&o especifica, o olhar vagava ao redor, registrando pequenos detalhes que serviam mais para ocu- par 0 tempo, sem que eu pudesse reconhecer a sua importancia. E claro que nos registros das observagoes e, consequentemente, nas devolutivas para os pais e crianca apareciam esses outros aspec- tos da casa; entretanto, eles acabavam ficando “soltos”, relegados a um segundo plano. Algumas visitas, contudo, comecaram a ser reve- ladoras; ou, quem sabe, meu olhar passara a captar detalhes que me remetiam. de alguma forma. @ historia da crianca ja contada por ela propria ou por seus pais, ou seja, faziam sentido. S6 para permitir ao leitor que me acompanhe, conto algumas hist6rias, sem pretender, no entanto, relatar aqui os procedimentos adotados, as andlises e as conclusdes dos psicodiagnésticos realizados. Os pais de um garoto de trés anos trouxeram a queixa da agres- sividade do filho e a sua dificuldade para acatar os limites que Ihe eram impostos. Nas entrevistas iniciais ¢ de anamnese, contaram que a crianca nao havia sido planejada, pois nenhum deles possuia 0 desejo de ter filhos. Acreditavam que uma crianga atrapalharia os planos profissionais de ambos. Por ocasiao da visita domiciliar, a fala desses pais foi confirmada (eaparentemente apenas confirmada) pela que o ambiente apresentava. O apartamento pequeno era bastante organizado. Na sala, havia muitos enfeites, e todos os méveis eram claros e muito limpos. Havia dois sofas de dois lugares, um de frente para 0 outro, ¢ entre eles, uma poltrona. Os estofados, da cor marfim, mantinham-se muito bem conservados. Por ali, nenhum sinal de maozinhas sujas ou pezinhos travessos; por ali, nenhum vestigio de crianca 150 SILVIA ANCONA-LOPEZ Entre as sofas, estava uma mesinha de centro repleta de peque- nos animais de cristal e um cinzeiro. Na mesinha de canto, localizada entre a poltrona ¢ um dos sofas e encostada na parede, havia dois porta-retratos, um com a foto do casal ¢ outro com a foto do menino, quando ainda era bebé, além de um pequeno vasu de plata. Tudo na mais absoluta ordem; nenhum bichinho de cristal quebrado, sem uma pata, com um meio rabo, uma tinica orelha, enfim... Era preciso algum esforco para nao me esquecer de que ali, na- quele lugar, também morava uma crianga. De apenas trés anos. Havia ainda dois quartos: um do casal ¢ 0 outro, que continuava sendo um escritério adaptado para o filho. Permaneciam, no ambien- te, estantes de escritorio; de um lado da parede, livros de pedagogia da mie e do outro lado, os de direito do pai e, no centro, acima da cama do menino, trés prateleiras com seus brinquedos. Eu estava diante de um quarto-escritorio ou de um escritério-quarto de uma crianca de apenas trés anos. A organi os enfeites de cristal, tudo causava certa estranheza. Principalmente, quando eu pensava na queixa: dificuldade de aceitar os limites im- postos e agressividade. Como uma casa tao atraente para uma crianga de trés anos se mantinha tao arrumada, se 0 garoto nao tinha zagao do espago, a cor clara dos méveis preservados, limites? Por outro lado, a fala dos pais, nas primeiras entrevistas, sobre a falta de espago dentro deles para receber um filho se ratificava na- quele apartamento arrumado para um casal. © quarto-escritrio do menino deixava claro que ele entrou no meio das carreiras profissio- nais de ambos. Literalmente concretizado no espago fisico: a sua es- tante de brinquedos situava-se entre as estantes de livros de seus pais. O tinico espaco que tinha, portanto, ainda era dividido com eles. Parecia-me entao que o garoto tinha limites. A organizacdo da casa era reveladora disto. Tudo tinha 0 seu lugar. Talvez esses pais nao soubessem onde colocar esse menino sem que desarrumasse a ordem do casal. Neste contexto, a agressividade foi entendida como uma reacdo a esta situagao. PSICODIAGNOSTICO INTERVENTWVO 5 Vamos a outra histéria. Uma menina de sete anos, que também foi atendida na mesma ocasiao, havia sido encaminhada pela diretora da escola em que es- tudava por apresentar-se apatica, sem vontade, muito calada e com dificuldade para se relacionar com os colegas. Os pais, durante as entrevistas, diziam nao compreender 0 mo- tivo do que traduziam por uma grande tristeza, jé que faziam tudo que estava ao alcance deles para agradar a tinica filha. Mas tinham a impressdo de que nada Ihe agradava efetivamente. Ressaltavam o fato de ser uma crianga que nao gostava de sair de casa sem os pais, por medo de carro, de cachorro, entre outros. Quando saia com o pai, exigia que a mae fosse junto e, quando saia com a mae, solicitava igualmente a presenca do pai. Eram pais batalhadores que trabalhavam excessivamente para conseguir mantcr o sustento da casa. Mas nao se mostravam queixo- sos da vida; ao contrario, enfrentavam-na com vigor. Na sesso da anamnese, a mae, que compareceu sozinha, passou boa parte do tempo contando a sua historia de vida. Relatou ter per- dido a mae de forma inesperada e brutal, aos sete anos. Ficou mo- rando com o pai e suas duas irmas mais novas. Dois anos apés 0 acidente de sua mae, seu pai casou-se novamente, tendo mais duas filhas, frutos desta nova uniao. Em relacao a filha, dizia que tinha muito medo de morrer e dei- xar a filha sozinha e desamparada. Foi perguntado & mie se, de al- guma forma, a menina tinha conhecimento de seu medo, ao que respondeu que conversava muito com a filha sobre este assunto. Também a ensinava a cozinhar, costurar e cuidar da casa, para que pudesse sair-se bem caso a mae viesse a lhe faltar. As sess6es hidicas confirmavam a fala dos pais; a menina apre- sentava uma feicdo triste, sem vida; nao se interessava pelos brinque- dos da caixa ltidica, passando as sessdes quieta ¢ de cabeca baixa. Quando alguma pergunta Ihe era direcionada, respondia com boa vontade, mas de forma sucinta. 12 SILVIA ANCONA-LOPEE Na visita domiciliar, encontrei uma casa bastante simples que ficava localizada nos fundos da residéncia da av paterna da crianca Ao subir uma escada, entrévamos em uma cozinha que, em seu cen- tro, tinha uma mesa redonda com quatro cadeiras. A mae pediu & erianga que me mostrasse seu quarto. Saindo da cozinha, um peque- no corredor levava aos dois quartos (do casal e da garota) e a um banheiro. A menina mostrou primeiro o quarto dos pais, que possufa uma cama de casal e um mével onde ficavam a televisdo, um apare- Iho de som e 0 video. Ao sair do quarto, ela nos apontou o banherro com a porta entreaberta e, por fim, seu quarto. Ao entrar no quarto, fui surpreendida. Eu jamais poderia imagi- nar ver aquilo que via. Ele parecia pertencer a outra casa. As paredes eram todas pintadas com cachorros dalmatas, e nelas havia muitas prateleiras com bonecas de todos os tipas e tamanhas No canto, embaixo da janela e encostada em uma das paredes, situava-se uma cama com enicha cor-de-rosa e, sobre ela, uma infinidade de bichos de pelticia. Na frente, um mével com uma televisao na parte superior muitas fitas de video na parte inferior, Todos os espagos eraut pre- enchidos por brinquedos muito bem cuidados e organizados. Logo apés a apresentacdo, a mae adentrou o quarto solicitando a filha que abrisse o armério para mostrar mais brinquedos ali guar- dados. Na parte superior, havia muitas caixas de bonecas, bolas e panelinhas; embaixo, muitas roupas penduradas em cabides, gavetas que guardavam mais algumas e varios pares de sapatos. Era um quarto muito diferente dos outros cémodos da casa. Estes tiltimos combinavam perfeitamente com o discurso dos pais. Aquele quarto tio colorido, com tantos estimulos, provocava uma sensagao de que nada faltava ali para uma menina de sete anos. Ao couliésiv, havia tantas coisas que chegavam a sufocar, Dois mundos distintos compunham aquela casa. De um lado, a falta, a escassez, a luta pela sobrevivéncia entranhadas em um espa- ¢0 habitado por pessoas batalhadoras pela vida e, de outro, a abun- dancia, a fartura, o vivaz, criando um ambiente contrastante com a auséncia de vitalidade de sua dona, Em ambos, 0 medo da morte rondando e produzindo esses paradoxos. PSICODIAGNOSTICO INTERVENTIVO, 153 Nao deve ser dificil imaginar o impacto e o encantamento pro- vocados pelas visitas domiciliares dos dois casos apresentados ante- riormente. Para uma estagidria inexperiente, aquilo beirava a magia. Descobrir que a casa contava uma historia, a de seus moradores, foi uma grata surpresa. Essas experiéncias iniciais, somadas a outras que foram se suce- dendo me trouxeram também inquietude em relagao a esses fendme- nos. Havia mais para ser feito, para ser compreendido. Era sim im- portante compreender as relagdes que a familia estabelecia, conhecer as pessoas que conviviam com a crianca, mas tinha algo que também se revelava no ambiente, que dizia sobre seus habitantes. Contudo, a falta de experiéncia nao me permitia arriscar nada além disto. Mesmo depois de formada, passei a adotar esse procedimento da visita domiciliar no processo psicodiagnéstico. Entretanto, esta pratica foi se modificando em relacao ao modelo que me fora origi- nalmente apresentado. Alguns aspectos foram mantidos; muitos, al- terados. A medida que exercitava esse fazer, fui surpreendendo-me com suas possibilidades e seus resultados, e as perguntas que surgiam foram senda respondidas As primeiras visitas domiciliares foram utilizadas como um re- curso a mais. Hoje, no entanto, considero-as como parte do processo psicodiagnéstico. Partindo do ponto de vista de que é fundamental compreender a crianga na rede das relacées familiares, estratégias que permitam ampliar esta compreensao serao, sem diivida, enriquece- doras. E neste contexto que se insere a visita domiciliar, que, no meu entender, ultrapassa a mera noco de estratégia ou técnica, podendo se constituir em um momento de grandes possibilidades interventivas e de favorecimento para consisténcia diagnéstica. Ela 6 acordada logo nas entrevistas iniciais, quando se fecham 0s contratos — com os pais e a crianga — e, se houver a concordancia da familia, ela é marcada em data previamente combinada. Caso haja recusa, 0 processo psicodiagnéstico prossegue, contudo, os aspectos que seriam observados na visita domiciliar nao 0 sero, uma vez que nao ha possibilidades de substitui-la por relatos. A recusa sera explo- 156 SILVIA ANCONA-LOPEZ rada de tal maneira que o seu entendimento fara parte da compreen- sao global. A data da visita é sempre posterior ao conhecimento da histéria de vida da crianga e o estabelecimento de um vinculo mais significa- tivo com os clientes. Minha experiéncia aponta que se torna mais confortavel, para pais e criancas, quando a visita é realizada no momento em que ha maior grau de “intimidade” e confiabilidade. evitando a fantasia de que 0 psicdlogo deseja “investigar” sua casa e as pessoas de sua fam{lia. To- davia, a visita nao pode perder o cunho de um trabalho profissional e assumir um caréter de visita social, embora a sociabilidade da agao deva ser preservada, o que faz com que certa informalidade seja esperada. Por outro lado, acredito que a presenca de um “estranho” na casa nao deve ser desconsiderada, mesmo que seja alguém com quem algumas pessoas da familia jé tém (crianca, pai e mae) contato anterior Penso que qualquer tipo de reacao por parte dos clientes é mais um elemento para a compreensao da dinamica estabelecida O tempo de permanéncia nao pode ser previsto ao certo, pois a duragiio, assim come o tom da visita, dependerdv da inleragav uiilua de visitante e familia. Apesar de nao se esgotar 0 que pode ser obser- vado e compreendido em um espaco que é cendrio das relacoes hu- manas, é preciso estabelecer um limite para a realizagio da visita. O seu término serd, entaio, determinado por uma avaliacio do profis- sional em relacdo a suficiéncia de elementos para o aprofundamento da compreensao diagnéstica. A decisio quanto a parte da casa em que a visita deve se dar é sempre dos familiares; ficam livres e 4 vontade para conduzir o visi- tante em seu espaco. Indico apenas que as visilas sejaut 1ealizadas quando todos, ot. a maioria dos moradores, estejam presentes, 0 que facilita a compreensao das relacdes que ld se estabelecem. Nao utilizo questiondrios e roteiros de observagao por acreditar que o “clima emocional” do lar vai dirigindo minhas observagoes. Nao que as observag6es e os relatos dos pais no setting terapéu- tico nao oferegam subsidios para um trabalho consistente na busca PSICODIAGNOSTICO INTERVENTIVO 135 de compreensao ¢ intervengao, mas a observacdo direta, in loco, per- mite a visao das relagdes familiares em situagdes naturais da sua dinamica. Retomo a ideia de que a visita domiciliar nao tem um ca- réter apenas investigativo e de observacao, ela possibilita a compre- ensio da estrutura e da dindmica familiar e das relagdes que nela se estabelecem e, mais do que isto, permite entrar em contato com 0 ambiente fisico, que revela aspectos fundamentais, como jé pudemos vislumbrar nas histérias citadas. Nestas ocasides, a observagdo e a compreensao servem de base para as intervencées pertinentes a situacio. Estas possibilitam a fa- milia maior entendimento do interjogo das relacées e do ambiente fisico como mais um elemento facilitador ou nao do desenvolvimen- to familiar. De minha parte, acredito ser o psicélogo um participante ative que faz intervengdes & medida que experimenta as situagGes, situagdes estas que vao sendo apresentadas pelos clientes durante a visita. fato de as intervenc6es serem feitas na casa, durante a visita, ou nas sess6es devolutivas dependeré das condicées de compreensao do psicdlogo e de sua possibilidade de avaliar a prontidao do pacien- te para recebé-las e assim produzir seus efeitos terapéuticos. A dina- mica familiar, somada 4 forma como se é recebido na casa, fornece dicas da propriedade ou nao da intervencao. As intervences podem se reportar as situacdes concretas vividas na casa, produzindo efeitos no cliente. Conto agora outra histéria que evidencia as modificacées que foram feitas na visita domiciliar. Generosa” procurou atendimento psicolégico encaminhada pela escula de sua fill Silvia, de 8 aos. Era uta utuller bonita © aps sentava-se bem-vestida, bem cuidada, parecendo ser bastante vaido- sa. Na primeira entrevista contou que a professora ea diretora estavam preocupadas com © comportamento de Silvia, que, segundo elas, 2. Os nomes citados neste relato sio ficticios visando 3 preservagio da identidade des dlientes. 156 SILVIA ANCONALOPEZ destoava das outras meninas de sua idade, Na ocasiao em que soli- citaram a presenca da mae na escola, comentaram que Silvia, além de falar constantemente sobre beijos, namoros ete., havia pedido para um colega que mostrasse seu pénis a ela. Comentaram também que, recentemente, fora vista no banheiro dos meninos espiando pela fresta da porta. Interrogada, Silvia justifi- cou-se dizendo que queria saber “como os meninos faziam xixi” (sic). A mie alegou nao perceber tais comportamentos na filha, ressal- tando que era uma menina que brincava bastante, nao revelando interesse por meninos ou namorados. Acrescentou apenas que, por ser sua tinica filha, convivia muito com adultos, participava das con- versas © sempre se mostrou muito curiosa. Generosa comentou ter ficado muito irritada com a atitude da escola, porque, provavelmente, esses comportamentos de Silvia de- veriam estar acontecendo ha mais tempo sem que lhe tivessem infor- mado anteriormente. Entendia que se tratava de uma “perseguicao” (sic), uma vez que ela ¢ seu marido nao participavam das atividades e das convocagées feitas pela escola por “serem pessoas muito reser- vadas” (sir) Em relagao as entrevistas de anamnese, todas as informacgées dadas correspondiam ao esperado para as fases de desenvolvimento infantil. Destacava-se apenas a informacdo sobre a curiosidade per- manente (desde pequena) de Silvia em relacdo ao nascimento dos bebés. Nestes casos, a mae sempre fornecia as explicacées que julga- va necessarias. Do meu ponto de vista, elas excediam o que havia sido perguntado pela crianga. Por exemplo, ao explicar sobre 0 nas- cimento dos bebés, ela acrescentava como eles eram feitos, mesmo quando Silvia ainda nfo havia revelada essa curiosidade. No meu primeiro contato com Silvia, me deparei com uma me- nina que era a miniatura de sua mae: usava batom, esmalte vermelho nas unhas; carregava uma bolsa a tiracolo; calgava um sapato com saltinho anabela e se vestia como uma mocinha. Nas sess0es ltidicas, sempre abria sua bolsa para me mostrar 0 que ela continha: escova de cabelo, perfume, batom, enfim, coisas de PSICODIAGNOSTICO INTERVENTIVO mulher. Era uma menina inteligente, comunicativa, esperta e curiosa Suas brincadeiras giravam em torno de casais de namorados, a rotina de um casal,atividades domésticas em que encarnava o papel de uma dona de casa ou de uma mulher. Nao raramente colocava os bonecos da familia mantendo relagéo sexual, cxplicando que “estavam namo- rando” (sic). Suas produgées gréficas retratavam figuras de homem e mulher que nao eram identificadas por aderecos, cabelos ou vestimentas, mas por seus 6rgaos genitais. Essas observacies ratificavam claramente a queixa da escola. E © que chamava a minha atencao era o fato de Generosa nao reconhe- cer esses aspectos sextiais nas brincadeiras de Silvia. Na visita domiciliar, fui recebida pela empregada e, assim que entrei, Generosa e Silvia vieram em minha direcao. A mae comentou que estava ajudando Silvia em suas tarefas escolares. O apartamento era espacoso, claro e com méveis classicos. Fui convidada a conhecer 0 restante da casa. Entramos primei ramente na sala de almoco € cozinha. Tudo era branco: mesas, cadei- ras, azulcjos, cletrodomésticos. Tudo muitu Leu cuidadv, muito limpo e bem equipado. Quebravam a alvura do ambiente as flores mtitidas do tecido do estofado das cadeiras, que se repetiam em um barrado na parede. Em seguida passamos por um hall de distribuigao que fora trans- formado em sala intima e entramos no quarto de Silvia. Um verdadeirn quarto de menina: repleto de bonecas, carrinho de boneca, bichinhos, minicozinha ete. Predominava a cor verde-agua. Nao permanecemos muito tempo nele, apenas suficiente para que Silvia me mostrasse alguns brinqucdos. Parecia ansiosa para me leva ay quarto de sua mae: “Vocé tem que conhecer 0 quarto da minha mae” (sic). A mae, ao escutar a filham comentou: “Ah! Ela adora ficar la” (sic). Silvia saiu do seu quarto com uma boneca na mio, encaminhan- do-nos para o quarto do casal. Ao entrar, largou imediatamente a boneca, subiu na cama dos pais e comecou a pular. “Olha isto aqui” disse ela. “Esté ouvindo o barulho? E agua” (sic). 158 SILVIA ANCONA-LOPEE No meio do quarto, sobre ma alvenaria, havia um enorme col- chao de Agua redondo. De cada lado, um criado-mudo de ferro preto com detalhes em dourado. Sobre o tampo de vidro de um deles, varios controles remotos. Todo 0 teto do quarto era de espelho, assim como uma parede lateral. Eut frente & cama, uma enorme estante embutida, também de ferro preto e com detalhes dourados, acomo- dava equipamentos eletrénicos: televisdo, video, aparelho de som CDs e fitas de video. Silvia parou de pular e disse: “Vem ver que aqui tem uma pisci- na” (sic). Fintramos no banheiro, que, de fato, possuia uma enorme banheira de hidromassagem redonda. A m&e comentou: “Vocé ja percebeu que aqui & o parque de diversées dela” (sic) Neste momento, 0 pai, Francisco, entrou no quarto ¢ chegando a porta do banheiro, ele perguntou: “Voces estao aqui?” (sic). Ambas, mulher e filha, cumprimentaram Francisco da mesma forma: com um beijo na boca. Generosa justificou assim a nossa presenga no banhei- ro do casal: “Vocé conhece a sua filha!” Apresentou-me em seguida ao marido. Ele era um homem alto, bem-apessoado, vestido com sobriedade e tinha um semblante sério Voltamos para © quarto e, novamente, Silvia pegou sua boneca, sentou-se no centro da cama e me convidou para sentar-me ao seu lado. Apés a insisténcia da mae e da filha, sentei-me constrangida na beirada da cama. Pude entao reparar que entre as fitas de video havia filmes pornograficos. Enquanto isto, Silvia se balangava de maneira a chacoalhar 0 colchao de Agua. O pai permanecia em pé ¢ a mae sentada em uma poltrona. Depois de alguns minutos, Generosa ofereceu-nos um suco com bolo. Imediatamente, Francisco insistiu para que ocupdssemos a sala de visitas. Pai e filha sairam na frente, em direcao a sala de visitas, enquanto a mie me levava ao escritério. Ao entrarmos, ela disparou: “Vocé viu como ela é bobinha? Ela nao tem maldade. Eu nao entendo por que ela faz isto na escola” (sic). Diante desta fala e da oportunidade de estar sozinha com a mae, uma vez que tinha acabado de conhecer 0 pai, optei por interviz, PSICODIAGNOSTICO INTERVENTIVO 199 apontando-lhe que havia naquela casa, mais especificamente em seu quarto, um ambiente extremamente excitante e sexualizado que inci- tava este comportamento de sua filha. Comentei sobre as fitas de video, tentando confirmar a minha percepgao. Generosa afirmou que de fato eram fitas pornograficas, mas que Silvia nao as assistia. Insis- ti nesta possibilidade, tendo em vista a idade e 0 acesso facilitado de Silvia ao quarto e as fitas. Sobre a probabilidade de a menina ver ou escutar o casal mantendo relagGes sexuais, a mae negou enfaticamen- te. Entretanto, pareceu preocupar-se, pois perguntou se us compur- tamentos de sua filha poderiam estar correlacionados com aspectos do casal. Respondi que sim. Fomos interrompidas por Silvia, que veio nos chamar para co- mermos © bolo na sala de visitas. Disse entao a Generosa que reto- marfamos o assunto na préxima sessfio. Enquanto 14 estévamas, conversei com o pai, que se mostrou curioso com o meu trabalho, e foi quando © convidei para comparecer A sesstio com sua esposa. Em seguida, retornei com Silvia ao seu quarto, onde permane- cemos brincando por algum tempo até que decidi encerrar a visita. F facil perceher, neste relate, que a queixa apresentada pela es- cola ja se confirmava nas sessées ltidicas. As produces de Silvia re- velavam cxplicitamente uma exacerbagao de sua sexualidade. O que parecia insélito era a impossibilidade de sua mae ver o que estava tao claro. A partir da visita domiciliar, pude entender que havia naquela familia e na casa um jogo de aparéncias. Por exemplo, enquanto a parte mais acessivel da casa — sala, cozinha, sala de almogo — era toda clara e branca, insinuando determinada compreensao daquela familia, outra parte, mais oculta — quarto e banheiro do casal — me mostrava outra dimensao familiar. A sexualidade nao estava apenas nas pessoas; estava entranhada no espaco habitado, e dele exalava seus proprios odores e impregnava 0 espago psiquico de Silvia. O seu movimento corporal no colchao, somado aquele ambiente sexu- alizado, era tio familiar 4s pessoas da casa que nao Ihes provocavam estranhamento. 160 SILVIA ANCONA-LOPEZ As pessoas da familia também apresentavam este contraste. En- quanto 0 pai, que se mostrava mais contido, encarnava a figura sébria de um executivo, sua esposa, mais solta, personificava certa licencio- sidade. A questdo a ser enfocada nao era o relacionamento do casal em si, mas como essa telagao e essa forma de ser de ambos extrapo- lavam determinados limites, perdiam seus contornos e resvalavam em Silvi , produzindo “efeitos colaterais”. A mistura de papéis tam- bém apareceu na cena em que mie e filha, de modo similar, recep- cionaram © pai. O beijo na boca, acompanhady de aliludes de uma mocinha, perdia qualquer sinal de inocéncia. O “parque de diversi” de Silvia — como dito pela mae — era um parque de diversao para adultos, e nao para uma crianca. Denire todas as alteragGes que fui fazendo no decorrer da minha experiéncia profissional, o destaque cabe & dimensao reveladora do espago fisico. Um espaco fisico banal pela familiaridade e obviedade com que geralmente o vemos. Quanulu eulramos em uma cozinha, em um quarto ou em uma sala, por mais diferentes que sejam, sabe- mos de antemao 0 que podemos encontrar. Escapa-nos assim a com- plexidade daqueles espacos e a possibilidade de retird-los do seu sentido mais comum. A habitacdo, entio, de forma geral, pade ser cansiderada a trans- formagao do espago em lugar, um centro identitario, relacional e hist6rico, proveniente de sua apropriagdo como producio de sentido, tanto para quem o habita como para quem o observa. A casa, além de contemplar um grupo familiar, contempla tam- bém seus animais, coisas, histérias, acontecimentos que sao indisso- claveis desse espaco. O homem organiza sua vida nos espagos aos quais dé forma e sentido. Hertzberger (1996) afirma que todos os objetos tém fungdes pro- prias para as quais foram projetados, entretanto carregam em si um valor adicional, que ele denomina de competéncia, que € a possibili- dade de abrigar significados. Ele acredita que a arquitetura tem a capacidade de revelar o que nao é da ordem da aparéncia e nos tornar conscientes daquilo que se mantinha invisivel aos nossos olhos. O que PSICODIAGNOSTICO INTERVENTIVO 5 esta visivel, portanto, é uma marca de uma operacio invisivel que, ao ser produzida, ja cau no esquecimento de seus autores. Essa dimensao simbélica da casa diz respeito ao tecido da prépria vida, com seus sentimentos, ritmos, paixées, alegrias, frivolidades e medos. Fla nos possibilita imaginar coisas a respeito das possiveis redes de significagio que cada habitante associa e imprime em seus espacos cotidianos, Esses espacos cotidianos da vida sao modelados e modificados de acordo com a imagem do mundo que cada um carrega dentro de sie que é, por sua vez, constituida por pessoas, lugares, valores, ex- periéncias, acontecimentos associados a sentimentos. Esse mundo interno é projetado sobre os espacos e sabre os abjetos, 0 que produz uma configuracio que provoca associacées, estabelecendo uma via de mo dupla entre o mundo interior — eu _¢ © espaco exterior mundo. Ou seja, essa ligacéo entre 0 espago — mundo concreto — a subjelividade — mundo abstrato — estabelece uma relacdo de simi- laridade entre eles. Penso que nao apenas os objetos refletem uma histéria; ela também € contada nos movimentos de seus habitantes. Os passos também moldam os espagos e fazem histéria. Os movimentos, ora mais leves, ora mais densos, criam e recriam as trajetérias ea histéria de cada um. No espago real, assim como no corpo, se acumulam recordacdes e experiéncias que possuem cardter de sentimentos aulénticos. Entdo, entre homens e casas algo se passa, sim. Ha uma relagdo afetiva, positiva ou negativa, que é balizada por varias situacdes, associacdes vinculadas a experiéncias corporais primordiais, a lem- brancas de acontecimentos, épocas e concepcdes de mundo. As casas exalam odores préprios Se nés produzimos 0 espaco da casa e ele nos reflete, também somos “produzidos” por ele. [-] se por um lado a casa € resultado dessa combinacdo de elementos tao dispares entre si, nos quais nés, seus “produtores”, estamos inclui- dos, por sua vez, somos impensdveis sem as casas que nos acolheram 162 SILVIA ANCONA-LOPEE nos coproduziram e seguem, a seu modo, engendrando-nos. [..] dizer de uma casa aquilo que encontramos alem ou aquem de suas confige- racées spaciais visiveis, mas que também a compée com a mesma importancia. Flagrar esse espaco-casa emergindo, em sua singularida- de, de uma conjuncao impar de elementos heterogéneos. Flagrar sub- cao imp jetividades sendo produzidas nesse acontecimento doméstico especiti- co (Brandao, 2002, p. 16). ta que permite afirmar que, a seu modo, as casas produzem homens. Ela pode ser considerada a semelhanga de uma ostra como a relagao indissolivel entre a casca e seu molusco, onde a casa é a materialidade fixa, enquanto o molusco é a vida cotidiana que a cas- ca abriga e constrange. Ainda de acordo com Hertzberger (1996), as percepcdes do es- paco nao se restringem ao que vemos; incluem também 0 que ouvimos, sentimos @ as associacdes que nos despertam. £ com essa lente que proponho olhar a casa, para podermos ampliar seus significados e compreender melhor os contextos que a constituem. Na organizagio racional do espaco da casa, se escondem as his- térias singulares de seus moradores, que se entrelagam em uma composicio que se abre para os olhos do psicdlogo. Acredito que o ambiente revela nosso modo de estar no mundo. A forma como organizamos nosso espago externo esta intimamente ligada com a nossa subjetividade. Mundo interno e externo se comu- nicam por ludy v lempo, diluindo a fronteira que separaria um do outro. A preocupacao mais comum que geralmente surge é de que a familia nao se porte de maneira natural, jd que a presenca do profis- sional pode acarretar uma situacao artificial e atipica. Penso que mesmo essa po! ibilidade revela algo da dinamica pessoal ou familiar. E comum nos prepararmos para receber uma visita. Arrumamos, faxinamos, organizamos na intengao de sermos beit-vislos, Ue avuller © outro da melhor forma possivel, enfim, de nos apresentarmos da maneira mais aprazivel aos olhos dos outros e aos nossos. Esta situa- PSICODIAGNOSTICO INTERVENTIVO 163 do também é frequente quando marco a visita na casa dos clientes. Eles se preocupam em ajeitar a casa da melhor maneira que lhes € possivel, podendo criar até 0 que chamamos de situacdo artificial. £ claro que sabemos que no dia a dia nem sempre € assim, mas, mesmo com todo este cendrio preparado para o evento, percebemos marcas daquele cotidiano, marcas que esto impregnadas nas paredes, pelos cantos, nos detalhes que, de alguma forma, vao se revelar: os objetos, méveis e adornos da casa; 0 modo como sio escolhidos e organizados; as lembrancas como sSo guardadas, outros tantos detalhes espalhados, aqui e ali, revelam um modo de ser daquele que habita aquela casa. O que esta escrito na casa nao ha como apagar: faz parte daquilo que imprimimos, dia apés dia, naquele lugar. Em tiltima instancia, a ma- neira pela qual recebo o outro em minha casa é a mesma que 0 rece- bo dentro de mim. Referéncias bibliograficas ACKERMAN, N. W. 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