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CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS MARIA VICTORIA DE MESQUITA BENEVIDES SOARES Professora da FEUSP Membro do Conselho da Cétadra USPIUNESCO Nenhum outro tema desperta tanta polémica em relagtig ao seu significado, a0 seu reconhecimento, como o de direitos humans, E relativamente facil ‘dntendermos € lutarmos por questdes que dizem respeito & cidadania, » sua ampliagio. A propria palavra cidadania j4 se incorporou de tal mancira 20 ‘nosso vocabulério que, sob certos aspectos, tende a se transformar em substantive, como se representasse todo 0 povo. Muitas vezes ouvimos, por exemplo, de uma autoridade politica a expresso: a cidadania decidiré, pro- cisamos ouvir a voz da cidadania! Quer dizer, usando a palavra cidadania como sindnimo de povo, povo significando o conjunto de cidadzos, que € 0 sentido democritico de povo. Os direitos dos cidadaos sio, cada vez mais, reivindicades por todos, do “povio” & elite. Tais direitos estlio explicitamente eleacados na constitigio de um pats. ‘Mas, € em relacio a0s direitos humanos? Insisto que dificilmente um tema esteja téo carregado de ambiglidade ¢ deturpagto como esse, Provavelmente voo’s j& ouviram muitas vezes referéncia aos direitos humanos no sentido pejorative ou excludente, identificanda a expresso aos dircitos dos bandidos. Quantas vezes ouvimos — principalmente depois do noticidrio sobre crimes de extrema violencia: “Ah! ¢ os defensores dos direitos humanos, onde é que cstio?” Entdo, nossa primeira tarefa € deixar claro do que estamos falando ‘quando nos referimos a direitos dos cidaddos, ou a direitos humanos, com a Premissa de que associamos direitos humanos & idéia central de democracia ¢ as idéins bésicas envolvides no tema mais amplo da educagéo. E bom lembrar também que, nas sociedades democréticas do chamado mundo: desenvolvido, a idéia, a prética, a defesa e a promogio dos direitos humanos, de uma certa maneira, j4 estio incorporadas & vida politica. J& fazem parte do clenco de valores de um povo, de uma nado. Mas, a0 contrécio, & Justamente nos paises que mais violam os direitos Imumanos, nas sociedades que so mais marcadas pele disctiminaco, pelo preconceito © pelas mais variadas formas de racismo e intolerincia, que 2 idéia de direitos humanos permanece ambigua c deturpada. Portanto, no Brasil, hoje, € extremamente importante situar direitos humanos no seu lugar. A geraglo mais jovem, que no viveu os anos da citadara militar, certamente teré ouvido falar do movimento de defesa dos direitos humanos em bencticio daqueles que estavam sendo perseguidos por suas conviegdes ou por sua militincia politica, daqueles que foram presos, torturados, assassinados, exilados, banidos. Mas talvez no saiba como cresceu, naquele época, 0 reconhecimento de que aquelas pessoas perseguidas tinham direitos invioléveis, mesmo que julgadas ¢ apenadas; que 39 Continuavam portadaras de direitos e que se evocava, para sua defesa © Protegdo, a garantia dos direitos humanos, o direito a ter direitos. TInfelizmente, terminada a parte mais repressora do regime militar, a idéia de Que todos, independentemente da posigio social, sfio merecedores da preocu- Pago com a garantia dos direitos fundamentais © no mais apenas os presos Politicos, que jf ndo existiam, nfo prosperou como era de se esperar. A defesa dos direitos humanos — DH — passou a ser associada & defesa dos eriminosos comuns que, quando sdo denunciados © apensdos, pertencem, em sua esmagadora maioria, &s classes populares. Entio, a questo deixou de ter © mesmo interesse para segmentos da classe média que teve familiares € amigos presos no tempo da ditadura. Nesse aspecto podemos. jé constatar tuma parte da ambiglidade que cerca a idéia de direitos humanos no Brasil, Porque depois da defess dos direitos daqueles perseguidos pelo regime militar se estabeleceria uma cunha, uma diferencisgao profunda ¢ cruel entre. ricos € pobres, entre intelectuais e iletrados, entre a classe média e a classe alta, de um Iado, ¢ as classes populares de outro, incluindo-se af, certamente, grande pare da poptlagao negra. E evidente que existem excegGes, pessoas © grupos que continuaram a lutar pela defesa dos direitos de todos, do preso politico ao delinglente comum. Mas também € evidente que, se até nos meios mais “progressistas” essa distingao vigorou, © que dizer da incompreensio ou hostilidade dos meios mais conservadores? Como esperar que cles percebam a necessidade de se reconhecer, defender € promover os direitos humanos em nosso pafs, sem uma vigorosa campanba de esclarecimento, sem um compromisso com a ‘educagao para a cidadania domocritica, desde muito cedo? © tema dos DH, hoje, permancce prejudicado pela manipulaglo da opiniio piiblica, no sentido de associar direitos humanos com a bandidagem, com a criminalidade. E uma deturpacdo. Portanto, € voluntéria, ov seja, hd interesses poderosos por trés dessa associacio deturpadora. Somos uma sociedade pro- fandamente marcada pelas desigualdades sociais de toda sorte e, além disso, Somos sociedade que tem a maior distancia entre os extremos (a base € 0 topo) da pirdmide socioecondmica, Nosso pafs € campedo na desigualdade © na mé distribuigo de renda, As classes populares sfio geralmente vistas como “classes perigosas”. Sto ameagadoras pela feiira da miséria, sio ameagadoras pelo grande mimero, pelo “modo atévico dis masses”. Assim, de certa maneira, parece necessério 26 classes dominantes criminalizar as classes populares associando-as 20 banditismo, a violencia e & criminalidade; porque esta € uma mancira de circunscrever a violencia, que existe em toda a sociedade, apenas 0s “desclassificados”, que, portanto, merecetiam todo rigor da polfcia, da ‘suspeita permanente, da indiferenga diante de seus legftimos anseios. Entio, € por isso que se dé, nos meios de comunicagio de massa, énfase especial & violéncia associada 8 pobreza, & ignorincia e & miséria. Eo medo dos de baixo se revoltarem, um dia, que motiva os de cima a manterem 0 esligma sobre a idéia de direitos humanos, 40 Enfim, 0 que s8o direitos humanos e em que eles diferem dos direitos do ‘cidadio e em que se aproximam? Cidadania ¢ direitos da cidadania dizem respeito a uma determinada ordem jucidico-politica de um pafs, de um Estado, no qual uma Constituigio define garante quem € cidadio, que direitos ¢ deveres cle ter em razo de uma sétic de varidveis tais como a idade, 0 estado civil, a condigio de sanidade fisica e mental, o fato de estar ou no em divida com a justiga penal ete. Os direitos do cidadso ¢ a propria idéia de cidadania nfo so universais, visto que eles esto afixados numa espectfica ¢ determinada ordem juridico- politica. Daf, identificamos cidaddos brastleiros, cidados norte-americanos © cidadios argentinos, e sabemos que variam os direitas e deveres dos cidadios de um pais para outro. ‘A idéia da cidadania € uma idéia eminentemente politica que nao esté necessariamente ligada a valores universais, mas a decisées politicas. Um determinado governo, por exemplo, pode modificar radicalmente as prioridades no que diz, respeito aos deveres ¢ aos direitos do cidadio; pode modificar, por exemplo, 0 cédigo penal alterando sangies; 0 cédigo civil equiparando direitos entre homens c mulheres; o cédigo de familia no que diz respeito 0s direitos © deveres dos cOnjuges, na sociedade conjugal, em relagho aos filhos, em relagio um ao outro. Pode estabelecer deveres por um determinado periodo, por exemplo, aqueles relatives & prestagio do servigo militar. Tudo isso diz respeito & cidadania, Mas, o mais importante ¢ 0 dado a que me referi inicialmente: direitos de cidadania nao so direitos universais, s8o direitos especificos dos membros de um determinado Estado, de uma determinada cordem juridico-politica. No entanto, em muitos ¢as08, 08 direitos do cidadio coincidem com os direitos humanos, que sfio os mais amplos ¢ abrangeates. Em sociedades democriticas ¢ geralmente 0 que ocorre e, em nenhuma hipotese, direitos ou deveres do cidadio podem ser invocades para justificar violagao de direitos humanos fundamentas. Os Direitos Humanos sio universais ¢ naturais, ¢ © que € considerado um ireito hmano no Brasil, também deverd sé-lo com o mesmo nivel de cxigéncia, de respeitabilidade © de garantia cm qualquer pais do mundo, porque eles nfo se referem a um membro de uma sociedade potftica; a um ‘membro de um Estado; eles se referem & pessoa humana na sua universalidade. Por isso so chamados de direitos naturais, porque dizem respeito & dignidade ‘da natureza humana, Sio naturais, também, porque existem antes de qualquer ei, € no precisam estar nela especificados, para serem exigidos, reconhecides, protegidos © promovidos. Evidentemente, € timo que eles estejam revonhecidos na legislagio, é um avango, mas se nfo estiverem, deverio ser reconhecidos assim mesmo. Poder-se-ia perguntar: mas por qué? Por que sfo universais ¢ devem ser reconhecidos, se nio existe nonhuma legislago superior que assim o obrigue? Essa & a grande questo da Idade Moderna, Porque € uma grande conquista da bumanidade ter chegado a algumas conclusdes sobre a dignidade © a a universalidade da pessoa humana ¢ sobre © conjunto de direitos associados A pessoa humana. E uma conquista universal que se exemplifica no fato de, hoje, pelo menos nos patses filiados A tradigéo ocidental, nfio se aceitar mais @ pritica da escravidio. A escravidio nio € apenas proibida na legislagio ‘como também repugna a consciéncia moral da humanidade. Nao se accita mais o trabalho infantil. Néo se aceitam mais castigos cruéis e degradantes, ‘No entanto, vejam bem como essa questio € complicada: hd pafses no ocidente que acsitam @ penta de morte, mas nilo accitam 0 eastigo cruel ou degradan- te; ndo sceitam a tortura, E claro que a distincia entre o valor e a pritica concreta continua sendo muito grande. N6s sabemos que existe trabalho escravo pertinho de nés, no interior de Sto Panlo; que se aceitam as criangas vivendo na rua © sendo exploradas no trabalho. Mas isso repugea & consciéncia universal, haja vista a exigéncia de certos organismos inlernacionais para que as cldusulas socisis ‘Ros contratos comerciais.protejam as minorias raciais © a inflncia, ato admitindo 0 trabalho infant, A seguir, alguns exemplos de como podem se diferenciar os direitos natarais dos direitos ¢ deveres ligados a cidadania: uma crianga nfo é cidada, no sentido de que ela nfo tem certos direitos do adulto, responsdvel pelos seus alos, nem tem deveres em relagdo 20 Estado, nem em relago aos outros; no entanto, ela tem integralmente 0 conjunto dos Direitos Humanos; um doente mental nfo € um cidadio pleno, porque cle niéo € responstivel pelos seus tos, portanto ele no pode ter direitos, como o direito a0 voto, 0 direito leno a propricdade © muito menos os doveres, mas ele continua integralmente eredor dos Direitos Humanos; os indigeoas so tutelados, nfo so cidadios Por inteiro, mnas devem ser integralmente respeitacios em seus Direitos Humanos. E quai sto esses DH que, jé insisti, sao universais, comuns a todos 0s seres ‘humanos sem distingdo alguma de etnia, nacionalidade, cidadania politica, sexo, classe social, nivel de instrugdo, cor, religio, opcio sexual, ou de qualquer tipo de julgamento morsl? ‘So aqueles que decorrem do teconhe- cimemto da dignidade intrinseca de todo ser humand. Jé estamos acostumados 2 aceitar 0 tipo de dentncia por racismo, por sexo, ou por nfvel de instrugio etc. Mas a nio-discriminagao por julgamento moral é ainda uma.das mais diffceis de accitar; 6 justamenie o reconhecimento de que toda pessoa humana, ‘mesmo © pior dos criminosos, continua tendo direito a0 reconhecimento de sua dignidade como pessoa humana. I o lado mais diffcit no entendimento dos Dircitos Humanos. 0 faro de nés termos um julgemento moral que nos leve @ estigmatizar uma pessoa, mesmo a consideri.la merecedora das punigies mais severas da nossa Jegislagio, o que € natural ¢ mesmo desejével, néo significa oe tenhamos que excluir essa pessoa da comunidade dos seres hnumanos. E bom lembrar que esse julgamento moral pode ocorer de varias manciras, Pode ser, por exemplo, aquele que exclua. determinados militantes politicos ‘como “terroristas” (aliés, © que € chamado de terrorismo pode ser, por mais ‘igndbil que seja, # continuagio da guerra por outros meios). 0 terrorista pode 42 perder a cidadania, mas continua fazendo parte da comunidade dos seres hhumanos ¢, portanto, pode ser preso e execrado pela opiniso publica, mas Continuaré portador de direitos fundamentais, no que diz respeito & sua dignidade, ow seja, ele nfo deve ser torturado, deve ter um. julgamento imparcial, deve ter direito a advogado etc. E bom lembrar, também, que muitos dentre os grandes Estados, que hoje orgulhosamente defendem a Gemocracia ¢ os Direitos Humanos, tiveram seu nascimento a partir de Fevolugdes € atos que hoje classificartamos como terroristas. Outro aspecto complexo do entendimento dos Direitos Humanos é que podem ser universsis, naturais © ao mesmo tempo hist6ricos. Os Direitos Humanos so naturais © universais porque vinculados & nanureza humana, mas so hist6ricos no sentido de que mudaram ao longo do tempo, num mesmo pals © 0 seu reconhecimento € diferente em pafses distintos, nur mesmo tempo. © niicleo fundamental dos Direitos Humans &, evidentemente, o dircito vvida, porque de nada adiantariam os outros Diseitos Humanos se nfo valesse © ditcito & vida. Mesmo esse, que € 0 nicleo fundamental e o pressuposto de todo o resto, € um valor histérico, € um direito que evoluiu com as :mudangas historicas e até nos dias de hoje pode ser eventualmente contestado, ‘em razio de especificidades culturais. Quando se admite, por exempto, 0 direito de esoravizar uma pessoa, esté-se, automaticamente, colocando em divide 0 direito & vida, pois 0 direito de propriedade sobre alguém acarreta consequentemente o direito sobre sua vida e sua morte, Quando falamos em dirsito & vida, reconhecemos gue ninguém tem 0 direito de tirar a vida do outro, mas isto também nao € Sbvio, se observarmos ‘exemplos ao longo da histéria da humanidade. Basta ler a Biblia para vermos, [por exemplo, a legitimidade dos sacrificios fumanos. Nas sociedades coloniais © pattiarcais, © pater familias tinka 0 direito de vida € morte sobre sua famfia © 08 afeigoados. Sendo histéricos, isso significa que os DH tém evolufdo ao longo do tempo podendo ainda muda. Lembraria rapidamente tum exemplo: sao relativamente recentes, no rol dos direitos fundamentais da pessoz humana, aqueles que dizem respeito 20 meio ambiente, a direitos sociais ndo vinculados a0 mundo do trabalho. Hoje, com as descobertas cientffieas no campo da genética, podemos imaginar como o ral dos Direitos Humanos voltados para a dignidade da pessoa humana poderé se ampliar. Qs Direitos Humanos, no que dizem respeito A opco sexual, por exermplo, seriam impensfveis hé vinte anos; hoje cles ja integram perfeitamente o nticleo eaqueles direitos considerados fundamentais, ou seja, ninguém:poders ser iscriminado, maltratado, excluido da comunidade politica e social por causa de sua opedo sexual. Os Direitos Humanos sito, entio, naturais, universais, histéricos e, também, indivisiveis © interdependentes. Séo indivisfveis e interdependentes. porque 2 medida que so acrescentadas ao rol dos direitos fundamentais da pessoa humana eles no podem mais ser fracionados, ow seja, vocé tem o direito 43 ‘até aqui, daqui para frente € 56 para es homens, ou s6 para as mulheres, ou 86 para 05 ricos, ou 86 para os sibios etc. Se 0 pressuposio dos Direitos Humanos € 0 direito A vida, nflo se pode admitir mem a pena de more © os demais castigos enucis © degradantes, Porque isso € dirctamente atentado contra a vida, e rem a exploracio desumana do trabalho, porque isso incide diretamente sobre o direito a dignidade. aqui deve ser salientado esse ponto, que talvez. seja um dos mais complexos ‘no entendimento dos Direitos Humanos: 0 que estamos querendo dizer quando falamos em dignidade humana? E evidente que todos sibemos, quando diante de um fato conereto, se aquilo atinge a nossa dignidade, ov a dignidade de alguém. Nés sabemos que slo indignos da pessoa humana certos compostamenios, certas atitudes. Ninguém ficarla mmito chocado, mesmo que tivesse compaixio, de ver, por exemplo, lum animal moro abandonado numa estrada, mas certamente todos nés sentirfamos como uma profunda indignidade abandonar o corpo de uma pessoa numa rua, numa estrads, para set devorado pelos bichos. Essa idéia nos parece. ferir radicalmente a dignidade de uma pessoa. Todas as atitudes matcadas pelo preconceito, pelo racismo atentam contra a dignidade da pessoa € nés assim sentimos; se algo humilha uma pessoa, a humilhacio néo atinge 4 ptopriedade, e pode ntio atingir integridade fisica, mas atinge a sua dignidade como pessoa humana. De que estamos falando quando recorremos, em sitima instineia, & dignidade da pessoa humana para justificar os Direitos Humanos? Muitos podem identificar essa dignidade com questées de fé: somos todos filhos de Deus, entio temos 4 mesma dignidade; evidememente, o artigo de f€ no pode ser invocado na sua universalidade, pois hé vérias religides, varias crengas © ai mesmo a auséncia’ de qualquer crenga religiosa. E outros invocam a mesma espécic humana © suas caracteristicas biol6gicas, para conferir a dignidade. Esse é, ‘evidentemente, um assunto para toda a vida. Vou apenas citar essas caracte- tisticas essenciais do ser humano que fundamentam a dignidade essencial para 2 compreensio dos Direitos Humanos. A tacionalidade criativa; o uso da palavra, como sinal exterior mais bvio a superioridade da espécie humana; a mentalidade axiolégica, no sentido da sensibilidade para o que € belo, bom e justo; 2 liberdade, ‘no sentido da capacidade de julgar — 0 que supera 0 mero determinismo biol6gico; a autoconsciéncia (0 ser humane como ser reflexivo); a sociabilidade © todas as formas de solidariedade; a historicidade (0 ser humano é aquele que tem ‘4 meméria do passado € © projeto para 0 futuro); a unicidade existencial, no sentido de que cada ser é insubstituivel (€ claro que 36 essa ultima questo emandaria uma discussio infindével em razfo das novas possibilidades Renéticas, com a poss{vel producto de clones). Enfim, eu concluiria, citan- do Kant, quando afirma que 0 Gnico ser que no pode jamais ser considera. do um meio para se alcangar um determido fim € 0 homem, porque ele jé € um fim cm si mesmo. 44 Essa idéia, que € central para a compreensio dos Direitos Humanos, da dignidade da pessoa humana ¢ sua universalidade, explica, por exemplo, porque quando ocorre uma violagio grave dos DH no Brasil temos de aceitar a interferéncia de outro Estado, como, por exemplo, as comisstes européias € norte-ameticanas, que vém investigar genocidio de indios, massacre de criangas, violagdes dos Direitos Humanos dos presos etc. Por que essa intromisséo € Icgitima? Potque os Dircitos Humanos sdo direitos sem fronteiras, cles superam as fromteiras juridicas ¢ a soberania dos Estados. Do ponto de vista hist6rico, hé uma distingio j4 bem accita dos Direitos Humanos, que talver seja interessante reafirmar aqui. O conjunto dos Diret- tos Humanos é classificado em trés geragves, sto geracdes no sentido da evolugao histérica ¢ no no sentido biolégico, pois no so superacios com a chegada de uma nove geragio, mas se superam dialeticamente, sendo que (0s novos direitos continuam incorporados na geragao seguinte, A primeira geragto & a das tiberdades individuais, ou os chamados direitos civis. So as liberdades consagradas no século XVI, com o advento do liberatismo; constituem direitos individuals contra a opressio do Estado, contra © absolutism, as perseguigdes religiosas e politicas, contra o medo avassalador fem uma época em que predominava o atbitrio ¢ a distinglo rigorosissima ‘em castas sociais, mais do que em classes sociais. Trata-se das liberdades de locomago, propriedade, sepuranga, acesso 4 justiga, opiniao, crenga religiosa, integridade fisica. Essas liberdades individuais, também chamadas direitos civis, foram consagradas em varias declaragdes ¢ firmadas nas constituigies de diversos paises. ‘A. segunda geragio € a dos direitos sociais, do séeulo XIX ¢ meados do séoulo XX. Sio todos aqueles direitos ligados ao mundo do trabalho, como © direito a0 salétio, horério, & seguridade social, férias, previdéncia etc. Sto também aqueles direitos que no esto vinculados ao mundo do trabalho — mais importantes ainda —, porque sio diteitas de todos e nfio apenas daqueles ‘que estio empregados. Trati-se dos direitos de caréter social mais geral, como 0 direito & educagfo, sade, habitagio. Sdo direitos marcados pelas lutas dos ‘tabalhadores jf no século XIX ¢ acentuadas no século XX, as lutas dos socialistas ¢ da social-democracia, que desembocaram no Estado de Bem-Estar Social. ‘A terceira geragio € aquela que se refere 0s direitos coletivos da humanidade. Referem-se esses a0 meio ambiente, & defesa ecoldgica, 3 paz, ao desenvol vimento, & autodeterminagio dos poves, 3 partilha do patrim6nio cieatifico, cultural © tecnolégico. Direitos sem fronteitas, direitos chamados de solida- riedade planetéria. Assim sendo, quando, por exemplo, a Franga realize explosies nucleares no Pacifico isso também nos diz respeito, porque o dicito das geragées fuwuras a um meio ambiente ndo degradado j4 se incorporou & consciéncia internacional como um dircito inaliendvel. 45 Essas urés geragdes, de certa maneira, englobam ¢ enfeixam os trés ideais da Revoluefio Francesa: o da liberdade, © da igualdade © 0 da fratemidade, ou da solidariedade. Como enfatizei que os Direitos Humanos. so hist6ricos, vale Iembrar que j& se fala numa quarta geracdo de Direitos Humanos, que So aqueles direitos que poderio surgir a partir de novas descobertas cientificas, novas abordagens decorrentes do reconhecimento da diversidade cultural ¢ das mudangas politicas. A presente abordagem € apenas introdutéria a uma temética mais ampla dos Diteitos Humanos. © ponto com 0 qual gostariamos de terminar refere-se 2 uestio da igualdade, até aqui associada — lembrando os ideais da Revolugio Francesa — aos diteilos sociais, tanto os referidos ao mundo do trabalho, ‘quanto os mais amplos, como o direito a educagio, Seria interessante chamar & atengdo para a dificuldade que temos de entender a idéia da igualdade. ‘Temos uma relativa facilidade de entender o valor da liberdade, a primeira geragiio de DH, as liberdades individuais, os direitos civis, 0 direito de expresso contra todas as formas de intolerincia politica e religiosa. Mas, de ue estamos falando quando insistimos na igualdade? Partimos da premissa de que a igualdade néo significa uniformidade, homo- gencidade. Dif, o direito & igualdade pressupde — c no é uma contradicio — 0 direito & diferenca. Diferenca nio € sindaimo de desigualdade, assim como igualdade no € sindnimo de homogeneidade ¢ de uniformidade. A Sesigualdade pressupe uma valoragéo de inferior e superior, ptessupde uma valorizagao positiva ov negativa e, portamto, estabelece quem nasceu para mandar © quem nasceu para obedecer; quem nasceu para ser respeitado ¢ quem nasceu 36 para respeitar. A diferenga € uma relagio horizontal, nés Podemos ser muito diferentes (j4 nascemos homens ou mulheres, 0 que é uumna diferenga fundamental, mas nio é uma desigualdade; sera uma desigualdade se essa diferenga for valorizada no sentido de que os homens 50 superiores as mulheres, ou vice-versa, que os brancos sfio auperiores 20s negros, ou vice-versa, que os europeus so supetiores aos latino-americanos e assim por diante). A igualdade significa a isonomia, que a igualdade diante da lei, da justiga, diamte das oportunidades na sociedade, se democraticamente aberta @ todos. A igualdade no sentido socioecondmica — e volte & questio da ignidade — daquele minimo que garanta a vida com dignidade, ¢ que esth contemplado na segunda geracio de Direitos Humanos. A igualdade entendida como 0 direita a diferenca: todos somos igualmente portadores do direito & diversidade cultural, do diteito & diferenca de ordem cultural, de livre escolha ‘ow por contingéncia de nascimento. Para concluir, as questdes relativas, especificamente, a0 princfpio da igualdade, 0 significado da democratizagao, & violencia ou a intolerdncia, ou a uma relagio mais direta entre os Direitos Humanos e a educagio, serio abordadas ‘no desenrolar dos trabalhos da Cétedra USP/UNESCO. 4%

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