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artis Exaiphnés (Platéo) e Augenblick (Nietzsche) Em questo o acontecimento de uma mesma subita transformacgao Exaiphnés (Platéo) e Augenblick (Nietzsche) In question the event of a same sudden transformation DOI:10.12957/ek.2017.29643 Prof." Dr’ Izabela Bocayuva izabelabocayuva@gmail.com Universidade do Estado do Rio de Janeiro Platao tematiza o acontecimento do acesso 4 filosofia como um salto subito (exaiphnés). Isso se da muito explicitamente no mito da caverna e na Carta Sétima. Nietzsche, no discurso de Zaratustra Da visdo e do enigma, ao apresentar o pensamento fundamental do Eterno Retorno que vale também como acontecimento do acesso 4 filosofia, tematiza o mesmo salto, denominando-o Instante (Augenblick). A intengao desse artigo é mostrar uma imbricagdo desses dois pensadores a partir desse aspecto do acesso ao pensamento radical. PALAVRAS CHAVE Platao. Nietzsche. Exaiphnés. Eterno Retorno. Plato thematizes the event of access to philosophy as a sudden leap (exaiphnés). This is very explicit in the myth of the cave and in the Seventh Letter. Nietzsche, in the discourse of Zarathustra From the vision and the enigma, in presenting the fundamental thought of the Eternal Return that also serves as an event of access to philosophy, thematizes the same leap, denominating it Instant (Augenblick). The intention of this article is to show an imbrication of these two thinkers from this aspect of access to radical thought. KEYWORDS Plato. Nietzsche. Exaiphnés. Eternal Return xaiphnés (Pl 13-33 do) Augenblick (Nietesche) Em questio o acontecimenta de wma ‘mesma sibita transformagao Prof! Dr tzabela Bocayuva[uen)-a) Platdo aparece tradicionalmente numa tensio de oposigdo em relago ao pensamento de Nietzsche. A base disso se encontra na contundente eritica niet zschiana ao platonismo em boa parte de sua obra, Como nio pareceria absurdo usar afirmar que os dois tém uma mesma compreensdo quanto 4 questio do acesso a filosofia? O assunto nao é uma mera curiosidade intelectualista. Tem diretamente a ver com importantes questdes politicas que serio consideradas no final da anilise ¢ que dizem respeito a problematizagio da interpretag propriamente dita, problematizago essa comum aos dois pensadores que continua sendo crucial para nds aida hoje. tados, ¢ Sem pretender falar algo novo, afirmo que toda interpretagdo implica um de- terminado acontecimento compreensivo. Por sua vez, ndo ha mundo, no ha realidade que possam ser objetivos, como se pudessem estar fora de uma inter- pretagdo!. Falar, bem como todo modo de agir, é jé estar interpretando®. Nem por isso, porém, estou alinhavando a defesa de que as compreensGes a cada vez possiveis s4o algo meramente subjetivo no sentido do exercicio de um relati- vismo arbitrario, Nesse terreno, nem 0 objetivo nem o subjetivo dio conta da colocagdo da questio. E no somente porque se tratam de categorias modemnas anacrénicas em relagdo a antiguidade. Também em Nietzsche elas nao dao conta do problema, como é o caso ainda hoje. Sao iniimeros os ngulos possiveis de considerago da questio da interpretagdo como dimensio em que necessaria- mente o aparecimento da realidade esti em jogo. A fim de abordar um desses an- gulos, vou tratar do acontecimento do salto sibito para a sabedoria, amplamente tematizado pela filosofia através dos tempos. Reconheco em Plato e Nietzsche afinidades importantes nessa tematizagdo. Uma contundente afinidade entre eles, €0 elemento da subtaneidade envolvido no processo de passagem ou ultrapassa- gem para oufra interpretagiio da realidade, para uma mudanga de registro radical que implica uma sabedoria fundamental, ancorada numa experiéncia existencial decisiva, bem longe da erudigdo e bem mais ainda da frequentagdo escolar ou académica, quando esta se di de uma forma superficial, 0 que é 0 caso na maio- ria das vezes, importante ter em vista que uma tal subtancidade, aqui sugerida como elemento fundamental no processo do acesso ao pensamento, conta sem- pre € necessariamente com um tempo de amadurecimento, fruto do desejo ¢ empenho na dirego de uma maior clareza na compreenséo da realidade. Em momentos estratégicos em sua obra, Plato usa explicitamente o impor- tante advérbio de modo exaiphnés, que significa: de modo sibito, subitamente. Vejamos os principais dentre eles: 1 Tema recorrente na obra de Nietasche. 2 Heidegger trata cuidadosamente desse aspecto no parigrafo 32 de Ser e Tempo. Ekstasis: revista de hermengutica e fenomenologia Ve|N1 2017] 14 xaiphnés (Patio) e Augenblick (Nietzsche) Em questo o acontecimenta de wma ‘mesma sibitatransformagao 13-33 Prof! Dr fzabela Bocayuva[uen)-a) 1) A virada liberadora do prisioneiro da cavena no livro VII da Reptiblica, (PLATAQ, 1983) Cito: Examina, disse eu, como seria a sua libertagdo ¢ cura dos grilhdes e da insensatez, se por natureza tais coi- sas Ihes acontecesse: toda vez que alguém se libertasse © fosse obrigado a levantar-se de siébito (exaiphnes), voltar (peridgein) 0 pescogo’, caminhar e olhar para a luz, ao fazer tudo isso sentiria dor e por causa das cin- tilagdes seria impossivel contemplar aquelas coisas das quais antes via as sombras. (..)! (S15e4-d1)* 2) 0 acender da filosofia no coragao do investigador na Carta VII (PLATAO, 2010) ¢ que corresponde ao aceder ao mais elevado nivel da compreenséo da verdade que é apresentado na sequéncia do texto: de muito frequentarmos ¢ convivermos com a propria questio, subitamente (exaiphnés), tal como a partir do fogo, uma luz se liga relampejante num salto, nascendo na alma, ¢ imediatamente alimenta a si propria, (341¢6-42)* (..) Ocorreu-me falar mais longamente acerca dessas coisas, pois, prontamente posso dizer acerca disso algo mais claro do quanto podcria ser dito a respcito delas. Pois ha alguma fala verdadeira (légos alethés’), a0 contririo do grafar ousado* daquelas coisas ¢ do que quer que seja, uma fala muitas vezes exposta por mim, semelhante certamente & que € para ser dita. Ha para cada um dos entes, trés [niveis de relacionamento com a verdade], somente a partir dos quais a epistéme” se apresenta, 0 quarto sendo esse mesmo —o quinto, deve- 3 Outra tradugdo para tov aibzéva é: cabo do leme. Isto 4 Tradugio do Prof: Dr, Jaa a orientagao, 5 Exdnet di, v8" éy, abtév how te kai iaaw tay re Seow Kal tig eopoosvns, ofa is dv Fin, ef poet Toxdde oviBaivor adtoic: nbce Tis Audet xa evepwiLorto ééaipync avioracdai Te Kat mepidyery Tov aivzéva Kai PadiCety Ka mpds TO Os dvaAsmEW, navea BF Taira MOY (ote a cs apap above xadop nv dy se gon Spa) (55% IW Repaiblica 6 ..ax noddiig ovvovsias yeyvouévms repi td npéeyua ard Kai tod ovtty aio mops mnsivouvtos éEapley pads, Ev TH wut] yevbuevoy aid Eavrd BN TPE 7 O eta ®) do termo alethés tem sempre acento agudo, 8 Platdo esté se referindo ao manual escrito por Dioniso e tudo o que for parecido com ele. 9 0 segundo eta () desse terme tem acento agudo. Ekstasis revista de hermengutica e fenomenologia We |N1 2017] 15 xaiphnés (Pt 13-33 do) Augenblick (Nietesche) Em questio o acontecimenta de wma ‘mesma sibita transformagao Prof! Dr tzabela Bocayuva[uen)-a) -se colocé-lo como 0 que é cognoseivel (gndstén) © & como 0 ente que verdadeiramente & (alethds estin én) — 0 primeiro & 0 nome (noma), o segundo é a discur- so (ldgos), 0 terceiro é a figuragao (eiddlon), 0 quarto & a epistéme. Do primeiro nivel toma, querendo entio aprender o agora dito (legdmenon); e sobre o inteligivel (ndeson) de tudo & assim. Circulo é aquilo dito (legd- menon), cujo nome é esse que vocalizamos. Discurso (J6gos) & 0 segundo nivel, composto de nomes e verbos: © que a partir de todos os extremos dista igualmente do centro, A designagao suficiente, nesse caso, teria por nome: redondo, esférico e circulo. O terceito nivel & 0 do pintado (dzographotimenon), do que se apaga, do tormeado, do que pode ser aniquilado. Dentre os niveis, © circulo ele proprio (autos ho kyklos), &, em relagdo a tudo isso, aquilo que nada sofre, é como um outro di- verso deles, O quarto é a epistémé eo senso” verdadeiro (noiis aléthes"’) ¢ a opinido acerca daquilo que é Como essa unidade, por sua vez, s6 deve ser toda colocada, nao em voz, nem em figuras corpéreas, mas estando nas almas, para a que ¢ evidente que ¢ diferente tanto do culo ele proprio (autoi toit kyklou), quanto da natureza dos trés ditos anteriormente. Desses, 0 senso (nots) 0 que mais se aproximou do parentesco ¢ similitude em relagdo 20 quinto, os outros muito se afastam, O mesmo acontece para com as figuras ¢ cores retilinias ¢ esféri cas, ¢ com o bom ¢ belo € justo, ¢ com 0 corpo inteiro seja artificial, seja que nasce por natureza, do fogo, da gua e dos outros elementos, e acontece também para com a totalidade dos animais, com o cardter também nas almas, e com a totalidade das coisas que se faz e que se softe, pois, caso alguém ndo apreenda os quatro niveis, seja como for, jamais serd completamente participe da epistémé do quinto, (342a1-e2)" 10 Traduzir nofs por senso & uma escolha deliberada que quer aproximi-lo e ao mesmo tempo diferencid-lo do termo aisthesis, percepsio, sensagio. No Fedro, Platio compreende explii- tamente o nos como o meio de pereepyao, de sensago propria do guia da alma (2478), uma percepsio que vé a ousia realmente endo, impalpével, em core sm figura. (Yip zpduas Te Kal GoyNHEMaTos Kai Evapis odoia Svtec oboa) (247¢6-7) 11 Palavra com acento agudo no segundo eta (8). 12 (..) Em 8¢ pepOrepa mepi abr €v vi por yéyovey sinciv” rege yep @v aepi Sv Aéyo ange epov dy ein heyBévrow adtav. Eom yap Te AOyeE HhnBig,évaveiog 1H TodatoayT ypdgery TG TOIOHITOV Kal SeIO‘y, RORAARIG UEV bx" EOD Kai mpSaDeY pei, Eoukey 8” ov elvan Kal viv Rextéos, “Eonv rav Svtav éxdato, 61” Ov thy émochyny avéykn mapaytyveodan, zpla, sécaproy 8 aie — éyntov 8° aid evar e781 yoooroy ze Kal GROG: Sot by ~ Ev py Svou, Sebtepov Bi Loyos, tb Bé tpitov eidohov, vétaptov BE émonhyin. xepi Ev obv hat Bove Jéntevos nabeiy 1 viv AeySuevov, Kal miveer Obto Tépi vonGOY. Kiko; EotiV T heyOuEVeY, & To0e" ait éoriy Svopa 5 vOv EpBEyj20a, S705 8° adtOd Td bebtepov, EE dvoudtOV Kal nuioy ouyesipevos: tO yp éx vv soystov éxi td woow Toov dekyov névey, 1OyOs dv ein xaivon Gmep atpoyyGhov tl meprpepic Svoua Kal KOKAOS spitov 8 10 Loypapodysvoy te kal EEaztpSuevov Kai topveuspevoy Kai ixoAjuevov" dv ats 6 KOKchos, Ov mépt mave” ior Ekstasis: revista de hermengutica e fenomenologia Ve |N1 2017] 16 Fxaiphnés (Patio) e Augenblick (Nietzsche) Em questio oacontecimenta de wma ‘mesma sibita transformagao 13-33 Prof! Dr tzabela Bocayuva[uen)-a) 3) A siibita contemplagao do belo ele proprio, que a sacerdotisa Diotima deixa que se revele no Banquete aquele que puder acom= panhar tal advento. (PLATAO, 201 1a) Pois aquele que até 0 momento péde ter sido orientado para as coisas do amor (td eratikd), contemplando paso a passo e diretamente as coisas belas, estando ja diante do auge das coisas do amor subitamente (exaiphnés) abrange algo belo de natureza maravilhosa, justo aquilo, Socrates, pelo que empreendeu todos os esforgos ante- riores: em primeiro lugar sempre sendo e nunca nascen- do nem perecendo, nem crescendo nem definhando, en- tao nao é por um lado belo e por outro feio, nem é num momento belo ¢ em outro feio, nem belo numa relagdo © em outra feio, nem ali belo ¢ ali feio, [como se para uns sendo belo e para outros feio], nem aparecer-Iha-a 0 belo como algum rosto nem mo nem participa de nada outro que seja corpo, nem de algum discurso nem de alguma cigncia, nem sendo em nada outro, como num ser vivo na terra ou no céu ou em nenhum outro lugar, mas cle préprio por si proprio (hauta kath ‘aut6) confor- me si prOprio (meth autor) & sempre uniforme, enquan- to todas as outras coisas belas participam de tal modo dele que nascendo e morrendo em nada ele nem torna-se maior ou menor nem sofre nada, (210¢2-211b5)" 4) No Fédon (PLATA, 201 1b), quando Sécrates descobre o prin- cipio estrutural da idéa a partir da formulagio “pelo belo as coisas ‘abta, obdev ndgzE, robtaV bs; Etepov By. réraprov 8 EmoTiyi Kal vod GAGs te Ea net rat’ éotiv” ds St Ev todo ab nv Beréov, odK Ev prvatc obd" EV @wRECOW aysyianTY GN’ Ev yoni ivi, 6 diay Exepdv ce Bv adrod TO’ KOKAOD Tig PHoEING TOV TE FRpaBEY APHEVTON ploy, robtov BE Eyyiuera piv ovyyeveig Kal Quote TOF néysOD Vods nEANOLaKEY, AG 36 mhéov dxéyar. cabtov 8 mepi te ebDE0g tua Kal RepL@epOds oy WAKOS Kal ZpOAS, REPL TE dyo6 xa xaod xe Bveciov, nai mepi ttaros dnaveos oxzvaGTOD Te KU Kat GOoIY Yer ‘yowstos, mopds bards te Kai tay ToIOIToV mito, Kai Cov cdymaVtoS RépI Ka Ev yoRtic fidoos, kai nepl nonfycera Kod marca oye” ob yap TOOTOY 4 AG Ta TECK RAB yds y8 nog, oboe eins EmaTyNs TOD RéuTTOD WEtOZOs FoeL, 13 8c vip tv pypréveaioa npds it peru narbayerr A GeGpev0s EoeEg te Kal Spbdg ad mpds téh0G HB iy Ta épormRt éEaiouns Katoyeral T BaOjiaeToY Ty Sar KAREY, robro éxeivo, db Lioxpares, ob bi Evexzy xai oi Hunpooev mavtes nOvor ijoay, mpéiroy py del By Kai obre nyVouevov obre dnOdAVyEVOV, obte aiEavouevoy oie pOtvoy, EneITa ob TH LEV 103k tore uév, tote 8E 08, obBE mpbs pV TO KAAS, APdS BE TO aoypOV, ‘noi 8 ‘06’ ab gavra- Laird to Kahdy oiov rpdoudv ti OvdE 7ripes ObdE Giho obdiv dv o@jia peETEys, DDE 1g hoyos ob5E Tg Emtoriin, OvdE nov dy év étépe cI, ofay Ev Low Fv yf jv oOpavs FEV 1 Wd, OR aded xa" aid pel" airod povorrdis si bv, ti dF HAa mavra kahit ExEEVOD exigovea spéxov tvs to1oitov, ofov yryvoyLEva te eaV GAAOV Kal AROAADHEVOOY NOV vo pijte 1 mov ite Eharvov yiyveadat unde néeyery pd. Ekstasis: revista de hermengutica e fenomenologia Ve |N1 2017] 17 xaiphnés (Pl Em questio o acontecimenta de wma ‘mesma sibitatransformagao 13-33 to) e Augenblick (Netsche) | seu pet abela Bocayuva[uen)-2) belas so belas”, o termo exafphnés embora nao explicito, esté ali implicado na nogao de “segunda navegagdo”, ou seja, a virada es tratégica na forma de se aproximar compreensivamente do prin da realidade e que diz respeito ao acontecimento sibito do filosofar. Soc.: Quanto a ser estabelecida assim agora 0 poder (dsnamin) que instituiu as coisas da melhor maneira, isso nem buscam nem concebem que tenha uma forga divina (daimonian iskhyn), mas estimando descobrir um Atlante de algum modo mais forte, mais imortal e mais coeso em tudo, nada consideram de como verdadeira- mente o bem ¢ 0 necessario conectam ¢ salvaguardam, Eu, de minha parte, me tornaria com prazer aprendiz de quem quer que seja acerca dessa determinada causa, e quando eu fui privado dela por nem descobri-la por mim préprio, nem tampouco por aprendé-la com outros, queres que eu faga para ti uma exposigdo de como eu me ocupei da segunda navegagdo sobre a busca da cau- sa? Farei para ti, Cebes, a exposigao aberta a respeito. Ceb.: Quero isso imensamente, disse. Soc.: A mim me pareceu que, jé que havia desistido de investigar as coisas, era preciso precaver-me para nao softer o que sofrem aqueles que se abandonam contem- plando c investigando o sol. Pois os olhos so destrue {dos se no investigam a imagem dele na gua ou em algo semelhante. Eu pensei e temi cegar completamente a alma, olhando directo as coisas com os olhos ¢ apal- pando-as através de cada um dos sentidos. A mim me pareceu, entdo, ser necessdrio recorrer ao discurso ([é- gos) naquela investigagao da verdade dos entes. Prov: velmente construo por imagem algum modo de ser nao parecido com a coisa em questo. Pois nao estou intei- ramente de acordo de que 0 que é investigado nos dis- cursos (en tois [égois), isto é, 0 investigar as coisas nas imagens (en eikési), ¢ melhor do que o que é investiga- do nas tarefas (en tois ergois). Mas com isso me pus em movimento e supondo (Fiupothémenos) a todo momento © discurso (Jégon) que julgo ser o mais forte, estabelego como sendo verdadeiras as coisas que me parecem sin- tonizar com ele, seja no que diz respeito as causas © a tudo outro, ¢ 0 que nao sintoniza, estabelego como nao verdadeiro. Quero, com mais clareza, te narrar as coisas que digo. Pois acredito tu nao teres compreendido, Ceb.: Nao, por Zeus, ndo com exatidao, Soc.: O que digo ndo é novidade, mas sempre o que em outras ocasides e no discurso (/égos) realizado até ago- Ekstasis: revista de hermengutica e fenomenologia Ve |N1 2017] 18 xaiphnés (Patio) e Augenblick (Nietzsche) Em questio o acontecimenta de wma ‘mesma sibita transformagao 13-33 Prof! Dr taabela Bocayuva[uen)-2) ra no cesso de afirmar. Pois intenciono te apresentar, apalpando, o perfil (eidos) da causa, aquele que eu me empenho em elucidar. Estou de novo também a come- gar por aquelas coisas célebres, supondo (hupothéme: nos) 0 haver um certo belo ele proprio por si préprio (ui kalén hauté kath'autd), ¢ 0 bem, ¢ 0 grande, ¢ os outros todos. Se me concederes e convergires com isso, espero te mostrar a partir dai a causa e descobrir como aalma ¢ imortal. Ceb.: Mas, disse Cebes, concedo-te para no poderes deixar de se adiantar para terminar'* Soc.: Investiga entdo, disse, o que se segue para ver se concordas comigo. E manifesto para mim que se ha ou- tro belo além do belo ele proprio (auto t6 kalén), nao & um outro belo sendo porque participa (metékhei)"* da- quele belo ele mesmo, ¢ tudo mais se comporta do mes- mo modo, Converges com essa causa? Ceb.: Convirjo, disse. Soc.: Portanto, ndo aprendo e nem posso conhecer (gig- néskein) essas outras causas engenhosas. Mas se alguém me disser que o que quer que seja é belo porque tem cor exuberante ou figura ou por outro motivo como esses, dou adeus a tudo isso — pois fico perturbado nisso tudo —e com simplicidade, sem artificio e provavelmente de modo ingénuo, tenho para comigo que nada outro faz (poiei) o proprio belo sendo, scja 0 vir & presenga (pa- rousia), seja a comunidade (koinonia) com aquele belo ele proprio, seja 14 onde ou como vier inesperadamente & luz (prosgenémene), pois nao afirmo aquilo veemen- ‘temente, mas [afirmo] que € pelo belo que todas as coi- sas belas [tornam-se] belas. (99¢1-100d8)" 14 Esse é precisamente o caréter hipotético das idéai. Elas sio suposigdes que devem ser com- ppreendidas na base do discurso, Sem essa compreensio de base nfo € possivel nem mesmo comegar a argumentagao filoshfica 15 Patio deixa muito claro que o nivel de adesio a argumentagio filoséfica de Cebes & frigil e apenas sc sustenta numa vontade de ver o discurso ser conduzido até seu fir, 16 Platio introduz a questio da participagdo: metébhein. Ora é justamente o que esta em jogo quando se trata do envolvimento entre Cebes eo diseurso filosstico. 17 Sok. ry 88 100 do oly ve Pédnota abrit teOijva Sévayy obto viv xetoGan, tad obee Gmrodar ode twit ofovta Seapoview ioyby Few, GAD. iyyobvee tobtOD “AtavTa tv TOTE icxupérepov Kai ADavatatepov Kai pAAOV Gavia cuvézovta éevpelv, Kai ds Andes To eyabv Kei Séov oovdelv Ket uve ew obdEy ofovem. Ey HEV OV tfs Touadmms aitiag Say Fore Byes parrye Sxovod fSror’ Gv yevolpny" SxsiBi 88 tases SoxepHOny Kal Ob” aids EOpsiy tite nap’ &iAov pode of6s te Eyevouny, tov Bebtepoy mhody én thy nig airlas Geno f expayndtevpas otha oo, Eon, exibadiv noujoouat, & Kéfings Keb" Yepovris pv ov, on bs Poshowa Sokc:"Edoézrolvov qo, 8° 8, pert ed et} ame va Svea axon, dev hay dvan Ekstasis: revista de hermengutica e fenomenologia Ve |N1 2017] 19 Fxaiphnés (Patio) e Augenblick (Nietzsche) Em questio oacontecimenta de wma ‘mesma sibita transformagao 13-33 Prof! Dr tzabela Bocayuva[uen)-a) 5) A terceira hipotese do Uno no didlogo Parménides (PLATAO, 2003) na qual o exaiphnés consiste na “hora” da mudanga entre um Uno “unante” que no pode nem mesmo ser devido a sua radical diferenga em relagdo ao mihiplo (1° hipétese), ndo estando ele no tempo, ¢ um outro Uno que ¢ e participa do miltiplo (2* hipétese), estando no tempo", | x4001p0 Bxap of Ov sizavea Qeopaivtas Kal oKOROOpEVO1 RéxovEW" BixpOEipo- ‘eau yap mov E01 Tt Sparta, Kew th ev OBR f} TWA tOLOdE axonaa Ty EiKovE aDTON. ‘ov0ir6y 11 kal fy SievOHPAY, Kel ESELOW 1 RavreRARL Thy WosrW TwoHBeINY BAEROV RPC rie rpayuara Tots Spc kel ExT TOV GDBCKIOV EmyEIPAW dereECDEI aiRAV. FOEE Bf HOT ava Hs vob; Aoyous KatuguyOvee sv éxsivOle OKOREW HOY OvtOV ty data. Tors Hiv copa tov By oie) A i xov dv [rote] epyors. 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Nao seria equivoco identifica esse Uno como 0 nada, Ora, por um evidente¢ gritante dado de realidade — 0 fato de estarmos a falar del, ainda que negativamente, ainda que a partir do que ele nio é - brota, a partir dele mesmo, dé um modo radicalmente nevessério, um outro Uno 0 qual jé esta sendo pronunciado, no gual jé estamos pensando e que, de algum modo, paradoxalmente ja esta participando do miltiplo, Esse outro Uno, por sua vez, &0 gerador de todas as possibilidades, de todas as relagbes, inclusive aque- Jas que na hipétese do “Uno unante” tiveram que, paradoxalmente, no existir. A andlise do didlogo conduz, pois, as seguintes palavras fins desconcertantes: “Parm.: Entdo, em suma, se disséssemos que 0 Uno no é, nada é, diriamos corretamente?/Arist: Absolutamente sim, Parm.: Sendo assim, fique dito tanto isso quanto que, segundo pareve, se 0 Uno & ou se ndo &, tanto cle mesmo quanto as outras coisas, tanto em reiagdo a si mesmos quanto em relagao uns 4308 ontr9s, fodos totalmente tanto sdo quanto néo sio, ¢ tanto parecem quanto nao parecem ser. Arist: E a maior verdade”, (Parm.: Ovxotv xa oudsiBony ei eixowey, Ev ci pi] Eotwv, obSEY ow, opis dv ekxomiev; /Arist: Havedxaot uv oy./Parm.: Bipfiabo roivuy tobe te xa Se, tig Eouxey, 8 ait? don alte pil oe, alts ve na rdAAa Kat npds adic Kal xpos GAARA nave andvt0s éort te kai obx Eon. xa gaiverat te Kai ob paiveran. (Arist: AknOéorata). (166075) Ekstasis: revista de hermengutica e fenomenologia Ve |N1 2017] 20 xaiphnés (Patio) e Augenblick (Nietzsche) Em questo o acontecimenta de wma ‘mesma sibitatransformagao Prof! Dr fzabela Bocayuva[uen)-a) Parm.: Porém quando, movendo-se para ¢ quando es tando parado muda para o movimentar-se, & preciso sem davida ele ndo estar em nenhum tempo, Arist. Como assim? Parm.: Estar parado antes e depois movimentar-se, ¢ an- tes estando em movimento e depois parar — no poderia softer isso sem a mudanga (¢6 metabéillein) Arist.: Como poderia? Parm.: Porém no ha nenhum tempo no qual algo a0 mesmo tempo nem mover-se nem estar parado. Arist. ertamente nao. Parm.: Mas nada muda sem a mudanga. Arist.: parece que nao. Parm.: Quando entéo muda? Pois nem estando parado nem movimentando-se muda, nem estando no tempo. Arist.: Nao realmente. : Acaso isso no € absurdo (atépon), aquilo no © que? Parm.: © siibito (16 exaiphnes). Pois 0 sibito (16 exaiphnés). parece significar a mudanga a partir da qual ele dirige-se para uma ou outra diregio. Pois ndo jé muda do estar parado para o parado, nem j4 muda do es- tar em movimento para o movimentar-se, mas a propria natureza absurda do stibito (exaiphnés) esta incutida en- tre (metaxii) 0 movimento ¢ o repouso, nao estando em nenhum tempo, ¢ para ela ¢ a partir dela muda 0 que esta em movimento para o estar parado eo estar parado para o movimentar-se. Arist.: Periga ser assim, Parm.: E 0 Uno entio, se est parado bem como se movimenta, mudaria para uma e outta diregao — pois somente assim faria ambas as coisas ~ porém, mudanga muda subitamente (exaiphnés) ¢ quando muda seria em nenhum tempo, quando nem estaria em movimento nem parado, Arist.: Ndo mesmo. Parm,: Acaso no é assim em relagdo as outras mudan- - Elstasis: revista de hermenéutica efenomenologia 13-33 wernt] xaiphnés (Patio) e Augenblick (Nietzsche) Em questo o acontecimenta de wma ‘mesma sibitatransformagao Prof! Dr fzabela Bocayuva[uen)-a) gas, quando muda a partir do ser para 0 morrer ou a partir do nao ser para 0 naseer, intervalo entre (metaxi!) © surgimento dos movimentos € repousos, do existir ¢ nao existir, do nascer e morrer. Arist.: Parece realmente. (156c1-157a4)19 Nessa iiltima passagem o advérbio exaiphnes — enquanto instantaneidade fora do tempo ~ aparece substantivado, configurando, paradigmaticamente, 0 fendmeno de toda ¢ qualquer mudanga. Nas quatro primeiras passagens cle aparece precisamente como elemento fundamental no acontecimento de uma mudanga especifica: 0 acesso sibito a sabedoria, um horizonte de compreen- so do real que, como jé foi dito, tem menos a ver com escolaridade do que com uma transformagdo existencial decisiva na diregdo de uma amplitude da capacidade de perceber e lidar com o mundo. Fica mais do que evidente na 19 Sok: “Orav 6 xwobuevby te Tornten kal Seay dvds én xd xiveToea peraBaddy, HeT Biinov aid ye pnp" Sy svi zpdve stv, Sok: ‘Bot6s te apétepov otepoy xvsiotiat Kai xpbtepov KIVOH=VEV Gotepov Sordvat, vED hiv tod perafaddew oby of6v te Fora tala néoLeW, Arist: Ta yp; Sok. Xpévos 86 ye 068: wy, £v colby ce dyia te kweToton price dovdven Arist: 00 yap ob. Sok: AJA? ob88 jy wexaBaad.et ve 05 pera. Arist: Obx sins Sok: [lér" obv psrapéi2en; obte yap Soros v obte KWospevov wexaBaAd.t, obs fv zpdve bv. Arist: 06 yap ob, Sok. ‘Ap’ ov ow x6 fvoxov 10bt0, Ev d r6e" Av sin, See peraBande; Arist: TO xofov 8 Sok.: To &Eatovns. 1 yap éEalovns rorivbe 1 Eorke ompaivery, Os && éxeivon peraBadRov eis Excepov. ob yap fx ye T09 sordvat Eorit0s i wsrafaiAst ob8” Ex Tis KIvH}OEIOS KIVODHEV En perapadaar adic alguns adm poors iconds nis EyetiOyeen perazi cis KvioeAs te Ke rca, ev zpove bbe ob, xl eg ray Bj xl Ex rain 6 re nTodjevey yer Arist: Kivioveser Sok.: Kai 10 By 6, sinep Sore re wal nivettn,perapao dy dp” éxtitspa — pvens 1p dy tos Gupdtepa roi — perapaddoy 6° EEciovns uerapaae, nai Ste petapadAY, 2 OVE Ovo Av sip, Ob8E KwOTE Gv tte, odd" Av aA, Arist: Ob y4p Sok. "Ap" aby ode Kat apis ig dns weraons Bye, Bray & 100 sivas 0 dnGAAvOOAL ecaédd f Sx cod i elu Sis 1 yyveatba, pera) twoow tore yiyvera xviOEdv te KA oT Seow, xal obte Eom TEte obte ox Eom, obte yiyveran ote ens AUTaR; Arist: “Bote yoo, - Elstasis: revista de hermenéutica efenomenologia 13-33 wernt] xaiphnés (Pl 13-33 do) Augenblick (Nietesche) Em questo o acontecimenta de wma ‘mesma sibitatransformagao Prof! Dr fzabela Bocayuva[uen)-a) Carta Vl (PLATAO, 2010) 0 quanto a subtaneidade em questio depende de Jongo tempo de maturago no questionamento. Como fica claro no livro VIT da Repiblica (PLATAO, 1983), a geometria é muito importante nesse processo. ponto de partida, Nao é a toa que, no portal da Academia, Plato mandou fazer a inscrigio: Nao entre quem nao souber geometria, Na matemitica, isto €, no conjunto daquilo que é aprendivel™, a aritmética diz. respeito as quatro operages: adigo, subtrago, multiplicagao e divisdo. A geometria nao caleula apenas, ela pensa as relagdes de forma, tamanho, posigdo relativa de figuras e as propriedades do espago. E geométrica a compreensio da koinonia, da comu- nidade das idéai constitutiva da idéa do Uno tal como desenvolvida no didlogo Parménides (PLATAO, 2003). Uma perplexidade. A partir da andlise plat nica, o Uno esta bem longe de ser uma unidade simples operacionalizivel em céleulos como aquela época era de praxe se entender. © comportamento intrin- secamente proprio ao Uno que descrevemos rapidamente em nota acima, e que encontra-se amplamente desenvolvido no Parménides (PLATAO, 2003), no se limita a um raciocinio aritmético. Sempre, todo pensamento fundo implica na consideragdo das relagdes. Dai a paradigmitica importincia da geometria como ponto de partida para o sibito salto para a sabedoria, que traz. uma radi- jo habitual. Falou-se cal alteragdo de registro em relagiio 4 comum compreens do Uno para exemplificar uma compreensio toda elaboragio tedrica, mas, sobretudo, na postura pritica que rege as vidas humanas em todos os seus relacionamentos, inclusive com a teoria, Segundo tal compreensio, 0 outro esta originariamente implicado no mesmo. jarada, fundamental ndo sé em Estamos lidando aqui com um problema nao exclusivamente dos antigos. ‘Nao me refiro ao problema da geometria e do matematico, nem mesmo acui- dade platénica da andlise especificamente do Uno. Se partirmos da pretensio de ainda podermos habitar num real esforgo de relacionamento franco e direto como saber, a sabedoria parece ter a ver, em todos os tempos, e ainda hoje, com aquela radical mudanga de registro que foi tematizada acima e que tem tudo a ver com uma amplitude de visio que aprende prineipalmente a bem discemnir, sobretudo o belo e o nao belo, deixando, entretanto, de se comportar como mero ‘boneco ventriculo e fazer o papel daqueles de quem fala Herdclito no fragmento 34: “Sem compreensio, ouvindo parecem surdos, o dito dé o testemunho a seu respeito: presentes esto ausentes, sio mortos-vivos”, Na decisiva concep- gio do Etemo Retomo nietzschiana, esse & o ponto central. Em Assim falou 20 O termo mathema significa “o aprendivel 21 Frag. 34) No plural, 4d mathémata: as coisas aprendiveis. Svetor fxobouvtes KogaTaw éoikas’ pdr airoTow papropet mapedvras Ekstasis revista de hermengutica e fenomenologia We |N1 2017] 23 xaiphnds (Pt 13-33 do) Augenblick (Nietesche) Em questio oacontecimenta de wma ‘mesma sibita transformagao Prof! Dr tzabela Bocayuva[uen)-a) Zaratustra (NIETZSCHE, 2011), no importante discurso intitulado Da visao € do enigma®, Nietzsche apresenta, através do porta voz de seu pensamento mais radical, a concepgao do Et 08 enquanto uma alteragdo radical em relagdo 4 compreensio usual ¢ adormecida da dindmica do tempo, Alterago também na postura orientadora da vida, em todas as esferas possiveis de re ‘emo Retorno em seus elementos constitu No aforismo 341 de A Gaia Ciéncia (NIETZSCHE, 2002) intitulado 0 maior dos pesos, Nietzsche ja havia posto em questiio o Eterno Retorno. Diante da repeticGo incessante apresentada ali como constituindo o jogo da existén- . interessa colocar em causa como isso pode ser compreendido ¢ enfrentado. Duas possiveis raizes interpretative sofiendo 0 efeito de um peso insuportivel e outra que se alegra sentindo a le~ ‘veza que ha na repetigao. O primeiro horizonte interpretativo é 0 de costume. O segundo, entretanto, implica uma passagem sibita: a experiéneia de um “ins basicas sdo expostas: uma que se arrasta tante extraordindrio”. Em Da visio e do Enigma esto também em questo 0 pesadume ¢ a lev diante da concepgao do Etemo retorno. Nesse discurso de Zaratustra, importa, sobretudo, analisar interpretativamente 0 instante, Augenblick, substantivo tra- duzivel por piscadela, instante, raio — e que corresponde ao exaiphnés platénico, ‘momento clareador de uma virada compreensiva orientadora de todas as priticas. Zaratustra é um personagem porta voz, assim como Sécrates 0 &, mesmo que nem um nem outro possa ser identificado completamente com o autor que os constréi. Como Sécrates, Zaratustra foi iluminado em cheio diretamente pelo sol. Sua peregrinagao é transbordamento de luz, O presente de ambas as perso- nagens aos homens: sua capacidade de aprender. O discurso que vou comentar a partir de agora descreve imageticamente™ uma hora decisiva de aprendizado e que consiste exatamente numa radical mudanga de registro interpretativo trans- formador da existéncia toda, tal como em Plato. Tudo comeca com a descrigéio de um percurso de elevagio, uma caminhada dificil ja pelo simples fato de ser uma subida, Mas além da dificuldade do cami- nho arido, esté montado sobre as costas de Zaratustra um ando%, o proprio espi 22 Segundo discurso da terceira parte de Assim Falou Zaratustra 23 NIETZSCHE, 4 Gaia Ciéncia, Trad. Paulo César de Sowa, Sao Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 230, 24 O uso frequente de imagens é caracteristica comum entre Nietzsche e Plato. 25 Reitero que nada ha de pejorativo em se evocar aqui o ano, o qual nada tem a ver com um exemplar dos homens de pequena estatura, Ando ¢ um conceito clementar da filosofia nictzs- chiana: esté fazendo o papel do que & pequenolapequenante, e que em outros contextos aparece Ekstasis: revista de hermengutica e fenomenologia Ve |N1 2017] 24 xaiphnés (Pl 13-33 do) Augenblick (Nietesche) Em questo o acontecimenta de wma ‘mesma sibitatransformagao Prof! Dr fzabela Bocayuva[uen)-a) rito de peso, que se caracteriza essencialmente pelo pequeno e que tende a tudo apequenar, sempre puxando para baixo, Porém, num sibito arroubo corajoso, Zaratustra dé limite, corta as palavras desanimadoras do pi que ele des¢a imediatamente. Assim que faz isso, encontram-se ambos diante de um portal onde esta escrito: Augenblick, Instante. O aparecimento do portal- -instante acontece precisamente nesse decisivo gesto de corte, o primeiro apre- sentado em Da visio e do Enigma. Ao final desse discurso, 0 mesmo corte sera apresentado através de outra imagem®*. Em ambos os casos, est em jogo romper como entendimento de um Etemo retomo vicioso, saltando para a compreensio do Etemo retomo como algo virtuoso, feliz criador de possibilidades. lo ano, mandando Em A Gaia Ciéncia (NIETZSCHE, 2002), desavisadamente, como que numa piscadela, surge no aforismo 341 um deménio™ anunciador de que tudo se repetiré exatamente da mesma forma até aquele preciso momento, Duas atitudes se apresentam a partir desse sibito instante, Uma reativa, outra de acolhimento. Cito: (341) O maior dos pesos ~ E se um dia, ou uma noite, um deménio Ihe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidao e dissesse: “Esta vida, como vocé a esta vivendo ¢ jé viveu, voce teré de viver mais uma vez e por incontiveis vezes; e nada haverd de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, € tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terdo de the suceder novamente, tudo na mesma sequéncia ¢ ordem —e assim também esta aranha e esse luar entre as drvores, ¢ também esse instante © eu mes- mo. A perene ampulheta do existir sera sempre virada novamente — ¢ vocé com ela, particula de poeira!” — Vocé ndo se prostaria e rangeria os dentes ¢ maldicoaria © deménio que assim falou? Ou vocé ja experimentou uum instante imenso, no qual Ihe responderia: “Voce & um deus ¢ jamais ouvi coisa tao divinal”. Se esse pen- samento tomasse conta de vocé, tal como voce é, ele 0 transformaria e o esmagaria talvez; a questio em tudo © em cada coisa, “Vocé quer isso mais uma vez © por sob a imagem da perspectiva da 18, em contraste com a perspectiva do pissaro, notmalmente Tembrado sob a imagem da dguia 26 Como uma mordida numa cobra, o animal tantas vezes representado mordendo a propria calda. Esse gesto estaria simbolizando, portanto, a interrupgdo da circularidade viciosa do tem- po, aquela que opera na tradigo, como a monétona interpretagdo de que tudo segue scu curso linear, uma concepgio que, retomando sempre ainda mais uma vez em sua monotonia linear chega ase “tomar circular”. Era assim que 0 ando entendia o tempo em diflogo com Zaratustra. 27 Nao hd qualquer conotagio negativa nesse termo o qual apenas faz.alusdo a um ser de cariter divino como o daimn grego. Ekstasis revista de hermengutica e fenomenologia We |N1 2017] 25 xaiphnés (Pl 13-33 do) Augenblick (Nietesche) Em questio o acontecimenta de wma ‘mesma sibitatransformagao Prof! Dr taabela Bocayuva[uen)-2) incontiveis vezes?", pesaria sobre os seus atos como © maior dos pesos! Ou o quanto vocé teria que estar bem consigo mesmo ¢ com a vida, para nao desejar nada além dessa iiltima, eterna confirmagdo ¢ chancela?™ A atitude reativa ouve na fala do deménio o peso insuportével de uma prisio perpétua no tempo entendido como um acontecimento sequencial linear que apenas se repetird sem fim. A partir dessa perspectiva, a situagao finita e vital, constitutiva da existéncia mortal, s6 consegue ser ressentida como fiustragio, A personagem mitica Midas é um exemplo arquetipico que exibe o cardter que incorpora um tal comportamento: querendo desesperadamente aniquilar defini- tivamente a falta, deseja que tudo em que ele tocar vire ouro®, Radicalmente diferente é 0 ethos da atitude que acolhe com alegria a fala do deménio. A partir dessa outra perspectiva, da-se o extraordindrio da experiéncia do instante, di-se © essencialmente libertador: coincidéncia entre finitude e satisfago na mes ma experiéncia de uma radicalmente outra apreensio da temporalidade. Nao & mais a repetigdo da frustrago o experimentado, mas antes é 0 vigo promovido por uma certa articulagdo entre alteridade e mesmidade que se repete. Em Da visdo e do Enigma Nietzsche elabora os detalhes que envolvem essa outra vi- , Ele diz ali de modo bastante enigmético: Olha esse instante! Desde esse portal, uma longa rua eterna conduz para trds: atrds de nés hé uma eternidade, Tudo aquilo que pode andar, de todas as coisas, no tem de haver percorrido esta rua alguma vez? Tudo aquilo que pode ocorrer, de todas as coisas, ndo tem de haver ocorrido, sido feito, transcorrido alguma vez? 28 NIETZSCHE. A Gaia Ciéncia, Trad, Paulo César de Souza, Sio Paulo: Companbia das Letras, 2002, pig, 230. (Das grdsste Schwergewicht — Wie, wenn di reines Tages oder Nachts, cin Damon in deine einsamste Einsamkeit nachschliche und dir sagte: “Dieses Leben, wie du es jetzt Iebst hast, wirst du noch einmal und noch unzilliche Male leben misses; und es wird nichts Neues daran sein, sondem jeder Schmerz und jede Lust und jeder Gedanke und Seufzer uund alles unsiglich Kleine und Grosse deines Lebens muss dir wiederkommen, und Alles in des selben Reihe und Folge ~ und ebenso diese Spinne und dieses Mondlicht Zwischen den Biumen, und ebenso dieser Augenblick und ich selber. Die ewige Sanduhr des Daseins wird immer wieder umgedreht — und du mit ihr, Stiubchen von Staube!” - Wiirdest du dich nicht niiederwerfen und mit den Zahnen knirschen und den Dimon veriluchen, der so redete? Oder hhast du einmal einen ungeheuren Augenblick erlebt, wo du ihm antworten wirdest: “Du bist ein Got und nie hire ich Gottlicheres!” Wenn jener Gedanke Uber dich Gewalt bekime, er wiirde dich, wie du bist, verwandela und vielleicht zermalmen; die Frage bei Allem und Jedem “willst du diess noch cinmal und noch unzihlige Male?” wiirde als das grosste Schwergewicht auf ddeinem Handeln liegen! Oder wie miisstest du dir selber und dem Leben gut werden, um nach Nichts meky 2u verlangen, als nach dieser letzten ewigen Bestitigung und Besiegenlting? -) 29 Falaremos ainda desse mito mais a frente, 30 E queno aforismo O maior dos pesas foi tabalhada como a outra audisio a voz do deménio. Ekstasis: revista de hermengutica e fenomenologia Ve |N1 2017] 26 xaiphnds (Pt 13-33 do) Augenblick (Nietesche) Em questio oacontecimenta de wma ‘mesma sibita transformagao Prof! Dr tzabela Bocayuva[uen)-a) E, se tudo ja esteve ai, que achas, ando, desse instante? Também esse portal ndo deve ja — ter estado ai? E todas as coisas nfo se acham to firmemente atadas que esse instante carrega consigo fodas as coisas por vir? Portanto ~~ também a si mesmo? Pois 0 que pode andar, de todas as coisas, também nessa longa tua para Id — tem de andar ainda uma vez! ~ (..) no temos de retomar eternamente?*" Nietzsche tematiza aqui explicitamente o pasado ¢ o futuro, cada um partin- do de cada um dos lados do portal-instante, Precipitar-se-ia quem logo traduzis se 0 nome desse portal pelo termo “agora”, compreendendo-o a partir da usual nogo do presente enquanto um intermedisrio entre o jé feito eo por vir. O ando © traduziria dese modo, entendendo o tempo como uma sequéncia de agoras, uns passados, outros atuais ¢ outros futuros. Nietzsche, porém, da a dica do encaminhamento para nos introduzirmos no ponto da virada fundamental. Para haver acesso ao que © porta voz do Etemo retomo anuncia enigmaticamente nessa passagem, é preciso atentarmos para o uso que Zaratustra faz do verbo poder. A realizago do possivel, o que afinal pode ser, j4 tem que ter podido ser, da mesma forma que o que pode ser teré que poder ser ainda outras vezes*. ‘Ao terminar essa formulagdo imediata- ¢ aparentemente incompreensivel, mais uma vez surge outra imagem para dar conta da experiéncia sibita que jogo precisamente ai: irrompe o uivo de um cao. E Zaratustra comenta: Alguma ver escutei um cio uivar assim? Meu pensamento correu para trds. Sim! Quando era crianga, na mais longa Infancia —ento ouvi um co uivar assim. 31 NIETZSCHE. Assim Falou Zaratustra, Trad, Paulo César de Souza, S80 Paulo: Companhia ddas Letras, 2011, pag, 150-151. (Siehe, sprach ich weiter, dieses Augenblick! Von diesem Thor- wege Augenblick liuft eine Lange ewige Gasse riiekwirts: hinter uns liegt einer Ewigkeit/ Muss nicht, was laufen kann von allen Dingen, schon einmal geschehn, gethan, vorliberge= Jaufen sein?/Und wenn alles schon dagewesen ist: was haltst du Zwerg von diesem Auge blick? Muss auch dieser Thorweg nicht schon ~ dagewesen sein?/Und sind nicht solchermas sen fest alle Dinge verknotet, dass dieser Augenblick alle kommenden Dinge nach sich zieht? Also ~~ sich selber noch?/Denn, was laufen kann yon allen Dingen: auch in dieser langen Gasse hinaus ~ muss es cimal noch laufen! ~ (.. missem wir nicht ewig wiederkommen’ -) Exdigdo alema, pag. 200, 32 A simples possibilidade de ser, ao se realizar, instaura imediatamente sua propria eternidade ‘medida que passa a fazer parte da dimensio temporal da meméria como veremos adiante, 33 NIETZSCHE, Assim Falou Zaratustra, Trad, Paulo César de Souza, So Paulo: Companhia das Ekstasis: revista de hermengutica e fenomenologia Ve |N1 2017] 27 xaiphnds (Pt 13-33 do) Augenblick (Nietesche) Em questio oacontecimenta de wma ‘mesma sibita transformagao Prof! Dr tzabela Bocayuva[uen)-a) Com quanta sutileza Nietzsche faz Zaratustra figurar o acontecimento de sua interpretagdo do Etemo retomo: através da lembranga do mesmo no outro, O passado lembrado no presente, nesse caso, nada tem a ver com a compreensio de uma temporalidade sequencial, Da mesma forma, o futuro nao é visto como sequéncia e consequéncia, mas também como poss da, Mas uma retomada que traz Ieveza. A compreensao do Etemo retomno que liberta, justamente nao vive 0 peso do massacre pela itreversibilidade do tempo, como é 0 caso dizendo que “ha irreversibilidade e pronto. No mais virada na compreensio nietzschiana da dindmica do tempo no entende uma tal inreversibilidade como fim de linha, como impoténcia. Antes, versibilidade de um ato, de uma fala, com a alegria de poder transforméd-los em outros atos e falas igualmente vigorosos. E nessa transformagao interpretativa que mora 0 bom humor diante do retorno eterno." Enfim, numa repetigdo as- sim entendida, o que retorna nunca poderia ser a monotonia insuportavelmente tediosa e aprisionante do mesmo fato. vel ¢ necessaria retoma- tude reativa diante do aniincio decisivo do deménio ive a irre E de repente desaparecem ani e portal e aparece 0 cio que uivava, agora gri- tando por socorro. Uma nova cena acontece. Na verdade, uma repetigzo da expe- rigncia do corte pela raiz descrita anteriormente. Zaratustra exibe a visio do mais solitario, a visio, em alegoria, de um pastor que morde e cospe fora a cabega de uma pesada serpente (simbolo do circulo) que Ihe mordera a garganta enquanto ele dormia. Depois do corte decisivo o pastor levanta, ento de um salto: Letras, 2011, pig. 151. (Hérte ich jemals einen Hund so heulen? Mein Gedanke lief zunick. Ja! Als ich Kind war, in fernster Kindheit/~ da horte ich einen Hund so heulen,) Edigao alema, pag. 201 34 O que constitui o mago da nogdo de ananmnese, recordagdo da idéa em Platio, Em breve ‘me deterei numa anilise comparativa entre anamnese em Platdo e eterno retorno em Nietzsche. 35 Diria que isso jé foi colocado por Platio precisamente no mito de Er no final da Repiiblica {quando ele descreve 0 provesso do acontecimento da transmigrago eterna das almas, Trata empre de uma retomada em nova configuraedo daquela vida que cada alma teria vivido an- teriormente quando do momento da escotha de uma existéncia futura, O pensador grego faz questio de descrever a escolha feliz de Odisseu que abandona o amor as honras que caracter- izou sua existéncia anterior por uma existéncia idéntica & de Sécrates:a vida de um desocupado desinteressado da vida pliblica, Ou seja, a atitude politica do herdi Odisseu no mito de Er, a0 escolher a vida do amor a sabedoria, Ihe traz alegria, contrastando com a escolha da vida futura dde um trano feita por uma personagem que teria vivide anteriormente de modo virtuoso apens por habito, isto €, que teria sido apenas um homem "bem comportado”, um moralista.Platdo faz guestio de mostrar o resssentimento ¢ cariter odiento deste iltimo ao escolher sua existéncia futura. (Repiblica 6196-620d) CL. BOCAYUVA, I. Odissew e o sonho do retorno ou o filésofo ardiloso, se isso é possivel In: VISO Cademos de estética Aplicada IX, N° 17, juledez/2015, E ainda BOCAYUVA, Izabela, O dilema no diddago Hipias Menor: quem & melhor, Aquiles ou Odisseu? In: Revista Ensaios Filoséficos, Volume XIV— Dezembro/2016, pags. 36-50. Ekstasis: revista de hermengutica e fenomenologia Ve |N1 2017] 28 xaiphnés (Pl 13-33 do) Augenblick (Nietesche) Em questio o acontecimenta de wma ‘mesma sibitatransformagao Prof! Dr taabela Bocayuva[uen)-2) Nao mais um pastor, no mais um homem, um iluminado que ria! Jamais na terra um homem riu como ele ria! Com essa outra imagem exemplar de corte radical, Nietzsche acrescenta 0 riso, marca indelével da leveza e alegria ja antes tratadas no aforismo Do peso mais pesado a fim de caracterizar a interpretagdo do Eterno retorno a partir da experiéncia extraordindria do instante. Considerando a relagdo dos dois pensadores em questo ao tematizarem 0 sibito instante que faz. diferenga quando se trata do pensamento radical, dois elementos estiveram sempre articulados, a saber: 1) 0 que venho chamando de ultrapassagem ou corte ou virada ¢ 2) uma transformagdo interpretativa extra- ordindria. Agora vou pautar a questio da politica que apenas indiquei no inicio. Na verdade, ao longo do texto ja dei pinceladas na diresdo desse questiona- mento quando falava que, a partir do corte ou virada, oufra postura orientadora de todas as possiveis realizagSes entrava necessariamente em cena, Na citagdo final de Da Visdo e do Enigma, e no aforismo O maior dos pesos, vimos Nietzs- che caracterizar essa outra postura a partir do riso e da alegria, respectivamente. Plato faz o mesmo através da personagem Odisseu no mito de Er que escolhe, com alegria, como vida futura a existéncia de fildsofo™. Tudo isso, porém, es muito longe de qualquer anseio por um “estado de felicidade”, esta muito longe de qualquer desejo pequeno burgui Do mesmo modo que nfo hé jamais fala ou gesto, em qualquer nivel que seja, fora de uma interpretagio, toda interpretagdo é ja sempre uma pritica po- litica, Nao vou dar conta de discutir a infinidade de praticas politicas possiveis. Mas, na diregao da andlise de Hannah Arendt a respeito dos elementos que a cada vez convergem promovendo a banalidade do maf” enten- do que duas so as raizes origindrias das inimeras configuragdes do exercicio politico em todos os mbitos, nos relacionamentos com pessoas, oficios, enfim, na postura diante do que quer que seja. Digo isso por entender que so dois os horizontes interpretativos bisicos da realidade desdobrando-se, cada um, nas inesgotiveis possibilidades sempre diferenciadas de agir. Seria inviivel. 36™ NIETZSCHE, Assim Falou Zaratustra, Trad, Paulo César de Souza. Sie Paulo: Compa: hia das Letras, 2011, pag. 152. (Nicht mehr Hit, nicht mehr Mensch, - ein Verwandelter, ein Umleuchtcter, welcher lachte! Niemals noch auf Erden lachte je cin Mensch, wie er lachtc!) Exigo alema, pag. 202. 37 CF, nota 35, 38° ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém. Um relato sabre a hanalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueita. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2016. Ekstasis: revista de hermengutica e fenomenologia Ve |N1 2017] 29 xaiphnés (Pl 13-33 do) Augenblick (Nietesche) Em questio o acontecimenta de wma ‘mesma sibita transformagao Prof! Dr taabela Bocayuva[uen)-2) ‘Um desses horizontes absolutamente ndo pensa,*certamente no porque nao raciocine, mas apenas raciocina a partir de um entendimento egoista, imediatista e rastciro. Esse pode ser 0 caso de cientistas altamente qualificados, capazes de elaborar teorias altamente sofisticadas, A mediocridade que modula essa falta de pensamento pode ser até muitissimo instruida, pode fazer parte da inteligentia que governa povos ¢ decide pelos rumos do mundo. Alias, no € de hoje que a instrugdo vigente, muita ou pouca, acompanhada pela falta de pensamento, vem conduzindo o aniquilamento do homem e de toda a terra. Sua marca principal & justamente a auséncia de espirito, que s6 tem condigdes de gerar, a partir do seu vazio nadificador, estratégias opressoras de dominagdo. Adomo ¢ Horkheimer chamam de “razo instrumental” 0 que orientou intelectuais alemaes a conce- berem ¢ executarem o Holocausto."O principio eminentemente patriarcal do ocidente esté na base disso tudo, Incapaz de ver sendo sua propria vantagem & agindo como se essa perspectiva fosse principio universal inquestionavel, esse tipo de atitude politica apenas tende para a opressio, pois ou ja oprime ou, se 60 caso de estar na situagdo de oprimido, s6 quer um dia ser 0 opressor. © outro horizonte interpretative que sugiro também ser originério na in- terpretagdo da realidade ¢ que consiste igualmente numa postura politica, a0 contrario, pensa, Segundo 0 que vimos nas andlises acima desenvolvidas, sua marca principal & a capacidade de softer uma transformagiio radical em relagao ao que é vigente, mesmo se se trata de modos vigentes de “questionar”. Somen- te quando se pensa por si proprio é possivel um real questionamento, Como ja disse Heraclito, 0 ambito do pensamento é 0 Ambito do comum.*"O pensamento proprio nfo coincide com um pensamento particular, antes, ele inclui os outros € 0 entorno. As diversas praticas possiveis, orientadas a partir desse horizonte, sto politi precisam da opressio como instrumento de forga. E no precisam disso porque jamais pretendem homogeneizar, estratégia a qual sempre chega para cumprit 0 papel de facilitar a dominago, Sua forga encontra-se nos livres relacionamen- tos, aqueles que deixam acontecer transformagdes, seja naqueles mesmos que ‘num sentido inteiramente inverso ao que vimos anteriormente. Nao 39 Cf. TIBURI, M. Filosofia Prética. Etica, Vida cotidiana, Vida virtual. Rio de janeiro: Record, 2016. 3¥ed, p. 34ss 40” ADORNO, T. e HORKHEIMER, M. Dialética do Rio de Janeiro: Zahar, 1985, larecimento, Trad. Guido Almeida, 41 °Nao do senso comum, © ambito do senso comum, segundo Hericlito, & 0 Ambito do parti= cular. Frag. 2: por isso é preciso seguir os que compartilham o pensamento (xyndi), aquilo dos comuns (koindi), pois © comum (ho koinds) & em comum (xynds), mas enquanto uns Vive a partir do légos compartihada (tor ldgow xynedi), 08 muitos vivem como tendo um pensamento (phrénésin) particular (idian). (8x9 861 Sxsa8a vax Kowvisr Zovae yap & Ko1vds,

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