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DUT HAUDIO FF CRIME E JOTIDIA NO A CRIMINALIDADE EM SAO PAULO (1880-1924) BORIS FAUSTO O que se retrata nesse livro 6 um periodo de mudancas profundas para o Brasil. Foi nessa fase que se sentiram as conseqiiéncias da abolicdo da escraviddo, da imigragao estrangeira, do nascimento das fabricas e do surgimento da massa operéri especialmente numa pequena cidade de pouco mais de 35.000 habitantes: Sao Paulo. Ela se transformaria, em 40 anos, no segundo centro urbano do pais, em tamanho @ portancia econdmica. Boris Fausto examina o fenémeno da criminalidade nessa fase, nsando o 10 de mudangas sociais da cidade. Sua preocupaciio + do se limita a criminalidade envolvendo aqueles que estéio & margem dessas mudangas, mas tenta compreender também 0 cédigo de ética social da época, a ideologia que move a sociedade para a condenagiio ou absolvico dos homicidas, prostitutas, assaltantes e criminosos sexuais. Crime e Cotidiano assume importéncia particular nos dias de hoje, para a compreensio de uma realidade semelhante aquela do comego do século e que voltamos a presenciar. editora brasiliense _WATURAS = «+ Arqueologia da Violéncia — Enssios de Antropologia Politica = Pierre Clastres # A“Conciliaglo" e outras Estratégias — Michel M. Debrun Crime, Violéncia e Poder — Paulo Sérgio Pinheiro (org.) ireitos Civis no Brasil, Existem? — Hélio Bicudo + Economia Politica da Urbanizagao — Paul Singer * Escritos Indignados"— Policia, Pris6es e Politica no Estado Autoritério — Paulo Sérgio Pinheiro Que Crise ¢ Esta? — Marcel Bursztyn/ Arnaldo Chain Pedro Leitéo (orgs.) 1+ Os Pobres na Literatura Brasileira — Diversos Autores ® Sociedade e Politica no Brasil Pos-64 — Maria Herminia T. de Almeida (org.) + Violancia, Povo e Pol ja — Maria Vietbria Benevides / CEDEC Coleco Primeiros Passos = O que é Direito — Roberto Lyra Filho + 0 que so Direitos da Pessoa — Dalmo de Abreu Dallari + O que 6 Justica — Jdlio C. Tadeu Barbosa + O que ¢ Poder — Gérard Lebrun + O que é Violencia — Nilo Odélia # O que é Violéncia Urbana — Régis de Morais Coleco Tudo 6 Historia ‘+ 0s Crimes da Paixio ~ Mariza Correia Boris Fausto Biblioteca Mo-Puc/sp OT 100134807 Crime e cotidiano A criminalidade em Sao Paulo (1880-1924) F_ppRiol tout wos Syos? 1984 Copyright © Boris Fausto Capa: Moema Cavaleanti Revisdo: José W.S. Moraes Vyomso 49.524 woe 5 editora brasiliense s. 01223 — r. general jardim, 160 so paulo — brasil Indice Agradecimentos 7 Introdugao ... : 9 Criminalidade e controle social . 30 Homicidio . 92 Furtos e roubos . 126 Crimes sexuais 173 Julgamento 226 Inconclusio 260 Textos .. 263 Nota sobre o procedimento 285 Fontes utilizadas .. 288 Para o Ruyeo Gordo Lopez ) Agradecimentos Minha lista de agradecimentos a pessoas que tornaram este livro possivel & bastante grande. Incorrendo em omissdes, lembro alguns nomes. Meu velho amigo hoje desembargador Fabio Moretzsohn de Castro me proporcionou os contatos para que pudesse examinar processos existentes no Arquivo do Tribunal de Justica do Estado. Os funcionarios do Arqui- vo me atenderam com extrema atengdo e amenizaram a minha estada na poeira ena umidade, que para eles permanente, com discussdes t4o variadas como os resultados dos jogos de domingo ou o precario aumento dos servidores piblicos. Arakcy e Leéncio Martins Rodrigues discutiram as pri- meiras opcdes da pesquisa. Reginaldo Prandi me orientou na claboragao do programa de computacdo, gastando varias horas de seu tempo. Cynira Stocco Fausto nao precisou ter paciéncia, nao datilografou nada e me ajudou enormemente em um certo modo de ver que espero seja uma das linhas de coeréncia deste trabalho. Carlos e Ser presentes na critica do texto. Os comentarios de Ligia Silva, Mariza Corréa e Barbara Weinstein a uma primeira versdo de parte do Capitulo I abriram caminho para uma reformula- 40. Peter Fry leu o manuscrito final, Nao pude assinalar a cada passo 0 quanto devo a sua critica sem concessdes, cuida- 5 BORIS FAUSTO dosa e estimulante, Em muitos pontos do livro ha sugestdes que so dele e algumas discordancias com Peter me permiti- ram tentar sustentar meu argumento. Por outro lado, lembro que dtimas condigdes de traba- Iho me foram proporcionadas por bolsas da ‘Guggenheim Foundation”, do ‘Social Science Research Council” ¢ da Associagao Nacional de Pés-Graduagao e Pesquisa em Cién- cias Sociais (ANPOCS). Foi de grande importancia para 0 contato com outra realidade a minha estada por 9 meses no ‘Woodrow Wilson International Center for Scholars” (Washington), entre outubro de 1980 e junho de 1981. Perso- nifico os agradecimentos as muitas atengdes recebidas do pes- soal do Centro, em seu diretor dr. James H. Billington. Introdu¢ao ESSE Este ¢ um estudo sobre criminalidade e crimes na cidade de Sao Paulo, entre 1880 ¢ 1924. As duas expressdes t@m sentido especifico: “‘criminalidade’” se refere ao fendmeno social na sua dimensio mais ampla, permitindo o estabelecimento de padrdes através da constatagéo de regularidades cortes; “‘crime’’ diz respeito ao fendmeno na sua singularidade cuja riqueza em certos casos nao se encerra em si mesma, como caso individual, mas abre caminho para muitas percepgdes. A escolha do periodo ¢ a fixacdo das datas-limite nao acidental. Como se sabe, naqueles anos, ao lado e como parte integrante de processos sociais de émbito nacional, Sao Paulo experimentou um intenso crescimento econdmico e demogra- fico, onde a imigracéo desempenhou um papel de primeira grandeza. Por varias razdes — algumas de ordem geral, outras ligadas a condigdes peculiares —, a cidade converteu-se na- quele periodo em um campo fértil para o estudo da delin- qiiéncia, atualizando desafiadoramente questdes classicas como as das correlacdes entre criminalidade ¢ crescimento urbano, criminalidade e cor, criminalidade e populagao imi grante, para ficar em uns poucos exemplos. A rigor, duas cidades aparecem nas pontas deste traba. Iho. Em 1880, nao obstante 0 processo de crescimento ja 10 BORIS FAUSTO estar delineado, Sao Paulo ¢ ainda um micleo de pequena expresso, como pouco mais de 3000 habitantes, menor do que o Rio de Janeiro, Salvador, Recife e Belém. Apos atra- vessar alguns periodos de espetacular crescimento demografi- co, a cidade se convertera em 1924 em um importante centro urbano, com mais de 600000 habitantes, o segundo maior do pais desde 0 comeco deste século. A onda imigratoria, inicia- da em meados dos anos oitenta, chegara ao apogeu no ultimo decénio do século XIX para a seguir reduzir seu impeto. Enquanto em 1893 a maioria da populagdo de Sao Paulo (55%) era constituida de estrangeiros, estes em 1920 tinham- se convertido em uma minoria (36%), embora ponderdvel, da populacdo. Nos anos vinte, a vida de muitos imigrantes que haviam desembarcado jovens em terra estranha nos iiltimos anos do século, para “fazer a América”, se definira para bem ou para mal. Na luta pela sobrevivéncia e pela ascensdo social, familias se desigualaram, convivéncias se romperam no espa- 0 urbano. Os sonhos se realizaram para alguns ¢ as ilusdes se desfizeram para muitos. A tematica da imigragao se combina com o seu reverso: a tematica dos nacionais que viveram a “‘invasao”” de Sio Paulo, em uma experiéncia comparavel em certos aspectos & das pessoas de minha gerago que viram se transformar a cidade da oligarquia e dos filhos de imigrantes, em conse- giiéncia das migracGes internas. A nova onda de “‘invasores”” ocupou alguns dos velhos bairros proletarios ou acampou na periferia da cidade em ‘vilas”” e “‘parques”” cadticos, com nomes ironicamente apraziveis, meros letreiros de dnibus portadores de uma carga cinzenta e malcheirosa, aos olhos da gente mais favorecida. ‘Nos velhos tempos, cada grupo social reagiu a seu modo ou sofreu as conseqiléncias da onda imigratéria: a oligarquia que indiretamente a promovera, na busca de bragos para o campo, tratou de conté-la dentro das fronteiras da ordem, reservando para si as areas que institucionalmente podia blo- quear — os postos mais altos da administracao do Estado ¢ 0 comando politico; a reduzida pequena burguesia comercial e industrial sofreu 0 impacto de uma concorréncia ativa que produziu ressentimentos; os negros e mulatos foram cristali- zados em sua maioria no subemprego ou nos empregos infe- riores, nao obstante sua convivéncia fisica com os brancos pobres, em locais como os cortigos do Bexiga. ’ CRIME E COTIDIANO u A década de 1890-1900, caracterizada pelo crescimento populacional a uma taxa geométrica de quase 14% ao ano, pode ser vista como momento dramatico de passagem de Sio Paulo a maioridade, quando alguns problemas novos surgem € outros ganham intensidade. Em diferentes niveis, aparece a preocupagao de controlar, de classificar, ligada ao objetivo das elites de instituir uma ordem urbana. Propésito de clas- sificar, de entender, revelado na elaboragao de estatisticas criminais para a Capital, com um minimo de confiabilidade, a partir de 1892, ou na realizacao de um dos melhores censos da cidade em 1893.' Propésito de controlar segmentos da populacdo como as prostitutas, os menores vadios ou os pri- meiros organizadores do incipiente movimento operario, facetas diversas reunidas em um caleidoscopio regulador. A primeira noticia sobre a regulamentagdo do meretricio data de 1879, quando o chefe de Policia Augusto de Padua Fleury elaborou um projeto a respeito que ndo teve sequéncia. Em outubro de 1893, O Estado de S. Paulo voltou a levantar a questo, considerando os bordéis antros de jogo ¢ roubo. Poucos anos depois, em 1896, foi baixado o ‘*Regulamento Provisorio da Policia de Costumes”, sob inspiragao de Can- dido Motta, objeto aliés de muitas criticas. As campanhas contra os ‘“‘menores arruaceiros’’ ou abandonados, dos wi! ‘mos anos do século, resultaram na criag4o do Instituto Disci- plinar em 1902. Por ultimo, as primeiras prisdes de organiza- dores do movimento operario — socialistas e anarquistas que pretendiam comemorar 0 1° de maio — se deram em 1894. Por alguns anos, a partir desta data, as estatisticas de prisdes 0 maior cuidado ne elaboracso de estatisticas criminais 6 por si 36 ovelador, nas condigdes da época, Observando 0 cuidado com a mensuraglo ‘na Comédia humana de Balzac, Louis Chevalier assinala que isto no se deve ‘apenas a caracteristicas especificas da criacdo literéria, mas & conjuntura Social, conducente & preacupagao com @ medida @ & ampliacho das estatist. ‘cas. Chevalier contrasta a relative pobreza documental do Segundo Império ‘com a riqueza co material acumulada durante a Monarquia de Julho, lembrando lade’ do orimeiro em confronto com "as doentias condictes sociais tradas em inquietantes estatisticas. Cf. Louis , Classes laborieuses et classes dangereuses & Paris pendent la pre- ‘miere moitié du XIX siecle, 1958. 'Nao se code porém converter esta observagio em regra geral, Na S8o Paulo dos ltimos anos, quando a criminalidade assumiu 80 que tudo indica grandes propor;bes, as estatisticas s8o precérias @ defeituosas. Isto pode ser atribuido tanto’a deficitncia do funcionamento de 6rg8os piblicas como 20 ‘objetivo de maripular @ informacao, 2 BORIS FAUSTO incluiram 0 item ‘‘anarquistas’’, ao lado de outros como caf- tens, ‘‘gatunos” etc.? A referéncia a ultima década do século XIX como mo- mento dramatico na vida da cidade nao pressupde um corte brusco. Em primeiro lugar, seria erréneo pensar que Sao Paulo tenha sido alguma vez algo semelhante a um lugar idili- co. Desde os tempos coloniais, ha referéncias esparsas 4 pra- tica de delitos, a existéncia de gente pobre, doente, mendi- gando nas ruas. Afora isto, € certo que o interesse pelo tema da criminalidade, assim como as noticias de crimes, vinham em um crescendo desde os anos setenta. Mas 0 Ultimo decénio do século — ressalvado certo arti- ficialismo inevitavel em qualquer periodizacdo — representa uma inflexdo. Na imprensa, descontada a nota folhetinesca, reflete-se a desconfianga pelo novo, o temor indefinido do crime, 0 desejo de ordem, como transparece neste texto do Diério Popular, a propésito da morte de um comerciante: “Sao Paulo, que ha muito tempo nao fornecia aos jornais sendo fatos insignificantes, encaixados em duas linhas insipi das de gazetilha, sem 0 relevo de um comentario; Sao Paulo, na semana finda elevou-se, em relacdo a assaltos ¢ agressoes, a.uma altura a que nunca chegaram o pinhal de Azambuja ¢ 08 bosques da Calabri assassinato de Paulista (nome da vitima) que causou sério sobressalto nesta popula¢do despreocupada, ou antes preocu- pada com as incorporages quand méme de companhias, assassinato cometido friamente com uma sanguinaria brutali- dade inqualificavel, fez percorrer pelo dorso da populacdo o calafrio do medo e fez-lhe erigar os cabelos de terror. © local, a hora, 0s meios, os fins do barbaro assassinato, tudo premeditado com firmeza e tudo consumado com uma pericia digna da guilhotina, se ela existisse em nosso pais € fossem presos os miserdveis, fizeram com que 0 povo que perambula de noite se munisse de armas, pouco confiante na solicitude e eficdcia de nossa deficiente policia, 2 Sobre 0 toma da prostituigBo ver olivro pioneiro de Guido Fone io em So Paulo, 1982. A defesa do Regulamento da Poll ncontra em Candido Mota, Prostituiéo. Policia de costu brio apresentado a0 Exmo, Dr. Chefe de Policia, S80 Paulo, 1897 Sobre a questo do menor ver Candido Mota, Os menores delinquentes @ 0 seu tratamento no Estado de Séo Paulo, 1903, CRIME E COTIDIANO B Realmente, nao era das mais agradaveis a perspectiva. Pensar que ao regressar ao lar, tranquilamente, podia o cidadao ser abafado por dois ou trés homens possantes, sedentos de san- gue e famintos de dinheiro, que nao tém coragem de ganhar a vida pelo machado do trabalho ¢ sim coragem para ganha-la pelo trabalho da machadinha, pensar tudo isso era simples- mente horroroso! Entretanto, ¢ a crdnica aplaude-a, a policia fez um belo movi- mento de atividade, saiu a campo com zelo desusado e louva- vel; e, embora diga 0 povo que ela se parece com aquele que trancou as portas depois de ser roubado, a crénica reconhece que ela tem feito o possivel para descobrir 0 paradeiro dos ferozes assassinos de Paulista, e também tem feito bem em chamar a sua presenca os individuos que por ai andam e que a gente no sabe 0 que querem, de onde vieram ¢ para onde Vio, cinicos, calmos, ociosos. Nao desanime a policia, seja a policia forte, e mesmo que seja violenta as vezes, que importa? — afim de restabelecer os cré- ditos de Sao Paulo gravemente comprometidos por celerados sem nome, prendendo-os, ¢ de assegurar 0 sossego de todos, detendo os viciosos, desocupados e mendigos, cogumelos nacionais ¢ importados que vivem a sombra do trabalho alheio”.” Na medida em que a violaco das normas penais vinha associada a recente presenga macica de estrangeiros, o pre- conceito contra estes e a sua associagao com a criminalidade ganhou nitido contorno naqueles anos. Aparece aqui a outra face da imigragao, a dos fracassados, dos aventureiros, dos fugitivos da justica, que nao se enquadra nos moldes do abne- gado trabalhador, da gente ativa que estava suplantando os nacionais na pequena indistria e no comércio. Relatérios policiais responsabilizam os estrangeiros pelo avanco da cri: minalidade, teme-se que o Brasil comece a receber alienigenas de “etnias indesejaveis”.* A propria associagdo profunda 3 Didrio Popular, 29.1.1892. * Um dos mais curiosos artigos acerca das ‘etnias indesejéveis” diz res peito aos judeus, especialmente os judeus russos. Trata-se de um artigo assina {do por “Um Paulista” cujas consideracdes ‘nfo sio ditadas por qualquer pr Cconceito anti-semitico, mas pura e simplesmente sio filhas do muito amor qu dedicamos a nessa pétria". A inconveniéncia da admissao de judeus funde-se 6 BORIS FAUSTO entre 0 negro ¢ 0 crime ou simplesmente 0 écio cedeu no pe- riodo algum terreno, Para nossos ouvidos acostumados a ligar a figura do imigrante a disciplina ¢ ao trabalho soa estra- nho ouvir por exemplo a acusagdo de que os mendigos que infestam as ruas do Centro nao sao pretos, mas sobretudo imigrantes ociosos.’ Alguns textos oficiais daqueles anos vin- culam também o crescimento da mendicdncia ao influxo de estrangeiros. O relatério do chefe de Policia de 1895 faz esta vinculagao € pondera que conseguiu entretanto reduzir em muito a presenca de mendigos alienigenas no centro da cida- de, local por eles preferido. O objetivo foi alcancado vedan- do simplesmente a entrada destes elementos na zona central e em outros pontos concorridos.* Em suma, na ultima década do século XIX, Sao Paulo parece perder sua inocéncia, sacudida pela tensdo entre na- cionais e estrangeiros — de que o episodio do Protocolo Ita- liano é a demonstragdo mais evidente —, pelo crescimento desmesurado, pela ameaca de uma completa desfigurago em que a criminalidade, na consciéncia dos contemporaneos, é um elemento relevante. Depois, os tragos mais radicais deste periodo parecem desaparecer, como se a virada do século viesse anunciar novos tempos. Obviamente, os focos de tensao nao se extinguiram e, em alguns casos, como o das reivindicagdes operarias, ganharam mesmo maior impeto. Mas, 0 refluxo da imigra- ‘em argumentas de ordem sdcio-econdmica @ bioldgice. Inicisimente, o articu "a5 culturais e climaticas entre o Brasil e a Russia para de descontentes ieo8, of quais ou te transtormi bando de pedintes e quie4 de criminosos impelidos pela nect ‘a contradi¢ao no importa — acusa os judeus de monopoliz Gas 8 uma perseveranca mal compreendida, pois é posta a servico da seita, {da famiia ou do individu porque eles no tém patra. Afinal, associa doenca e {cae malditas, a partir das opinides de um corto professor Wuna, alemio judeu de origem, um dos mais acatados especialistas do mundo em doenga da ppele. Segundo 0 professor Wuna, os judeus 580 atacados pela mortéia com uma preferaneia assustadora, conclusso cientifica confirmatéria da modesta ‘observacdo do autor que jé notara ter 0 morfético em nosso pals, quase sem pre, um tipo acentuado de judeu. Diario Popular, 29.1.1 892 ® Didrio Popular, 30.8, 1892. Para a frequente associacao entre gatuno fe estrangeiro, ver Diério Popular, 31.3.1891, ¢ 23.5.1892 ° Releténio apresentado a0 Secretério dos Negocios da Justica do Estado de Sio Paulo pelo Chefe de Policia Bento Pereira Barreto (Ano de 1895), S80 Paulo, 1896. ‘CRIME E COTIDIANO 1s Gao, refletido no crescimento da cidade em ritmo mais mode- rado, permitiu entre outros fatores uma rpida acomodagao. A perda da inocéncia nao se tornava catastréfica. Afinal, era possivel a convivéncia entre as diferentes “etnias”, assim como era possivel lidar com 0 movimento operario, toleran- do-o ou reprimindo de acordo com as circunstancias. No terreno especifico da criminalidade, a sensagao de inseguranga refletida na imprensa deu lugar a uma “‘naturali- zacao” do crime, fendmeno inevitavel como os cortigos — que se presume constituir um de seus focos — ou as inunda- goes. Aqui e ali, nas criticas as autoridades policiais, fala-se de S40 Paulo como uma cidade perigosa. O tom geral porém nao é assustador, e a impressdo mais duradoura que se vei- cula é de uma cidade relativamente trangaila, em contraste com a Capical da Republica. A importagdo temivel parece ser sobretudo « proveniente do Rio de Janeiro, quer se trate de estrangeiros ou nao. Com certa frequiéncia, a imprensa consi- dera alguns assaltos inusitados obra de ladrdes cariocas, per- seguidos pela policia. Ja em 1898, embora ainda estabelecesse correlagdes entre a condigdo de alienigena e a criminalidade, 0 jornal A Nagao assinalava o contraste entre Sao Paulo e 0 Rio de Janeiro, em um artigo intitulado ‘“Emigragao Perigo- sa””: uma leva de ladrdes est sendo premida a sair do Rio, “‘valhacouto natural da malandragem, que la tem seus nicleos constitutivos e quase, por bem dizer, sua escola primaria de vicio’’, buscando Sao Paulo pelas muitas atragdes de ganho, dada a existéncia de uma populagao abastada.” A “naturalizagao”” do crime nao implica 0 desinteresse. Pelo contrario, ele se torna componente integrante do dia-a- dia como alimento cotidiano de uma parte do publico letra do, especialmente apés o surgimento de uma imprensa sensa- cionalista nos anos dez." Vai-se operando entretanto uma hi ? A Necéo, 14.12.1898. A percepcdo das diferencas, apesar da lingua gem, naoe selina provavelmente ds distincdes da estrutura social das 6 dizer muito. O tema se abre a pesquisas cheias de No interior de um mesmo Contexto amp, hotérias. Basta pensar na amplitude do fendmeno do jogo do bicho, na correlacao entre a marginalidade, ola de samba @ os clubes de futebol no Rio de Janeiro, ou mesma na cif: posture de certas autoridades polciais o judicirias dos dois centros, ® Em tomo da ultima década do século XIX, o noticiério criminal ganha dostaque nos jcrnsis respeitéveis como O Estado de S. Paulo e 0 Correio Pauls: possi 6 BORIS FAUSTO. rarquizagdo mais clara dos delitos, segundo o prestigio dos envolvidos, as circunstancias em que ocorrem ou os objetivos visados: “‘Depois de uma calmaria de longos meses, a policia registrou ontem um fato de sangue que, por algumas horas chegou a impressionar a populagao desta Capital, ja esquecida das tre- mendas tragédias desenroladas nos primeiros meses deste ano. Durante algumas horas, a noticia da terrivel cena de que foi teatro um campo existente ao lado da estrada da Boiada impressionou a populacdo, impressdo que foi-se desfazendo logo que soube serem 0 protagonista ¢ a vitima pessoas des- classificadas. E, de fato, o drama sangrento de ontem pouco interesse pode despertar: é um crime de terceira classe, como se diz na giria da reportagem... O caso é simples: um pardo bogal, julgando-se ludibriado pela amante, mata-a desfechan- do horas depois um tiro no ouvido™.* O crime excepcional continua a ser cantado seja nos jornais seja através dos folhetins. Exemplo dos exemplos, o folhetim intitulado “*O crime da mala ou um criminoso inocente”, narrando 0 assassinato do comerciante Elias Farah, ocorrido em setembro de 1908. Pela categoria social dos envolvidos, pelo mistério dos motives encerrando um possivel mas nao comprovado adultério da mulher da vitima com o acusado Miguel Trad, pelos ziguezagues desnorteantes da palavra do réu, pela forma inusitada de livrar-se do cadaver que dé ao delito seu rotulo distintivo, o crime de Trad sensibiliza como nenhum outro a sociedade da época."” No senso comum, a histéria da criminalidade — dificil de ser pensada como um tema “digno’? — nao poderia ‘ocupar-se de outra coisa sendo do acontecimento excepcional ‘ou dos grandes personagens, convertendo-se em uma historia or um certo est Crimes misteriosos. A aparicBo da imprer Capital, « mesmo © Combate) vem radicalizer estes tracos. 8 0 Comércio de Sio Paulo, 17.8.1910. 10 Um andincio detalhado da vends do folhetim se encontra em O Comér- io de Sé0 Paulo, 31.10.1908. CRIME E COTIDIANO 7 dos crimes. Os meus dedicados amigos do Arquivo Judiciario do Estado, por exemplo, talvez nunca chegaram a entender que eu me preocupasse com pilhas de pacotes empoeirados, onde se amontoam dados repetidos sobre imigrantes obscu- ros ¢ ladrdes ‘pé-de-chinelo”’. O importante para eles era localizar o primeiro crime da mala, as facanhas de Meneghet- ti, equivalences aos fastos comemorativos ¢ aos personagens ilustres da historiografia nobre. Entretanto, uma de minhas preocupagdes consiste em apreender regularidades que permitam perceber valores, representagdes € comportamentos sociais, através da trans- gressdo da norma penal. Isto pressupde uma opcao prévia, como resposia a uma questo freqiente em estudos sobre cri- minalidade. Ao lidarmos com 0 crime estariamos lidando com uma relacdo individual aberrante, pouco expressiva dos padrdes de conduta ou das tenses reais de uma determinada sociedade? A historia da criminalidade seria quando muito uma historia do desvio, daquilo que a sociedade repele inten- samente? Parto de outro ponto de vista, ou seja, de que, se apreendida em nivel mais profundo, a criminalidade expressa a. um tempo uma relagao individual e uma relagao social indi- cativa de padrdes de comportamento, de representagdes € va- lores sociais. Varios comportamentos, definidos como crime = do incesto ao homicidio — nao so muitas vezes outra coi sa sendo a expresso de desejos ou de um potencial de agres- sividade reprimidos que se explicitam. A preocupagao com as. regularidades nao significa porém 0 abandono do excepcio- nal ou daquilo que na aparéncia é apenas pitoresco. No s6 fatos desta ordem podem ser o sal de uma demonstracdo, como podem ser reveladores de dimensdes nao apreendidas de outra forma. O texto aborda a tematica a partir de dois niveis distin- tos: um deles, de espectro mais amplo, procura estabelecer quantitativamente as grandes linhas da criminalidade do pe- riodo, expressas no niimero de infracdes, na sua distribuicao por tipos de delito, na correlagdo entre nacionalidade, idade, sexo, cor etc. e quebra da norma penal; o outro, de uma pers pectiva que pretende ganhar em profundidade o que perde em extensdo, empreende a anilise de trés tipos de delito — os homicidios, 0s furtos/roubos ¢ os chamados crimes contra os costumes — abrindo-se para os temas da vida e da morte, da propriedade ¢ do sexo. 18 BORIS FAUSTO Em cada um dos niveis indicados, utilizei preferencial- mente materiais com caracteristicas peculiares que acho signi- ficativo ressaltar. No primeiro caso, as estatisticas sao a fonte predominante. Na literatura internacional sobre criminalida- de ha uma longa discussao acerca dos problemas conceituais metodoldgicos suscitados pelas estatisticas criminais, que tomou as vezes a forma de uma mengao ritual aos problemas, a ponto de um autor como Hindus ter-se recusado, em um ensaio, a repetir a litania acerca das dificuldades e utilidade do material estatistico."" As dividas em torno do significado das estatisticas criminais vao desde a negag&o de seu valor para certos periodos historicos até a questo mais complexa de quanto ¢ 0 que elas medem." De fato, as estatisticas refe- rentes a prisdes, ou a processos criminais, correspondem ao nivel da atividade policial e judiciaria, variével em fungdo da eficacia. A questdo da eficacia nao é apenas técnica, mas esta ligada a discriminagao social e as opgdes da politica repres- siva, sobretudo no campo das contravengdes. Certas condu: tas passiveis abstratamente de sangdo s6 se tornam puniveis, quando se referem aos pobres. Basta pensar na embriaguez, contravengao aplicavel apenas aos individuos pouco respeita- veis, pois os demais ndo séo bébados mas pessoas “‘tocadas””, ‘ou ‘‘um pouco altas’’. Ao mesmo tempo, o aumento ou a queda de prisdes por algumas infragdes (a vadiagem ¢ 0 exemplo mais flagrante) pode refletir nao uma “alteragdo da realidade"” mas apenas maior ou menor preocupacdo repres- siva com relagao a determinados comportamentos. Além dis- so ha comportamentos considerados legalmente delituosos que em regra nao sao levados ao conhecimento da policia ou pelos quais ela ndo demonstra interesse, como € 0 caso do espancamento da mulher pelo marido; outros dependem da ' Michael Stephen Hindus — “"The Contours of Crime and Justice in Massachusetts and South Caroling: 1767-1878", in The American Journal of Legal History, 1977. *2 JL. Tobias, escrevendo sobre o caso da inglat industrial society in the nineteenth century, 1967, abandt tion”, em E. A. Wrigley (ed.), Nineteenth century society: Essays in the use of quantitative method for the study of social deta, 1972 CRIME E COTIDIANO, » Auto manuscrito de qualificagao de Antonio Caputo, acusado de homicidio (1906). 20 BORIS FAUSTO iniciativa da vitima ou de seu representante legal, como ocor- re em alguns crimes sexuais. A relatividade das estatisticas de prisdes representa sob certos aspectos uma limitaco. Mas aquilo que aparece a pri- meira vista apenas como lacuna tem virtualidades capazes de abrir caminho para outros nives de conhecimento. As estatis- ticas refletem bem ou mal uma pratica repressiva que tem uma relagdo complexa com a “‘criminalidade real”” ou mesmo com o crime tal como definido nos cddigos. Exemplificando, nao s6 a pratica repressiva até certo ponto seleciona e indivi- dualiza a seu critério 0 conjunto de agdes criminosas como criminaliza condutas indiferentes do ponto de vista penal — a priso de homossexuais sob variados pretextos é um exemplo claro. O estudo das infragdes especificas baseia-se fundamen talmente na analise de processos penais, uma fonte cheia de peculiaridades que merecem uma referéncia mais detida. Na sua materialidade, cada processo € no periodo considerado um produto artesanal, com fisionomia propria, revelada no rosto dos autos, na letra caprichada ou indecifravel do escri- vao, na forma de tragar uma linha que inutiliza paginas em branco. Nao por acaso, as resisténcias a introdugao da datilo- grafia de depoimentos articularam-se historicamente, nos meios forenses, em torno dos riscos da perda de autenticidade do processo. A peca artesanal contém uma rede de signos que se impdem a primeira vista, antes mesmo de uma leitura mais cuidadosa do discurso. Distingdes espaciais expressam-se nos erros de grafia, na transcrigao em conjunto dos depoimentos de varias testemunhas, indicando que um proceso foi instau- rado em um bairro distante, com marcas fortemente rurais. Pobreza ¢ riqueza deixam por vezes nitidas pegadas distinti- vas. Em um extremo, a relativa uniformidade resultante da sucesso de declaragdes, que nao é cortada pelas peti¢des de advogado; os requerimentos em letra vacilante, ou assinados a rogo, onde os requerentes esclarecem que deixam de selar Por falta de recursos. No outro, as transcrigdes dos diferentes atos processuais entremeados de petigdes de advogado, em Papel linho timbrado; os memoriais impressos, distribuidos aos desembargadores; a peca de defesa datilografada que, sobretudo em épocas mais remotas, revela o prestigio do pro- prio defensor. Isoladamente, talvez 0 texto mais carregado de ‘CRIME E COTIDIANO. a significagdes seja 0 documento de antecedentes, juntado em regra pelo réu, valendo-se de sua rede de relacdes — vizinhos, patrdes, colegas, compatriotas, conterraneos, fregueses. Ele serve para demonstrar, conforme o caso, a conformidade do acusado com 0 modelo sécio-familiar, sua origem respeitavel etc. Toda uma gradagdo da eficacia do documento se insinua, segundo quem o emite, a forga de seu conteiido ver- bal, os signos formais de que esta revestido. ““Papeluchos de favor", escritos a mao, em papel ordinario, onde se enfilei- ram frageis assinaturas anénimas contrastam com documen- tos na solene expressdo do termo, em papel timbrado, da grafados, contendo a assinatura de pessoas influentes ou representantes de grandes empresas. Que importancia dar aos garranchos de gente humilde do Bras, afirmando que um jovem indiciado por roubo é um mogo de bom comporta- mento? Como negar valor a declaragao de um deputado fede- ral, atestando que um rapaz — acusado de furtar centenas de campainhas de casas ricas — “‘sempre teve excelente proce mento em Taubaté, onde mora, sendo neto do barao de Serra Negra, sobrinho do antigo arcebispo do Rio de Janeiro e de dois membros ja falecidos da magistratura paulista’ Na sua materialidade, 0 processo penal como documen- to diz respeito a dois “‘acontecimentos”” diversos: aquele que produziu a quebra da norma legal e um outro que se instaura a partir da atuacao do aparelho repressivo. Este Gltimo tem ‘como movel aparente reconstituir um acontecimento origina- rio, com o objetivo de estabelecer a ‘‘verdade” da qual resul- tard a punicao ou a absolvi¢ao de alguém. Entretanto, a rela- 40 entre o processa penal, entendido como atividade do apa- relho policial-judicidrio e dos diferentes atores, e 0 fato con- siderado delituoso nao é linear, nem pode ser compreendida através de critérios de verdade. Por sua vez, 0s autos, expri- mindo a materializacao do processo penal, constituem uma transcrigéio/elaboragéo do processo, como acontecimento vivido no cenario policial ou judiciario. Os autos traduzem a scu modo dois fatos; o crime ¢ a batallia que se instaura para punir, graduar a pena ou absolver. processo constitui o elemento dindmico na relagao fato criminoso-processo-transcrigao material (autos). Como observou Mariza Corréa, 0 processo é de certo modo uma invengao, uma obra de ficeao social, Reproduzindo suas pa- lavras, ‘‘no momento em que os atos se transformam em

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