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® Giambattista Basile ™ Tract op nzpoltane roi de Francisco Degani O Conte dos Contos AS TRES CIDRAS ENTRETENIMENTO NONO DA QUINTA JORNADA Cenzullo néo quer esposa, mas cortando um dedo sobre uma ricota, deseja-a de coloragdo branca e vermelha como feita de ricotae sangue, e por isso caminka peregrino pelo mundo, e na ilha das trés fadas recebe trés cidras, cortando uma delas encontra uma bela fada conforme deseja seu coragdo, mas tendo sido morta por uma escrava, ele pega a negra no lugar da branca, mas descobrindo a trai¢éo, manda matar a escrava, ¢ a fada voltando a viver se torna rainha. do se pode dizer o quanto agradou o conto de Paola.a todos os $n companheiros, mas devendo falar Ciommetela e recebendo o si- inal, disse assim: Disse realmente bem aquele homem sabio: “Nao diga o quanto sabes, nem faga o quanto podes”, pois um e outro traz perigos qué nao se conhe- ce, ruina que nao se espera, como vocés ouvirdo de uma certa escrava, fa- Jando com licenga da senhora princesa, a qual para fazer todo o dano pos- sivel a uma pobre menina causou-lhe tanto mal, que veio a ser ela mesma juiz de sua falta, e se deu a sentenga da pena que merecia. O rei de Torrelonga tinha um filho homem que era seu olho direito, sobre o qual havia posto os fundamentos de toda esperanga, e nao via a hora de the encontrar algum bom partido e ser chamado de vové; mas este principe era tio indiferente e selvagem que, falando-lhe de esposa, sacudia a cabeca e fugia a milhas de distancia. Tanto que o pobre pai, que via o filho rebelde e obstinado, e sua estirpe terminada, ficava mais agas- tado, irritado, aflito e aborrecido do que uma puta que perdeu o cliente, do que um mercador que Ihe faliu 0 representante, do que um camponés que Ihe morreu 0 asno, pois nao o comoviam as lagrimas do pai, nao 0 enterneciam os pedidos dos vassalos, nem o abalavam os conselhos dos homens de bem, que lhe colocavam diante dos olhos o desejo de quem o © Conto dos Contos havia gerado, a necessidade do poyo, o interesse dele mesmo, que coloca- ‘va um ponto final na linhagem do sangue régio, que com uma perfidia de Carella’, com uma obstinagao de mula velha, com uma pele de quatro de dos de espessura na parte mais fina, havia batido o pé, tapado os ouvidose fechado 0 coracao, que em vao poderiam troar as armas. Mas porque costuma acontecer mais em uma hora do que em cem anos, ¢ nao se pode dizer: “Por este caminho no passo”, aconteceu que, estan- do um dia todos juntos 4 mesa, querendo o principe cortar uma ricota ao meio enquanto olhava os passaros que passavam, desgracadamente fez um corte no dedo, de modo que, caindo duas gotas de sangue na ricota, fizeram uma mistura de cores tao bela e graciosa que, ou por castigo de cupido, que esperava o momento, ou vontade do céu, para consolar aquele homem de bem seu pai, nao era tanto molestado pela hérnia quanto era atormentado por esse potro selvagem, veio-lhe o capricho de encontrar uma mulher tao branca e vermelha como era aquela ricota tingida por seu sangue. E disse ao pai: “Meu senhor, seu eu nao tiver uma mulher com esta coloraco, estou perdido; nunca urna mulher mexeu com meu sangue e agora desejo uma mulher como meu sangue, Por isso resolva-se, se me quer sio e vivo, a me dar meios para ir por este mundo buscando uma beleza que se compare a esta ricota, de outro modo terminarei a corridae cairei em desgraca”. Ao ouvir essa bestial resolucdo, a casa caiu para o rei e ele ficou petrifi- cado, uma cor entrava e outra saia; e quando voltou a si e péde falar, disse: “Meu filho, entranha desta alma, pupila deste corago, sustento da minha velhice, que vertigem o atacou? Saiu do juizo? Perdeu a cabega? Ou as, ou seis*. vocé nao queria esposa para me privar de herdeiro, e agora teve a ideia de me expulsar deste mundo? Aonde, aonde vocé quer ir errante e vagabundo consumindo a vida, e deixar a sua casa, a sua asa, o seu fogao- zinho, o seu peidinho? Vocé nao sabe em quanto sofrimento, em quan- tos perigos se mete quem viaja? Deixe passar o capricho, meu filho, me | Esta expresso, que se encontratambém em outros eseritores dialetais, deve aludir a alguma histéria ou caso popular. ? Referéncia 20 jogo de dados: ou tudo ou nada. © Conto dos Contos escute! Nao queira ver esta vida arruinada, esta casa derrubada, este estado desgracado!”. Mas estas e outras palavras entravam por um ouvidoe saiam pelo outro, eram todas langadas ao mar, tanto que o pobre rei, vendo que o filho era uma gralha de campanario}, dando-lhe um bom punhado de es- cudos e dois ou trés servos, permitiu, sentindo sua alma ser arrancada do corpo, e de um balcio do palacio, desfazendo-se em pranto, seguiu-o com os olhos até perdé-lo de vista. Partindo o principe e deixando o pai triste e amargurado, comecou a trotar por campos e bosques, por montes e vales, por planicies e encos- tas, vendo varios paises, tratando com diferentes gentes, e sempre com os olhos abertos para ver se encontrava o alvo de seu desejo, tanto que ao cabo de quatro meses chegou a uma marina da Franga; ali deixou os servos no hospital com dores nos pés, embarcou num pequeno navio ge- novés e tocou para o estreito de Gibraltar, la pegou um navio maior e foi paraa india, sempre buscando de reino em reino, de provincia em provin- cia, de terra em terra, de estrada em estrada, de casa em casa, de barracoem barraco, se podia se deparar com o original preciso da bela imagem que tinha pintada no coracio. E tanto mexeu as pernas e virou os pés até que chegou a ilha das ogras, onde, langando a ancora e desembarcando, encontrou uma velha velha, que era seca seca e tinha uma cara feia feia, contando A velha a causa que 0 havia arrastado aquele lugar, ela ficou fora de si ao ouvir esse belo capri- cho e a ¢aprichosa quimera do principe, e os sofrimentos e riscos passa- dos para satisfazé-lo, e lhe disse: “Meu filho, fuja, pois se o descobrem mi- nhas trés filhas, que sio o matadouro de carne humana, vocé nio ira valer trés cavalos*, porque meio vivo e meio assado the servira de esquife uma panela e sepultura um ventre. Mas tenha pés de lebre, pois mais adiante encontrar sua sorte!”. Ouvindo isso, o principe, todo assustado, gelado, aterrorizado e espan- tado, pds o rabo entre as pernas, e sem nem dizer “Me despeco”, comecou a gastar sapato, até que chegou em outro pais, onde encontrou outravelha 3 Diz-se de alguém que finge no ouvir. iii alii ease © Conte dos Contos pior do que a primeira, a qual contando de fio a pavio o acontecido, ela também lhe disse: “Caia fora logo daqui, se nao quiser servir de meren- da para as ogrinhas minhas filhas, mas corra que € noite, um pouco mais adiante encontrara sua sorte”. Ouvindo isso, 0 pobre principe comegou a correr como um cao com bexigas na cauda, e tanto caminhou que encontrou outra velha, a qual es- tava sentada numa roda com um cesto enfiado no bra¢o, cheio de doci- nhos e confeitos, que dava de comer a um punhado de asnos, que depois iam pular na beira de um rio, dando coices em alguns pobres cisnes. O principe, chegando a presenga dessa velha e fazendo mil salamaleques, contou-lhe a historia de sua peregrinacao, e a velha consolando-o com boas palavras deu-lhe uma refeicao de lamber os dedos, ¢ ao se levantar da mesa entregou-lhe trés cidras, que pareciam recém colhidas da arvore, e também uma bela faca, dizendo: “Agora mesmo vocé pode voltar a Italia, pois o fuso esta cheio* e encontrou o que buscava; portanto, v4, e quando estiver perto do seu reino, na primeira fonte que encontrar, corte uma cidra, que saird uma fada, dizendo: “Dé-me de beber!”; e vocé seja rapido com a gua, senio ela evaporard como mercirio; ¢ se nao for rapido com a segunda fada, abra 0 olho e seja solicito com a terceira, para nao escapar, dando-lhe logo de beber, e vocé ter uma esposa segundo o seu coracao. O principe, todo contente, beijou cem vezes aquela mao peluda, que parecia a garupa de um porco-espinho, e despedindo-se partiu daquele pais, e chegando a marina navegou até as colunas de Hercules’, entrou no nosso mar e depois de mil borrascas ¢ riscos aportou a um dia de dis- tancia de seu reino. Chegando a um belo bosquezinho, onde as sombras cobriam os prados para que nao fossem vistos pelo sol, desmontou numa fonte que com sua lingua de cristal chamava as pessoas com assobios para refrescarem a boca; sentando-se al . Sobre um tapete estriado feito de ervas e flores, tirou a faca da bainha e comegou a cortar a primeira ci- dra. Bis que surgiu como um lampejo uma belissima jovem branca como 4 Ouseja, encontrou seu objetivo, 50 Estreito de Gibraltar. © Conto dos Contos leite e nata e vermelha como um cacho de morangos, dizendo: “Dé-me de beber”. O principe ficou t4o espantado, de boca aberta e abismado com a beleza da fada, que nio foi rapido para lhe dar agua, tanto que apa- recer e desaparecer foi tudo ao mesmo tempo; se isso foi uma paulada na cabeca do principe, imaginem aquele que, desejando uma grande coisa, tendo-a nas mos, a perde. Mas cortando a segunda cidra aconteceu o mesmo, e foi a segunda pau- lada na cabega, tanto que, fazendo dos olhos dois riachos, langava lagrimas lado a lado, frente a frente, jato a jato, cara a cara ¢ pingo a pingo coma fonte, nio perdendo em nada para ela, e lamentando-se dizia: “Como sou desgragado, caramba! Duas vezes a deixei escapar, como se tivesse artrite nas maos, que eu fique paralisado, me mexo como uma pedra quando de- veria correr como um galgo! Fiz bobagem! Acorde. pobre homem, ainda tem outra, na terceira o rei vencel Esta faca vai me dar a fada ou fazer uma coisa que fede”, Assim dizendo, corta a terceira cidra, sai a terceira fada, que diz, como as outras,“Dé-me de beber”, e o principe logo Ihe oferece Agua, e eis que tem nas maos uma jovem tenra e branca como uma coalhada, estriada de ver- melho parecendo um presunto do Abruzzo ou um salsichao de Nola, coisa unica no mundo, beleza sem par, brancura fora de medida, a maior das gracas. Em seus cabelos havia chovido o ouro de fiipiter, com o qual Cupi- do fazia flechas para traspassar os coragées; no rosto, Cupido fizera uma pintura para alguma alma inocente fosse dependurada na forca do desejo; nos olhos, o sol acendera duas luminarias, para que 0 peito de quem avisse pegasse fogo e saissem lampejos ¢ triquetraques de suspiros; nos labios, Vénus passara com suas regras, dando cor a rosa para picar com os espi- nhos mil almas enamoradas; no peito, Juno havia espremido os seios para amamentar o desejo dos homens; enfim, era tao bela da cabega aos pés que nao havia coisa mais linda, tanto que o principe nao sabia o que lhe acontecera, e olhava fora de si tio belo parto de uma cidra, tio belo corte de mulher nascido do corte de uma fruta, e dizia para si mesmo: “Vocé esta dormindo ou acordado, Cenzullo? Sua vista foi enfeitigada? Ou vocé co- locou os olhos ao contrario? Que coisa branca saiu de uma casca amarela! Que pasta doce da acidez de uma cidra! Que belo fruto de uma semente!”. — FRIST oT O Conte dos Contos, Por fim, percebendo que nao era sonho e que a coisa era verdadeira, abracou a fada dando-lhe centenas e centenas de beijinhos; e depois de mil palavras amorosas disso € daquilo que disseram um para 0 outro, pa- lavras que como uma melodia tinham como contraponto beijos acucara- dos, disse o principe: “Nao quero, alma minha, leva-la ao pais de meu pai sem pompas dignas desta bela pessoa esem a companhia que merece uma rainha; por isso, suba neste carvalho, onde parece que pela nossa necessi- dade a natureza tenha feito uma cavidade em forma de aposento, e espere a minha volta, pois vou voando, e antes que seque este cuspe venho para leva-la vestida e acompanhada como se deve ao meu reino”; e depois das devidas ceriménias, partiu. Nesse meio tempo, uma escrava negra foi mandada pela patroa comum jarro pegar agua naquela fonte, e vendo na agua a imagem da fada, acredi- tando ser ela mesma, toda maravilhada comegou a dizer: “Que vejo, Lucia desafortunada estar assim tio linda? E patroa mandar agua pegar, e ser coisa de aguentar, 6 Lucia desgracada!®’; dizendo isso, quebrou o jarro e voltou para casa, ¢ tendo a patroa perguntado porque havia feito-esse mau servigo, respondeu: “Fui 4 fonte, jarro quebrou na pedra”. A patroa, engolindo essa lorota, no dia seguinte deu-Ihe uma bela bar- rica para que fosse encher de agua; a escrava, voltando a fonte e vendo de novo aparecer aquela beleza dentro da agua, disse com um grande suspiro: “Mim nao ser escrava feiosa, mim nao ser negra, bunda grande grande, porque ser tao linda assim e levar na fonte barrica”; e dizendo isso, tifete outa vez, e arrebentando a barrica a fez em mil pedagos; voltando para casa, resmungando disse para a patroa: “Asno passou, barrica bateu, no chao caiu e tudo despedagado”. Ao ouvir isso, a pobre patroa nao péde mais manter a calma, e pegando um cabo de vassoura bateu tanto nela que ela sentiu por muitos dias; e pegando um odre, disse: “Corra, apresse-se, escrava molambenta, perna de grilo”, rabo furado! Corra, sem delongas nem genealogias, e me traga isto cheio de agua, sendo a pisoteio como um polvo e dou uma surra tio grande que-vocé vai se lembrar de mim!”. © Sobre. linguagem das escravas ver “Introducio™. |, nota 21. 7 Ver“Introduedo™, I, nota 18. © Conto dos Contas Aescrava saiu em corrida desabalada, pois experimentarao raioe tinha medo do trovao, e enchendo 0 odre voltou a olhar a bela imagem, e disse. “Mim estar perdida se agua pegar; melhor minha Giorgia casar; nao é be- leza esta de morrer irritada e servir patroa zangada”. Dizendo isso, pegou um alfinete de cabelo que trazia na cabeca e comecou a furar 0 odre, que parecia um jardim de praca com cem pequenas fontes; ao ver isso, a fada comegoua rir as gargalhadas. fa : “Vocé estar causa de me bater, mas no preo- Eela, que era a mae da cortesia, contou tudo o que tinha no corpo sem deixar nada do que acontecera com o principe, o qual esperava de hora em hora A escrava, ouvindo isso, voltou os olhos e percebeu o esconderi lando para si mesma, diss cupe’, e depois disse para a fada: “Que faz ai em cima, bela menina?”. ede momento em momento com roupas e companhia para ir ao reino de seu pai casar-se com ele. Ouvindo isso, a escrava envaidecida, pensou em ganhar esta primeira mio, e respondeu 4 fada: “Por que esperar marido, deixar subir e pentear cabeca ¢ fazer mais bela”. E a fada disse: “Seja bem-vinda conioo primeira de maio*”; e subindo a escrava, a fada Ihe estendeu a mio muito branca, que segurada por aqueles gravetos negros parecia um espelho de cristal emoldurado de ébano; comegando a arrumar os cabelos da fada, a escrava enfiou-lhe o alfinete na nuca’, mas a fada, sentindo-se picar, gritou: “Pom- ba, pomba!”, e transformando-se numa pombinha levantou voo e fugiu. A escrava despiu-se, fez uma trouxa dos trapos e farrapos que vestia e jogou auma milha de distancia, e ficando como a mie a fez em cima da arvore, parecia uma estatua de azeviche dentro de uma casa de esmeralda. Nesse meio tempo, o principe voltou com uma grande cavalgada e en- contrando um pote de caviar onde havia deixado uma tigela de leite, ficou por um tempo embasbacado; ao final disse:“Quem fez esse rabisco de tinta no papel real onde eu pensava de escrever meus dias mais felizes? Quem vestiu de luto aquela casa caiada de fresco onde eu acreditava gozar todos ® Ver “Introdugao", I, nota 12. 9 Anuea era considerada a sede da memoria. j i i © Conte dos Contos os meus prazeres? Quem me fez encontrar essa pedra de toque onde eu ha- via deixado uma mina de prata para me fazer rico e feliz?”. Mas a escrava esperta vendo a maravilha do principe, disse: “Nao maravelhar, principa minha, que estou encantada, tenho cara branca, tenho bunda negra". O principe, pobre homem, porque o mal nao tinha remédio, botando chifres como o boi engoliu essa pilula, e fazendo descer a negra vestiu-a da cabega aos pés arrumando-a e enfeitando-a toda; e com um no na gargan- ta, irritado, enfadado e aborrecido pegou o caminho de seu pais, ondeo rei ea rainha, que haviam saido seis milhas de suas terras para encontré-los, receberam-nos com o prazer com que recebe o prisioneiro a intimacio do decreto de suspendatur®, vendo a bela escolha feita pelo filho louco, que andara tanto para encontrar uma pombinha branca, e trouxera uma gra- Tha negra; todavia, nao podendo fazer diferente, renunciaram ao trono pelos noivos, puseram a coroa de ouro num rosto de carvao. Ora, enquanto se preparavam festas espantosas e banquetes atordo- antes, e 0 cozinheiros depenavam patos, degolavam leitées, esfolavam cabritos, temperavam assados, escumavam molhos, amassavam alménde- gas, recheavam capées e faziam mil outras coisas gostosas, veio a janela da cozinha uma bela pombinha, dizendo: “Cozinheiro da cozinha, o que faz 0 rei coma sarracena?”; do que 0 cozinheiro fez pouco caso, Mas voltando a pombinha a segunda ea terceira vez a fazer o mesmo, correu para contar a mesa como uma coisa maravilhosa; e a senhora, ouvindo essa musica, deu ordem para que assim que fosse agarrada a pombinha se fizesse um grati- nado. Por isso, o cozinheiro tanto fez que a pegou, e obedecendo as ordens da Cuccorognamma’ escaldou-a para depenar e jogou a 4gua e as penas num vaso que havia em seu balcio. Nao se passaram trés dias e ali surgiu um belo pé de cidra que cresceu em quatro tempos; o rei, chegando a uma janela que dava para aquele lado, viu uma arvore que ainda nao tinhavisto e, chamando 0 cozinheiro, perguntou quando e por quem fora plantada. E ouvindo a historia de mestre Cocchiarone, suspeitou da coisa; assim, or- denou, sob pena de vida, que nao se tocasse na arvore e que fosse cuidada com toda a diligéncia. Ao cabo de poucos dias despontaram trés belissi- '© Ouscja,enforcamento. 4 Apelido da escrava, de significado incerto. O Conto dos Contos mas cidras iguais as que Ihe dera a ogra, quando cresceram, mandou-as colher e se fechou num aposento com uma grande taca de agua, e coma mesma faca, que sempre levava consigo, comecou a cortar; acontecendo © mesmo com a primeira e a segunda fada, como da outra vez acontecera, por Ultimo cortou a terceira cidra, e dando de beber a fada que dela sain, como ela pedira, apareceu a mesma jovem que deixara em cima da arvore, da qual escutou todo o mal feito pela escrava. Ora, quem pode contar a menor parte do juibilo que sentiu o rei com essa boa sorte? Quem pode contar a alegria, a exultagio, o regozijo, a sa- tisfagao que teve? Parecia estar nadando em dogura, nao cabia em si, an- dava embevecido e em éxtase. Abragando-a, fé-la vestir-se com elegancia, pegando-a pela mio levou-a ao salio onde estavam todos os cortesaos e a gente da terra para participar das festas; chamando um por um, lhes disse: “Digam-me: quem fizesse mal a esta bela senhora, que pena merece- ria?”. Ao que alguns respondiam que mereceria um colar dacorda, outros de um bracelete de rochas, uns de um contraponto com martelo na pele do est6mago, um cha de escaménea”, um lastro de pedras, uns uma coisa, outros outra. Por fim, chamando a rainha negra e fazendo-lhe a mesina pergunta, ela respondeu: “Merece queimar e pé de cima do castelo jogar”. Ouvindo isso, orei lhe disse: “Vocé escreveu 0 castigo com a propria pena; vocé deucom 0 machado no pé; vocé fabricou o cepo, amolou a faca, temperou o vene- no, porque ninguém fez mais mal do que vocé cadela eachorra, maldita! Sabia que esta ¢ aquela bela jovem que vocé picou com o alfinete? Sabia que esta é a bela pombinha que vocé fez degolar e cozinhar na panela? O que vocé acha, Cecca, desse pangaré? Va, que é sua vez! Vocé fez uma bela merda: quem faz o mal, o mal merece, quem faz fogo com folhas a comida sai com gosto de fumagal”. Dizendo isso, mandou pegé-la e colocar viva numa grande fogueira de lenha, e espalhando as cinzasao vento do alto do castelo, tornou verdadeiro o dito: néo ande descalgo quem semeia espinhos. 1 planta usada como purgante. | | ‘ | es é CONCLUSAO DO CONTO DOS CONTOS PARA FECHAMENTO DA INTRODUCAO DOS ENTRETENIMEN TOS, QUE VALE COMO ENTRETENIMENTO X DA QUINTA JORNADA Zoza conta u histéria de seus sofrimentos; a escrava, que sente tocar na tecla, tenta corté-Ia para que ndo termine 0 conto; mas apesar disso, o principe quer ouvir, e descobrindo a traigiio da esposa a faz morrer gravida e toma Zoza como esposa. i dos ouviram de orelha em pé o conto de Ciommetella,e parte lou- L vou asabedoria com que havia contado, parte murmurou, taxando- -ade pouco via falar publicamente dos vitupérios de uma outra semelhante, di que havia se colocado em grande risco de arruinar 0 jogo. Mas Lucia se comportou realmente como Lucia’, retorcendo-se enquanto 0 corito era 20, que na presenga de uma princesa eserava nao de- | iam I | narrado, e da inquietagao de seu corpo percebeu-se a borrasca que tinha | dentro do coracao, tendo visto no conto de outra escrava o retrato preciso I de seus desenganos, e logo tratou de acabar com a discussdo. Mas em parte porque nao podia dispensar os contos, tal o fogo que lhe havia posto no corpo a boneca, como alguém picado por tarantula nao pode dispensar a | muisica’, e em parte para ndo deixar Tadeo suspeitar, engoliu essa gema de { ovo pensando fazer a seu tempo ¢ lugar uma boa vinganca. Mas Tadeo, cujo passatempo caira em suas gracas, acenou para Zoza Para que contasse o seu; ela, com um cumprimento, diss "A verdade, | senhor principe, sempre foi a mae do édio, e por isso nio gostaria de | 1 Ou seja, dangoua danga de Lucia Canazza com as devidas contorcces. ? Acreditava-se que as pessoas picadas por tardntulas deveriam executar uma danca para se livrar do Yenteno, dai o nome da danea tipica napolitana “Tarantella” © Conte dos Contos obedecer a sua ordem ofendendo alguns que estdo a nossa volta, porque nao estando habituada a fingir invencées e a tecer fabulas, sou obrigada por natureza e por desgraca a dizer a verdade; e se bem diz 0 provérbio: “mija claro e faz uma figa para o médico’, mesmo sabendo que a verdade nao é bem recebida em presenga dos principes, eu temo dizer algo que talvez o faga se zangar’ “Diga o que quiser ~ respondeu Tadeo ~, pois dessa bela boca so po- dem sair coisas acucaradas e doces”. Estas palavras foram punhaladas no cora¢ao da escrava, € teria mostrado sinais se 0 rosto negro, assim como 0 branco, fosse o livro da alma, e teria dado um dedo da mao para ficar sem aquele conto, pois seu coragdo se tornara mais negro do que o rosto e, temendo que o conto anterior tivesse sido primeiro antincio e depois castigo, pela manha previu o mau dia. Enquanto isso, Zoza comecou a encantar os presentes com a dogura de suas palavras, contando do inicio ao fim todas as suas afligGes, comegando exatamente por sua natural melancolia, o infeliz pressagio do que passa- ria, carregando desde o berco a amarga raiz de todos os infortiinios que coma chave de um riso forgado a forcaram a tantas lagrimas. Depois con- tinuou com a maldi¢ao da velha, sua peregrinacao com tantas angustias, a chegada a fonte, o pranto desesperado e 0 sono traidor causa de sua ruina. A escrava, ouvindo-a seguir adiante e vendo o barco mal encaminha- do, gritou: “Fique quieta, cale-se, sendo socos no ventre dar e Giorgetiello esmagar’. Tadeo, que havia descoberto tudo, nao teve mais calma, mas, tirando a mascara e jogando as armas no chio, disse: “Deixe-a contar até © fim, endo faca mais essas jogadas de Giorgetiello e Giorgione, pois afi- nal vocé nao me encontrou sozinho, e se me sobe a raiva seria melhor se lhe pegasse uma roda de carroga!”. E ordenando a Zoza para continuar a despeito da esposa, ela, que sé esperava um sinal, continuou com a anfora quebrada, o engano da escrava para lhe tirar das maos essa boa sorte, e dizendo isso fugiu chorando tanto que nao houve pessoa presente que nio ficasse emocionada. ‘Tadeo, que das lagrimas de Zoza e do siléncio da escrava, que estava muda, compreendeu e pescou a verdade do fato, passou-lhe um sabao que © Conto dos Contos ndo se passaria num asno, fazendo-a confessar da propria boca a traicao, ¢ logo deu ordem para que fosse enterrada viva s6 com a cabeca de fora, para que sua morte fosse mais sofrida. E abracando Zoza fez com que ela fosse homenageada como princesa e sua esposa, mandando avisar o rei de Valefelpudo para que viesse para as festas. E com estas mipcias terminou a grandeza da escrava e o entretenimento dos contos, fagam bom proveito e saiide, pois eu-vou embora passo a passo com uma colherzinha de mel CONCLUSAO \ | {

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