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0 Entretenimento dos Pequeninos ® Giambattista Basile ™ Tracuto oo nzpoitane co roi de Francisco Degani ANEXO Prefacio a traducao para 0 italiano Benedetto Croce 1925 OTR Sei Semin RRND acne && O Conto das Contos Forjava jogos ou anagramas para as damas napolitanas, como este para Dorotea di Capua, “marquesa de Campolattaro”: Nulla belta risplende, ove tu pompa altéra fai della tua bellezza, alma guerrera né gia dite pit degna ne l'amoroso ciel trionfa e regna; ché tu sal, chiara ed alma, hai d’amor scettro e palma. Rimava em italiano e espanhol cangonetas e motetos para mtsica: Desdichada alma mia, dime: que haras? guna fiera adorar siempre querris? iNo mas! 4Seguiras quien te ofende? — jNo mas! sAmaras a una ingrata? ~ {No mas! dLlamaras quien te mata? -j No mas! \Ahi, duro engatio, huya, huya este dafio! E também compés, como todos os outros de seu tempo, quase por dever de literato que se respeita, um drama pastoral ou mais exatamente ma- rinho, as Avwventurose disavventure [Aventurosas desventuras|, e um longo. poema em oitavas, o Teagene, no qual reelaborou, adaptando aos habituais gastos esquemas, o romance de Heliodoro”.”"' O conde Maiolino Bisac- cioni (em muitos aspectos semelhante a ele na vida de “honrado aven- tureiro”), que o conheceu por volta de 1620, em Avellino, na corte dos Caracciolo e 0 teve como companheiro organizando mascaradas e réci- tas de comédias, recordava, anos depois, “o cavalier Basile, de veneravel 0 r ‘Personagem siciliano semi-legendario acusado por seus contemporineos de ser um bruxo. © Conte dos Contos meméria nas boas letras e dtimos costumes’, era “tao pronto na prosa e nos versos, que muitas vezes causava espanto ver como em poucas horas realizava coisas grandes ¢ boas"Y!". Nessa literatura convencional, pratica e mecanica, ele nao colocava nada ou quase nada de sua alma, como se realmente néo tivesse uma alma No entanto, era homem de coragao e cérebro, um bravo homem, como se vé pelas impresses que dele nos deixaram seus conternporaneos, e mais particularmente em seus escritos em dialeto, dos quais falaremos agora: de grande retidao, bondade e sede de justiga, rico de afetos, arrependimen- tos e nostalgias, com uma tendéncia a tristeza que beirava o pessimismo eo mal-estar das coisas humanas. Obrigado a andar pelas cortes, sentia- -se continuamente incomodado em vista da mesquinha e frequente triste Juta pela vida que ali se combatia, e que sempre incentivava os mais auda- ciosos a mentir, a intrigar ea fazer o mal. Governador feudal, presenciava as extorsdes que se exercitavam sobre os miseros vassalos, pelos bardes em primeiro lugar e, a exemplo destes, pelos seus ministros; zeloso em conservar a consciéncia limpa, voltava daqueles servigos pobre como fora, aguentando depois os sorrisos de compaixao de homens espertos por sua ingenuidade, que sempre o impedia de aproveitar as boas ocasi- Ges oferecidas pela sorte. Com esse habito de observar e refletir sobre os casos que lhe aconteciam, aos poucos tornou-se moralista, pronto a iniciar 0 ataque, esbosar retratos satiricos, repreender e colocar-se em guarda; apesar de tudo, nessa aspereza de reprimenda, trazia sempre no fundo do coragao a adoracio pela bondade, pela probidade, pela ing&nua candura, o afeto pela cidade natal e por seus velhos costumes, o amor pelas antigas cancées, o interesse entre sentimental e curioso pelas his- torias que contavam as mulheres do povo, pelos provérbios e ditos nos quais colocavam sua sabedoria de vida; e, principalmente, tinha espirito musical, na musica ele via a harmonia das coisas e nela encontrava a beleza ea satide do homem* Foi certamente uma sorte singular que, naquela época, um seu amigo, um seu quase irmao, do qual fora companheiro desde menino na escola, © Conto dos Contos Giulio Cesare Cortese" — ele também uma bela alma e um genuino es- Pirito de poeta ~ comegasse a promover seriamente como arte o dialeto napolitano, até ento usado apenas Por rimadores plebeus de histérias, Cangdes e repentes, alguns dos quais nao certamente sem lampejos de engenho, como era o cantador conhecido com o nome de Velardiniello™. Basile, de inicio, tentou o novo modo de literatura pelo gosto da jocosa bi zarria verbal, como fez em algumas cartas em prosa e em-verso que juntou aum dos poemas do amigo, a Vaiasseide", mas depois aos poucos sentiu-se mais avontade no dialeto natal, que nao Ihe impunha obrigagées literd- Has € ndo o embaragava, e Ihe permitia libertar 0 que guardava no peito, talvez um material baixo demais para as formas da literatura Aulica, a ele reservada para os louvores aos “heréis”, ou seja, ao vice-rei, aos. Tah cipes e duques. De modo que fez nove didlogos em versos, que chamou “éclogas", escreveu cada uma com o nome de uma Musa, e todas juntas intitulou as Muse napoletane [Musas napolitanas], mas que na verdade sio quadros vivos de costumes populares, desenhados com a guia de um ge- nuino sentimento moral. Iniciam-se com a cena de dois brincando e bri- gando, das injiirias passam as armas, um velho os separa e advertindo-os © exortando-os lhes inculea ritmicamente, com solene acento quevem do profundo: “Bela coisa é a paz!”. Chega ento um jovem que esta enredado Por uma cortesd, e outro o analisa e faz tocar com amo a falacia, 0 perigo @ a tristeza daquela paixdo, sem conseguir demové-lo, pois no outro hé juizo e experiéncia, mas no jovem hé ardor de sangue e de fantasia, que cega e arrebata. Segue-se a descripao de um lugar de perdigéo na Napoles daqueles tempos, a taverna do Cerriglio, aonde se ia Para esbanjar com os amigos e com asvadias, onde se reuniam os ladrées, falsdrios e assassinos; © a descri¢ao de uma briga de mulheres do povo, com dionistacas carps de impropérios; e, como contraste, o idilio de uma bela e inocente jovem, que vai se casar, protegida pelos olhares amorosos do noivo, cireundada pela ternura dos parentes que a cumulam de presentes e béngaos. E depois pee te ‘aio Cesnre Cores 1570640), poets napolitano vaiesse significa serva, de modo que Vaiasseide seria a “Epopeia das Servas", 540 © Conte dos Contos ainda a satira do velho que, contra as sagradas leis da natureza, esta para se casar com uma jovem; a amarga constata¢ao do luxo de origem equi- -voca que alguns ostentam, enquanto se vé a boa e honesta gente guardar com todo 0 cuidado a tinica e idosa roupa com a qual cobre de decéncia a pobreza; e, por fim, o didlogo sobre a miisica, evocando antigos temas € antigas arias, em louvor da simples musica que hé no coracao, executada por simples e rtisticos instrumentos, contra a musica refinada e artificial, que estava em voga nas cortes e nos palacios. Depois dessas Muse napoletane, ou outras como elas, Basile pintou uma tela maior, que foi recolher numa espécie de “decameron” o tesouro dos contos populares que se narravam em Népoles; naverdade, um “pentame- ron’, pois os contos teriam sido cinquenta, divididos em cinco jornadas; ao qual deu como titulo Lo cunto de li cunti overo Io trattenemiento de’ pecce- rille[O conto dos contos ou o entretenimento dos pequeninos], o que ndo queira dizer (como alguns, e entre estes os Grimm, acreditaram, tomando a0 pé da letra o titulo jocoso) que fosse composto para criangas. Era, a0 contrario, composto para homens, para homens literatos, experientes e vividos, que sabiam entender e saborear coisas complicadas e engenho- sas; e talvez nas academias napolitanas e principalmente na maior delas, a Academia dos Ociosos, 4 qual Basile se inscreveu com o nome de “Pigro” [Preguicoso] (que era 0 mesmo nome jé usado por ele na Academia dos Extravagantes, de Candia), deve ter lido algumes das “éclogas” e alguns dos “contos”; certamente nesses circulos era conhecido o trabalho a que ele se dedicava a tantos anos, tanto que Francisco de Quevedo, que frequentou os literatos napolitanos e foi dos Ociosos, transportou em 1626 0 titulo de Cuento de los cuentos [Conto dos contos] para uma sua coletanea de palavras e frases vulgares da lingua espanhola*". Ambas as obras de Basile, as Muse 0 Cunto de li cunti, sé vieram A luz entre 1634 e 1636, depois da morte de seu autor, a primeira ja terminada e pronta para a impressio e a segunda ainda imperfeita, faltando desenvolvimento e acabamento em muitas no- velas, principalmente nas das iltimas jornadas, e uma revisdo geral. Com a disposigao de espirito que mencionamos acima, com 0 mora- lismo satirico que j4 expressara nas Muse napoletane, e ainda com a supe- se © Conto das Contes Tioridade de literato de profissio que molda o que gosta, mes tem sempre Presente sua sutileze e humildade, e por isso brinea com ela adornando-a caprichosamente e depois desvelando-a de repente em sua pobreza ou m- dez, Basile passou a narrar os contos de fadas tradicionais do povo. Eesta Permeante subjetividade era a condigéo necessaria para que o argumento daqueles contos se tornasse arte. Uma ver que so comumente narrados Pelo povo, perderam, quando a tiveram, sua vida poética original, oalento aue Ihes deu quem primeiro os imaginou e compés este ou aquele: asse- melham-se a inexpressivos resumos, com os quais se expde 0 “Tato” de uma novela ou de wm romance. Dai a comum insipidez dos contos esteno- sraficamente recolhidos pelos folcloristas ou demopsicélogos: documen. fo, sem diivida, de dialetos, de costumes , em se querendo, de mitos, mas Taramente obras de poesia; com efeito, essas coletineas nunca se torna- ram livros de leitura, salvo se nio foram mais ou menos reelaboradas ou retocadas com sentimento artistico. A essa opiniao se opée, para dizer a verdade, o preconceito que se po- deria chamar de romantico, em relacao & poesia e 4 novelistica popular, onde se postula uma “alma popular” ou um “espirito ingénuo”, dos quais 98 coatos seriam produto e aos quais seria preciso reconduzi-los quan- do se afastassem por alteracao e corrupgio. Mas o “espitito ingénuo” ou “alma popular” tem a ver com a jé citada acidentalidade @ materialidade da tradicao, ou seja, a falta de espirito ou, quando séo inseridas em obra de engenho artistico, estao em nada menos do que em “der Herren eigner Geist", de que falava Fausto, no qual os contos “sich bespiegeln”®, Fato 6 gue nenhum engenho artistico nunca se ateve a objetividade dos contos Populares; sessenta anos depois de Basile, Charles Perrault, escrevendo 08 Contos de mamde gansa, colocou muito do francés do grande século ¢ 0s criticos franceses perceberam naqueles Chaperon rouge [Chapéuzinho Fe ee 3 Respectivamente “proprio espicito do Senhor” e "se refletem’. Referéncia ao Fausto de Goethe. O. aforismo completo seria "Was ir den Geist der Zeiten hei, / Das ist im Grand dee Herren eigner eist/Im dem die Zeiten sich bespiegeln’.ou se, “O quevocé chama de espirite tox tempos /estino funco do préprio espirito do Senhor,/ em que 0s tempos se refletem’, © Conto dos Contos vermelho] e Chat botté[O gato de botas] e Petit Poucet [0 pequeno polegar] e Cendrillon [Cinderela] e em outros, tao candidos na aparéncia, o raciona- lismo cartesiano, a experiéncia e também a malicia do homem de mundo; alguém até viu uma leve caricatura de argumento simples e popular: o que nao diminui, e ainda concorre para formar o seu particular encanto. Da mesma forma, o dramaturgo dos contos, Carlo Gozzi¥, tinha amor pelo pitoresco, que reunia num wnico abrago os personagens dos contos de fadas e as mascaras da Commedia dell’arte, e introduziu aqui e ali a sua po- Iémica literdria e politica contra os inovadores e enciclopedistas. Do mes- mo modo se comportaram Tieck’s, Platen" e outros imitadores puaaiead de Gozzi, cujas obras, discutiveis como certamente sao em comparacdo as do veneziano, apenas entram no mérito da discussao para mostrar que ha nelas a subjetividade poética de seus autores. De resto, essas coisas que os criticos algumas vezes esqueceram ou ignoraram, 0 povo nio ignora, ¢ pede que os contos sejam renovados pelos seus rapsodos, como diz 0 pro- vérbio: “A novela nao é bela, se nao se sabe renova-la"™™, Por isso, o Conto dos contos é um livro vivo e nao tem nada a ver com uma mera coletanea de contos de fadas sicilianos, toscanos ou venezianos, como hoje existem tantas, ainda mais por se ligar idealmente & literatura italiana de arte com Pulci”, com o magnifico Lorenzo”, com Folengo”, e em alguns aspectos com Boiardo® e com Ariosto*, que refez, cagoando, 0 em 1761 publicou a comédia O Amor das Trés 4 Carlo Gozzi (1720-1806), dramaturgo veneziano que em 1761 pul ec tig Lara aad ssn deta Lore cee nelrene ma fara sob fora de ort f ‘corresponde a0 conto Astrés cidras,de Basile. 2 Sasa sae ne Safe et im ientire 16 Trata-se do conde August Karl Maximilian Georg Graf von Platen-Hallermiinde (1796-1835), po e dramaturgo alemio. oa : 17 Trata-se de Luigi Pulei (1432-1484) poeta, sua obraprincipal ¢ 0 poema dolea Marsate 2 aug 18 Trata-se de Lorenzo di Piero de’ Medici, Lorenzo o Magnifico (1449-14921, foi senhor de Floreng: d 1469 até sua morte, o terceiro da dinastia dos Medici. Também foi escritor, mecenas, poeta e humanis- ta, além de um dos mais significativos homens politicos do Renascimento. 7 19 Trata-se de Gerolamo Folengo, mais conhecido como Teofilo Folengo ou com os pse ‘Merliti Coccajo, Merlin Cocai ou Limerno Pitocco (1491-1544), poeta italiano, entre os principais ex- Boentes da poesia maccheronica (poesia escritaem italiano, mas mitandolatim). amet 20 Trata-se de Matteo Maria Boiardo (1441-1494) poeta e literato italiano, sua obra principal & Orlando ane 6 i ra principal é Or 21 Trata-se de Ludovico Ariosto (1474-1533) poeta, comedidgrafo e diplomata, sua obra principal € Tondo furs. i 393 O Conto des Contos argumento dos romances de cavalaria e da literatura popular, e, em certo sentido, ¢ a ultima obra genuinamente dessa linha, surgida tardiamente em Napoles, nado mais no ambiente do Renascimento, mas do século XVII e do barroco. O barroco esta por toda a obra, e Basile nao se satisfaz em dignificar os contos dos ogros e das fadas apresentando-os na disposic¢ao que se tornara classica gragas ao classico Decameron, dando o lugar que ja pertencera a Pampinea, Fiammetta, Neifile e Elisa”, as suas Zeze, Ciulle, Pope e Ciommetelle, mas as borrifa com os mais fortes perfumes da li- teratura seiscentista. Nesses contos, nao surge a alba e nio se poe o sol, sem que ele encontre um novo e bizarro modo de metaforizar estas fases do dia com perifrases do tipo: “assim que os passarinhos gritaram: ‘Viva 0 sol!’”; “logo que o sol saiu para se esquentar da umidade que pegara no rio da fndia”™; “quando o sol com as vassouras de ouro varreu a sujeira das sombras dos campos regados pela alba”®; “antes que saisse a alba para pro- curar ovos frescos para confortar o velhinho seu namorado” ou entio: “porque as bolas douradas do sol, com as quais ele brinca pelos campos do céu, tomavam a direco do ocaso”®; “e esperando que o céu como uma mulher genovesa colocasse o tafetd negro ao redor rosto”%, “até a noite a terra espalhou um grande cartdo negro para recolher a cera das tochas da noite; e assim por diante. Estas e outras imagens semelhantes se contam as dezenas, sempre varia- das, de bosques escuros, riachos rumorejantes, rios e fontes borbulhantes. Seus reis, suas rainhas, principes c princesas, seus camponeses, feitores caipirinhas, exprimem seus afetos com introdugdes, progressées, reitera- des, peroragGes, com agudezas, trocadilhos e citagées eruditas, de acordo 22 Pampinea, Fiammetta, Neifile e Elisa so personagens do Decameron, de Giovanni Boccaccio. 23 Ver “A pulga’, 5. 24 Ver“A pomba”, 11,7. 25-Ver“O serpente”, II, 5. 26 Ver“O tronco de ouro",V, 4 27 Ver “Verde prado”, II, 2. 28 Ver“Violeta”, 11,3. 29 Ver“O serpente”, II, 5. 30 Idem, © Conte dos Contos com as regras e os modelos dos tratados de retérica galante. Olhando para ela, o principe exclamou: “Feche-se num forno, deusa ci- priotal Enforque-se, 6 Helena! Vao embora, 6 Creiisa e Fiorella, que suas belezas nao sao nada diante dessa beleza de sola dupla, beleza completa, integra, madura, sélida, enraizada! Graga digna de assobios, de Sevilha, de arrebatamento, de virtudes, de importancia, em que nao hé qualquer im- perfeigao, néo ha nada a corrigir! © sono, 6 doce sono, derrame papoulas sobre os olhos dessa bela joia, nao me tire o gosto de olhar quanto eu de- sejo esse triunfo de belezal © bela tranca que me prende, 6 belos olhos que me aquecem. 6 belos lébios que me restauram, 6 belo peito que me conso- a, bela mao que me traspassa! Onde, onde, em qual oficina de maravilhas da natureza se fez essa estatua viva? Qual india deuo ouro para fazer esses cabelos? Qual Etiépia o marfim para fabricar essa fronte? Qual Maremma os carvées para compor esses olhos? Qual Tiro a purpura para-tingir de vermelho essa face? E outro principe, que tem entre as mios a graciosa chinela, depois da fuga de Cinderela: Sea fundagio € tao bela, como sera a casa? © belo candelabro onde est avela que me consome! © tripé do belo caldeirao e onde ferve a vidal belas cortigas atadas aos anz6is do amor, com os quais esta alma foi pesca- Gal Sim, os abraco e aperto, e se nao posso chegar a planta, adoro as raizes; € se no posso ter os capitéis, beijo as bases! J4 foram cepos de um branco pé, agora sio armadilhas de um negro coragao! Por sua causa, a tirana de minha vida era mais alta um palmo e meio, e por sua causa minha vida cresce outro tanto em docura, enquanto as olho e possuo* As vezes, o personagem nem ao menos se descuida de se colocar no lugar certo, na cena bem preparada para a efusio de seus sentimentos e, como a princesa Renza®, vai para debaixo de uma amoreira e a sombra de 3) Ver “O mirto”. 1.2. 3? Ver “a gata borralheira’.1.6. 33. Ver“O rosto”, 111.3. 544 ee ee O Conte dos Contos suas folhas recita o seu estilizado lamento. Abundam as hipérboles, leva- das a tal extremo que se esvaem no indizivel e no inefavel; as detalhadas descrigdes de belezas e de feiiras, que tém ar de inventério, obstinada- mente recheadas do quanto se possa conceber e dizer de mais atraente ou de mais repugnante. As metéforas, ora extravagantes, ora sutis, sucedem- -se sem tregua. O principe e o falso companheiro se encontram, comegam a conversar e seguem juntos: “abanando-se com 0 Jeque da conversa por causa do calor do caminho”*. A gata que ajudou Cagliuso, depois de des- cobrir sua fria ingratiddo, repreende-o asperamente e lhe da as costas; ele vai atras dela tentando acalmé-la “com o pulm4o da humildade”: com © pulmio, que @ a comida que se da aos gatos domésticos nas casas na- politanas e que estes esperam desejosos e impacientes. Penta, enviada ao exilio com 0 filho, “pegando nos bracos a crianga, que alimentava de leite e lagrimas”, E nao menos frequentes sao as tiradas zombeteiras, a rainha moribunda recomenda ao marido que se case com a boa jovem maneta, o marido, mesmo comovido, ouvindo a proposta da esposa ¢ atravessado por uma imagem engracada e pensa sem dizer: “juro que a tomarei como esposa, e ndo me importo que nao tenha maos e pouco peso, pois algum mal sempre deve haver’?. Com isto, Basile quis fazer a satira da literatura barroca de seu tempo? Assim acreditou e sustentou, no século XVIII, Luigi Sério®, mas é uma intengao a ser excluida totalmente, como comprovam outras tantas obras de Basile em lingua italiana, que certamente Serio ndo conhecia, do mais desvairado estilo barroco. Basile nao desgostava, alias apreciava muito, as formas da literatura de seu tempo, ele, satélite do grande Marino”; mas, ao narrar seus contos, valia-se até de jogos, do mesmo modo que, afagando e brincando com uma crianga e procurando fazé-la rir e se alegrar, coloca- 34 Idem 35 Ver “Cagliusc”, II, 5. 36 Ver “A bela das mios cortadas’, IIL 2, 37 Idem. 36 Trata-se do literato, professor de Eloquéncia na universidade de Napoles e autor de melodramas (0744-1799). 39 Trata-se do poeta napolitano Giambattista Marino, ou Giovan Battista Marino (1569-1625). OConto dos Contos -sena cabecinha dela uma cartola ou no nariz um par de éculos: 0 que nao quer dizer desprezo e satira das cartolas e do éculos, e muito menos das criangas. Entretanto, com isso ele alcanga, inconsciente e artisticamente, uma ironizagao do barroco, o qual, digam o que digam seus modernos de- fensores, ¢ insuportavel quando ¢ feito a sério, pesado e vazio 20 mesmo tempo, e se torna nao apenas tolerdvel, mas agradavel e festivo quando € percorrido por um lampejo de malicia, avivado por uma fontezinha de bom humor. A este respeito, até se poderia afirmar que o Pentameron de Basile seja o mais belo livro italiano barroco, que certamente no é 0 verborragico e empolado Adone®, mais belo justamente porque o barroco executa ali sua danga alegre e aparece para dissolver 0 barroco, que ia foi turvo e agora se torna limpida alegria. Este barroco alegre serve para manter o espirito do autor e dos leitores acima da matéria dos contos, em uma continua distingdo entre cultura e incultura, entre mente evoluida e mente rude, entre literato e vulgar: método que sera devidamente entendido e particularmente apreciado por quem conhece e nao gosta das ceriménias e afetasdes da literatura popu- laresca, na qual os adultos procuram em vao vollar a ser criangas e s6 con- seguem se mascarar em chorosos pedantezinhos do simples e do ingénuo. Mas esse método nao impede a humana participagao nos casos narrados nos contos, que Basile apresenta com pléstica fantasia, toda concreta e detalhada (suscitando aqui também a lembranga de Pulci e de Folengo), juntamente com sentimentos de inquietacio, compaixio, admiragao e re- pugnancia. Ele nos mostra um feixe de lenha, que ao ser montado pelo homem afortunado para quem todo desejo se torna realidade, comega a andar como um cavalo, trota, roda, faz saltos e corvetes*,, seguido pela gri- taria dos moleques, enquanto as mulheres chegam curiosas as janelas; ou © rei que recebe toda a mendigagem para um banquete em seu palicio, ¢ que se sentam graves e contentes a mesa, “como condes”* ou o prodigioso 4° L’Adone é um poema de Giovan Battista Marino, publicado em 1623, A obra descreve as aventuras amorosas de AdOnis e Venus e constitui o poema mais longo da literatura italiana com um total de 40.984 versos. 4° Ver “Peruonto’, 1 4 # Idem. © Conto dos Contos engravidar, com o odor exalado pelo cozimento do coragao do dragdo ma- rinho, da cozinheira e de todos os méveis do aposento, que concebem seus semelhantes em tamanho menor, a mesa uma mesinha, 0 baldaquim uma caminha, as cadeiras cadeirinhas, e o penico fez um peniquinho pintado t4o belo que era uma delicadeza‘; ou as operacées de abrir trincheiras e Os estratagemas que o camundongo e a barata fazem para chegar ao corpo do grande senhor alernio, para impedir seu casamento“; ou Costasfortes, que carrega nas costas todas as riquezas do estado e de particulares*; ou Parmetella, que corre, gritando e perdida, atras dos instrumentos musicais que deixara fugir da caixa, e que agoravoam e soam pelo ar’. As vezes nos consola com uma fresca cena campestre e de bosque, como a de Nella que, na noite silenciosa, trepada numa arvore, escuta a conversa na erma casa do ogro*; ou da princesinha que sai pela porta da cidade, 4 noite, ilumina- da pela lua acompanhada por uma raposa, e com a raposa dorme sob uma tenda de folhas, sobre um colchao de erva tenra, junto a uma fonte borbu- Thante, e ao amanhecer, acordando, pée-se 2 ouvir 0 canto dos intimeros passaros que pousam nas arvores, deleitando-se com seus gorjeios*. Mas Basile também nos faz ver a arredia honestidade de suas garotas, perseguidas pela maldade e remuneradas pela boa sorte: como Violeta que, colocada em perigo pela tia alcoviteira e salva por sua determinacio, vai rapidamente a velha ¢ lhe corta as orelhas como castigo”; e de Penta, que faz com que lhe sejam cortadas as mos, que haviam sido a causa do irméo se apaixonara por ela, e as manda de presente para ele numa bacia®; e de Sapia, que foge de todas as ciladas com queas irmas tentam fazé-la cair onde elas haviam caido*, Nos faz admirar a coragem da inteligente filha da baronesa que, ao dar um bofetao no filho do rei. desperta-o para a vergo- 43 Ver“A gazela encantada’,1 9. 44 Ver“A barata, o camundongoe o grilo’, IU, 5. 45 Ver“O ignorante” IIL, 8. 46 Ver“O cepo de ouro’, V, 4 47 Ver “Verde prado” IL, 2. 48 Ver“O serpente’I1.5. 49 Ver“Violeta’,IL3. 50 Ver“A bela das mios cortadas’ 51 Ver “Sapia Licearda’. [11. 4. 1,2. © Conta des Contos nha de sua obstinada ignorancia e 0 redime, e depois suporta inabalavel as vingangas e, sagaz, por fim o conquista®. Renova com graca gostosa a comédia dos casal que se ama e sempre se procura para bater boca como inimigos, com ditos e tiradas insolentes’, como Benedick e Beatrice de Shakespeare. Nos enche de ternura por suas meninas pobres, que tiram da boca uma pizza para dé-la a velha maltrapilha que a pediu, e que, colo- cadas diante da sorte e da riqueza, se contém modestas e gentis, No meio deum grupo de mulheres desonestas e ferozes, ele destaca de repente uma delas, a mais jovem, que sente piedade e recua diante do assassinio da bela jovem, sua rival no amor do principe’. Nos dé um arrepio de terror com avelha mendiga que morre de fome, pois por causa de uma brincadeira cruel sua panela de feijdes, catados com dificuldade, é feita em pedacos, e que reaparece de repente, sombra terrivel, para 0 estouvado principe no meio de sua festa de nupcias”, Representa em Corvetto a inveja feroz e implacavel dos cortesaos pelo favorito do rei eas sempre nova inven¢des Que maquinam e pdem em prética para prejudicd-lo®, Retrata a alegria de Penta, que recuperou o marido e gira ao redor dele como uma cachorri- nha sacudindo a cauda®. Apresenta quase o milagre da maternidade, no conto da bela adormecida no bosque, que se torna mie durante o sono, e a qual, sempre dormindo, as duas criancas que pée no mundo, Sol e Lua, sao lhe colocadas aos seios e buscando 0 bico acabam pegando o dedo e retiram a felpa fatal, que a havia feito cair em letargo, e a despertam para avida®. Revela o misterioso fascinio da poesia no principe que perdeu a mem6ria da mulher amada e ouve da boca da jovem, que nao reconhece por estar travestida, a caneSo do “branco rosto”, ndo entende porque é pe- netrado de dogura e de um vago desejo, e nunca se cansa de pedir para que 5 Ver“A sabia’, Vi 3 Ver “Cannetella”, IIL.1. 54 Trata-se da comédia “Muito baruiho por nada”, 55 Ver “As duas pizzalle”, 1,7, 56 Ver"Verde prado”, II, 2. 37Niee “A pomba’, II, 7. 58 Ver “Corvetto", IN1,7. 5 Ver “A bela das mios cortadas’, II], 2. 60 Ver “Sol, Lua e Talia". V5. OConto dos Contos o canto seja repetido®. Esses séo alguns dos motivos sentimentais que ressoam nesses contos, seja porque Basile os busque no povo e os reviva, seja porque os intro- duza ele mesmo, sempre aprofundando e tornando humano o nu e es- quematico elemento fabulistico. Para isto, aproxima 0 fabulistico a vida vivida, a vida ordinaria e particularmente 4 vida de seu tempo ou de sua Napoles; e a ogra as vezes se configura ali como uma camponesa zelosa de sua horta, feroz ao proteger a sua propriedade, vingativa contra quem colocou as maos ein suas coisas; outras vezes pode-se escuté-la, de noite, conversando durante o jantar com o marido que volta da labuta diaria e ao qual pergunta o que se diz e o que acontece no mundo®; e Cinderela, lIuxuosamente vestida no luxuoso coche fornecido pela fada, com seu sé- quito de servos e pajens, assemelha-se a uma bela cortesa napolitana no proibido passeio de Chiaia, que os guardas surpreenderam, rodearam e levam para a prisdo“; e Cienzo sai exilado de Napoles por ter involunta- riamente quebrado a cabega do filho do rei num desfio de pedras ou “pe- triate”, como se usava em Arenaccia®; e as escravas mouras tém os movi- mentos e o modo de falar das muitas escravas que se viam entdo nas casas de Napoles, por efeito das incursées contra os barbaros“; e Rosella, a filha do Gran Turco, que o amor levou & terras de cristios, e ¢ cortejada como uma bela aventureira pelos bardes napolitanos, os quais, para lhe dar os presentes que ela pede, endividam-se com usurarios e tomam empresta- do a juros”: e as irmas de Sapia, que nao se resignaram com a clausura imposta pelo pai, séo duas endemoniadas “janeleiras” ou “finestraiuole”, justamente como as irrequietas mogas dos paises meridionais e, ja que as janelas foram pregadas, escalam até os postigos para enfiar a cabega, con- versar e flertar, 51 Ver“O rosto”, IIL3. 82 Vor “As trés coroas’, IV, 6. 63 Ver “Verde prado’, 11,2. 64 Ver “A gata borralheira’, I, 6. 65 Ver “0 mercador”,1,7. 56 Ver “Introducao”, Ie “As trés cidras", 9. ©? Ver “Rosella”, IIL.9. 68 Ver “Sapia Liccarda’, IIL, 4. © Conto dos Contos Os afetos e o sentimento moral de Basile, que transparecem no modo como sao desenvolvidos os personagens e os casos, tomam forma reflexi- va nas introdugao e conclusdes de cada conto, cheios de provérbios sobre aingratidio, o citme, a inveja, a incoercivel curiosidade das mulheres, a sua astucia, a sorte que prefere os ignorantes e os poltrées, e nos motes que enfatizam os contos ou que sio postos na boca dos personagens. Mas Basile tem tanto a dizer que essas mengées ocasionais e esparsas nao bas- tam, esente a necessidade de canalizar o excesso de seu espirito em quatro didlogos ou “éclogas”, cada uma delas apés as quatro primeiras jornadas, e nas quais satiriza a diferenga entre aparéncia e realidade (O cadinho}, uma armadilha de palavras com a qual se apresenta 0 mal como bem e o bem como mal (O corante), o fastio que causa toda ambigao humana e todo o deleite (A estufa), e a cobiga universal, pela qual todos roubam e se apro- veitam (Gancho de pogo). Sao retratos morais e quadros de costume, em es- tilo entre hiperbolico e grotesco, mas desenhados com vigor, que fazem pensar em de Jaques Callot®. Passam sob nossos olhos o grande senhor, 0 militar, 0 nobre que ostenta a descendéncia, 0 vaidoso, o.cortesio, o fan- farrio, o adulador, a mulher do prazer, o poeta, o enamorado, o astrélogo, 0 alquimista; 0 avaro, que é louvado pela gente como ecénom velhaco, que é elogiado como prudente; quem vive as custas da mulher, que é fes- tejado como homem elegante; e, ao contrario, o homem de coragem e de hontra, que é desacreditado como irresponsdvel; 0 desdenhoso das coisas plebeias, que é taxado de selvagem; o bardo opressor e seus agentes, que vendem a justiga; o mercador, o alfaiate e o hospedeiro, e suas trapagas; € muitas outras figuras e tipos, por fim, a desilusao que se encontra no amor, nas armas, nos divertimentos, nos espetaculos, nas artes, so se salvando da desvalorizacao geral a virtude e a riqueza ou a forga, que dio ao homem as timicas verdadeiras ‘satisfapdes no mundo. Como livro para fazer rir e quase um pequeno tesouro de vocdbulos curiosos e locugées plebeias, nao faltou alguma fortuna no século XVII, testemunhada pelas seis reimpressGes que seguiram a edig4o original, da 69 Trata-se do desenhistae gravador a buril e dgua-forte francés (1592-1635). © Conto dos Contos imitagao que tentou Sarnelli”, na Posilecheata; e, fora de Napoles, das suas muitas partes que Lippi’ usou no Malmantile riacquistato [Malmantile re- conquistadof?, da inspiragdo que tiraram dele Rosa’ e Menzini* para suas satiras, e das nao raras citacées, principalmente das éclogas, que se encon- tram nos escritores e, entre eles, Redi’>, No século XVII, também foi reim- presso quatro vezes em texto dialetal, em 1754 teve uma assim chamada tradugao ou adaptacao italiana, mas indigna de ser recordada, entretanto, em 1713, teve uma feliz adaptacao em bolonhés por obra das duas irmas Manfredi e das duas irmas Zanotti, sob o titulo de La ciaglira dla banzola”, ¢ ofereceu argumento para alguns dos contos dramaticos de Carlo Gozzi, e, indiretamente, por meio de alguns trechos inseridos na Bibliotheque des romans”, a um poemeto fabulistico-filosdfico de Wieland”, A critica, por outro lado, nao era, ou ainda nao era, capaz de entender seu espirito, como se pode ver pela critica arrasadora que fez dele Galiani” em seu livro Del dialetto napolitano [Sobre o dialeto napolitano], nao menos que pela prépria apologia que, contra Galiani, teceu Sério; sua originelidade e seu particu- lar carater artistico foram reconhecidos somente (e este 6 mais um caso da benéfica eficacia exercitada pela critica alem4 e romantica para um melhor juizo de nossos escritores) por Jacob Grimm, em 1822, no anexo critico a coletinea Kinder und Hausmirchen [Contos de Grimm]. Clemens Brentano™, por aquele tempo, traduziu ou imitou muitos desses contos. O elogio de Grimm gerou a tradugio alema de Liebrecht e a inglesa de Taylor, e estabeleceu a reputacdo que o livro de Basile conquistou junto aos estudiosos de contistica e literatura popular. No entanto, na Italia, ele 79 Trata-se de Pompeo Sarnelli 649-3724), bispo catélico ¢ historiador italiano, 7" Trata-se de Lorenzo Lippi (1606-1664), pintor e poeta toscano. 72 Poema tragicdmico. 73 ‘rata-se de Salvator Kosa (1615-1679), pintor, gravador e poeta napolitano, 74 Trata-se de Benedetio Menzini (1646-1704), poeta napolitano. 75 Trata-se de Francesco Redi (1626-1698), médico, naturalista e literato toscano. 78 © titulo completo era La Giaglira dla hanzola, o sia zinquanta fol dett da ats donn in zeing giurnat per rimedi inmuzeine dia sonn e dla matincunt 7? Trata-se da Colecao literaria francesa publicada periodicamente entre 1775 e 1789, Bibliotheque wni- verselle des romans, por iniciativa do marques de Paulmy e do cande de ‘Tressan. 78 Trata-se de Christoph Martin Wieland (1733-1813], tradutor e poeta alemio do Luminismo 79 Trata-se de Ferdinando Galiani ou abade Caliani (1728-1787), economists napolitano. 80 Trata-se de Clemens Wenzeslaus Brentano de La Roche (1778-1842), poeta e romancista alemio. O Conte dos Contos sempre foi negligenciado, e os leitores, que ainda no século XVII tivera em Napoles, adquiriram novos gostos e o envelhecimento do dialeto no qual o livro fora escrito nao ajudava; de modo que nao foi mais reimpres- so. A adaptacaéo bolonhesa durou um pouco, teve quatro reimpressdes durante o século XIX, a ultima em 1883, mas, por fim, também cedeu & mudanga dos gostos e do dialeto, e saiu do rol dos livros que se leem. Em 1875, Imbriani*, em alguns aspectos um talento semelhante ao de Basile e compositor de bizarros contos grotesco-satiricos, escreveu um estudo sobre o autor do Pentameron®*'Y no qual mostrou ter entendido o carater e ovalor desta obra singular. Mas nem as habilidades de Imbriani, nem as minhas, que em 1892 empreendi uma nova e mais genuina edigio, explicada no dialeto e no costume, tiveram 0 efeito desejado; minha ten- tativa de reedicéo obteve escassa fortuna e parou no primeiro volume, eu ouvi dizer por amigos, nao sé de otttras regides, mas napolitanos, que eles, apesar de minhas notas, nao conseguiam entender ou ler aquele tex- to com facilidade. : Eis porque razéo eu, pelas minhas pesquisas sobre literatura seiscen- tista voltadas agora para a obra de Basile ¢ retomando 0 afeto juvenil, no considerei oportuno terminar ou refazer, pelo menos por ora, a edi- gao do texto dialetal, mas pensei ser conveniente passé-lo para a forma italiana, como até agora ndo havia sido feito, nao se podendo levar em conta a jé mencionada pseudo-tradugao setecentista e sendo a versio de Ferri®, publicada em 1889 para uso das criangas, um compéndio e adap- tagdo de apenas dezoito contos, despidos de seu cardter original. Basile, como se disse, era um literato dulico e também um estudioso de lingua e estilo, que curou edigdes dos versos de Bembo™ e de Casas e dos versos 81 Trata-se de Vittorio Imbriani (1840-1886), escritor napolitano. 82 Trata-se do ensalo “Il gran Basile’, publicado em Giornale napoliteno di filosofa e lettere, vol Il, do- zembro de 1675, pp. 429-459. 83 Trata-se do livro Fate benefice [Fadas benéficas] livre versio de Giustino Lorenzo Fervi (1856-1913) eseritor ejornalista. 84 Trata-se de Pietro Bembo (1470-1547), gramitico, escritor, humanista, historiador e cardeal vene- iano. 85 Trata-se de Giovanni della Casa (1503-1556) litevato e clérigo. © Conte dos Contos inéditos de Galeazzo de Tarsia®, e compilou um volume de anotagdes sobre os dois primeiros autores; ele concebia mentalmente em italiano ¢ depois traduzia em dialeto pela graca do insdlito e para exibir a rique- za da lingua napolitana; de modo que colocar em forma italiana a obra nao ¢ tanto dar-lhe uma nova veste, quanto recuperar a veste primitiva e inata, e (fazendo a necessiria excegdo pelas eventuais deficiéncias do tradutor) em italiano esta acrescenta e nao perde virtude. Traduzi sobre a rarissima edigao original de 1634-36", muitas vezes incorreta, mas nio alterada pelo arbitrio como acontece com a de 1674, revista por Sarnelli, e das outras que seguiram seu exemplo; fui fidelissimo as palavras do texto, buscando nao diminuir a quantidade, e alterar o menos possivel a qualidade das imagens que contém, mas me conduzi com plena liberda- de ao refazer a sintaxe, que em Basile 6 defeituosa e geralmente péssima, talvez principalmente porque a obra foi impressa ainda desorganizada e em muitas partes quase em esbogo. Resisti a tentagdo, que outros te- riam sucumbido, de substituir por equivaléncia os idiotismos napolita- nos, vocabulos e frases de uso florentino vivo; procurei deixar no livro nao apenas todos os seus ornatos barrocos, mas também um certo sabor napolitano. E ja que o texto tem frequentes mengées e alusdes a coisas e costumes do tempo e da regiao, esclareci nas notas estas referéncias, para mostrar ao leitor, além do conto fabulistico, os aspectos da realida- de histérica que Basile tinha na imaginacao.*” Deixei de lado, contudo, a exemplificacdo comparativa dos contos, ape- sar de que teria sido ficil terminar pelo menos o “quadro comparativo” que acrescentei as duas primeiras jornadas em minha edigdo de 1892. Com este tipo de exemplo a atengo para a matéria abstrata do livro de Basile seria transferida, tratando-o como documento de demopsicologia, e nao 86 Galeazzo de Tarsia (1520-1553), poeta napolitano, 87 Desta edicao (ver a descriglo na minha citadz monografial, em longos anos de pesquis quatro dos cinco volumes que a compdem; mas um exemplar completo de todas as cinco jornadas esté conservado na Biblioteca Nacional de Turim, ¢ eu, que jé # havia usado em 1892, recorni a ela de novo. Alguns desses volumes tiveram uma reimpressio corrigida em 1637, que também consultei com algum bora resultado, © Conte dos Contos mais em seu intrinseco carater de obra de arte. O que pode importar ao leitor, a quem eu enderego esta tradugao, saber, por exemplo, que O mirto de Basile corresponde ao Rosmarina [Alecrim] dos contos sicilianos de Pi- tré* ea Mela [Maga] dos contos toscanos do mesmo, ea Die Nelke[O cravo] da coleténea dos Grimm? ou que Vardiello é 0 Giufa e o Giucca das ditas co- letineas de Pitré, e em parte o numero 49 das Novellae et Fabulae [Novelas € contos] de Morlino, e um determinado capitulo de Bertoldino de Giulio Cesare Croce"? ou que A veiha esfolada é Donna Peppa e Donna Tura de Pitré, € todos os outros contos de argumento semelhante, sicilianos, venezianos, abruzenses e tiroleses, que Pitré recorda? Nao sd nao deve importar nada, mas serviria apenas para aborrecé-lo, tirando-o inoportunamente ora da- qui ora dali, fora de seu ponto de contemplapio. De resto (consintam-me por um momento mostrar meu pensamento sobre isto], acredito que o motivo que me levou aquelas comparages, era determinar a “origem dos contos populares”, seja bastante fantastica, e em consequéncia eu tenha levantado teorias bastante arbitrarias, como a da origem indiana, ou da origem primitiva e selvagem como reflexo de costumes remotos, ou da origem mitoldégico-naturalista: métodos e teorias surgidas no tempo do fanatismo pela linguistica comparada, pela sua genealogia das linguagens e pela pesquisa conjunta da primeira fonte histérica da linguagem, e que deveriam estar sujeitos a uma crise de revisio e de decadéncia agora que a filosofia e a ciéncia da linguagem tomaram um novo caminho e se decla- rou, com justa razio, a faléncia do etimologismo fonético e a vacuidade de procurar no campo histérico a origem da linguagem. A questo da origem dos contos deve ser convertida na histéria de cada um deles, que é a de uma nova cria¢ao, Certamente, talvez fosse atraente seguir esta variada e intricada histéria nos detalhes, mas isto ¢ muito dificil e inseguro, tratan- do-se de processos fantasticos que se desenvolvem quase sempre fora de qualquer observagao e documentagao, e que talvez tiveram seu periodo intenso em tempos distantes, sendo mesmo pré-histéricos, Os resultados, portanto, raramente sdo tao conclusivos de modo a compensar 0 trabalho; e depois, trabalho ou nao, sempre tém pouca ou nenhuma importancia. Digo pouca ou nenhuma para quem quer o que realmente interessa do 88 Trata-se de Giuseppe Pitré (1841-1916), escritor, literato e antropélogo siciliano. ®9 Giulio Cesare Croce (1550-1605), escritor, dramaturgo, contador de historias e enigmista bolonhés, Olivroa que se refere Croce & Bertoldo, Bertoldino e Cacasenno, esse 5 Suit ta © Conto dos Contos homem e de sua histéria, pois para o erudito, se sabe, como para 0 co- Jecionador, tudo 0 que tem aver com sua colegio ou com seu arquivo é importante. Mas pensem os leitores o que melhor acharem sobre este ultimo ponto. Para mim importa que estejam de acordo comigo em ler o livro de Basile simplesmente como obra de arte. 18 de dezembro de 1924. O Conte dos Contos Notas originais do texto crociano ' Inclusive Crane (Italian popular tales, Boston and New Yor‘, 1885, p. XII) reconhece: "No people in Furope possesses such a monumento of its popular tales as the Pentamerone’ [Nenhum povo na Europa possui tal monumento de seus contos como o Pentameron], "A Lipide, que na igreja de santa Sofia, sob o pulpito, cobria seus ossose trazia # inscrigio, foi barba- ramente removida e destruida em 1676. " Convam citar, dentre os muitos satiricos da época, como o Ros2, 0 Aldimariecutros estes tercetos contra as cantoras do bispo Lorenzo Azzolini (1632), na satira sobre a lwxtiria: Mase colragionar Talmeavvelena ‘Mas se falando as almas envenena feminea voce, qual sia poscia il rischio a feminina vo2, qual seria ento° riseo quando nel canto e suon sembra sirena? quando no canto esom parece soreia? Come all'occulta pania allettail fischio Como oculta armadilha langa um assobio ineauto augel. casi Yorecchio ingorco © incauto pissaro, a0 ouvido avido trae cantatrice a Tamoroso vischio, atrai a cantante a0 amoroso vise ‘Meglio sarebbe a nom diventar sordo ‘Melhor seria ao homem ficar surdo che damigella udir quando cantilla do que cuviruma mulher cantarolar barzelette d'amor sul monacordo! brineadetras de amor a0 monceérdio Um non so che di tenero distilla ‘Um nao sei qué de terno destila ‘musica feminil. che Valme assona a mtisica feminina que as almas entorpece e icort a suovoler turba e tranquilla e 0s coracées a seu prazer turba esossega) 11 teatro delle glorie della signora Adriana Basile alla virti: di lei dalle cetre degli Anfioni di questo secolo fabricao, (Veneza, 1623; Nipoles, 1628). V Applausi poetic’ alte glorie delta signora Leonora Baroni. em Bracciano, 1639). ™ Ver nas obras de Milton os dois epigramas: Ad Leonoram Romee canentem; & possivel também que alguns dos sonetos italianos de Milton refiram-se & gentil Leonora. Sobre Adriana deve-se consultar © livo de ADEMOLLO, La bela Adriana e altre virtuose de! tempo (A bela Adriana e outras virtuosas da época] (Citta di Cestello, 1008) « sobre uma e outra meu ensaio Musirazione di um canzoniere ms. italo-spagnuolo del secolo XVII [Exemplo de um cancioneiro italo-espanhol do século XVII] (in Atti dell Accademia pontaniane de Népoels, vol. XX, 1933} Vt Sobre a vida e todas as obras de Basile dei detalhadas informagées na minha monogarfia juvenil sobre ele, na premissa de 1892 da edigao do texto das duas primeiras jornadas do Cunto de fi cunt, que se pode ler, revista e acrascid aqui e ali, nos Saggi sulla lettearura italiana del Seicento [Ensaios sobre literatura italiana do século XVII](Bari, 1924), pp.1-41B. Acrescento, para completar 2s infor- ‘mages ali dadas, que seis contos de Basile, correspondentes a contos de Perrault, isto é, II, 6 la Pen 4 ane), V5 (a Labelle cu bois dormant), I, 4 (a La chat bot), LV, 7 Les feed) 1,6 (a Cendrilln), V, 8 a Poucet ¢ Poucette)extio traduzidos em CHARLES DEULIN, Les contes de Me Mare Oye avant Perrault (Paris, Dentu, 1679), onée na introducio ipp. 39-45) menciona-se Basile, O tradutor foi auxiliado, como de- clara, pelo senhor de Lauziéres-Thémines, que havia morado muito tempo em Napoles; no entanto, incorreu em curfosos equivocos. Acrescente-se também que a tredupio bolonhess, a Ciaglira dle ‘anzola, teve uma reimprestio de cariter popular, sem 0 nome do autor nem do tradutor, em 1883 @olonha, Zanichelii. Lelbergo, favoletratie dal vero (Venez2, 1637), pp.183-4. * Ver 20 final da Quarta Jornada 2 écloga “Gancho de pogo’ * Ver, nas Muse napolitane, a écloga sobre a misica, X! Sobre Velardiniello, CROCE, Curiasita storiche [Curiosidades histéricas] (Napoles, 1921, pp. 106-112. E sobre as origens da literatura dialetal napolitana e as condigdes que favoreciam seu enaltecimento ¢ incremento, a citada monografia sobre Basile, Cap. I). Xt Publicado pela primeira vez em 1626, deu origem a Venganra de la lengua espaiota contra el autor det (Cuento de los cuentos {Vinganga da lingua espanhola contra 0 autor do Conto dos contos] de LAURE- 3357 © Conto dos Contos LES (Huesca, 1629). O titulo escolhido por Quevedo nao teria sentido, se no se referisse & cbra de Basile, na qual hé um claro sentido e que Quevedo precisou se referir somente no aspecto de uma coletanea de palavrase frases vulgares, como aquela que preparcu para a lingua espanhola, XI" Este dito toscano de Nerucci est em IMBRIANI, NNovellaia florentine [Navelas florentinas| (Livor- 0) Pe. 3" VITTORIO IMBRIANI, I! gran Basile [O grande Basile no Giornale napoltiano di losofiae letere oral aapolitano de filosofiae letras] de 1875, *¥ Para as notas, fui auxiliado pelos dicionérios napolitanos de Galiani, de Rocco (infelizmente nio impresso totalmente) e de D’Ambra,e pelas notas de Licbrecht a sua tradugao e pelos acréscimos que le fez nos suplementos a Dunlop; mas a maior parte precisei fazer por mim mesmo, e me parece ter deixade pouco ou nada que se possa dizer que nao esteja esclarecido.

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