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CARL DAHLHAUS HANS HEINRICH EGGEBRECHT ueé a musica? EB texto@crafra “Tielo Orginal Wasi Maat? ‘Auores: Cal Daas / Hans Heinsch Eggebrecht “radio: Artur Morto Creme Celina Lak Pagiagie Vitor Pedro Edigéo original: © 4th Edition Copyright 2001 by Flosian Noetzel GmbH, ‘Verlag der Heinsichshofen-Bicher, Wilhelmshaven, Germany “Todos os divetos reservados para lingua portuguesa para Ecligoes Testo & Grafia, Lda. ‘Avenida Oscar Monteiro Torres .° 55, 2. Ea, 1000-217 Lisboa “Hlefone: 21 797 70 66 Bax 21797 81 30 E-mail: texo-grfa@rexo-grafia.pt vworteto-grafa pe Impresso e acabamento: Papelmunde, SMG, Lda. 1.* edigio, Abril de 2009 ISBN: 978-989-95689-4.5, Depésito Legal n.° 291432/09 sta abra ese protepida pela lei. Néo pode ser reproduxids no todo ou em parte, qualquer que seja © modo utlizado, sem a autorizagio do Editor Qualquer crasgressio @ lei do Direico de Autor seré passivel de procedimento judicial, em torno da idcia de conhecimento articulado com as necessidades de aquisicéo de uma cultura geral consistente que se projecta a colecrio “Biblioteca Universal” ‘Tendo como base de trabalho uma selecgio criteriosa de autores e temas — dos quais se destacardo as areas das Ciéncias Sociais Humanas —, pretende-se que a coleccio esteja aberta ‘a todos os ramos de saber, sejam de natureza filoséfica, técnica, cicntifica ou artistica, APRESENTACAO AO LEITOR x4 dificil encontrar guias mais adequados e competentes para o universo mistcrioso, ¢ ao mesmo tempo téo fami- liar, da musica do que os dois mestres responsévels pelo texto presente. Sio, de facto, dois dos mais insignes musicélogos do século xx. Embora ambos jé falecidos, 0 seu lugar na estética imusical esté asscgurado pelas numerosas obras que deixaram € pelo intenso trabalho de investigacio que da arte dos sons nos legaram. Estas breves paginas, agora propostas na nossa lingua, deixam. transluzit alguns dos temas, obsess6es e niicleos da sua pesquisa da sua interpretacéo da arte musical. Néo se trata apenas de opinides esparsas de cardcter histérico, mas sobretudo de um julzo estético multiforme e polarizado em que se manifesta, por tum lado, o seu profundo conhecimento (aqui sé em breves apon- tamentos) do devi temporal da misica europeia e, por outro, também a sua grande familiaridade com 0 pensamento filossfico, que os dois sabem explorar e aproveitar na fundamentagéo da sua concepgio da arte dos sons. — Carl Dablhaus (1928-1989), apesar da sua satide frégil, desenvolveu uma actividade intensissima como homem de teatro, historiador da misica (sobretudo dos séculos xax € xx), critico € csteta musical, além de eximio hermeneuta da obra beethoveniana. Caractetiza-o ainda uma cultura vastissima, que ¢ apandgio de muito poucos, uma actividade febril de polimato ¢ de poligrafo {que em nada diminui a profundidade da sua visio estétca. Esta foi, de facto, inovadora e deixou a sua marca sobretudo na segunda etade do século x. Adivinha-se, nos pressupostos do seu trabs Iho teérico, uma certa influéncia hegeliana, a assimilagio da li ‘UBB A MUSICA? adorniana sobre o vinculo entre mtisica e sociedade, mas também a presenga do méodo hermenéutico de H. G. Gadames, que 0 levou a considerar a mtisica como uma componente bésica da vida culeural Os problemas fundamentais da sua inquirigio musicolégica surgem enunciados na obra Prinefpios da historia da mitsica (Grun- dlagen der Musikgechichte, Coldnia 1977). Da actividade global de Carl Dablhaus diz Hermann Danuser: “Os seus estudos sobre estética, que — em ves de um sistema eupra-hiseérico — visam antes © conhecimento da pretensio normativa, sempre limitada no seu valor histérico, dos projectos singulares, reuniu-os ele em dois livros: Estética musical (Musikdstherik, Colénia 1967) Estésica musical do classicismo ¢ do romantismo (Klassische und romantische Musikdsthetik, Laaber 1988). Entrosando o conhecimento his- térico € estético, Dahlhaus, no seu livro Andlie ¢ juizo de valor (Anabse und Werturteil, Mainz 1970), mostrou como os juizos analiticos e normativos se combinam entre si ¢, nas suas andlises das obras, gracas a uma compreensio homogénea da arte da histéria, chegou a exposigées que continuam a ser uma fonte de critétios. O seu trabalho, ao prolongar a tradicio cultural alema no melhor sentido, abriu & musicologia, do ponto de vista histo- riografico e analitico, novos horizantes no final do século xx'.” — Hans Heinrich Eggcbreche (1919-1999), por seu lado, além. ddc eminente pedagogo musical ¢ lexicdgrafo — a ele se deve, entre outros, 0 projecto do Handworterbuch der musikalischen Termino- logie (ainda em curso na Franz Steiner Verlag desde 1972), foi um comentador excepcional da obra de J. S. Bach, a0 qual consagrou varios esctitos. Na arte deste ultimo encontrou, de certo modo, a ideia fundamental da sua abordagem estética: a miisica pode, sem divida, explicar-se mediante a andlise técnica dos seus elementos compositivos (0 plano do ‘sentido)), mas é necessério avangar daf " H. DANUSER, “Carl Dahlaus", in L. FINCHER, hsg,, MGG ~ Die Musik in Geshichee und Gegenwart, Personencel 5, Kassel/Scutgart, Birente- ‘er/Metzer, 2001, col. 266, icc AVRESENTACAO AO LEITOR para a interpretacao do ‘conteddo’ das obras, as quais, no seu corpo material, na sua estrutura formal, na sua intencionalidade, nos seus recursos e efeitos, broram da histéria e estdo imersas na histéria, Por isso, a atitude perante 0 objecto ‘musica’ ¢ a ciéncia a seu respeito pressupéem 0 nexo entre a subjectividade ¢ 0 perene condicionamenco histérico do nosso saber e da nossa vontade de conhecimento. Pode assim dizer-se, sem exagero, que ele oferece a sintese da sua concepeao estética no grande fresca histéricn cansagrada 3 misica europeia, Miisica no Ocidente. Processos ¢ etapas desde a Idade Média 2 actuabidade (Musik im Abendland. Processe und Sta- tionen vom Mittelalter bis zur Gegenwart, Munique 1991). H. Hl. Eggebrecht revela-se aqui sensivel 4 grande tradicSo musical, que nos caracteriza como civilizagao, mas sem idolatria pelo passado generoso em face do devir surpreendente da arte dos sons, nas profundas mutagbes que ela atravessou a0 longo do século xx. Tais séo os dois mestres que introduzem o leitor nesta exigente reflexio sobre a miisica, O discurso nem sempre ¢ fic. Estd cheio de alusées, semeado de elementos subentendidos ou apenas insi- snuados; 0 texto concretiza assim, de facto, 0 seu étimo: apresenta uma urdidura complexa e, por isso, forga a atengéo, requer a con- centragio. Mas oferece também uma recompensa: sai-se dele com ‘uma imagem mais apurada da arte dos sons e, sobretudo, com um desejo de dela se querer saber mais ~ no fundo, a pergunta, que se espraia ao longo destas péginas, nfo recebe uma resposta; é um convite a manté-la viva. Artur Monéo ADVERTENCIA PREVIA convite da Verlag Heinrichshofen para elaborar- mos o volume comemorativo n.° 100 da colecgéo «Taschenbucher zur Musikwissenschaft» [Livros de bolso de musicologia) suscitou em nés a ideia de reflectitmos da seguinte manciza sobre uma questo antiga: escolherfamos uma série de temas e cada um escreveria sobre eles independentemente do outro; sé depois de tudo pronto farfamos uma apresentacéo reciproca dos textos. Este modo — por razées de alternancia -, foi interrompido nos capitulos vi e vit pela forma da continuagio e, no capitulo vu, a favor da forma de didlogo. A deta do nosso ensaio € acercar-nos de uma questi que ainda hoje existe em movimentos separados, mas entre si tematica- mente vinculados, por assim dizer, com uma forca dupla, embora com diferente subjectividade. Ao leitor pode talvezafigurar-se nfo s6 como exigéncia, mas porventura até como estimulo, verificar as diferentes concepcbes dos temas € 0 seu distinto tratamento, ponderé-las entre si e — se possivel — pé-las igualmente em relagio ‘umas com as outras Todo o leitor dos nossos textos, antes de os ler, jé sabe o que €a imisica— embora ainda nao o tenha dito e jamais o vena a dizer a si mesmo ou a outros. Durante aleitura dos textos, nao deixaré de Ihe ocorrer & mente. Compara o que pot nés foi escrito com o set saber. E diz sim ou nao, escreve interiormente ou até nas margens pontos de exclamacio ¢ de interrogacio, torna-se talvez maléfico afirma que esquecemos o essencial. Se assim for, jé nao seria de todo va a nossa tarefa, a tarefa de incitar o leitor a reflecir sobre ‘a miisica (— nfo sé no pormenor, mas sobre «a» miisica, € se ela em geral existe -) ¢ a tornar-se assim, antes de mais, consciente do que acerca dela jd sabe. n ‘UE E A MUSICA? C. DAHLHAUS / HH. EGGEBRECHT. Pode também dizer «Ninguém sabe o que ¢ misicay, ou ainda «Cada qual o sabe de outro modo e, em tiltima andlise, s6 para sin. Se 0 soubéssemos de modo idéntico ¢ de uma vez por todas — que aconteceria entio? Carl Dahbhaus Hans Heinrich Eggebrecht Berlim e Friburgo Maio 1985 © 2 EXISTE «A» MUSICA? CARL DAHLHAUS ideia de uma histéria universal da. misica — ideia subjacente a um plano da UNESCO do qual, ape- sar das crescentes dificuldades intcrnas ¢ externas, indo nos conseguimos desprender ~ est4 duplamente lastrada pela indeterminagio do conceito «miisicay e pelas implicagbes ideol6- gicas do conceito de «historia universal». E uma dificuldade eset intimamente ligada & outra: o problema de se «a» miisica ~ no singular — existe nem sequer é susceptivel de uma formulacao precisa, sem a representagdo de se ¢ em que sentido a» histéria consticui uma realidade ou uma simples teia de pensamentos, em todo 0 aso, nfo de um modo que deixe parecer como previsivel uma solucio. ‘A convencéo, segundo a qual é incompativel na lingua alema formar um plural para a palavra «mdsica», tem sido, sempre com maior frequéncia, infringida desde hé alguns anos a esta parte sob a pressao das dificuldades que brotam da fixago no singular, sem que o mal-estar estilistico, a0 mesmo tempo também real, esteja ja remediado. As diferensas sociais, étnicas € histbricas ~ desde que se perdeu ou, pelo menos, se atenuou a ingenuidade com que, ainda no século xnx, se consideravam os elementos musicais estranhos ‘ou como subdesenvolvides ou se assimilavam inconscientemente ‘a0 que era proprio — revelam-se tio grandes ¢ agravadas que nos sentimos forcados a diferenciar 0 conceito de musica. Os problemas terminol6gicos, na diferenca estético-social que, como dicotomia de musica E [erudica, séria] e miisica L fligeira] constitui o tema de uma controvérsia conduzida desde hi décadas sempre com os mesmos argumentos, com concepg6es e decis6es que intervém de imediato na préxis, encontram-se téo intima- mente misturados que surgem até como 0 seu reflexo tedrico. A polémica em torno das funcées sociais e dos critérios da musica E ‘eda musica L nao seria possivel se os fendmenos sonoros, que pela ctiquetagem sio separados uns dos outros e mantides 2 distancia, B 'UE B A MUSICA? rio estivessem, por outro lado, entre si entrosados, gragas 20 conceito genético de «mtisica». Que uma cangao ¢ uma com- posigao dodecafénica pertengam & mesma categoria de nenhum modo é, porém, evidente, como revela uma comparagéo com ‘outros dominios. Ninguém designa um jornal como «literatura», embora 0 uso linguistico insdlito, j4 que um jornal é linguagem impressa, nao seja etimologicamente absurdo, (O conceito lin- guistico geral para jornais e poemas, o termo «lugares textuaisr, fio penetrou na consciéncia geral.) E a convengéo linguistica é tanto findamento como consequéncia do estado de coisas de que no é habitual comparar entre si as fungGes sociaise os ext tos estéticos de jornais ¢ poemas. Pelo contrétio, as composigobes dodecafénicas estéo expostas & exigéncia de se confrontarem, nas estatisticas dos «indices de audicéo» da rédio ~ em contagens de que se tiram consequéncias préticas - com produtos da indistria musical de entretenimento. A «sedusio da linguagem» (Ludwig ‘Wirrgenstein) ~ gragas a0 precirio e discutivel singular «a miisica» = impede uma diferenciagéo que, na linguagem impressa, € evi- dente (deveria, no entanto, tomnar-se suspeita de ideologia por meio da expresséo «lugares textuais» ~ expresséo que poderia, sem vida, afigurar-se neutra, mas por detris da qual se encontra uma «ideologia contréria»: a da comparatividade em vez da inco- ‘mensurabilidade). A desigual categorizagio de linguagem e de Iiisica pode explicar-se de um modo pragmético: na misica nao hd nenbuma linguagem corrente de modo que a cangao ¢ « wut, posicao dodecafénica, enquanto produgées igualmente subtraidas a realidade quotidiana, sejam sem querer subsumidas no mesmo conceito, Todavia, da fundamentacio psicassocial e histérica da convensao de falar indiferentemente uda> miisica 56 a custo se pode derivar uma justificaglo estética; o plural, embora persistam ainda as hesitagées, estaria mais proximo da realidade. Se, pois, as consequéncias que nascem do singular colectivo interferem de imediato com grande alcance na realidade social ¢ ‘musical — uma realidade definida pela dicotomia entre miisica E muisica L, em que a palavra neutralizadora umtsica» representa um problema mais gravoso do que as siglas duvidosas «E» e «L», entio as consequéncias problemdticas da tendéncia para aplanar as diferengas mediante um conceito universal ¢ unitétio de mtsica, nas diferengas éenicas ou regionais, evelam-se sobretudo no plano 4 | tedrico, ¢ menos no pritico. Fenémenos sonotos, pata os quais| tum observador europeu tem jé pronta a palavra «miisicax ~ uma palavra para a qual nao raro falta um equivalente linguistico nas culeuras extra-europeias ~ ficam alienados do seu sentido origi- nétio em virtude de serem arrancados a0 seu contexto vextramu- sical». E, romado em sentido estrito, 0 contexto em que eles se encontram enredados néo & nem «musical» nem cextramusical: tuma expresséo di ao conceito de musica, que é de proveniéncia curopeia, uma tal extenséo que, pot ultimo, jé néo diz respeito 2 realidade curopcia; a outre prossup6e um conecico de mizica, ‘nfo s6 europeu, mas europe modero, que provém em estrita cunhagem sé do séc. xvit e desfigura grosseiramente a realidade musical extra-europeia ~ uma realidade nao sb do estado de coisas sonoro, mas sobretudo da consciéncia que dele se tem. Se, pois, a categoria «mtsica», segundo cujos critérios se iso- lam de complexos processos culturais deerminadas caractefsticas como sespecificamente musicais»,é uma abstracedo que em mui- tas culturas se levou a cabo, noutras ndo, encontramo-nos entio perante a infliz lternativa ou de reinterpretare alargar 0 conceito europe de miisica até A alienagéo quanto A sua origem, ou de excluir do conceit de misica as produgées sonoras de muitas culurasexra-eropes. Uma dei sta do pono de wit da historia das ideias, preciria, ea outra provocaria a censura de euro- centrismo porque 0s Africanos, embora sublinhem a «ndgritudes da sua cultuta, nao gostariam de renunciar & palavea prestigioss de «miisica». E uma safda do dilema s6 emerge quando a proble- mitica etnolégica se relaciona com a histérica, por conseguinte, quando se tenta resolver as dificuldades, amontoando-as. ‘As diferencas entre as épocas da historia musical europeia, por radicais que tenham sido, deixaram intacta no essencial a unidade interna do conceito de musica, enquanto se manceve determinance a tadigio antiga: uma tradigio cuja parte essencial era 0 principio de um sistema tonal, imutavelmente subjacente aos diferentes esti- los musicais, constituido por relag6es directase indirectas de con- sonincia. (O prinefpio nio € especificamente eutopeu, mas isso nada altera o facto de que foi o momento essencial da continui- dade hist6rica da Antiguidade, da Idade Média e da era moderna: 0 especifico ~ contra um preconceito a que induz 0 método de determinacio dos limites — nem sempre é 0 essencial.) 15 'UE £ A MUSICA? CARL DAHLHAUS $8 a misica clectrénica © a xcomposigéo de sons» inspirada ppor John Cage suscitaram o problema de se fendmenos sonoros ue negam o sistema tonal serio ainda misica, no sentido da tradi¢éo europeia. A resposta segundo a qual a miisica electrSnica continua a tradigao de cuja hist6ria problemética provém era, sem diivida, de sapor: a ideia de wcompor» timbres (organizar sons sinusoidais ou articulé-los com sons brancos) pode interpretar-se como manifestagao extrema da tendéncia para a racionalizacio, em que Max Weber julgou reconhecer a lei evolutiva da misica ccuropeia: de uma tendéncia para o dominia da natureza, para 0 poder ordenador do sujeito que compée sobre 0 material sonoro, do «espirito» sobre o «material susceptivel de espiriro» (Eduard Hanslick). E ao aceitar originariamente a orientacéo pelos axiomas seriais, suscitou-se uma imediata referéncia ao estédio justamente alcangado de desenvolvimento da composisao vanguardista, racas qual a misica clectrdnica se tornou, de modo indubitével, um afazer de composicores, € nao de fisicos e engenheitos, por con- seguinte, caiu sob 0 conceito de miisica, enquanto por ela — no sentido da era moderna europeia ~ se entende uma categoria his- toricamente mutivel, cunhada e incessantemente refundida pela obra dos compositores. Se, apesar das divergéncias sociais, étnicas e histéricas dificil mente superiveis que parecem forgar uma ciséo do conceito de miisica, nao se abandonar inteiramente a ideia que o singular colectivo «a miisica» expresea ou deixa pressentir, é natural, numa stentativa salvadora» de dela sai, que 2 ideia da miisica «inicar se baseie em ‘ltima instincia na concepgio hegeliana da hist6- ia universal: uma histéria universal que comesou no Préximo Oriente ¢, através da Grécia e de Roma, se deslocou até aos povos rominicos ¢ germénicos. Censurar a Hegel 0 eurocentrismo, de que 2 sua concepeio indubitavelmente softe, € téo ocioso como ~ apés século e meio ~ nada custa. Mais essencial do que a defi- cigncia manifesta é, todavia, 0 facto menos not6rio de que a ideia antropolégica, sustentada pela concepeio filoséfico-histérica de Hegel, de nenhum modo envelheceu: a ideia de que uma cultura ~e também uma cultura musical — de épocas anteriores e de outras partes do mundo «pertence & histéria universal», na medida em que participa no desenvolvimento que, a volta de 1800, se deno- minou «educagio para a humanidades. O conceito de histéria 16 EXISTE «A» MUSICA? «inca» ou de histéria universal — uma categoria rigorosamente selectiva que exclui do concsito de «genuina» historia a maior parte do que aconteceu em épocas mais antigas como simples tuinas do pasado — sé é compreensivel, se se reconhecer que ele se orientava pela ideia cissica de humanidade (em precétia relagio com o desenvolvimento cientifico-natucal e écnico-indusctial, que constitui igualmente «uma» histéria independence das diferencas étnicas € sociais). i 7 Do ponto de vista pragmético, o conceito de histéria uni- ‘versal, pals ‘menos quanto a épocas mais antigas, dificilmente ac justificaré: entre a cultura japonesa, a indiana ¢ a ocidental do ‘século xtv no é possivel nem estabelecer uma relagao externa, empirica, nem construir uma conexdo interna filoséfico-histérica. A acontemporaneidade» é cronologicamente abstracta, nio histo- ricamente concreta. Sé no século xx é que os continentes, gracas, A interdependéncia econdmica, técnica ¢ politica, se soldaram no mundo «tinico», cuja estrutura confere um sentido historiogré- fico & redaccéo de uma histéria universal em sentido pragmético: uma histéria que inclui também a da miisica, porque a conexéo externa entre as culturas é entreranco inegavel, se bem que 0 nexo interno, por exemplo, na moda musical indiana, seja muitas vezes discutivel. Por outro lado, nao é necessdrio abandonar o conceito filoséfico- -histérico da hist6ria universal, contanto que ele se modifique de raiz. Jé no & possivel — do ponto de vista de um «cidadio do mundo» & volta de 1800, que surge como estilizaczo do burgués ilustrado enquanto ideal de homem — julgar e decidir dogmatica- mente sobre o que constitui um passo rumo & «educacéo para a humanidade». A humanidade «inica» existe tio pouco quanto a hist6ria «inicay. O que resta é a compreensio paciente, que nao sé tolera 0 outro e, antes de mais, o estranho na sua alteridade — a tolerincia pode estar ligada ao desprezo —, mas o respeita. Se, porém, segundo os critérios do século xx, que provavel- mente néo sio os definitivos, a humanidade no consiste na assi- milagio do diferente, mas antes na aceitagio reciproca em que 0 elemento estranho surge como irremovivel, entao, na estética ‘musical enquanto derivado da ideia de humanidade, a busca de um substrato comum, que pode estar contido nos fenémenos sonoros de todas as épocas e continentes, é de menor significado do que o 7 conhecimento o miituo reconhecimento de princfpios formati- vos fundamentalmente diversos: mais essenciais do que os elemen- tos © 0s padrées basicos sio as consequéncias ¢ as diferenciag6es. Se o principio da consonancia ¢ o ritmo alternante, como muitos historiadores e etndlogos créem, pertencem as «ideias inatas» ¢ sio apenas «eformados» sempre de novo de um modo diverso, ou se a medigao de distancia de intervalos além das relagoes de conso- nancia, bem como de um ritmo numérico ou quantitativo além do alternante, devem vigorar como principies auténomos, irtedu- tiveis e de iguais direitos, é menos significativo do que a teverén- cia, sustentada pelo discernimento, de uma diversidade profunda das formaghes on «reformase, que se edificam sobre fundamentos comuns ou divergentes. Ancorar 0 conceito da miisica «inicay nas estruturas musicais objectivas ou antropolégicas «dadas pela natureza» € um empreendimento dificil e provavelmente inttil, contanto que nao se abuse do terme «reforma» como esquema interpretativo universal para, sem critétios, indicar de que modo uma wteformar de fundamentos comuns, mas ireconheciveis, se distingue entéo genuinamente da heterogencidade desprovida de relagées. (Além disso, em verde se confrontar Natuteza c Histéria, hhaveria que distinguir entre si, segundo uma sugestio de Fernand Braudel, apenas estruturas de longa, média e curta duragao.) motivo estimulador que se encontrava por detrés da ideia da misica winica» — como resultado da histéria «tinicay — eta a utopia clissica de humanidade, que fundava na Critica da Facul- dade de Julgar de Kant uma estética em que 0 juizo de gosto eaubjectivas ¢, no entanto, «tniverzal, e decerto na medida em que o subjectivo aspira 4 convergéncia num wensus communis, num «sentido comum. Porém, se a humanidade ndo encontra a sua expressio na descoberta de uma substincia comum, mas no principio da reveréncia de uma diversidade irremovivel, perma- niece entio fiel & ideia da musica «inicas, precisamente porque a abandona enquanto conceito de substancia, para a restituir como principio regulativo de entendimento reciproco. 18 HANS HEINRICH EGGEBRECHT oy cod] xiste a mtisica? Sim, gragas a Deus. Pelo menos a este respeito existe acordo. sewefl ‘Aqui, porém, a palavrinha que a precede, 0 artigo dererminativo, esté provido de aspas. Mas a palavaiske cm si no tem grande importincia. Pade aceitar-se como artigo detcrminativo © ignorar o seu cardcter demonstrativo: existe decerto a mtisica, como existem também utras artes, por exemplo a pintura e a poesia. ‘As aspas, porém, sao importantes. Querem dizer que 0 artigo determinativo é entendido expressamente de modo determinativo e demonstrativo. E pode interpretar-se, em primeiro lugar, no sentido do todo real: aquela musica, em relagao & pluralidade ¢ & totalidade, é «aquela que». ; st afrmagdo tem a sua origem no facto de que, na raidade, bd muitos e variados fendmenos definidos como misica,e um deles foi escolhido como a quinta-esséncia de todos. Existe «a» musica? ~ Sim, Beethoven! De facto, a misica de Beethoven é considerada ainda hoje, em boa medida, a quinta-esséncia de toda a miisca, e isso nao sem boas razées. Todavia, esta escolha, juntamente com os scus riuotivus, zescuta tiv gosto pessoal que, como tal, eoté fora de diseussi0; tem a caracteristica de poder variar de pessoa para pessoa e de, com ‘tempo, se modificar. Nessa medida «a» misica ndo existe — pelo menos nao de forma universalmente valida, mas s6 no sentido do «para mim», Creio que também neste ponto se pode chegar a acordo, De resto, este aspecto nfo é muito interessante € nao nos leva longe (vexcepto se nao se tiver a convicgio de que os juizos da recepeao, na sua constincia, tém verdadeiramente um valor conceptual objectivo, ¢ portanto Beethoven, a0 ser considerado com particular frequéncia ‘ superlativo musical, xé» efectivamente a quinta-esséncia da musica; ou pelo menos que nao se tenha a opinio — alterando o pensamento de Hegel — de que também na miisica existe um eclassicisino» em finico ¢ irrepetivel, e se v4 A busca dele), 19 ‘UB B.A MUSICA? HANS HEINRICH EGGEBRECHT ‘Mas a mesma pergunta — existe ca» musica? — pode entender- -se também de outro modo; nao no terreno da tealidade ¢ da sua esséncia, mas no plano do intelecto, da definigio, da abstracsio. ‘A pergunta visa uma definicao que considere tudo e tenha em ‘conta o que existe, na histéria e no presente, como miisica; ¢ neste propésito pode concordar-se com limitar-nos — por moderagio ~& midsica experimentével, no caso presente (¢ que me concerne) A miisica «ocidental», mas incluindo nela intencionalmente todas as suas manifestagdes documentadas. O objecto da investigacao ndo 6, pois. uma quints-esséncia realmente existente da micica, mas um conceito, mais precisamente «o» conceito de miisica, a determinagio do seu contetido ~ ea» miisica que, numa resposta possivel, exstria na realidade s6 enquanto a definigao concerne a ‘toda a miisica real. Quanto mais extenso ¢ o horizonte da experiéncia e acentuada a consciéncia hist6rica tanto mais se recuard perante semelhante propésito, Pense-se em todas as definicbes ou enunciagées defini- ‘érias que jé existem, como foi diferente a sua sorte, embora todas visassem a esséncia e o fundamento daquilo que a mtisica é Eis alguns exemplos: Musica ext scientia bene modulandi [A matisica & a ciéncia de bem modular} (Santo Agostinho). Musica est disiplina, quae de numeris loguitur (A miisica & a disciplina que fala dos niimcros} (Cassivduiu). Musica et faculasdifferentias acutorum et gravium sonoruim sensu «4c ratione perpendens (A miisica éa arte de examinar com os sen- tidos © a razdo as diferencas dos sons agudos e graves] (Boécio). Musica est exercitium arithmeticae occultum nescientis se nume- rare animi [A miisica é 0 secreto exercicio aritmético do espitito que a sindo se sabe medi e ritmar] (Leibniz). Misia... significa sobretudo a arte dos sons, a saber, a ciéncia de cantar, tocar ¢ compor (Johann Gottfried Walther). A definigéo justa ¢ exacta da miisica, a que nada falta e nada € supérfluo, poderia, pois, rezar assim: a miisica é a ciéncia e a arte de dispor habilidosamente sons idéneos e agradaveis, ligi-los de modo correcto e suscitélos com graga, a fim de 20 EXISTE «A» MUSICA? mediante a sua harmonia serem promovidas a gléria de Deus ¢ todas as virtudes (Johann Mattheson). Musique. Art de combiner les Sons d'une manizre agréable a Lorelle (Misica. Arte de combinar 0s so ns de um modo agra- divel 20 ouvido] (Rousseau) ‘Vimos o que a misica é na sua esséncia: uma sequéncia de sons que surgem em virtude de uma sensibilidade veemente e, por conseguinte, a representam (Sulzer). $6 desta forma matemética [da miisica], embora nio seja representada por conceitos determinados, deriva 0 prazer que conccta a simples reflexio sobre tal quantidade de sensagées simultdneas ou sucessivas com o seu jogo, como condigao uni- versalmente vilida da beleza da prdpria forma; e s6 de acondo com esta tiltima o gosto se pode arrogar um direito antecipado sobre o juizo de cada um (Kant). Miisica. Com esta palavra define-se, hoje, a arte de expressar sentimentos por meio de sons (Heinrich Christoph Koch). «A miisica é uma mulher. A natureza da mulher é 0 amor: mas este amor € 0 amor gue recebe © que no receber se dé sem reservas» (Richard Wagnet). Formas sonoras em movimento sao 0 tnico conteddo ¢ objecto da misica (Eduard Hanslick). A esséncia da miisica € expressdo; expressao purissima, elevada a0 mais nobre dos efeitos (Friedrich von Hausegget) ‘A misica é «a natureza conforme & lei relativamente ao sentido do ouvido (Anton Webern). «Que &, pois, a misica? — A miisica ¢ linguagem. Um homem quer expressar pensamentos nesta linguagem; nao pensamen- tos que se deixam transpor para conceitos, mas pensamentos musicais (Anton Webern). No tocante ao presente, pedi aos compositores Karlheinz Sto- ckhausen e Wolfgang Rihm uma defini¢io da mtsica isto é, como definiriam eles a musica a partir do seu ponto de vista. a HANS HEINRICH EGGEBRECHT tT BA MUSICA? Stockhausen remeteu-me para uma passagem da sua Freibrief aan die Jugend (Carta & javentude, Texte zur Musik Ul, p. 293)]: «A miisica nio devetia ser sé uma hidromassagem para 0 corpo, tum psicogtama sonero, um programa mental em sons, mas sobretudo o fluxo tornado som pela hiperconsciente electrict. dade césmica.» ‘Wolfgang Rihm escreveu-me em Outubro de 1984: «Toma-a como ponta do icebergue: a mtisica é liberdade, Cbdigo simbélico-sonoro atado ao tempo, vestigio de impen. sivel plenitude de forma, coloracéo © moldagem do tempo, expressio sensivel de energia, imagem e encanto da vida, mas também imagem contriria, projecto antagénico: o outro (do qual — enquanto tal ~ nao posso saber 0 que é)» __ E evidente que todas estas aserges ¢ definigées, e outras do sénero, sio apenas proposicdes nucleares extraidas de tum mais amplo contexto do pensamento e da representagio. Para as com. Preender, é necessrioavalar em que medida a ponta do iceberguc as ultrapassa em altura. Mas justamente nas formulagdes sintéticas, definitétias ¢ sempre visando o essencial, as distingbes tornam se deésticas¢ parecem distender-se até & contraposigéo inconeiliavel, Enure «Musica est disciplina, quae de numeris loquiturs ¢ xa imisica € um mulhet» interpéem-se siniversos. — E a concepsso dla misica como wAre de combiner les Sons diune maniore agra. ble a Voriller colide em medida nio irrelevante com aqueloutra, embora ago afastada no tempo, que a descreve como «sequéncia de sons que irrompem de uma sensibilidade veemente c, por conseguinte, a representam. — Esta diltima definicdo pertenice, or scu turno, aquelas que estiveram sob a mira mediante a cono, ‘agio essencial da miisica como «forma sonora em movimento», ~ Por outro lado, a descrigéo da miisica como «citncia de cantar, tocar ¢ compor bem» parece inspirar-se directamente naquela que entende a miésica como wcientia bene madulandiv, apesar de entre as duas se interporem cerca de treze séculos, Hoje, cada um sabe que a diversidade das assergdes aqui adu- idas esté sujeita a um valor posicional. Nao s6 pode ser diverso © ponto de referéncia (por exemplo, a expressio latina musica ¢ 22 o sro hodiemo de mic no so a mesma oi), mas tam bém no significar cada asseredo possui uma determinagio plural sebcrole devia &fpoce nics, Lrapactya elle sacl A pertenca a tradigées,escolas, partidos e idcologias, a dependéncia de orientagées ¢ sistemas filosdficos e estéticos, Das trés definigées de misica referidas da [dade Média latina, a de Santo Agostinho (scientia bene moduland:) situa-se na wadi- ‘io de Aristides Quintiliano, que definiu mowsiké como «ciéncia do melo, enquanto Boécio se religou a Ptolomeu, para 0 qual © reconhecimento das qualidadcs sonoras fornccia 0 ctisésio da definicio, e Cassiodoro representa © ponto de vista ariemético dos «Pitagéricos, caracterizado pela mathess e pela ratio. Leibniz vinculou-se claramente a este iiltimo, ao entender a propriedade aritmética da misica como propriedade da alma, do sujeito recep- tor E sempre «a forma matematica» da misica, gracas i qual é suscitada a «eflexao» do julzo estético, foi para Kant, por assim dizes, a ancora de salvacio que lhe permitiu encarar também a arte musical como arte «bela» (néo apenas «agradével), Para Richard ‘Wagner, a sua concepgio do drama musical € que o leva a ter a miisica por «mulher», podendo ela realizar 0 seu proprio fim, 0 pparto criativo, mas s6 se «fecundada pelo pensamento do poeta» Que a miisica, enquanto absoluta, «exija néo sé dar & luz, mas também proctiar descreve «todo 0 mistério da esterilidade da miisica modernal». Para Webern, pelo contrétio, a musica — na cstcira da definigéo goctheana da cor — ¢ snatureza auténtica», sobretudo porque cle quer entender também a nova misica, por ele justificada, em conformidade com a lei natural e, 20 mesmo tempo, interpreté-la como «o fruto inteiramente natural da his- tériay. Além disso, a misica apresenta-se-Ihe como uma «lingua- gem, porque esta determinacio conceptual o capacita ainda para 4ualifcar a miisica atonal na sua capacidade semantica. Pode partir-se do facto de que os definidores, isto é, os que modificaram, deram um novo matiz ou trouxcram também 20 mundo um novo conceito de misica, estavam plenamente cons- cientes de assim rejeitar, substituir as outras definigées ou afo- rismos deles conhecidos, de proclamar a sua invalidade ou até a sta falsidade. Antes de apregoar «a [sua] descricéo justa e meticu- Josa da misica, na qual nada falta e nada é supérfluor (redigida segundo © modelo da definigéo: matéria, forma c fim tlkimo), 2B UE B.A MUSICA? HANS HEINRICH EGGEBRECHT Johann Martheson censurou todos os outros, para se clevaracima Melee: «Mluirissimos homens ilustres acertaram téo pouco nisto Gque, aeé hoje, quase nada se afigura mais dificil de fazer do que siya correcta eucidagao fundamental, que a tudo se ajuste bem & tudo englobe. Cada qual louva a sua, ¢ redige-a de acordo com a intengao ¢ o critério que 0 assiste». «A intengao ¢ o critério» circunscrevem 0 factor determinante, do qual Matheson néo sabe que também a ele diz. espeito 6 por acim dizer o assedia, O factor determinante é tanto nele Pom em todas as proposigées acima citadas, um clement de obstinagio. Eo presente tem sempre razio, assim por exemplo ta insengao da poiese, que na [dade Média marcada pela tradigéo mmodificou com cautela as definigées; ot na tomada de consciéncia To squmento» da musica que justifica a nova definicéo na época pésmedieval; ou ainda na apologésica urdida peas querels ¢ Palas lntas de partido desde o século xvit vin, ou ainda na fé no Progresso musical que espreita por detris daquilo que os nomes de ‘Wagner e Webern exprimem como conceito. ‘Re definigdes ou proposigbes referem-se todas— de modo explt- ito ou implicito — a0 presente, a0 «dia de hojer, como escreve Koch, ao falarem de miisica tem em mente a misica do presente, segundo o ponto de vista do definidor. A questo atinente oe tmiésica aqui nao se pée, ndo se pode nem se deve por ‘Diferenre & 0 quadro cm que se situa o historiador,cuja refle- xio e cujo juizo sio caractetizados pela ciéncia ¢ conscléncia his- téricas. Para ele, as decerminagées conceptuais da musica, ist & as frases essenciais de um escrito sobre ela sob o perfil da sua tamurera, eonvivem na sua diversidade sem competirern ~ presin- ddindo do seu prau de inteligéncia — nem se eeitarem ou exclltem reciprocamente, De facto, ele atende em cada definico 20 stems dos prestupostos de que ela deriva ¢ que nela se revelam. Part? historiador, que uma definigao da miisica quem a expressa ¢ tio importante come a propria definicao, mais ica, enquanto seu pressuposto, & até mais importante. E ei aspecto importante, © pressuposto, néo é para ele nem correct. nem erréneo, nem vélido nem natureza histbrica. Pode dizer-se (penso até que se deve dizer) que, 20 pergunt fo que é a miisiea, a problematizagéo que as aspas ints 24 dependa da posicfo de desprovido de validade, mas oe artigo «a ocorte apenas ao historiador, Ble persnifica a conscién- cia do facto de que ndo pode haver uma resposta sem ptessupostos, ma epost anistérica a essa questéo. E se alguém pretendesse, coli eels et © historiador contesté-lo-ia, Importa, pois, distinguir duas posi ; icbes, a da consciéncia refe- rida ao presente e a da consciéncia histérica. A primeira € posi ional e sabe que o é, sem problematizar a determinagio. Se aqui se disser: «misica 6...» ou «a miisicaé...», implica-se tactamente tua posigio © nio 2¢ ventilam pretensées de historicidade, A definigfo tem carécterexclusivo:s6 cla vale. O seu ponto de rfe- a € 0 presente, 0 sujeito actual, a posisao, ¢ a historia — se for consderada~ surge macadamente dino com fegutncla le modo apologético, com uma interpretagio que tem naquela referéncia 0 ponto de partida e de chegada Para a consciéncia histérica, pelo contritio, as definigées accuais e subjectivistas da miisica convertem-se em material do seu pensamento, que visa essencialmente determinar as posig6es. Exe pensamento tem um caricter inclusivo: todas as posig6es (deine) em die decdadann As suas deerminanes fo =z i ela iia, 0 presente ¢exencalmenclmerpreado claro que assim nao se exprime (| i , (por agora) uma valoracio. anda muito, para o autor de uma definigéo relativa 20 ac, feiride cle for i compositor, 0 historiador ¢ supérfluo 2 posi, sem w deensingSespocdonas da mis, ficaria Mas, por outro lado, o historiador ( f «© historiador (c, pode repetir-se, 6 cle ffl ocatio — ao reflect sobre a peaguta existe “sdiae, Biot tnporo Tins da poniconaldade, ca valida slain ms toi daquilo que é a miisica. Mas como poderd ele Se aqui nos limitamos a encarar iri a jtammos a encarar ~ com uma limitagéo enten- em sentido exemplificativo (portanto, por agora, de modo eonscientemeiite parcial) ~ as definigées da musica como material Fiat, o hioriador poderis pensar que nla eatin da | Irises chegou 3 dimensio de conceito,linguagem c imagem do _Ronee visa hisérico ou, de modo mas exact, luz da histéia “Sas ideias. Os enunciados definit6rios seriam, na sua variabilidade, 25 ‘UE 8 A MUSICA? HANS HEINRICH EGGEBRECHT. a manifestagio conceptual do que «a» miisica é quanto as suas possibilidades, ¢ deveria tentar-se, poder assim dizer, unificar na teflexéo os enunciados rumo aos principios (e a0 principio) de tais possibilidades. Tudo isto soa de uma maneira algo metafisica, ‘como se existisse a «ideia» da misica, manifesta nos conceitos, € pudesse, por assim dizer, reconstruir-se conceptualmente, a pattit do seu manifestar-se; mas assim, ao mesmo tempo, também as condigées da histéria social, espiritual e material, em virtude das quais os conccitos sao diferentes e tém histéria, deveriam ser intro- duzidas ¢ sistematizadas no «a» com um intento definitécio, Mas nio entrar, porventura, o historiador também neste jogo? Nio procede sempre de modo a reforcar as suas afirmagées Sobre a musica (se afloram a problemética do que ela &) com citagbes que vai buscar & linguagem especialista da musica, da qual sabe todavia que também cla esté subordinada & posicio e ao ponto de vista? Por exemplo: se eu quisesse afirmar que a (ou «a») misica Possui duas vertentes, uma matemitica e outra emotiva, isso no ‘me impediria de recotter 4s definicbes de Cassiodoro, Leibniz ou Kant para a vertente matemdtica ¢ as de Koch ou Friedrich von Hausegger para o lado emotivo, e ao mesmo tempo relevar que sjf Kant» considerara justamente estes dois lados como essenciais, E nio deveria ser tio impossivel fazer entrar 0 aspecto histérico {que vai buscar o seu fundamento manifestagio de uma ou outra vertente, ou de ambas, no marco sistemético da definigéo que examina 0 «a», Em ver de aquilatar as definigses na sua diversidade como a ‘anifestagao conceptual da cideia» da misica, ao perguntar que € sav misica, poderia também tentar-se destilar das definigdes aquilo que elas tém em comum, a saber, os pontos em que nao se conttadizem, embora mencionem e acentuem de mode diferente ©s aspectos que exprimem, ou descuram, ou até contradigam um aspecto que nas definigdes de outros autores estd, por assim dizer, dlocumentado; mas também aqui as dependéncias posicionais que «tio na base tanto dos juizos de uniformidade ou comparabili- dade dos aspectos, como dos jutzos da sua deformidade ou confi. tualidade, regressariam por si ao horizonte da defini Por exemplo: nas trés definicées medievais da misica, ances men- cionadas, expressa-se o elemento matemético (madulari ~ numerus ~ navio), em que as diferencas ou a parcialidade (Cassiodoro) sa0 26 | 1— EXISTE «A» MUSICA? jsivelmente condicionadas pela posigio ¢ se reduzem pontual- vase oman om coer es contests comply 4 que as definigées pertencem. Mas que faremos, a este respeito, com Richard Wagner ~ pra exaher um explo extemo! A comps sag conta na su defngio («A misica€ uma mulher) rica no cardcter aconceptual da miisica (que ~ segundo Wagner — pode Aeangaro sea fr se for focundada peo pensameno do poet) |As definigdes medievais no contradizem a aconceptualidade da iis ob. que a nk se min ecm dela mas se la expreavamcute uus dltinos eseritos de Santo Agostinko cob a es ds cana foblion (en jedan scr sl, a sua definigdo, aaca os defensores da teotia dos aectos ¢ os seus continuadores. Mas nenhum dos seus adversirios ignorara ~ pelo menos nas obras escritas — a qualidade especificamente musical da mtsica. E Hanslick passa por cima do seu préprio ponto de vista restito mediante um arsenal de «contedidos+ musicais, 20 reconhccer o ecardcterespecificamente musical (cuja beleza, «inde pendentemente de um conteido vindo do exterior ¢ sem dele ter necessidaden, residiria eapenas nos sons € na sua ligacdo artstica») nas wengenbosas relacées intrinsecas de sonoridades aprazieis, na sua consondincia e oposigéo, na sua evanesoéncia e reunio, na sua levagio e extingio». micer a dlifeengas das defini- g6es coma tentatia deas fund pose numa dna defini, jue reyita os elouscutus winuns para os claborar como onstamesconcepeiis, completa; fm ene sa snidade, Poderia, a propésito, aventarse a hipétese de trabalho de que as diferencas se poderdo rez 2 um nim ett de caacerias substanciais ede possibilidades de principio, e que nese entrelagado de caracteristicas e de possibilidades néo hd contradig6es insoliveis, ‘mas apenas um diferente modo de seleccionar, nomear ¢ acentuat. «Av miisica existiria, pois, por definicao como aquilo que néo em historia e que, apesar de todas as dependéncias posicionas, se iden- fica com a miisica como conceito. ean € vedade que, combi grazer semebamtex proces mentais de trabalho (que decereo é possivel tentar aplicar ain ‘a outros materiais da histéria da musica), nao se resolve a we tio de se «ay misiea existe e qual a sua nacre. Responder we tuma vez por todas» embate aqui no fiasco — gragas a Deus! — 7 'UBE A MUSICA? HANS HEINRICH EGGEBRECHT vir no sb da dependéncia poscional do histortdor(embora ‘io seja tio desproporcionado pér-se fora de jogo), mas també; da indisponibilidade da dines dohure ia _Cteio todavia que, ultimamente, todo 0 pensamento sobre a iniisica se interroga sobre o que ¢ 2 miisica, e que — enquanto a reflexdo virada para o presente suscita (ou pode suscitar) definigées situacionais ~o pensamento histérico gira A volta do «a», embora saiba que no consegue fornecer «a» resposta, Porque & que entio o historiador se preocupa assim tanto? Nio € de todo positivo o papel que cle ayui desempenha. Aplana tudo; 20 interpretar os cnunciados em chave posicional, nivela-os, uuniformiza-os, atenua a sua vitalidade, sufoca 0 seu ardor. A definicéo referida ao presente gera um valor: define a miésica 4 partir da realidade, da vitalidade de um ponto de vista; na sua relagdo com 0 objecto, ela é 2 auto-realizacao linguistica de um sujeito, de um Eu, mesmo que fosse de um tinico. Reconhecamos: 0 historiador, desde que existe, s6 pode pro- ceder de um modo relavizante, Ao interpretar os enunciados a partir dos seus condicionamentos, nao se faz valet asi mesmo, mas deixa que eles sobressaiam. E isso que o define. Mas qual poders ser o valor da sua entrega & investigacio, a este modo, do «a»? ‘Uma resposta poder emergir do nosso escrito. Porém, uma coisa ~ felizmente ~ € certa: também ele é um Eu. 28 ~ CONCEITO DE MUSICA B TRADIGAO EUROPEIA HANS HEINRICH EGGEBRECHT misica constitui a tradigéo europeia (nasce dela e nela esté imersa) como conceito europeu. Mas que ¢ que caracceriza 0 conceito europeu de miisica (C poderia também dizer-se: o seu principio europeu)? Para tal descrever é inevitavel — sobretudo em vista dos factos histéricos aque aqui aduziremos ~ recorrer 2 um tipo de linguagem abstrac- tamente modelével, que se poderi revelar nfo acessivel a todos, E fique ja de antemo bem claro que, a0 tentar referir as carac- terlsticas do conceito europeu de miisica que, 20 longo de toda a histéria, definem uma conoracio «europeiay, nfo falo em prol de qualquer eurocentrismo, uma parvoice que me é atribufda. Des- crevo um estado de coisas, sem o comparar nem, muito menos, 0 valorizar de modo comparativo. Para enquadrar o principio da musica ocidental num niicleo mnstante busco um par de conceitas, conotades por duas propriedades: primeiro, deve ter um vinculo com a cexisténcia corporal ¢ espititual do homem; em segundo lugar, deve tratar-se de um genuino par de opostos, cujas duas vertentes tendem sem interrupcio uma para a outra, buscam ¢ encontram formas de conciliagao, sem todavia jamais se aquietarem — em virtude da sua oposicio — ¢ gerando de novo continuamente, a partir de si, 0 processo de conciliagéo. Este par de opostos nao 0 encontro nas dicotomias teoria © prixis, sense rata, culto c arte, embora tudo isto (e mais ainda) ppertenga a0 conceito ocidental de miisica, mas encontro-o no pat de conceitos emocéo e mathess (na origem, em grego antigo, com valor de conhecimento, ciéncia, teoria), que, mais do que todas as coutras antiteses, me parece satisfazer as condigbes mencionadas € antepor-se aos outros pares de conceitos. Com este par de opostos indica-se — para o esclarecer de imediato & luz de um conhecido exemplo — 0 que Hegel expressa quando, a propésito da conciliagio dos dois termos, escreve na historicamente 29 ‘UE £ A MUSICA? HANS HEINRICH EGGEBRECHT sua Esérica: «Ja fora da arte 0 som, enquanto interjeigio, grito de dor, gemido ¢ riso, é a exteriorizacio mais imediatamente viva de estadas de animo e sentimentos, a exclamagéo do animo». E ainda: «Assim a mtsica brota das interjig6es, embora ela propria seja mais arte do que interjeisio cadenciada». Este cadenclat, que ‘modela o som para, a partir da sua existéncia de voz da emogao (wexpressio da natureza», «grito natural do sentimento»), o traver a arte baseia-se ~ «segundo uma observacio ita primelto por Pitégoras» — na edeterminidade dos sons e da sua combinago na quantidade, em relagées numéricas, que cucoutram fundamento ‘na natureza do préprio som, embora sejam utilizadas pela misica na modalidade que, s6 gracas & prépria arte, é conhecida e mati. zada das mais diversas maneirasy. Pode pensar-se que a miisica no sentido europeu tem, por assim dizer, duas origens, uma ligada 4 génese da humanidade, de certo modo primitiva (pré-musical),e outra grega (musical), e que 2 origem antrepogenética, al como se desdobrou ~ entre outras coisas na antiguidade cléssica e se lhe ofereceu no seu estado bré-musical (pré-europeu), tem duas vertentesinterconexas, a que chamo vertente emocional e vercente matetal, A palavra magica da origem grega, diria quase epitag6rica», da ‘iisica europeia chama-se teoria, E no centro da teoria material enconera ge o néimero (nurerui), a relacdo numérica (logar, ratio), ‘numa palavra: a mathess, Fosse qual fosse o interesse que 6 levou agit, 0 pensamento grego virou-se, com o instrumenta de invest gagio da mathesis, para o lado material, para a natureza do sonoro, a fim de o converter em ciéncia nas suas. -dimensées de som, inter- ‘alo, sistema, modalidade e ritmo, ou seja, para o dominar e pér A dlisposigéo da manipulagao consciente. O sonoro, na sua natureza material, adquiriu assim a conotagao de harmonia. A teotia suscitou, como sua contraparte, a pritica musical, © tipo de configurasio do sonoro caracterizado pelo facto de se baseat no material eivado de elementos tedricos. A dualidade de teoria e prixis pertence ao principio da miisica ocidental; nesta a teoria precede a privis, é-Ihe inerente, tem lugar como pensa- nento musical também no seio da préxis (como poiese) e pode, Por seu turno, abstrair-se continuamente da préxis. Uma praxis 30 Il— CONCEITO DE MUSICA E TRADIGAO EUROPEIA sem teotia no exist. Por isso, teria e présis no constituem um contraste, mas dois aspectos da mesma coisa, justamente a misica, due, de acordo com 0 seu conceito europeu, tem dimensio his- ‘6rica enquanto unidade de teoria e prixis ~ tradicio no sentido ocidental. ‘Uma antitese em relagéo & miisica como unidade de teoria e prixis € representada ~ mesmo apés a constituicéo de semelhante unidade e do seu desenvolvimento ~ pelo material sonoro pré- -musical ou extramusica, pelo audivel, pela configuracio audivel na sua inesgotivel multiplicidade enquanto nacureza, exuberin- cia popular, sonoridade civilizadora. Esta antitese néo afecta a misica, esta a seu lado com indiferenga, nao tem para cla nenhum valor actual, enquanto néo for actualizada em sentido musical (musicalizada), mas quando a miisica se vira para ela, a unidade de teoria/prixis descobre-a e acolhe-a em si a fim de com ela se enriquecer e dela se servir para a sua transformacio. Em virtude da indiferenga que existe entre a musica e a reserva natural do material sonoro, enquanto este ‘iltimo néo entrar em contacto com o sistema de teoria/prixis, também nio se trata qui de um contraste, mas de duas entidades por si subsistentes. Mas que é que, na worigem grega da mésica», produziu o lado emocional da oferta sonora, enquanto a teoria materializava a vertente material? O elemento emotivo é inerente & ca sonora nto de vista da histéria da origem e do desenvolvimento, ne de um modo tio sélido Gee pode ser langado fora por nenhuma operacio de mathesis. Ele proporciona 4 miisica 0 contetido da emogio e nenhum significado harménico 0 pode eclipsar. A vertente emotiva é todavia transformada de dois modos, ‘no ambito da palavra mégica «tcoria». Em primeiro lugar, submete- -se As teorias materiais,élevado & forma, cultivados depois, a teoria vira-se também directamente para as emogées ao jeito das teorias emocionais, que racionalizam a existencia natural das emogbes € Pfeparam o terteno para tornar possivel a unio entre emogio ¢ mathesis. - : A mais importante de todas as teoriaseuropeias da emosio & a teoria dos afectos que, em relagéo A miisica, aparece jd no pitagérico Damon de Atenas (século v a.C.), ésistematizada pela primeira vez por Platéo ¢ Arstételes e, desde entéo ~ depois de ter surgido juntamente com a maehesis musical ~ se mantém activa a1 ‘UE £ A MUSICA? HANS HEINRICH EGGEBRECHT até hoje, ao longo de toda a histéria da miisica ocidental com alternadas expressées e valoracoes. A teoria musical dos afectes (para qui continuarmos a referit- -fos apenas a ela) serviu — decerto jé na tcoria platénica do Estado ¢, em seguida, de forma ininterrupta — de base as teorias éticas ‘musicais. Enquanto a misica se atribula como propria a capacidade de representar ¢ suscitar as mages, ¢ enquanto a teoria trazia A ‘uz nos pormenores as explicagses eas modalidades deste processo, foi possivel conferir-Ihe, gracas is valoragGes e selecgdes ettcamente motivadas, uma energia dominante, atracnte, iusuutiva ¢ crlativa, *Onde nao hé paixéo nem afecto, eambém néo existe virtudes, cxcreve Mattheson no Der volldomenener Capellmtistr (0 perfeito mestte da capela; centre os afectos, os que por natureza mais nos aproximamy néo sio os melhores» e devem «ser dominados ou teficados... Pois a justa qualidade da miisica é que ela, antes de qualquer outra coisa, seja uma doutrina disciplinadora», ‘Também a emogio serve de antitese & musica, & sua unidade de teoria e prixis; mas, comparada com a reserva de material sonoro pré-musical ow pretermusical, é uma antitese de cunho fandamentalmente diverso. De facto, sea sonoridade natural, na sua realidade fisica ou como existéncia audivel, éindiferente sob o Perfil musical enquanto ndo for inserida no processo de teoria/pré xis que distingue a mtisica, a emocio é uma presenca constante no seio do homem. Nio existe um egrito natural» do material sonoto, mas sim o do sentimento. Rir c chotal, suspirar ¢ grltar podem ainda ser auténticos. A exclamagio animica (Ah! e Oh!) nao tem histétia. A emogéo, na sua nacureza indestrutivel, oferece-e inces- santemente & misica, que a partir dela foi gerada. Sem cessar aflui directamente & misica, porque nesta arte como em nenhuma outra busca o seu lugar hereditério e os seus direitos, Confirmam-no as teorias que estudam a confluéncia ¢ a con- tiguidade de emogio e miisica. As «interjeigbesv de Hegel nao se podem datar, Ele no as define como origem, mas como «ponto de partida» da misica enquanto «interjeigéo cadenciadas, e isto pode ou referr-se & pré-histéria, ou entender-se de mode abso- lato. ~ Também na teoria dos afectos as emogées estio sempre directamente em jogo como objecto da expressio compositiva como meta do efeito da misica. O mesmo vale para a douttina da ‘modulacéo, para a teoria da imitaco musical do modo expressivo 32 (a ingua, afectado pelo conterido lingulstico, como é referida, por coi a Seeetnmomctincis wnecalagiinrata dacadén- cia flada e da eassociagao» que a ela reage 20 nivel dereceprividade (Critica do juézo, pat. 53). —Também a teoria sobre a recepgio da compreensio empatica dos sentimentos que se exteriorizam por meio de sons ~ como foi desenvolvida sobretudo por Herder (« som do sentimento deve transportar a criatura simpatética para o seu some) ou representada depois, entre outtos, por Friedrich von Hausegger («A simpatia... é a fonte da misicar, Die Musik als Ausdruck [A miisica como expressao], 1885, p. 181) — baseia-se na imediatidade com que a mtisica activa a poténcia emotiva. De facto, cada manifestagio de movimento ascendente e descendente, cada resolucio dissonance, cada goraato © espresivo, tudo 0 que € musicalmente imagindvel afecta a emogéo. E isto néo sé em sentido tépico, isto é como tipo expressive musical, dotado de orig e cradico histrica, mas ambém de modo esponto, para lé da historia, com uma eficécia que brota imediatamente sentimento e para o sentimento. © concurso de emogio e mathess, que individualiza 0 conceito €0 principio da musica ocidenta, tem uma dimensio histética nfo 38 nas modaiades cones em que os dois moments , se condicionam reciprocamente ¢ se conciliam, mas Enben coshecu cn wlgai'an ga de Peonlaaeear ae ue eles em geral im sentido lato, na Idade Média curopaa prevalecia a con- cepgio da mathe, centrada no conccito da art musiea como componente do quadrivio das artes matemiticas, ao pasto que na era moderna o momento emocional ganhou. ses ceene rodavia, isto néo depende da mtsica vem si» (ou seja, do que ela ecm vnas do contexto histrico-social e historico-espititual ue condiciona a manifestacéo hstérca da misica, ‘Também na miisica medieval, em que a emogéo é reprimida, sobretudo por causa do dominio a Igreja crises ¢ da sua concep” 0c vinta da ida ela mans spor asim des, ple Costas — de um modo tanto mais extremo. Assim, por exemplo, no séeulo x1 0 abade Acredo de Rievaulx (Migne, Patologia latina 195, 571) deplora, a propésito do canta liirgico, as deformagses 33 ‘UE £ A MUSICA? HANS HEINRICH EGGEBRECHT da voz, jé entio habituais, que tornavam o canto ora longo, ora sincopado, semelhante ao relinchar dos cavalos. Por vezes, 0 can- tor nao canta, mas limita-se a sussucrar de boca aberta, como se a respiragio lhe tivesse sido cortada. Por isso, volta a imitar a agonia dos moribundos ¢ o éxtase dos padecentes: 0s ldbios contraem- 86 08 ombros sio sacudidos, todo o corpo se agita com gestos histriénicos... E de modo andlogo, no século xtv, o inglés Simon Tanstade (Coussemaker, Scriptores IV, 251) refere que alguns, a0 exccutar cantos liedrgicos, se excitam de repente ¢ logo a seguir se contraem, como se fossem sacudidos pela febre (quod valde inhonestum 02). © afastamento da consciéncia vital relativamente 4 Idade Média, a0 contexto clerical ¢ feudal, o despertar do mundo bur- gués, 0 humanismo ¢ 0 Renascimento significaram também, ¢ sobretudo para a misica, a libertagio da emocdo ~ doravante oficial, objecto de discussio cientifica ¢ realizacao pritica ~ que no género compositivo de Claudio Monteverdi encontrou um primeiro climax de forte poder irradiante. A partir dat iniciou- “Se 2 progressiva expulsio da mazhesis do pensamento e do juizo musical, até & sua degradacéo e menosprezo. ‘Segundo Johann Mattheson (Der vollkomenener Capellmeister, 1739), na »matemética musical», em cujo centro reside a «cand- nica» (ca teoria da repartigéo dos sons» de acordo com as pro- Portiones ¢ rationes), encontram-se «s6 alguns escassos elementos, deficientes ¢ cansativos, ¢ absolutamente nenhum fundamento», -Determinam ae as sclagcs maceuéticas dos sons com a sua quan. tidade como se quiser, mas nunca se poder deduzir apenas deles 0 justo nexo com as paixdes da alma». A verdade seria «que a miisica vai buscar a sua dgua as fontes da natureza; nao ao charco da arit- méticay. A natureza ¢ entendida no sentido daquela «teoria natural do som, cuja parte «mais nobre» indaga «os efeitos dos sons bem ordenados», «os quais demonstram os mesmos nos movimentos € ‘nas paixdes da alma» — embora também aqui, de modo inesperado, a condisio do «bem ordenado» aponce para a mathesis. As arclagbes» segundo as quais as disciplinas actisticas da mate- matica e da fisica in a mtisica ~ escreve Herder no seu projecto de uma Philosophie des Tonartig Schinen [Filosofia do belo musical] (1769) — néo significam «absolutamente nada para 2 estética dos sons. Nada clarificam do som simples», do «pathos» 34 11 — CONCEITO DE MUSICA B TRADICAO EUROPELA _ 5, ou seja, «dos singulares acentos sonoros da paixao». A Picia €« dingeagem algien do seston, « td de modo mais puro quando os sons preservam, nas melodias, a sua esséncia Como eacentos de cada paixdo, modulagbes de cada afecto» em face das wfrias relagbes artificiosass da harmonia, Todavia, este Iperderiano sregresso & natureza, &origem pré-helénica da misica ‘confirma apenas aquilo que o conceito ocidental de musica irte- versivelmente caracteriza. ur ‘idental, esto Onde quer que ressoe musica em sentido oci ident , em aoqio " embora, no plano histrico, com uma intensidade diferente e uma diversa consciéncia da sua capacidade definivéria — aqueles dois factores antagénicos que foram aqui expressos com conceitos de emogio e mathesis. © “Amos radicam na nacureza: a emocfo na natureza do homem, mashesis na nacureza do sonoro. “ambos -diversamente do que scontece nas outras arts para a explicagéo da posigio particular da misica ~ séo contiguos no plano genético: & mesica ndo define a emogfo (como natureza do hhomem) nem a maihesis (como natureza do sonoro), mas ambas extéo nela constitutivamente presentes. Mas enquanto no princf- pio da misica emogio ¢ marhesis surgem conciliadas uma com a outta, relativizam reciprocamente a sua contiguidade. Ao fazt-lo, conferem & misica a sua dupla significag4o fundamental: emosio hharmonia Mik diferente valoragio de uma das duas vertentes £0 condicio- nada, no plano hist6rico, quanto é cada modo concreto da sua cocxistencia, Toda a tentativa de admitir s6 uma das duas partes «sti condenada ao facaso. Caracterstica puramente musical € aquela segundo a qual a misica, pelo facto de ser, ji tem conteiido, um contetido duplo. ; [ a Pode, pois, dizer-se numa primeira tentativa de definigéo: a iniisica em sentido europeu € emogio matematizada, ou mashesis emocionalizada. Ela € psique e natureza, alma em sentido criacural e ordem em sentido cosmolégico. Imiseui a sensualidade na razao, a emogio na harmonia, e fornece a esta dltima uma vitalidade emotiva. Nisto reside a sua forga ética, formativa e educativa, religiosa ¢ politica, 35 'UE & A MUSICA? HANS HEINRICH EGGEBRECHT afirmativa e utépica. Mas pode igualmente dizer-se: ela subjuga, fila, estabiliza, cltiva a emogio, que pode entio irromper a cada momento em sentido subversivo para proliferar nouteo lugar. ‘As duas vertentes nunca podem associar-se numa unidade de todo origindria ¢ pura, embora as duas reconhegaim na misica 0 seu lugar heredititio ¢ privilegiado, e aspizem constantemente a unir-se. Também e sobretude aqui se baseia ~ do ponto de vista do principio da miisica ~ 0 impulso a historicidade de emogio € mathesis, 0 momento impulsionador que, na sua contradi¢so, se encontra tio radicada na principio do homem, e que cob a influéncia da unidade de teoria/praxis esconde em si uma grande riqueza de marcas ¢ matizes tdo ilimitada que permite 4 miisica, no sentido europeu do conceito, expressas, reflectir e contribuir para modelar até ao minimo pormenor a histéria do homem, da sociedade, da cultura, Sem divida, nem tudo 0 que é, ou poderia ser, definivel como ‘musica em sentido europeu se pode reconduzir ao par de opostos de emogio e mathesis. Mas, por exemplo, a categoria, também ela central, do «jogo», com os seus atributos de sauséncia de fim, sexisténcia para sis, ~participacdo emotiva» [Zinfithlung] e «tempo de vivéncia», pode encontrar-se também fora da miisica, Eo elemento caracteristico da xaconceprualidade» da sua mensagem diferencia ~ no sentido das sideias estéticas» de Kant ~a arte em geral, ¢ existe na miisicajusta e unicamente porque aquelas duas Yertentes, emacin # matheir,é que a constituem como conecito especifico da tradicéo europeia 36 CONCEITO DE MUSICA E TRADICAO EUROPEIA CARL DAHLHAUS conceito de miisica tem em si um cunho europeu = por motivos nao etimol6gicos, mas histéricos ~ que se pode agradecer nao & origem grega, mas as consequéncias que derivaram dos pressupostos da antiguidade clés- sca; um cunho que se revela indelével, s & forga se tentar adaptar profundamente o conceito de misica a outros estados de coisas com «que se depara em culeuras extra-curopeias.Aos tragos especificamente ezuropeus que lhe sio inerentes pertence, todavia, uma historicidade que toma problemitico 0 uso do termo «miisica» no singular: jé na historia musical europeia —e nao apenas nas culeuras extraeuropeias = cle nio significa, de facto, sempre a mesma coisa. Mencionar «o» ‘conceito europeu de miisica s6 € admissivel na medida em que, em vex de se esperar uma definibilidade sua mediante um leque cons- tante de caracterstcas, aceitamos a continuidade da evolugéo como justificacao suficiente do precdrio singular. Que na definigo platSnica de misica os temos harmonia (rela- ‘Ges reguladas entre os sons), rhythms (movimento dancante)¢ logos (discurso) estejam lado a lado, em vez de huerarquicamente agrupados, ‘em nada altera a circunstincia fundamental de que, no pensamento ‘musical europea — tanto na teoria implicia, presente nas obras, como na explicita referida nos tratados — sempre foi o sistema tonal —e néo ‘© momento ritmico, orquestral—a ser captado como especificamente «musical, Ainda em 1948 — justamente quando se experimentava ‘na miisica serial a supressio do primado da altura do som — Jacques Handschin distinguia a aleura, como qualidade «entraly do som, da duragio, da intensidade e do timbre como caracteristicas eperiféricasy ‘ou parimetros. (Que Amold Schénberg limicase a técnica serial & cestrutura da altura do som — uma vincoerénciay que lhe foi censurada ‘pelos apologistas da misica serial ~ € um resultado tardio de um pen- samento musical de cunho especificamente europet,) ( primado do sistema tonal ~ ou da estrutura da altura do som individualizada na obra musical singular — 6 tanto mais significative 7 CARL DAHLHAUS Fees lmo & sein dvida, 0 momento mais perspicuo e mais ‘ficaz. Endo éum exagero ver ha relagdo emvanataer am tm tsgo steric da mle exropa se esde a reflexio te6rico-musical da ant tiguidade cléssica Tdade Média até & andlise da obra musica do seco ae partcular tendéncia, esteticumente injustcdvel, ‘pan buco ‘€m estruturas tonais abstractas © excluidas do ritmo a substancia dimanam, em pare, do faco de modelo para qual oan care $= subrtd constnudo ou pel tema tonal ca poe es Pela polfonia, que ingzessvam todos no conceited harm O processo que proporcionou 4 miisica curopeia, antes de mais, Asi de polifonia edo seu sistema de intervalos em rede ccna da homofonia ¢ do sistema tonal que he extavasabjacenes pro- poli tut fo, pelo menos, vo importante como o nascimentt da Polifonia~ ndo € darivel.O faco de que, depois do sealer jd fag, {etka compesto misica homéfona com pretensio antici Bo entanto, aim terminus anse quem. (Os coraislateranee aay acpi #6 a Sparncia, vst que atlas com a polifonia le se estabeleceu & volta de Lutero est jd, ne i anna 0 esti jd, no fundo, pré-constituida Mais esencal do que o dado temporal, que nto se pode etabe- lee, 0 sentido do proceso, graas ao qual poiforig ve transfor- ‘mou em quinta-esséncia da miisica. Ena tentativa de-o reconstruir é Possivel partir da interpretagio de uma descoberta fundamen] que dea aa? $éculo aa a descobera de que a mutagio das qualidcteg dos sons pode ser um meio para constr através de acordes, uma Fepgressio musical de que mana aimpressio do rigor, (Que os an formem, por si, progresses conttapoe-se tess de Erg Kurth, segundo o qual o contraponto wauténtico» resultaria do momento 38 t H—CONCEITO DE MUSICA E TRADICAO FUROPEIA horizontal da slinearidade» mel6dica e do vertical da simples wtole- rabilidade» das voues em relacio aos intervalos.) Em vez de se porem simplesmente lado a lado 0s acordes ¢ de se confiar a sua ligagio & melodia ou aos movimentos das vores, desde « século x1 disciplinou-sea polifonia artificial com base no principio de que um intervalo mais imperfeito tende «por natureza» para um mais perfeto. E a nogéo fundamental segundo a qual uma mudanga clas qualidades do som pode ser orientada para umn fim, constituindo assim o andamento musical como trago decisivo de uma msica que ssealizan a temporalidade a partir de dentro, continuou a ser, até & semancipagio da dissondnciay de Auld SdhOnberg, a ideia susten- tadora da polifonia europeia ~ indiferentemente da pressecucio ot resolugéo da quarta no unissono e da quinta na oitava (sé. xt), da ‘erceira maior na quinta e da sexta maior na oitava (século x1V), ou do acorde de sétima dominante na triade de tnica (séc. xvi) Que os intervalas com proporgses numéricas mais simples scjam ‘mais imperfeitos & a premissa herdada da concepgio pitagérica, transmitida por Boécio 2 tradicao europeia, Pelo contritio, a ideia de uma stendéncia» do mais imperfeico para o mais perfeico tomou- -se desde 0 século x1, provavelmente s6 em virtude da recepeio das teses atistorélicas, um rasgo dominante do pensamento geral & por isso, também do pensamenco «dentro» da miisica e «sobre» la. Nao que o pensamento teleolbgico dos primeiros séculos se tivesse tornado estranho; mas realgar o devir em relacio ao ser é uma tendéncia do aristotelismo, que nos séculos x11 ¢ x11 substituiu platonicmo em posigéo de preduusiuiu. O concelto de miisica da ‘dade Média tardia foi portanto, enquanto orientado para a polifo- nia (cujas normas de sintaxe musical cram regras de progressio), por tum lado, matemético e, por outro, dinamico ou teleoligico. A.um conceito anterior da mtsica, que partiu da homofonia edo sistema tonal que Ihe estava subjacente, portanto de uma estrutura estética, pode opor-se um conceito ulterior, centrado na polifonia © as progressées de intervalos que a consticuiam, ou seja, num procedimento teleolégica, dinamico, Em vez do «ser» da niisica levou a melhor o «devit», 0 progredir no tempo em direceio a uma ‘meta, em sintonia com as modificagdes que se estavamn a afirmar na hstéria das ideias. Que o sistema tonal ¢ a polifonia processual se possam conceber como elementos de uma estratificacio da miisica é téo indiscutivel 39 2 BA MUsIca? CARL DAHLHAUs quanto 0 facto de que também a homofonia, como Progressio no fempo, contém um momento processual. Mas, em primire lugar, Faso leolégico da poifonia, desde o sécul xem diante ésiga fcatvo ¢ exclarece, sob o peril du histria das ‘dels, juan ons porque que nao € dbvio: como se indicou, é possivel também disper acordes um ao lado do outro e exigit a sus ligacio orhen jamente & melodia ou aos movimentes das vozes. Es em segundo lugas a evolusio das ideas no é, em grande parte, uma Rete: de descobertas no sentido radical da palavra, me de deslocagses de Saco utimizada, perence também ~ de certo modo como ines $40 meio-fim, c que néo vale a pena tomé-l era considetacio dnilse¢ na incerpretacio das obras — como ld conseatan eae Schumann ~ porque sto ao mesmo tempo dbvas coreundine oe tranchind® vigente em épocas precedents. A palavra composcdo MOUs & pouco € pouco, de termo parm e oficiu auc sen sompotor exe pra as normas ans les guas cleo una designasio do produto que ele cra. Ea mudangs nt = que nao eliminow o antigo sentido da palavea, ma o mbitopedagigico de scria compositions Indes oe go cig de regs em verde constr a substincla de wodicas ‘scl ~ porno também do conceit de misien = é deagontty £ido.em simples suxiio na concepeio das obs, a qual devant, fot considera como o nico apecta decisive, A dhcmsio wan do emprego das regras compositivas, consideradas altrnatanens ome movimento que sustenta as obras ou come inane ryt pois dots, pode parecer uma woca de medfone sue incidle pouco na matéia. A importincia desta difrence rot post ux do fcto de que, em épocas anteriores, at epee eae Posiivasé que sobrevivram durante mais tempo, want cece 40 | 1 —CONCEITO DE MUSICA E TRADICAO foram rapidamente esquecidas; mais tarde, pelo contriro, a relagéo inverteu-se ao ponto de as obras, pelo menos as preeminentes, se jimporem no repertétio, enquanto as regras da composicio sofrerem tum processo de transforinacao em continua acelerasio, até que na ‘Nova Misica do século xx se tornou necessirio, em substancia, inventar de novo a técnica para cada trabalho individual. © conceito de obra ~ que, durante um certo periodo, esteve exposto & suspeita de ser frdgil e de estar ultrapassado, mas que entretanto parece ter sido repristinado — convertett-se 20 longo doz séculos, a pouco ¢ pouco, na diferenciada categoria estéticae teenico- -compositiva em que se apresenta desde o final do século xvin; ¢ seria arbitirio declarar um dos seus primeiros ou tkimos estidios de desenvolvimento como momento histérico «do» seu nascimento, (A polémica de se a esséncia de uma coisa avultajé na sua origem ou 86 mum ulterior point de la perfection ainda néo vetminou.) Designar como obra um moteto de Machaut néo é de facto, um anacronismo, ‘mas, por outro lado, ¢ inegivel que a ideia de um todo auténoma radicado numa riqueza interior de relagbes, que desde entéo figura como constitutiva do conceito de obra ~ pelo menos para o cléseico ~ foi formulada por Karl Philipp Moritz s6 na década de 1780. Na base do conceito enfitico de obra proprio dos séculos xvt, Xk ex encontra-se, antes de mais, uma teoria da arte que, acima de tudo, € uma estética, em segundo lugar uma ideia da forma musical que se inicia com a miisica instrumental e, por fim, uma concepeio da histéria, cuja substancia € uma relagio dialéctica entre a ideia do clissico e os principios do historicismo, conceito de obra priprio da estétca mergulha as suas raizes, Por um lado, no pensamento formal tomado consciente ~ de inicio, praticado sem teotia— por Karl Philipp Mori, por outro, na ideia da otiginalidade, cuja pretens4o enfitica de ser a condigéo da aurentici- dade da arte se imps com rapidez espantosa na conscigncia geral, no final do século xvun. As caractristicas da originalidade ~ 2 novidade «tama subjecividde que se exprime na obra— nem sempre coincidem (@ cautenticidader da expressdo subjectiva nio exclui a criagio de ‘binch, © no percurso para o set intimo assomam, muitas vezes, puras € simples convenées). Mas a sua coincidéncia remonta a uma época que tendia ainda a ligar conjuntamente progresso e subjectividade ~a substancialidade da arte — em vez de os levar a separar-se (auum Progresso xestranho» ¢ numa subjecrividade retirada para si mezma). a 'UE BA MUSICA? _CARL DAHLHAUS A ideia de originalidade & considerada historicamente como a oposicéo exclusiva & poética candnica. No entanto, as regras no foram, em rigor, abandonadas, mas alteraram apenas a sua funcio, 4 sua condicio tebrica. Johann Joseph Fux (Gradus ad Parnassum, 1725) considerava as notmas da composicao rigorosa como um fundamento inviolavel da prética compositiva, eos diferentes péne- tos de licenca que permitiam uma livre composigio como possibili- dads da formato de ests Yariv slreatias ou coeitentes s «tipos de escrita» em que se manifesta o espirito de um: dnsim género ou de una indvidualdade, sso tne enone ‘superficie intermutaveis, enquanto as normas da composigéo tigo- rosa contemplam a estrutura de fundo sempre invariada de uma polifonia arificial. Por outro lado, desde o final do séeulo xvit acentuou-se 0 «devi» hist6rico em vez do «set» dado pela natureza: 4 composigio rigorosa transformou-se de fundamento sustentador dla pritica compositiva num simples estédio inicial de exercicios polifonicos; eo estilo individual ou epocal em mudanga foi elevado ~ justamente na sua historicidade e fugacidade — de condicio de ‘manifestagio secundaria & de forma essencial priméria. A concepeio da forma musical, que encontrou a stiaexpresséo paradigmética na forma sonata de Haydn, desenvolveu-se quase 20 mesmo tempo que a teoria estética em que Karl Philipp Moritz dleduziu a organicidade autSnoma da obra de arte a pare da sua riqueza de relag6es internas, sem que o esteta se tivesse tornado consciente da realizagéo musical da sua icia ou, inversamente, 0

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