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NACAO E DEFESA ANO VI—N- 21 —JANEIRO- MARCO DE 1982 (PublicagBo Trimestral) INSTITUTO DA DEFESA NACIONAL — PORTUGAL DIRECTOR General ALTINO AMADEU PINTO MAGALHAES Director do Instituto da Defesa Nacional Comisstio de Redacgao: Coronel Silva Carvalho, Capitio-de-mar-e-guerra Ferreira da Costa, Capitio-de-mar-e-guerra Virgilio de Carvalho, Tenente-coronel Silva Ramos, Tenente-coronel Oliveiros Martins (secretario). Propriedade, Redaccaio e Administracdo: INSTITUTO DA DEFESA NACIONAL Calgada das Necessidades, 5— 1300 LISBOA. CONDIGOES DE ASSINATURA Por nimero (num minimo de quatro) 10800 Prego de venda avuleo 50800 SUMARIO EDITORIAL a eee eee eee eee eae S| SOBRE O CARACTER NACIONAL OU PARA UMA ¢EXPLI- CACAO» DE PORTUGAL—ENSAIO ... . u Maria de Lourdes Belchior DESENVOLVIMENTO E DEMOCRACIA 2... so 3B Magalhaes Mota REGIONALIZACAO E ORDENAMENTO DO TERRITORIO ... 45 José da Silva Peneda © PODER E © ESTADO: A NECESSIDADE DE ASSUMIR A POLITICA... ... o : eee Francisco Sorsfield Cabrat A ADESAO AS COMUNIDADES EUROPEIAS E O SISTEMA ECONOMICO PORTUGUES eee a. Paulo de Pitta ¢ Cunha POTENCIALIDADES DA INDUSTRIA NACIONAL PERANTE A DEFESA NACIONAL ... 7 ‘ 89 Pedro Ferraz da Costa RELAGOES ENTRE A ESTRATEGIA E A POLITICA um Abel Cabral Couto © PROCESSO DE PROFISSIONALIZAGAO MILITAR NO EXER- CITO PORTUGUES (1) Cee eee ge Maria Carritho ‘A DEFESA NO MUNDO a 147 Redacgio 4 DOUTRINA DOS ARTIGOS £ DA RESPONSABILIDADE DOS AUTORES EDITORIAL EDITORIAL 1. O presente niimero da NACAO E DEFESA inclui um artigo subordinado ao tema «CARACTER NACIONAL». O seu objectivo é o de procurar determinar quem somos nds, os portu- gueses, como entidade colectiva. Trata-se de um ensaio. O método escolhido foi o da indagagio de escritores nacionais, romancistas, ensaistas e poetas, através da andlise das suas obras. O facto de a autora do artigo ser professora, ilustre, de Literatura Portuguesa, niio é estranho a escolha deste método. 2. Por carécter nacional deve entender-se tudo aquilo que constitui, intrinsecamente, a maneira de ser e de estar de um povo, 0 que the é peculiar, o que tipifica os seus modos de sentir, de pensar e de agir. Por outras palavras, cardcter nacional & aquilo que reflecte 0 comportamento colectivo de um povo, ao longo da sua historia, em termos de génio, de indole, de feitio, de hdbitos, de forca de alma, de firmeza, de patriotism, de lealdade a principios, de religiosidade, de coeréncia dos seus actos. 3. Nao é tarefa facil determinar o cardcter nacional. Nao pode ser avaliado apenas por simples extrapolacdo do cardcter indi- vidual dos cidadéos nacionais, porque se trata, de facto, de algo especificamente diferente. Por outro lado, 0 cardcter nacional nao é imutdvel, Adapta-se as circunstancias histéricas que moldam a vida dos povos; a alteraciio do meio fisico-geogrifico, 0 desenvolvimento socioeco- némico, a evolugao politica, sto alguns dos factores que podem citar-se como intervenientes em ajustamentos do cardcter nacional; e também a aceao de chefes carismaticos, a acgao das élites, a ocorréncia de grandes acontecimentos na vida das nagées, sao 7 NAGAO E_DEFESA outros factores que Ihe podem imprimir, conjunturalmente, sen- siveis marcas. 4, Daqui o interesse e a importancia que representa a ava- liagiio do cardcter nacional, inclusivamente porque, podendo ser moldado, reforcado ou enjraquecido, por circunsténcias conjun- turais, néo pode deixar de merecer a necessdria atengao no estudo ena prepararao da defesa nacional. Camées diz-nos, a corroborar a importancia dos cuidados que deve merecer o cardcter nacional, que «o fraco rei faz fraca a forte genten e também que «com o rei se muda a genten. 5. O artigo publicado neste niimero poderé dar uma imagem desfavordvel, negativa, de nds préprios. Porém, como nele expressamenie se refere, niio se pretendeu esgotar 0 tema com a inguirigao que foi feita. Apenas se procedeu a exploragao de uma via de aproximagiio considerada pertinente. Muitos outros ca- minhos podem e devem ser ensaiados. A NACAO E DEFESA convida os seus leitores a interessarem-se por esta importante matéria e pe as suas paginas a disposicao, para publicacao dos trabalhos que queiram apresentar. 6. Entretanto, temos a consciéncia de que, como portugueses, somos melhores do que 0 mau perfil que se poderd recolher da indagacao de alguns dos autores que foram consultados. Nao somos nem os cafres da Europan, nem tiio-pouco os «bébedosn, os aaldrabéesn ou os «sujosn. E muito menos somos ainda, como povo, os «exploradores de tudo menos do trabalho». Foi com trabalhos e sacrificios, sem par na vida de outros povos, que fi- zemos abnegadamente, nas sete partidas do mundo, obra de que muito justamente nos podemos orgulhar. O perfil negativo, que alguns escritores nacionais reflectem nas suas obras, tem por base muitos dos traumatismos decorrentes das angiistias produzidas no nosso pais em periodos de graves crises nacionais. Este facto niio pode ser esquecido, como ele- mento correctivo, pelos que lerem esses autores. Se «entre os Portugueses, traidores houve algumas vezes» e se houve também ‘ EDITORIAL outras degradagées de comportamento, que nem sao exclusivas de portugueses, isso nao pode permitir generalizagdes na definigao do cardcter nacional. ‘Mas, atengio, os tempos que estamos a atravessar, de conti- nuadas e assanhadas Iutas politico-sociais, que exacerbam anta- gonismos, desenvolvem egoismos e destroem a solidariedade entre 0s portugueses, niéo siio de molde a perspectivar um futuro tran- quilizador. Impie-se, para bem do Pais que somos, meditar nesta situagdo e adoptar a tempo as medidas que the ponham cobro, evitando situagées de maior gravidade. IDN, Marco de 1982 SOBRE O CARACTER NACIONAL ou PARA UMA «EXPLICACAO» DE PORTUGAL ENSAIO Maria de Lourdes Belchior SOBRE O CARACTER NACIONAL ou PARA UMA ¢EXPLICACAO» DE PORTUGAL ENSAIO De varios © desvairados modos se poderia intitular este ensaio. Ensaio no sentido rigoroso da palavra, no sentido de experimentago com ingre- dientes varios até obter resultados significativos. Tal como se faz em quimica, Tal como se faz em poesia. Légrima de preta de Ant6nio Gedeio € um exemplo. Até nos poderia servir para, frontalmente, abordarmos logo uma das linhas de rumo do modo portugués (se € que existe um modo portugués), de ser e estar no mundo. Ensaio sobre 0 cardcter nacional, sobre o enigma portugués, sobre que povo nds somos, os portugueses? De elementos fundamentais da cultura portuguesa ou estudos do carécter nacional portugués e personalidade do povo portugués se poderia intitular f indagagao a que queremos proceder. Indaga¢o que se poderia orientar em determinados sentidos ¢ situar-se neste ou naquele Ambito, Tento expli- car-me: a indagac&o poderia, por exemplo, orientar-se no sentido de pro- curar caracterizar 0 significado do sebastianismo, desde 0 desapareci- mento do Rei, & Mensagem de F. Pessoa; poderia orientar-se no sentido de estudar introduces significativas & Historia de Portugal, como as de Oliveira Martins, Jaime Cortesio ¢ Ant6nio Sérgio e 0 seu comentério exitico feito por O. Ribeiro; poderia orientar-se no sentido de interrogar certas obras de cultura, com vista a esbocar um retrato do homem por- tugués; poderia trilhar caminhos de inquirigio ¢ anflise sociol6gicas interpretar os seus resultados. Acontece que no sou nem socibloga nem antropéloga. O meu offcio de professora de Literatura Portuguesa leva-me a ler textos de autores portugueses que podem ser interrogados com intengo de neles procurar elementos caracteristicos do modo portugues de ser € estar no mundo. Sou por dever de oficio leitora de obras seiscentistas, visto ser especialista do barroco literério peninsular, e amadora de leituras de autores contemporaneos. Nesta ultima perspectiva, a Ieitura de alguns romancistas de hoje despertou-me para a verificagéo de uma espécie de B NAGAO_E DEFESA consciéncia de crise ¢ demanda de uma identidade. Comecemos por aqui Interroguem-se alguns romancistas portugueses contemporéneos, que pare- cem identificar-se com uma consciéncia de crise ou, pelo menos, a pdem de manifesto nas suas obras; assim Os Lusiadas, romance de Manuel da Silva Ramos e de Alface (de 1977); Portuguex, de A. Silva Carvalho (de 1977); Signo Sinal, de V. Ferreira (de 1979) ¢ Lusiténia, de Almeida Faria (de 1980). Repare-se, para comecar, nos titulos de algumas destas obras de ficgo, todos relacionados ou relaciondveis com Portugal, como tema (0s lusiadas, portuguex, lusitdnia). Mas antes de entrar em contacto com estas obras, estoce-se primeiro 0 roteiro que vamos seguir nesta viagem de inquitigo sobre 0 modo portugués de ser e estar no mundo. Depois dos romancistas, alguns ensaios ou péginas de indole ensafstica, safdos da pena de autores contemporineos: O Labirinto da Saudade (Psica- ndlise Mitica do Destino Portugués), de Eduardo Lourengo (1978); Repensar Portugal, de Manuel Antunes (1979); € Ensaios sobre a crise nacional, de Vasco Pulido Valente (1980). De dois didrios, de indole ¢ estilo muito diferentes — O Diério de Miguel Torga (12 vols.) e Conta Corrente de V. Ferreira (2 vols.) —, algumas posi- ges ¢ definigées referentes ao que somos, como povo, nds os portugueses. Poderiamos restringir a inquiri¢do a autores contempordineos ¢ por confronto, aos autores da gera¢o de 70 que testemunham duma crise de iden- tidade, despoletada, mais tarde, em virtude do Ultimatum, Este confronto seria fecundo, mas poderia apenas por em relevo os elementos que, em situagfo de crise, sfo de certo modo acidentais. Ora nao nos interessa detectar um modo de ser colectivo, comportamentos reveladores de um ‘aricter nacionél, despoletados por acontecimentos trauméticos (Ultimatum/ Jrevolugio de Abril de 1974). Interessa-nos captar, caso exista, um cardcter nacional que, so longo dos séculos, se tenha revelado nas mais variadas circunstfincias. Por estas razées, intentamos uma pesquisa que parte de hoje e vai recuando no tempo, em demanda de elementos caracteristicos da cultura portuguesa, elementos tipicos do carfcter nacional portugués. Fernando Pessoa ¢ a sua Andlise da vida mental portuguesa, assim como muitos dos textos reunidos com o titulo Sobre Portugal — introdugdo ao problema nacional, serio paragens obrigatérias do nosso inguirir. Antonio Sérgio, Teixeira de Pascoais, Fidelino de Figueiredo e alguns mais podem, embora de passagem, contribuir para a caracterizagio da problemética nacional. Do mesmo modo Oliveira Martins, Antero, Eca, 4 SOBRE O CARACTER NACIONAL Ramalho, entre outros, dar-nos-do a imagem que a geracéo de 70 tem de Portugal. Recuando sempre na demanda das raizes dos conceitos de «pitria portuguesa» e «carécter nacional» poderemos analisar 0 pensamento de certos autores seiscentistas, designadamente Vieira, Duarte Ribeiro de Macedo, Severim de Faria, o autor andnimo da Arte de Furtar, Luis Mendes de Vasconcelos, Tomé Pinheiro da Veiga que escreveu a Fastigimia, etc. Se © tempo nos sobrasse, poderiamos investigar na literatura de viagens (Séc. xvi-xvitl) 9 retrato dos portugueses, como povo, tentando verificar em que medida tem razio Jo&o Medina ao escrever, categorico, Nao hd Utopias Portuguesas, Esta pesquisa das raizes poderia prolongar-se pelo Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (publicado em 1516), onde late- jam comportamentos ¢ modos de ser tipicos talvez do portugués; e chegar até as Cantigas de amigo © as de escérnio ¢ mal dizer, onde também talvez se adivinhem maneiras de ser caracteristicas do portugués. Outro percurso a seguir, ¢ que nos levaria longe, seria o da literatura de estrangeiros sobre Portugal (para este propésito 0 catélogo, em dois grossos volumes, da biblioteca de José Duarte de Sousa oferece pistas e materiais muito ricos (cf. Catélogos de Livraria Duarte de Sousa, 2 vols. —séc. xv -xvit € séc, XIX © XX, Lisboa 1972). Depois de percorrermos os pontos mais significatives do itinerario esbogado, seré fecundo cotejar os dados recolhides com os elementos que Jorge Dias considerou fundamentais da cultura portuguesa, capazes de contribuirem para uma definigio do carécter nacional portugués. Para este cotejo interessa, pois, nao s6 0 ensaio de Jorge Dias intitulado Os ele- mentos fundamentais da Cultura Portuguesa (Agencia Geral do Ultramar, Lisboa 1960), posteriormente reelaborado € reeditado sob o titulo de Estudos do Cardcter Nacional Portugués (Junta de Investigagdes do Ultramar —Estu- dos de Antropologia Cultural n° 7, Lisboa, 1971). Interessam também outras obras como Reflexao (sem data) de Agostinho da Silva; o Enigma Portugués de Cutha Leo, (1960); Paisagem Social Portuguesa de Domingos Monteiro (1944); O Espirito da Cultura Portuguesa de Ant6nio Quadros (1967). ‘Mas seria tertar fazer caber o Rossio na Rua da Betesga querer analisar na perspectiva em que nos empenhamos—a de uma definigéo do caricter nacional — todas ou a maioria das obras citadas, Comecemos pela novelistica contemporinea, em especial pelas obras ja aludidas, De Os Lusiadas, romance de Manuel da Silva Ramos e de 1s NAGAO E DEFESA Alface, se pode dizer que é uma obra, de certo modo, surrealista, densa € tresloucada nas alusdes que se detectam ao longo das suas 443 péginas. Palavrdo e mais palavrdo, alusdes, nomes de autores e obras (Jodo Gaspar imées, Ropica pneuma, etc.) constituem-se como uma espécie de charada, as vezes decifravel (wsabem que sempre é ali o Campo Pequeno adentro de cujas © téureas portas, em tantas ¢ tantas cornadas de consagragio a juventude nacional pediu messas 20 meio» —pg. 101). O romance comega na pagina 77 mas tanto podia comegar nela como em qualquer outra, visto no ter comego. Nomes como o do Cavaleiro de Oliveira (pg. 115); frases como esta «eu nunca mais abrirei a carta pode ficar descansada escapou de legionério eu nunca mais 0 vi pode crer era um tipo porreirinho da posta um portugués suavon (pg. 130) ou ¢essa linha Imaginot da literatura portuguesa: Os Lusiadas» (pg. 133)— frases sem aparente nexo constituem © tecido do livro. Alude-se a um portuguesito, um maluquito (pg. 139) € diz-se de Os Lusiadas que «sto 0 primeiro livro falhado da literatura portuguesa» (pg. 139 e que Os Lusiadas servem-se de todo o siléncio da literatura portuguesa anterior para elevar a palavra & sua suprema unio (pg. 140), 0 que é nitidamente uma «charge» de certas banalidades da critica. Hé paginas que sio a sitira da Peregrinacdo de F. Mendes Pinto, dos Lustadas, dz sessbes literdrias (pg. 163). De vez em quando, no meio de uma espécie de ganga ¢ entulho, frases que parecem ser si «Sobolos rios que vo deixemo-los ir. Passemos esquecendo a cera ¢ 0s ouvidos, a cara eo alfabeto, a patria e 0 padrio, a cidade téxtil ¢ 0 texto, ‘passemos com a surpresa s6 de estarmos enjoados da nossa prépria serenidade» (pg. 185). Alusées, distorgdes, aleijées, etc., parecem pressupor uma espécie de «esquizofreniay (pg. 239) em que, repercutindo 0 titulo os lusiadas, se retratasse algo ou um alguém colectivo. ‘Adivinha-se através de palavras e frases (patriotismo derreado — pg.300), portugalos (pg. 320), Castiglione no Cortegiano aduro estravés da mulher que se vé Deus (pg. 355). Ex-voto (pg. 375) que o romance é uma espécie de sétira do mundo da cultura (7) e do portugués; a ironia espelha-se em: ase pudéssemos um dia escolher um insecto ou animal que correspondesse sem alambre nem fiambre ao cardcter portugues esse seria sem divida alguma o escaravelho» (pg. 391); ou ainda no periodo que comeca «gramatica definitiva da Iingua portuguesay, etc. (pg. 399-400); ou ainda «O nevoeiro é uma espécie de meméria colectiva da Humanidade Portuguesa, e como tal,» etc. (pg. 407). Fazse aqui a caricatura de certo de tipo de ensaismo, frouxo € vago, 16 SOBRE O CARACTER NACIONAL pretencioso ¢ sem nexo; significativa a apéstrofe que comega «Lusiténia, Lusi- WGnia, etc. (pg. 421), significativo também o texto ao Retornado (pg. 427); testemunho da mesma ironia o comeco da Errata da pg. 436: «A historia portuguesa € uma anedota contada por um surdo mudo a uma familia de saltimbancos». E 0 reino do inverosimel, do néo-sentido (2), de uma prosa suicida ¢ tresloucada. Os Lusiadas ou 0s anti-Lusiadas? (romance? anti-romance?) Portuguex, de Armando Silva Carvalho, tem como subtitulo Romance esquizo-hist6rico. Na floresta dos imprevistos, nas sétiras subjacentes desta rosa «esquizo-histérica» podem detectar-se alguns elementos que parecam definidores do portuguex. Portuguex & uma empresa que tem um produto a publicitar; portuguex € um produto a colocar surrealisticamente, As carica- turas de portuguex surgem inesperada e inopinadamente. Portuguex «parece- -me ser uma empresa agradavel apesar de a conhecer muito superficialmente. Portuguex & uma empresa muito genuina». (pg. 138). Aparecem alusdes & geira lusitana, a0 povo portugués (pg. 30). Cito s6 lum passo: «muito nos ensinam esses grandes mestres de oratéria que so 05 feirantes de unguentos milagrosos. Ao ouvi-los 0 povo portugués sofre (© seu baque caréiaco; encosta-se ao sentir que Ihe sobe das veias e morre no olhar para se entorpecer deleitado com tanta utopia & mao de semear © logo recolher... Somos um povo de pechincheiros costumava dizer o ‘meu velho mestre, agora reformado» (pg. 31). A sétira, «sui generis», alon- ‘ga-se por muitas paginas. ‘Transcreva-st uma outra amostra: «Na cama sempre feita deste pais com sono, um dia acordou-se em rebolico. As tropas puseram-se a escutar, vindos do alto, 0s sagrados deveres do mecenato e da revolugo. Vai um tirinho, frogués? Pois & nesta feita que iremos colocar 0 produto» (pg. 32). E ine- quivoca a intengio esquizo-histérica-satirica © © produto Portuguex que Alviela (0 protagonista?) quer colocar, destina-se «assim para nove milhoes mais coisa, menos coisa» (pg. 56); 0 Memorandum para imagem proposta refere as viagens dos portugueses ¢ 0 dinheiro emprestado (pg. 107) pelos banqueiros alemies ¢ italianos ¢ no Auto da Mocidade ha passos e passos ‘mordazes e sarcésticos (sempre fomos um povo sentimental e lirico, pg. 126). kCamdes pensou? Nao, amou a Patria. Delirou com a Patria» (pg. 127). Dir-se-ia que uma espécie de trauma desencadeia aos borbotées, numa como que dentincia colectiva e em termos de quase loucura, os males, os tiques e os estigmes de um povo, 0 povo portugués. De mistura com elementos ” \CAO E_DEFESA ‘mais ou menos correntemente assinalados, lirismo, saudosismo, etc., outros (acidentais?) se encontram disseminados nas obras (esquizo qué?) de alguns autores portugueses, recém-publicados. Casos diferentes so os de Vergilio Ferreira ¢ Almeida Faria. Em Signo Sinal de Vergilio Ferreira ha entretecidos com outros aspectos ou episédios, descrigdes de grupos, de partidos, de programas politicos, de comicios, tudo eivado de uma ironia que no da imagem favordvel da «pitria portuguesa» © em particular da revoluggo de Abril 74 (pg. 19-20; 82, 179, 180, etc). Estas imagens agravar-se-4o em Conta Corrente J (1.° volu- me de um Didrio que vai de 1969 a 1976) e que adiante abordaremos. Lusitdnia de Almeida Faria abre com uma palavra de Ega (de Os Maias); «pitria para sempre passada/meméria quase perdidan. Escrito, em estilo epistolografico, o romance, que inclui alguns relatos e monélogos, reproduz, sobretudo, a repercussio do 25 de Abril numa familia alentejana de Monteminimo. Por mais de uma ocasio ha oportu- nidade de criticas significativas, explicitas ou implicitas. Assim, faz-se ‘mengéo de lamiria lusiada (pg. 18), de chavdes nacionais (pg. 23) ¢ do que ch nesta terra se passa: «0 povo 4 solta sem trabalhar, pelas ruas a vadiar, fa festejar a liberdade, a preparar um primeiro de Maio de estalo. Todos se acham importantes...agora € a hora do trespasse» (pg. 66). Ha, de vez fem quando, desabafos que sio uma espécie de radiografia, assim Lisboa € «capital da patetice, da chatice adormecida por dois séculos de burguesia estéril, por alguns mais de fidalguia estética de papo para o ar a receber rendimentos do chamado ultramar, desse além-mar-em Africa» (pg. 71). isboa € ainda «transatlintico ha quatro séculos encalhado...decadente capital» (pg. 78). Capital de esterilidade que se abandona, como alguém © fez, sacudindo 0 pé para «nem pé portugués levar consigo, tanto pé patria ingrata tinhan (pg. 86). A ironia insinua-se amarga em frases deste tipo: «Estamos, o pais interino e cada um de nés mesmos, naquele engano de alma lego ¢ cego que o O.G.E. nio deixa durar muito» (pg. 88) ou entio explode em caracterizago quase barroca (pg. 103), ou ‘icida quando faz referéncia, por exemplo, a «jornais de atrasados mentais, bajuladores do poder» (pg. 104). A descrigéo da geral mediocridade do pais é feita estes termos: «Neste meio acanhado, isolado, circuit fechado onde fun- cionam sempre os mesmos figurdes com periédica mudanga de mascaras para enganar o parceiro ou para darem a iluséo de serem gente» (pg. 105). © pessimismo agrava-se: «A corrupgio dantes era de poucos a comerem 18 SOBRE O CARACTER NACIONAL muito, hoje sio muitos a comerem o mesmo... E initil tentar Iutar contra esta maré de oportunistas, golpistas, safados sem vergonha» (pg. 113). Dir-se-a que se trata de juizos de valor, apticados, sobretudo, a época do Prec (Processo revolucionério em curso). Mas afigura-se que o trauma afinal s6 serve de estimulo; 0 juizo de valor, latente, irrompe, a propésito ¢ também a despropésito. 0 caso daquele «povo desempregado desde Vasco da Gama, cheganio de novo ao inultrapassvel Cabo Nao» (pg. 164) que se aparenta com os versos de F. Pessoa- Alvaro de Campos: Pertengo a um género de portugueses/que depois de estar a India descoberta/ficaram sem trabalho (cf. © opiario), «Pais de opereta onde nascemos» (pg. 163), ‘fome secular desse pais» (pg. 168), «terra tristissima» (pg. 170), apovo exausto que alguns acham deu 0 que tinha a dary (pg. 140), «pais decadente esque- cido na Europa, sem recursos alguns» (pg. 141) sio maneiras de aludir a0 pais sem salvagdo: «ndo existe safa nesta nave perdidan (pg. 135); «nesta nave furada, cheia de buracos que ¢ Portugal» (pg. 140). Ao referir um juizo apressado de turistas (les portugais sont toujours gais) 0 romancista comenta: «dizia um turista que nao nos conhecia. Se conhecesse fugia a sete és, tio perigosa € essa doenca, 0 desespero, to pegajosa, contagiosa, pega- mhenta, espécie d: lepra por dentro» (pg. 151). E ja no final do romance, transferindo, do presente ¢ acidental para o permanente, um juizo de valor, escreve: «Agora volta a vir ao de cima 0 nosso secular cepticismo, indiferenca, fatalismo, transfo:mando em gesto nacional 0 encolher de ombros de outrora conhecido» (pg. 158). Faca-se 0 balango, com vista a obter alguns elementos fundamentais (ou que como tal possam considerar-se), que «definam» 0 cardcter nacional. Isole-se fristeza; recordo, a propésito que Domingos Monteiro num livrinko intitulado Paisagem social portuguesa, de 1944, escreveu: «dir-se-ia que 0 portugués procura 0 negro no para vestir 0 corpo, mas um estado de alma, tio persistentemente sombrio como a aceitacéo de um destino sem ambigdes ¢ sem esperangasy (pg. 1, op. cit.). E mais adiante: «O portugués é triste (pg. 12 id.), duma tristeza tao funda ¢ radicada na sua alma que...» Além da tristeza, desespero, cepticismo, comodismo, deixa correr, provincianismo, fatalismo, indiferentismo, etc., seriam alguns dos dados do cardcter portugués entrevistos ¢ estigmatizados por certa novelistica contem- poriinea. Sera curioso confrontar estes dados com os que E. Lourenco apurou na sua Psicandlise mitica do Destino portugues que intitulou de O Labirinto da Saudade, Retomarei parte do que jé escrevi a propésito deste ensaio de 19 NAGAO E DEFESA E, Lourengo (ag. 1-14 in Revista de Histéria Econémica e Social — Jul/ [Dez de 1979), ¢ farei 0 cotejo dos informes carreados através da leitura da novelistica com os da andlise do trabalho de E. Lourengo. Labirinto da Saudade —saudade de qué, saudade de quem? De um tempo mitico que tera sido de felicidade e de alegria? De um pasado que correspondesse a uma idade de ouro que no mais se repetiu? E. Lourengo, segundo 0 seu propésito, declarado no comeco do citado ensaio, visa recu- perar 0 cabedal de imagens que, a0 longo dos séculos, nés portugueses temos forjado acerca de nés mesmos. O seu objectivo maior é «repensar a sério © a fundo uma realidade do dificil de aprender como a portuguesa» (pg. 15). Para Eduardo Lourengo urge que tiremos as sucessivas méscaras que temos afivelado para enfim conhecermos 0 nosso rosto verdadeiro. Para o autor do Labirinto da Saudade sucessivos traumas nos marcaram (0 da fundagio da nacionalidade, o da dominagdo castelhana no séc. xvit e 0 do Ultimatum inglés). Para nos compensarmos das humilhagdes sofridas, de uma espécie imagens iro alimentar ¢ justificar 0 «saudosismo» que E. Lourengo considera como a tradugo poético-ideolégica do nacionalismo mistico e «a mais pro- funda ¢ sublime metamorfose da nossa realidade vivida concebida como irreal» (pg. 28). A sua anélise prolonga-se, desde as origens da nacionalidade aos dias de hoje e vai sucessivamente dando noticia das imagens que de Portugal ¢ dos portugueses se véo fazendo os varios grupos ou correntes que dominam a cena cultural portuguesa. Ao aludir ao chamado grupo da filosofia portuguesa, responsavel por um «apologeteismo intrinseco da exce- lencia impar de ser portugués» (pg. 38), E. Lourengo reconhece haver todo tum caudal de imagens do ser portugués que esté na raiz daquilo que consi- dera «a mitificago assombrosa da natureza hist6rico-cultural de que a filosofia portuguesa foi exemplo» (pg. 39). E cita a propésito Jaime Cortesio, H, Cidade, José Marinho e Agostinho da Silva, Nao hé divida de que, para 1 da verificago cha de que «somos um povo de pobres com mentalidade de ricos», a andlise de sucessivos acontecimentos ¢ situagées leva E Lourenco a falar de uma espécie de inconsciéncia colectiva (pg. 45). Seré assim? A volubilidade com que a maledicéncia lusitana transforma as coisas graves € sérias em anedctério leva E. Lourenco a evocar 0 peso de uma vida picara que durou séculos ¢ a falar de degradagdo masoquista © de a-ctisticismo (Pe. 53). A propésito desta degradacdo masoquista recordarei um passo de 20 SOBRE O CARACTER NACIONAL F. Pessoa que se encontra na Andlise mental da vida portuguesa: «Uma nago que habitualmente pense mal de si mesma acabard por merecer 0 conceito de si que anteformou. Envenena-se mentalmentes. E ainda a propésito desta degradacdo de si mesmo, que 0 portugués pratica, hé, simul- taneamente, uma pratica da exaltacdo do ser portugués que, em certos casos, coabitam, 0 que acontece, por exemplo, com Vieira que nos chama de cafres da Europa ¢ ao mesmo tempo nos considera povo escolhido, eleito para 0s destinos grandiosos do Quinto Império. Mas abandonemos, por ora, esta perspectiva masoquista de autoflagelagdo. Fixemos, entretanto, desde j6, a dupla imagem exaltante ¢ degradante que parece ser frequente entre n6s: somos simultaneamente os melhores do mundo e dizemos mal do que somos, subestimando-nos ¢ degradando-nos. Para E. Lourengo que esté apostado no «pouco exaltante oficio de conhecer, deserever ¢ julgar o pais» (pg. 52), as imagens que 0s portugueses tém forjado de si, ao longo dos séculos sao de um irrealismo impressionante. E esta € sobretudo a ténica do seu livro. ‘AE. Lourenco interessa, como a todos os portugueses conscientes, iluminar uma problematica que nos diz respeito: «Portugal esta em discussion (pg. 61). Nesta perspectiva 0 livro de Manuel Antunes, Repensar Portugal, € uma reflexdo extraordinariamente hicida ¢ fecunda. Repensar Portugal 6 também o titulo de um dos capitulos do livro’de E. Lourengo, em que se apela para a necessidade de abandonar a via polémica e se repensar Portugal, renunciando & adescentragem permanente dos portugueses da sua prépria realidade» (pg. 77, op. cit). O ensaio de Manuel Antunes parte de um pressu- posto sem equivocos: «Apesar de todas as “clarificagdes, as coisas ainda nao estiio claras” (pg. 3) e interroga-se, a partida: “Que projecto-esperanga para Portugal»? © seu projecto-proposta passa, conforme diz: (pg. 31 € segs.) Por uma instituigto a fortalecer—a democracia; por um ideal a realizar —o do Bem Comum nacional global; por um destino a cumprir—o da universalidade (pg. 33). A descri¢do da situacdo € realista mas nfo azeda nem agressiva; as propostas apelam para «muita experiéncia e muita cons- cigncia, muita literdade € muito tacto, muito sentido do outro ¢ muito sentido da dignidede propria» (pg. 43-44). O objectivo (ut6pico?): «O surgi- mento de uma verdadeira comunidade lusfada no Atléntico, no Indico e na Difspora» (pg. 44). Uma revolugdo moral em que a justica, a solidariedade, a liberdade, a honestidade sejam valores. «Uma revolugdio moral — cito — que estabeleca o primado da produtividade sobre a propriedade-estatal ou outra, da cultura sobre a economia, do ser sobre o ter, da comunidade sobre a a NAGAO E DEPESA sociedader (pg. 56). Dir-se-4 que neste re-pensar Portugal se visa mais 0 futuro do que 0 presente, na perspectiva de quem somos. No entanto, nas sugestdes para a realizagio da democracia, em todas as propostas aliés, esto sempre implicitos ou explicitos elementos sendo constitutivos do nosso modo de ser, pelo menos reveladores de um comportamento ou comportamentos que hao-de corrigir-se. F: 0 caso das sugestdes referentes & desburocratizaso (pg. 71), & desideologizacdo (pg. 73), & desclientelizagao (pg. 74), & descentralizacdo (pg. 78). Todas ou quase todas pressupdem, como a clientelizagao dos partidos ou das comunidades, a burocratizagao da administra;o, defeitos ou comportamentos passiveis de necesséria emenda. A propésito de burocratizacio que, dobrando 0 rr se aproxima de muitas atitudes de burocratas, sugiro a leitura de 0 requerimento do Coetho, inserte em O Bestiério Lusitano, de Alberto Pimenta. Repare-se no titulo O Bestiério Lusitano; trata-se de uma sétira, publicada em Janeiro de 1980, onde certas «qualidades» lusas ¢, porque no (?) da humanidade, so descritas e analisadas. O autor, entretanto, chamou-lhe de O Bestidrio Lusitano, S6 um exemplo: O consultoria do chacal (pg. 55); aproxime-se @ est6riay do anedotario sobre o portugues e 0 seu gosto do ser a borla Nesta linha de rumo de propostas para re-pensar Portugal, citamos 86 dois ou trés titulos: «Portugal entre ontem € amanhav; Da cistio & revo- lucdo; dos absolutismos & democracia de Anténio Quadros (Jan. 1976); e, da autora do grupo SL. Um pais, um projecto; Caminhos e atathos da vida socialista portuguesa (Out. 1976). Ambas as obras sio de 1976. Do mesmo ano de 1976 € o estudo de Vitorino Magalhaes Godinho intitulado Pensar a democracia para Portugal, incomodamente. Das trés obras, a que mais interessa a0 nosso propésito—tentativa de definigdo (2) de um carécter nacional —é a de Anténio Quadros. No capi tulo que intitula de «O ser colectivo portugués ¢ 0 seu conceiton (pg. 25-51), aborda o problema com a ressalva contida neste perfodo: «Podemos e devemos procurar 0 coahecimento do ser portugués, mas pretender defini-lo com Precisio sera cbjectivo votado ao fracasso»... ete. (pg. 27). Néo tenhamos ilusbes € neste particular concordo com A. Quadros. Uma definicdo é impossivel. Mes uma «aproximagio», um enunciado das caracteristicas fundamentais em relagdo a0 que somos, como portugueses, parece vidvel. Para A. Quadros «O ser colectivo portugués teve decerto na sua longa persisténcia uma vida sobressaltada, entre explosdes © fracasos, avangos 2 SOBRE O CARACTER NACIONAL € retrocessos, breves momentos de grandeza seguidos de periodos bem maiores de adormecimnto ou paralisia» (pg. 28) ‘Os elementos que se Ihe afiguram de assinalar, na sequéncia de outras tentativas suas (0 Espirito da Cultura Portuguesa — 1967) so uma cistio que decorre da existéncia de contrarios: desejo de autonomia colectiva dependéncia cultural que pode ir longe («tentagdes» de Unido Ibérica, etc.), uma coexisténcia daquilo que Gilberto Freire designou de aventura € rotina © que segundo Keyserling, citado por A. Quadros, faz do portugués «o romantico mais extravagante € o positivista mais seco e indigente, doce a0 mesmo tempo brutal, rude selvagem, requintado ¢ ordindrio...» (pg. 34 Quadros — vide Hermann de Keyserling, Analyse spéctrale de 'Europe, trad. franc. cap. Le Portugal, ed. Stock, Paris, 1931). Acrescente-se ainda na perspectiva de A. Quadros aquilo a que chama: «uma predisposigo mental absolutista (pg. 40); um tradicionalismo que absolutiza os nossos mitos (bg. 41); € um lieralismo que os ndo tolera de manecira absoluta» (pg. 43). Dir-se-ia que a sintese do equilibrio se néo alcanca nunca ¢ que vivemos mais ‘ou menos em perpétua crise. E a propésito citem-se os Estudos sobre a Crise Nacional, ée Vasco Pulido Valente no ca crise do Estado em Portugal. Diz de Ramalho: ‘no momo pats da Regenerago acreditou que Ihe cabia reformé-lo». Repa- esse, por ora, $6 no adjectivo morno — morno pais (pg. 14). Eca faz mengao, Pela mesma altura, de apatia geral (pg. 19). E Pulido Valente de concluir: «Na verdade uma nagio consiste num organismo, ou seja num corpo soli- dhrio de cidadios com ideias, convicgées, crengas e designios conscientes, vvivos, fortes ¢ comuns. A Nagao é uma comunidade com uma missio. Ora, no Portugal de Citocentos, na sociedade do constitucionalismo mondrquico, 6 ndo existem cidaddos, existem apenas habitantes que se preocupam exclu- sivamente com os seus interesses prOprios e privados e ndo tém qualquer sentimento comunitérion (pg. 20). A crise sentida pelo Portugal de oito- centos no se atenua e vai, ao contrério, agravando-se. Anténio Sérgio, citado por Pulido Valente, disserta sobre o que chama de «questéo nacional» em Consideracdes Histérico-Pedagégicas. E atribui a atrés vicios fundamentaisy os nossos males: 0 estadismo, 0 burocratismo e 0 bachare- lismo (op. cit. pg. 89-90) Cotejem-se agora os dados até aqui forrageados com os pontos de vista de Miguel Torga ¢ Vergilio Ferreira, expressos, respectivamente, nas colunas do Didrio © em Conta Corrente I. 23 NAGAO_E DEFESA Torga tem ao longo dos 12 volumes do Didrio muitas paginas que, organizadas em antologia, nos dio imagem do modo como o poeta encara © pais € 0 seu povo. Alude com frequéncia a uma espécie de complexo de inferioridade (D. VIII pg. 77): «Este nosso velho complexo nacional de inferioridade nao para de roer-nos. E temos de ser grandes em tudo exacta- ‘mente porque nos sentimos pequenos em tudo». Torga estigmatiza a nossa falta de amor ao trabalho: «Temos de hipertrofiar 0 pouco que somos para parecermos 0 muito que desejariamos ser sem esforco, sem trabalho, sem a dolorosa peniténcia de arrancarmos de n6s a propria grandeza» (id., ps. 77). Torga quase nos desencoraja da tentativa de nos conhecermos: «Transparente a realidade portuguesa mostra-se a todos os observadores alheios na sua branca nudez, Quem nunca a soube ver com a minima objectividade foram os préprios interessados. Nao hé gente com tio obstinada miopia como a lusitana» (ITT, pg. 58). Entretanto podemos ao longo dos 12 volumes do Diério forragear um enunciado dos elementos fundamentais da caracterizagio do portugués. Assim, desde o primeiro, h& dispersos os seguintes dados: 1. alma profun- damente lirica (I, pg. 192); 2. monomania critica (IT, pg. 189); 3. incapa- cidade de ser objectivo ¢ fanfarronice (VI, pg. 58-59), cito: «Embora atacada de vez em quanto (a gente lusitana) das sezSes dum derrotismo catastréfico, 14 no intimo do temperamento persiste a boa disposi¢ao optimista de que somos em tudo 0s maiores € os mais perfeitos», ou «Bébados de patriotei- rismo, queremos sempre 0 primeiro lugar, ou nenhum» (pg. 19); 4. somos barrocos, sem roder de andlise directa e funda (VII, pg. 59); 5. padecemos de falta de imaginagdo (IV, pg. 158); 6. nossa vida mental é estagnada, sem crescimento (III, pg. 26); 7. nota-se uma falta de cultura do povo (UL, pg. 30); 8. ¢ uma falta de originalidade ou fantasia magra (V, pg. 39) 9. assinala-se uma teatralidade («A teatralidade do nosso povo é das verdades que mais me tem custado a roer. Imptidico, cada portugués € um estendal de gestos ¢ de exclamagées» — V, pg. 56); 10. A universalidade do nosso génio mora na poesia (V, pg. 116), 11. «somos intuitivos agudos mas no temos perseveranca (V, pg. 161); «Capazes de intuigGes que depois se mostram fecundas, nfo temos o condio de as estrutrar e de oferecer ao mundo uma obra acabada na altura em que o mundo precisa dela. Embrulha-se-nos a ingua ¢ 0 mais que fazemos 6 registar um titulo»; 12. somos parciais exclusivistas (vicios sem remédio) (V, pg. 183); «Sofre de grandes vicios ” SOBRE O CARACTER NACIONAL a vida mental portuguesa, a maior parte dos quais, infelizmente, nfo poderdo ser remediados»; 13, irremediavelmente individualistas (VIII pg. 143): «Cada portugués se pudesse, seria um habitante exclusive de Portugal»; 14, somos provicianos (X, pg. 144) etc. E talvez chegue, quanto av enunciado de elementos caracteristicos do portugués que Torga lapidarmente assim define: «Somos socialmente uma colectividade pacifica de revoltados» (IX, pg. 85), «Ninguém neste pais esté no seu lugar» (X, pg. 86); vive-se desterrado neste desterro que é Portugal «Dum lado a Espanha, onde os apelos nao entram, do outro o mar, onde os gemidos se perdem» (X, pg. 30). Em 14 de Outubro de 1974 Torga escreve (KIT, pg. 87): «Somos na verdade uma cambada de primirios, de temperamento ¢ paixGes & medida da nossa testa» ou «2 uma desgraca. Somos mesmo reles» (XII, pg. 124). Estas tltimas invectivas resultam do trauma do 25 de Abril (ou melhor do p6s-25 de Abril), © que leva Torga a escrever amargurado: «Morro com duas conviegdes arreigadas, a de que ndo hé terra mais bela do que a lusitana ¢ outra to infeliz» (XII, pg. 177). Seremos afinal, conformes com as palavras de Torga, «Um Portugal com oito séculos de existéncia que ainda nao encontrou a sua identidade nacional»? (XII, pg. 201). Para a radiografia que intentamos fazer, hé também dados significativos no didrio que é 0 volume Conta Corrente 1, de Vergilio Ferreira. Abrupto um primeiro juizo «O grego lembra 0 portugués: pequeno, aspecto sujo, aldrablion (pg. 94). Um adjectivo revela um mundo de reacgoes e de. caracterizagies: este Portugal incrivel» (pg. 119). «O problema € néo sabermos ser nds. Os da Filosofia Portuguesa devem gostar» (pg. 122). Esparsas, ha neste diério que € Conta Corrente, algumas consideragdes sobre Portugal e os porcugueses, algumas répidas caracterizagbes» que se agudizam © azedam, sobretudo a partir de Abril de 1974, Somos reles; s6 um exemplo da diatribe: «© pais do tamanho de um papel higiénico. O teu lugar nao é na Historia ou na Geografia. © teu lugar é no lugar do papel higiénico. Meu Deus. E eu que nio quero estar 1é. Mas estou. E essa diferenca é que ‘me trama» (pg. 135). «Ser portugués é ser pascacio» (pg. 147), «Portugal 6 uma valetay (pg. 153), «O Pais € hoje um enorme carnaval politicoy (pg. 238), isto em 1-IIL-75; Temos (?) ou somos (?) «uma parada de palhagos» (pg. 258)? Esta imagem repete-se aliés quando V. Ferreira se interroga: «Mas que triste pais € 0 meu? Que palhacos nos inventam em comédias para 0 mundo inteiro?» «Entre nds por provincianismo tudo assume um aspecto grosseiro e cascudo (pg. 273). 2 NAGAO B DEFESA V. Ferreira alude ao «exibicionismo lusitano» (pg. 282) ¢ insinua ainda, a propésito da descolonizagdo, que temos um sorriso de inocéncia ou de atraso mental: «© meu pais das descobertas! Nem perdido nem achado para estes jogos imperiais. Largimos tudo, desfizemo-nos de tudo e conti- nuamos a sorrit de satisfagio. Sorriso de inocéncia ou de atraso mental» (pg. 287). «© Peis nunca viveu de ideias, viveu sempre de impulsos» (pg. 290), donde, talvez, a ameaga do desmoronamento (pg. 335). Numa definicao, feita de angistia, define-nos assim: «Pequeno povo das grandes ilusies, das grandes facanhas, um destino de humikdade ¢ de negrume se desenha, em substituigio da grandeza ¢ da legenda» (pg 335). «O Pais esté de rastosy escreve, em Set. 1976, pg. 358; «oh que desgraca nascer em Portugal, bom Nobre»! (pg. 360). Em amargo desabafo que contém uma definigéo da patria portuguesa: «Meu pobre pais. Jamais julguei sentir-me to do teu bocado da terra com que tens lugar no mapa. Ndo, a minha pétria néo € 56 a lingua portuguesa (E¢a— Pessoa) porque deve ser triste falé-la no exilio. A minha patria é também ser aqui ¢ muita gente comigo desde Afonso Henriques» (pg. 370). Se fizermos um balango das definigdes, dos juizos de valor ou das apéstrofes, com que os autores portugueses, atrés citados, tém tentado caracterizar 0 povo portugués e o seu modo de estar no mundo, verificaremos que ndo € muito positive o saldo. Nao so apenas as razes trauméticas que determinam certo pessimismo na adescricéo» do portugués; encontramos determinados caracteres como constantes, apontados por todos ou quase todos estes autores. Ora acontece que, se hé elementos dispares nas varias caracterizagdes, hé simultaneamente uma certa plataforma comum. Nesta plataforma comam avulta uma espécie de alterndncia: ora somos os melhores do mundo, ora somos o rebotalho do universo. Seré curioso verificar que este binémio—elevados aos pincaros da lua, rebaixados no mais infimo dos abismos — jé se encontra, como dissemos, no Padre Anténio Vieira (povo cleito, cafres da Europa). Segundo 0 esquema proposto, cabera agora a vez de analisar, no caso de F. Pessoa, o que jé se chamou de «tentagdo € tentativa de compreender Portugaly. Tal matéria, s6 por si, daria tema para longo ensaio. Abordémo-la segundo um escuema pessoano; um qualquer periodo € trés coisas: 1) uma relagio com o passado; 2) uma relagio com o presente nacional ¢ estran- geiro; 3) uma direcgdo com o futuro (pg. 22 F. Pessoa — Sobre Portugal). F. Pessoa referiu-se ao seu tempo portugués desta maneira: «Somos hoje um 26 SOBRE O CARACTER NACIONAL pingo de tinta seca da mao que escreveu Império, da esquerda a direita da ‘gcografia. £ dificil distinguir se 0 nosso passado € que € 0 nosso futuro ou se 0 nosso futuro & que € © nosso passado (pg. 25). Toda a mensagem de F. Pessoa se pode ler no sentido de um apelo a Portugal, para renascer, para se reencontrar. Transcreva-se © poema Nevoeiro da Mensagem: Nem Rei, nem lei, nem paz nem guerra, Define com perfil e ser Este fulgor bago da terra Que € Portugal a entristecer Brilho sem luz e sem arder Como 0 que 0 fogo fétuo encerra, Ninguém sabe que coisa quere Ninguém conhece que alma tem Nem o que é mal nem o que € bem. (Que nsia distante perto chora?) Tudo & incerto e derradeiro. Tudo é disperso, nada € inteiro. © Portugal hoje és nevoeiro... Ea hora! © poema esti datado de 10/12/1928. Portugal para se reencontrar tera de conhecer-se. A descrigéo do portugués (ou como diz Pessoa «as feigdes da alma que caracterizam 0 povo portugués») leva-o a um enunciado comentado que resumimos. O povo portugués € disciplinado em excesso age colectivamente: «nunca é possivel determinar responsabilidades; elas so sempre da 6.* pessoa num caso onde s6 agiram cinco (pg. 75); «refilamos s6 de palavras» (pg. 76); somos incapazes de revolta e de agitagio («Quando fizemos uma revolugdo foi para implantar uma coisa igual ao que jé estava» (ps. 76). O portugués sofre duma imaginac&o excessiva (pg. 77). Repare-se na quase oposigdo entre certos elementos apontados por Pessoa como «tipicos» do portugués e outros apontados por Torga (por ex.—a falta de imaginacéo segundo Torga, o excesso de imaginaco, segundo Pessoa). Mas prossiga-se no resumo dos elementos pessoanos: « portugués € capaz de tudo, logo que nao Ihe exijam que o seja. Somos um grande povo de herdis adiados» (pg. 79 —Sobre Portugal); somos fanfarrdes; 0 lirismo, dizse, € a qualidade méxima da raga (pg. 79), confundimos cultura com erudig&o (pg. 86); 0 feitio enérgico, violento, pouco indolente do portugues z NAGAO E DEFESA leva-o para a acco precipitadamente (pg. 82), ete. Querendo como que organizar 0 seu pensamento, F. Pessoa estabelece a existéncia de trés espé- cies de portugués; um comegou a existir com a nacionalidade; outro é © portugués que 0 no € que comegou com a invasio mental estrangeira. terceiro porsugués € 0 que comecou a existir quando Portugal comegou de Nagdo a estogar-se Império (pg. 83, Sobre Portugal). © primeiro constitui 0 substrato da Nagio, 0 segundo é 0 que governa 0 pais ¢ o terceiro € 0 que se perdeu com D. Sebastio em Alcacer- -Quibir. Segundo F. Pessoa, a todos so comuns as trés seguintes caracte- risticas: 1) 0 predominio da imaginagao sobre a inteligéncia; 2) o predominio da emogao sobre a paixio; 3) a adaptabilidade instintiva. Sera de confrontar, mais adiante, este enunciado com o de Jorge Dias na sua tentativa de enumerar alguns elementos do «cardcter nacional portuguésy. F, Pessoa acrescenta interrogando: que ideias gerais temos? As que vamos buscar ao estrangeiro? (pg. 85). E considera morto 0 portugués como homem harménico, mente segura ¢ planeadora, brago apto a realizar © que ele proprio plancou (pg. 86-87). Veio depois, diz com muita iro «o portugués & antiga portuguesa que ndo é a antiga portuguesa; bom cat6- lico, toureiro, estipido como uma porta de cofren. Este, em seu tempo, passou também; vem o portugués do séc. xix entrujado (7) pela politica desnacionalizante (pg. 87). Propondo-e um estudo do problema portugués, fala F. Pessoa de rupturas, de decadéncia (pg. 111), mas fica-se pelos apontamentos. Verifica-se Por eles que F. Pessoa queria esbogar «as bases do cardicter portugués e tentar (?) uma «reconstrucdo do psiquismo nacional» (pg. 115); verificamos também que se interroga sobre qual fosse 0 cardcter nacional, etc. «A crise central da nacionalidade portuguesa deriva da sua impoténcia para formar escbisw (pg. 119); a desorientagdo em que temos vivido tem como factores @ decadéncia propriamente dita que, para F. Pessoa, comecou em Alcaicer- -Quibir © a desnacionatizagdo que, desde 1820, se vem agravando até a reptiblica (pg. 130), em que a desnacionalizagdo se torna degenerescéncia. E vé de criar em Portugal o sentimento duma missdo civilizadora (pg. 41 de Ultimatum, F. Pessoa); de anunciar um super Camées; de «canonizar» 0 saudosismo; de com o Orpheu dar corpo a uma consciéncia definitivamente portuguesa do Universo (Pdginas Intimas e da Auto-Interpretagao— pg. 203 « seguintes). Pode falar-se de um nacionalismo mistico, a propésito de certo F, Pessoa. Eo F. Pessoa que, respondendo em 1923 a pergunta «O que 28 SOBRE O CARACTER NACIONAL calcula que seja o futuro da raga portuguesa?, “diz: «O Quinto Império». Este € 0 F, Pessoa de a Mensagem (1935). Podemos, a partir de agora, parece-me, por de manifesto que hé, por assim dizer, duas maneiras de os portugueses se definirem. Elas oscilam entre 0 masoquismo da depreciagio, dos juizos negativos ¢ a egolatria dos louvores as virtudes do portugués. Alternam acaso os louvores com as depreciacdes, tendo sempre, como pano de fundo ¢ justifieago, um mesmo entranhado amor do terrunho? Sabemos como a geracdo de 70 (E¢a, Antero, Oliveira Martins) ironizou ao abordar temas ligados com o caracter nacional, tendo simultaneamente tudo em zado no dramatico conceito de decadéncia. Eduardo Lourengo no capitulo «Da Literatura como interpretago de Portugal» descreve admiravelmente esta problemética, agudizada com o Ultimatum e assumida, entre outros, por Junqueiro. Em alternncia com 0 masoquismo das depreciagées, a exaltagio, por compensago, Assim, para s6 dar exemplos escalonados ao longo dos séculos, citaremos Lopo de Almeida que em Cartas de Itdlia nos cataloga como ‘405 melhores do mundo», «Os melhores do mundo so os de Portugal», ¢ Sousa Macedo que em Flores de Espaita, Excelléncias de Portugal nos considera sumério de quase todas as virtudes: engenhosos, religiosos, hones- tos, verdadeiros, fieis, fortes, gratos, liberais, constantes, pacientes e s6brios, etc. evidente que nesta linha de rumo havemos de situar 0 saudosismo, 0 caso da filosofia e da cultura portuguesa, «defendidas» pelo grupo de Alvaro Ribeiro, 0 patriotismo mistico de F. Pessoa, etc. ¥ sintomético, e seria uma problemética a explorar, com vista a uma explicaco de Portugal, que surjam, sobretudo em momentos de crise, as utopias, os quintos impérios, compensatérios ¢ exaltantes. Uma filosofia saudosista com toda uma teo! zagdo megalémana do ser portugués, elaborada por Teixeira de Pascoais (cf. 0 Espirito Lusitano ou 0 Saudosismo); um visionar do futuro como faz Pessoa, so sem civida compensagdes: «Estamos tao desnacionalizados que devemos estar renascendo» (Andlise da vida mental portuguesa, por F. Pessoa). Mas, abandonem-se ex-abrupto estes rumos, radicados em obras, atitudes, apreciagies, todo um cabedal de elementos que se poderiam captar no saudosismo, no nacionalismo mistico de Pessoa, em certas posigdes do integralismo lusitano, em pontos de vista dos defensores da chamada filosofia portuguesa, etc. Com vista a um determinar, claramente, quem somos enunciem-se os elementos que Jorge Dias considerou constitutives do cardcter nacional 29 NAGAO E DEFESA portugués ¢ tipicos da cultura portuguesa. Aliés este tema da inquiricéo sobre quem somos foi hé quase 40 anos (em 1943) considerado «tema para a nossa geracio (a daqueles tempos) ¢ era, conforme se diz numa exposigio programética elaborada por Alvaro Ribeiro, «tema a tratar por vérios escritores numa espécie de inquérito ou melhor num trabalho a realizar por uma equipa». Valeré a pena fazer a recuperagio de todos esses esforgos dispersos, com vista a um estudo sistemético das constantes psiquicas do ovo portugués. Por ora, s6 0 enunciado, reduzido a uma listagem de elementos fundamentais da cultura portuguesa, segundo Jorge Dias: 1 —expansividade; 2— adaptabilidade e pendor activista; 3 — vivo sentimento da natureza, poético ¢ contemplativo-estético; 4—gosto pela ostentacdo; 5—afectividade © humanidade profundas («0 coragio como medida de todas as coisa); 6—saudade e obstinatismo (alma contemplativa € obsti- nada dos portugueses); 7—tendéncia para sobrepor a simpatia humana as prescrigdes da lei; 8—pessimismo; 9—menos exuberdncia do que noutros meridionais. Jorge Dias, no final do ensaio «O cardcter nacional Portugués na presente conjunturay, escreveria, em Maio de 1965: «Estou erente que os factores basilares da permanéncia do caracter nacional estio seriamente ameagados» (pg. 48). Estaremos empenhados em lucidamente enfrentar os problemas que, & nossa consciéncia de cidadaos, Portugal nos Se hoje? Poderiamos repetir este juizo de Ramalho: «O Pais néo se tem mantido pelo trabalho, pela inteligéncia, pela economia ¢ pela ordem, tnicos elementos de uma prosperidade s6lida, mas sim unicamente pelos suprimentos Provenientes de exploragdes sucessivas. Temos explorado tudo, menos o trabatho (Explorémos os drabes, explorémos os judeus, explordmos os jesuitas, exploramos 05 frades, ¢ estamos explorando o Brasileiro, isto , o Portugués que vai enriquecer ao Brasil. Tal é a Hist6ria sucinta e suméria da nossa vida econémica)». «O que aflige € o destino deste Pais. Estardo conclusos os oito séculos de nado?» escreve V. Ferreira em Conta Corrente I (pg. 258) © acrescenta: eInesperadamente senti o destino do Pais ¢ 0 meu destino.» (Conta Corrente 1/pg. 301). Teremos 16s consciéncia de que toda a explicagao de Portugal visa A construséo do pais possivel? Para tal, segundo 0 conselho, niio amargo, de V. M, Godinho, estudemos amorosamente, minuciosamente, lucidamente, 30 DESENVOLVIMENTO E DEMOCRACIA ccientificamente a» nossa coisas; lefinamos com meridiana clareza os proble- mas que so de facto os nossos, seguros de que na histéria do passado ha doutrina para o presente (Para a renovacio da politica nacional — pg. 95). E 0 pais possivei—titulo de um livro de poemas de Ruy Belo— sera «O portugal futuro»: O portugal futuro € um pafs/onde o puro passaro é possivel», Profs Dr* Maria de Lourdes Belchior 3 DESENVOLVIMENTO E DEMOCRACIA, Magalhdes Mota DESENVOLVIMENTO E DEMOCRACIA (*) 1B alguma correlagéo entre o desenvolvimento ¢ o sistema politico dum pais? Tem-se, intuitivamente, a nogo de que sim. Sabe-se como a economia condiciona a afectagéo de recursos & manu- tengo e equipamento das Forcas Armadas ¢ bastaria o exemplo portugues para o recordar aos mais distrafdos. igualmente conhecida a dicotomia cléssica entre os canhdes ¢ a manteiga ¢ igualmente sabido como s6 nos regimes totalitérios o desenvol- viento das despesas militares pode fazer-se mesmo em detrimento do bem- estar do conjunto da populagao. Mas nfo haveré uma ligagéo mais intensa, de tal modo que possa dizer-se que a determinado estédio de desenvolvimento econémico corres- ponde um sistema politico? 2. Boa parte de nés recorda as teses defendidas na Espanha dos anos sessenta, de acoréo com as quais atingido certo nivel de crescimento econd- mico—que chegou, inclusivamente, a quantificar-se em termos de rendi mento «per capita» —a abertura politica aconteceria naturalmente. A problemstica dos efeitos politicos do desenvolvimento econémico é, duma forma sistemética, langada por Walt Rostow numa série de confe- réncias universitarias feitas em 1958 e publicadas rapidamente com 0 titulo «The Stages of Economic Growth (). Rostow explica, logo no prefacio, ter por preocupagéo fundamental «estabelecer uma correlago entre as forcas econémicas € as forgas sociais € politicas». E acrescent «No me satisfazia a explicagio dada por Marx da relagio entre © comportamento econémico ¢ 0 comportamento n&o econémico. ‘A anflise das etapas do crescimento oferece uma explicagio que poderia substituir a teoria marxista da hist6ria moderna.» () Eniste edo francesa, de 1962, com o titulo eLes apes de ta croissance économiques fem 1971, Walt Rostow valtou a0 tema em «Poi and the Stage of Orowih. 35 NAGAO E DEFESA Rostow considera cinco fases fundamentais pelas quais passariam todas as sociedades. Assim, nesta escala de crescimento (sociedades tradicionais, com condigées prévias para o arranque, em desenvolvimento, a caminho da maturidade © de consumo de massa) as sociedades contempordneas situar-se-iam a niveis diferentes, traduzindo-se tais disparidades econémicas em disparidades politicas. A aforcan dos modelos simplificados € muito grande, Todos sabemos que a sociedade tradicional e a sociedade de consumo no se governam —nem podem governar-se— da mesma maneira, Nao admira, pois, que, na sequéncia de Rostow, varias tenham sido as anélises procurando averiguar dos modos pelos quais o desenvolvimento socioeconémico condicionaria 0 acesso a democracia. O problema (diferente) do desenvolvimento politico dum sistema como tal viria depois. 3. Nao deiza de ser curioso assinalar que, assumindo Rostow o procurat uma «explicacdo substitutiva da teoria marxista da histéria, acaba por sugerir uma ideia que esté na base da teoria marxista: a de que © progresso politico € determinado pelo progresso da economia, ou de que a evolucéo da cinfra-estrutura técnico-cconémica» comanda a evolugio da «supers truturay politica Os argumentos @ favor da tese so, fundamentalmente, de ordem seogrifica, histérica ¢ estatistica # simples o argumento geogrifico. Sobrepor dois mapas mundiais ¢ verificar a quase total coincidéncia entre as zonas economicamente desenvolvidas e as zonas de regime demo- eratico. ‘As zonas do subdesenvolvimento (América Latina, Asia, Africa) so as zonas do autoritarismo. Mas hé quem va mais longe e saliente, por exemplo, a estabilidade democritica dos nérdicos em confronto com a Itélia ou aponte a «rigidez» albaneza jé isolada do «bloco lesten. Os argumeatos hist6ricos so de idéntica simplicidade. Aponta-se, nomeadamente, 0 aparecimento do parlamentarismo em Inglaterra como sublinhando ter tido também ai inicio—e nio por acaso —A revolugdo industrial e a ligacdo temporal—na Franca, na Itélia, ete. —do parlamentarismo © do capitelismo industrial 36 DESENVOLVIMENTO & DEMOCRACIA Uma andlise comparativa mais precisa é efectuada em termos esta- tisticos @. Combinando indices sociceconémicos (rendimento «per capita, alfabe- tizagio, escolarizagio, industrializacdo, urbanismo, difusto da imprensa, etc.) e indices pofticos (participacao cleitoral, efectivos militares, despesas pablicas), RUSSET (*) estabeleceu cinco niveis ou agraus de desenvolvimento econémico ¢ pol Tais seriam: Grau 1—Sociedades «tradicionais primitivas»; Grau 2—Civilizagoes tradicionais; Grau 3—Sociedades «de transigaov; Grau 4—Sociedades «de revolugdo industrials; Grau 5—Sociedades «de alto consumo de massa». Nos anos 70, ROBERT A. DAHL combina a sua propria tipologia com a de Russet e conclui que apenas 3% dos sistemas democraticos coexistem com civilizagdes tradicionais, 9% com sociedades de transicao ¢ os restantes 884% se repartiam, em partes iguais, pelas sociedades de grau 4 € 5. 4. HAROLD LASKI escreve que «uma democracia politica tem neces- sidade, para ser solida, duma economia em expansio. Mas existiré este grau de correlagio que permita falar de relacdes acausa-efeiton? Seré que 0s povos s6 sio livres se puderem ser ricos? ‘Ou que o desenvolvimento pressuponha, pelo menos no seu inicio, a ditadura? Sendo objective destas notas introduzir um debate e carrear elementos que ajudem ou provoquem uma reflexo, forgoso seré ainda, antes de adiantarmos posiséo prépria, expor outros tipos de anélise, ou seja, ultra- passar a fase de verificagdo de sobreposigées possfveis para a dos argumentos que pretendem explicar a correlagéo entre desenvolvimento € democraci Trata-se, no fundo, de salientar que o desenvolvimento socioeconémico faz reunir um conjunto de circunstincias ou condigdes que so «indispen- 09. © Sho hoje cléesicos, o trabalho colectvo orientado por TAYLOR «Aggregate Data ‘Analysis, Political ‘and Secial Indiestors in Cross National Research» ea obra,_ ta ‘olectiva, tigida por BRUCE M. RUSSET eWorld Handbook of Political and’ Social Indicatore». () BRUCE M. RUSSET, «Trends in World Politics» 1965, New York, ed. Macmillan. 7 NAGAO E DEFESA sdveisy & demecracia ¢ que, dificilmente, se verificam em situagdes de sub- desenvolvimento. E assim, por exempio, que nas sociedades tradicionais, como nas soci dades «de transigéo» (entre 0 tradicionalismo © a modernidade) ¢ mais intenso o «nivel de conflitoy € menor mimero de vezes slo esses conflitos resolvidos de forma no violenta € sem emprego da forga. Quando as neces- sidades a satisfazer excedem largamente os bens disponiveis, a luta pela apropriagéo dos recursos € antagonismos sociais muito grandes opde os pequenos grupos de privilegiados & massa de desprotegidos, criando uma situagdo que é potencialmente revolucionéria. A possibilidade duma competigio politica é, pelo menos, largamente iminuida. A célebre carta dos operarios de Sdo Petersburgo apés 0 «Domingo Vermetho» de 1905 seria um testemunho exemplar. Af se lé: «Estamos esgotados, Sire! Ultrapassémos o limite da paciéncia, Chegémos ao terrivel momento em que mais vale a morte que o prolongamento de sofrimentos intolerdveis.» Ao contrério, as sociedades, garantindo o minimo vital a maioria dos cidadaos, elevando o nivel geral da vida, fariam diminuir estas situagdes conflituais, em que «a violéncia dos privilegiados alterna com a violéncia dos oprimidos» (*. ROBERT A. DAHL, por sua vez, chamou a atengao para o que ele chama «recursos politicos», isto é& os meios de influenciar compor- tamentor, € que vao desde a disponibilidade de tempo & informagdo, relagées sociais, posigd social, direito de voto, etc., que esto menos desigualmente repartidos nas sociedades desenvolvidas. Nas sociedades tradicionais a concentragao de recursos ¢ a regra. Por exemplo, nas sociedades agrérias a posse da terra significa, e ao mesmo tempo, a riqueza, a posigdo social, as possibilidades de carreira. Mas os exemplos podem multiplicar-se. «Se a “classe politica” é de licenciados, quantos destes tém origem —ou podem té-la—nos trabalha- dores rurais?» perguntava-se, para 0 caso brasileiro, Joio Goulart. ‘estudo de Ivo ¢ Retalind Feleraband e Betty Nesvoid Violence: \CroseNetional Patterns, publicado em ‘The History of Violence in América> de Hugh Davie Graham e Ted Robert Gurr. 8 DESENVOLVIMENTO E DEMOCRACIA Por tiltimo, h& um minimo cultural que a democracia pressupée. O proprio sufrégio universal tem significado pleno quando os cidadios ‘compreendem os problemas fundamentais submetidos ao seu voto (*). 5. Sem preocupacio diferente da de introduzir um debate, poderiamos, por agora ficar por aqui. Deixando, a imaginacao ¢ interesse de cada um, 0 acrescentar os seus ropros argumentos ou o encontrar de contra-argumentos, relativamente as teses (melhor diria a tese) expostas. Sugeria tdo-somente, que deixdssemos de parte a velha questio de saber se as excepsbes confirmam ou infirmam a «regra» apontando exemplos, ‘quer de instituigées democraticas em sociedades no desenvolvidas, quer © de instituigdes autoritérias nas sociedades desenvolvidas. ‘Jé me parece mais curioso reflectir sobre como a experiéncia soviética se enquadra no ésquema proposto e até sobre os acontecimentos recentes da Polénia ¢ as trses de Sakharov (*). A questio da dependéncia ou autonomia da politica — questio-chave € nao encerrada da ciéncia politica — também aqui caberé. E 0 caso poriuguts, claro. Ficando desde jé a «anotago» de que também eu pretendo participar no debate. A ideia de que todos os paises so confrontados com um processo de «desenvolvimento politicos, marcando a passagem duma sociedade tradicional (em termos politicos) para uma sociedade moderna — também, em termos politicos, como € evidente—, merece algum destaque na medida em que tem estado presente em muitas andlises ¢ intervengdes na vida politica portuguesa. © A argumentagio anoteda nio ¢ tipiea do séeulo XIX. Nela se fundamentam, por ‘exemplo, erticas 20 recurso 20 referendo ou ao alargamento de voto aos emigrants. 1) Progresso, Coeristincia Liberdade Inteletual». Hé edigdo portuguesa, ne coleeséo 39 NACAO E DEFESA © corolatio légico da existéncia dum processo, precisamente por se tratar duma dinamica evolutiva, 6 a de que 0 acesso & modernidade politica ndo se faz de imediato, havendo inclusivamente uma diferenga sensivel entre a vida politica auténtica e os modelos institucionais ou mesmo as instituigdes existentes. Em 1964, Almond (*) anotava a propésito dos problemas. préprios dos paises em vias de desenvolvimento que «os homens de Estado ocidentais tiveram muito tempo para primeiro formar uma Na¢do; criar, depois, uma autoridade politica e habitos de obediéncia & lei; depois, transformar 6s stibditos em cidadios, com 0 desenvolvimento do sufrégio universal, dos partidos politicos, dos grupos de interesses ¢ dos meios de comunicacio; finalmente, satisfazer a procura do bem-estar. ‘Os homens de Estado das Novas Nagées defrontam, ao mesmo tempo fe de seguida, todos estes problemas. Enfretam revolugdes simultdneas cumulativas (...) Por exemplo, J. Nyerere, na Tanzénio, lidera ¢ ao mesmo tempo, uma revolugéo nacional, uma revolugdo de autoridade, uma revolugio de participagdo © uma revolugao de desenvolvimento. Nao pode avangar nas quatro direcgdes imediatamente. Nao pode sequer escolher livremente. De bom ou mau grado, teré de conferir prioridade & criagio da_nagdo ¢ de uma autoridade governamental eficaz, antes de dar satisfagio aos desejos de participagio © bem-estar. Isto significa que, quaisquer que sejam as normas ou as forgas constitucionais, os sistemas politicos das novas nagSes teriio necessariamente fortes tendéncias centralizadoras e autoritérias.» Nesta base, se tem sustentado o insucesso dos regimes parlamentares nos paises em vias de desenvolvimento € a necessidade do estabelecer de regimes presidencialistas. : Nao admira que, com maior ou menor entusiasmo, fundamentacéo tedrica ou sem ela, a questéo tenha chegado a Portugal ¢ continui, aliés, latente, Nesta, ou noutra base, penso mais itil ¢ inteligente colocar frontalmente a questiio e responder-Ihe, do que fugir a ela, com maiores ou menores rodeos... e rectios. () GABRIEL ALMOND «Democracy and The New Nations» in Stanford Today, Outono 1964 ‘série I me 10. A andlise €, no. eevencial, retomeda em «Comparative Polite» por Almond e Powell (1966), 0 DESENVOLVIMENTO E DEMOCRACIA Na minha Terra, as dificuldades «pegam-sen... ¢ de preferéncia «de carasy... Tal como a direita portuguesa (*) se esforgava, ainda no inicio da década de 70, por nos explicar o nosso destino «africano», a necessidade de voltar costas A Europa e a «traigo» correspondente a afirmarse 0 contrério, também nos p6s-25 de Abril a Africa voltou a ser modelo-mito, agora de esquerda revolucionaria, A Africa foi «modeloy de regeneragao histérica, politica, ideolégica de que as ccampanhas de dinamizagao cultural» constituem enraizamento, A apsico» falhada ¢ a estratégia dos movimentos de libertagdo assimilada, confundiam-se Creio entretando que esta «africanizagao» teve mais a ver com a psicanélise do qu: com realidade sociocultural portuguesa. Eduardo Lourengo disse-o (*) duma forma notavel ¢ que vale a pena citar. «A eafriceniizagdo» ideolégico-politica em curso (cujas cartas de nobreza se encontram no Boletim das Forgas Armadas e em especial no miimero “stético consagrado & indepéndencia de Mogambique), mau grado © seu cardcter ofensivo, berrante € folclérico, nada tem de positivo, & uma expresso insofismavel de derrotismo, uma forma do pessimismo nacional, por mais paradoxal que afirmacdo pareca, Como o célebre Baro Munch- Kausen n6s metemos a cabeca debaixo de gua para n&o nos motharmos, quer dizer, para nfo encarar de frente a situacio, na verdade dificil mas no insuperdvel, da nagio exploradora que se vé forgada a reconverter 0 seu projecto histérico. Oferecemo-nos imaginariamente um destino africano de vitimas promovidas ao papel de regeradores do universo, deslocarmo-nos para esse espaco historico e ideolégico mitico referenciado pelas figuras de Amilear Cabral ou Samora Machel é a maneira de fugir a0 nosso destino europeu, de 0 transfigurar, de 0 adaptar ao panico intimo que nos causam © Alguns. deles apareceram scuropetsias» quando a Europa foi «1 priotidadese AD.. 10) No Express» de 2 de Agosto de 1975, priovidade das 4 NAGAO E DEFESA 08 problemas concretos € urgentes que em termos europeus ou herdados da tradiglo europeia, onde estamos imersos ¢ submersos, devemos resolver.» Creio que ultrapassimos esta fase. J4 era tempo de perder de vista a Africa mitica. Podemos, por isso, afastar o esquema de Almond e dizer que, em Portugal, mesmo no imediato pés-25 de Abril, ja o seu quadro de referéncia ‘no era aplicével. A revolugio foi muitas coisas «simulténeas ¢ cumulativas» mas néio foi o surgir duma Nova Nagao. Povo experiente de muitos séculos de existéncia aut6noma, somos. Esquecé-lo ou minimizé-lo, em todas as suas consequéncias, no foi, nem podia ser, um bom prineipi Havemos, pois, de procurar outras razées para o tema presidencialismo. A correlagio com o desenvolvimento s6 pode estabelecer-se (creio bem) quando se enteade que um regime parlamentar se adapta mal a um enqui dramento autoritério do desenvolvimento econémico. Ou, numa outra perspectiva, quando se fala das situagées de anomia ‘como predispordo ao acolhimento das liderangas carismaticas. © coneeito de «anomia», vindo de Durckeim, designa a situagdo social em que as normas so inexistentes ou contraditérias, a um tal ponto que 0s individuos nio sabem como orientar a sua conduta. Quando as estruturas foram objecto duma revolugio que modificou também profundamente as relagdes € a cultura do grupo e a este «trauma- tismo social» correspondeu o perderem-se valores, costumes, lagos tradicionais, quando as normas de conduta antiga desaparecem sem serem substituidas por sistema coerente, a sociedade esté em situagéo de anomia. Os «mostradores de caminhos» aparecem ento, Se penso correcta a anélise, mo penso legitima a identificagio entre lencialismo € a lideranga carismatica. SOBRE O CARACTER NACIONAL Dai que mantenha a afirmagio de acordo com a qual hé que encontrar motivagdes e razées de ser para o «presidencialismo» diferentes das ligadas 4 problematica do desenvolvimento. E outro tema (a cuja discussio, obviamente, me néo furto.) (*) Dr. Magalhaes Mota © Tal como na primeira pa tevese, propositadamente, 0 texto or deste texto—e as duss partes sto diferenciades — man. al dumas notas para introduzir um debate sobre o tems a REGIONALIZACAO E ORDENAMENTO DO TERRITORIO José da Silva Peneda REGIONALIZACAO E ORDENAMENTO DO TERRITORIO Regionalizacéo pode ser definida como um conjunto de reformas institucionais que, integradas num processo evolutivo ao longo do tempo, conduzam a criagio de instituigSes regionais ¢ ao reforgo da sua capacidade de decisio auténoma. No caso portugués, dado que se parte de uma situacdo onde o Estado assenta em ¢struturas fortemente centralizadas, © processo de regionalizacio © recurso a operagses de desconcentragéo © descentralizacao de fungées da Administracdo Central. Por desconcentragio quero designar 0 processo pelo qual a lei transfére poderes de decisio até af pertencentes a um 6rgio da administragdo central do Estado para outros érgios dele hierarquicamente dependentes, quer de Ambito nacional quer de carécter local. Assim, por este processo, a capacidade de decistio dos érgfios locais do Estado ficaré condicionada pelos critérios dos érgGos centrais, que mantém a responsabilidade © 0 controle sobre Srgfios periféricos. Poder-se-4 dizer que se trata de um proceso meramente administrative de descongestiona. mento da administragéo do Estado, que pode aumentar 0 exercicio das responsabilidades a nivel regional mas nao da lugar a criacdo de verdadeiras instituigdes regionais auténomas. Por descentralizagdo entende-se 0 processo pelo qual a lei transfere poderes de decisio até af pertencentes a Orgios de Estado para outros érgios proprios de entidedes independentes do Estado, designadamente autarquias. Na descentralizacao 0s objectivos a prosseguir pelos érgios autarquicos € 05 critérios que norteiam as suas decisdes so definidos por eles mesmos. Os Srgios autérquicos descentralizados representam as populagées. locais que 0s clegeram e, por isso, nfo dependem do Governo ou de qualquer outro érgio da administrago central, 0s quais poderdo quando muito fiscalizar © garantir 0 cumprimento da lei por parte daqueles. a NAGKO E DEFESA Trata-se, assim, de um processo de natureza essencialmente politica, na medida em que dé lugar & criagdo ou ao reforco de instituigdes aut6- nomas, com uma individualidade e com competéncias préprias @ invocar frente ao Estado. ‘Apés tentativa de precisio dos conceitos de regionalizagdo, descon- centrago ¢ descentralizacio caberd agora analisar a razdo de ser e a possivel justificagdo para ser levado a cabo um processo téo amplo de reformas nos dias de hoje em Portugal. Digo téo amplo porque 0 proceso de reformas contido no conceito de regionalizagéo, tal como defini, afecta directa ou indirectamente néo apenas a administragdo piblica ¢ 0s seus servicos. ‘A adopsdo de uma dada organizacio regional—definindo niveis de governo, estabelecendo © modo como cles se articulam, dotando-os de rgios sem fungées ¢ responsabilidades determinadas néo deixaré de afectar a vida da quase totalidade dos cidadios do Pais. Qualquer que seja um processo de reforma, este tera de assentar, ¢ ter ‘em conta, o ambiente cultural que rodeia esse. processo, Cultura aqui entendida como conjunto de medidas, colectivo ¢ radical, que informa ¢ caracteriza um povo, uma regio ou uma comunidade. Portugal, sendo um pais de dimensio reduzida em superficie, contém em si aquilo que designo de miltiplas unidades ou subuniversos culturais distintos e bem diferenciados. Essas unidades em Portugal so um facto hist6rico. Com efeito, ser minhoto, beirfo, transmontano, ribatejano ou alentejano nfo é um mero acidente de nascimento; é um modo de ser. E esse modo é partilhado por muitos © compée-se de formas civicas, préticas religiosas e sociais, que a hist6ria claborou, a geografia condicionou ¢ a lingua arquivou. & um facto patente: nos temanhos dos campos, nas relagdes familiares, na forma de ‘ocupagéo do expago, nos métodos de construcdo de habitagdes, na forma de transmissio da propriedade, nas festas ¢ cantos, no que se cré © descré. Quer dizer: cada um destes subuniversos culturais tem uma matriz, um rosto € uma linguagem que nfo se conhece ou domina ao aprender apenas a proniincia ¢ a entoagdo de quem nasceu em tal ou tal subuniverso cultural Regionalizer €, pois, e em primeiro lugar, 0 reconhecimento deste facto. «a REGIONALIZACAO_E ORDENAMENTO DO TERRITORIO Em segundo lugar, regionalizar € a concretizagio de uma componente intrinseca ao desenvolvimento, qual seja a participagao dos cidadaos na defi- nigdo © realizagio dos objectivos sociais das comunidades onde vivem. Todavia, as formas coneretas que toma o proceso de desenvolvimento podem constituir uma frequente ameaga a liquidagdo da identidade do pais ou das regides que o integram. De facto, a generalizaciio de técnicas de produgio, de pensamento, de valores, néo pode deixar de criar a tendéncia para a uniformizagio, que abafa diferencas de ordem cultural. Convém, porém, notar que essa tendéncia no pode justificar o pranto indiseriminado pelo passado perdido, passado pelo qual se pode dizer que uma boa parte das diferencas culturais que ele manifestava, nas nossas terras, cconsistia nos diversos modos de enfrentar, € geralmente sucumbir, perante a miséria, a fome, a dominago. O desenvolvimento € um processo; e nele podem caber, como componentes intrinsecas, elementos que reconduzam, ‘que corrijam essa tendéncia despersonalizante; que déem, em suma, a possibi- lidade a cada regiéo de poder, cada vez mais, ser sujeito activo dos varios processes sociais de que é, também, objecto. Esta exigéncia ndo ¢ de simples ordem moral; a pratica histérica mostra que o desenvolvimento como capacidade de crescimento auto-sustentado © de posigdo generalizada dos bens essenciais, ou se realiza de dentro, a partir da realidace concreta da terra, da cultura © das pessoas que nele Participam, ou entio esse desenvolvimento no é real. E $6 se mantém sob forma duma relacdo assistencial desenvolvido-sub- desenvolvido, relagéo que raramente atenua as diferencas e frequentemente as acentua, por ciferentes que sejam as intengdes proclamadas. A experiéncia historica das nagdes europeias, de que Portugal nfo & excep- so, mostra a impossibilidade de sustentar qualquer processo de desenvol- vimento, sem a progressiva participagio dos cidadios nas deliberagées, deci- sbes © acpbes que realizam esse processo. A histéria € o destino dos regi- ‘mes autoritérios ditos avangados af esto como exemplo. Mas se na era modema a democracia representativa significou o antidoto do perigo totali- tério © a condi¢do intrinseca do desenvolvimento, € hoje por toda a parte visivel a insuficiéncia duma democracia central representativa, dado 0 enorme poder ai concentrado ¢ a tendéncia deste poder para acentuar o seu peso até a hipertrofia, & custa da voz ¢ do influxo das outras parcelas do territério. Por isso, regionalizar é também e nos dias de hoje em Portugal, com- ponente essencial para a construgdo do Estado democrético. ~ NAGAO E DEFESA Nao se trata da pulverizagdo do poder, nem da consequente desagre- gaco do Estado; trata-se antes duma valorizagdo plena do todo pela valo- rizagio dos elementos integrantes: pessoas, culturas, recursos ¢ interesses. © ordenamento do territ6rio € @ traduc#o no espaco fisico de uma politica regional desenvolvida a partir de objectivos econémicos ¢ sociais © compreende a aplicagéo nesse espago fisico dos recursos ¢ das actividades econdmicas, assim como a distribuigéo racional da populacio. Falar de ordenamento do territério obriga a que nos debrucemos sobre politica regional. # hoje facto geralmente aceite que existem em Portugal assimetrias regionais. No decurso de tentativas varias para compreender ¢ atenuar as desigual- dades de desenvolvimento regional tém sido elaboradas teorias que ident ficam e estudam diversos factores susceptiveis de originar ou reforcar tai desigualdades. Podemos classificar em trés tipos os factores que afectam o grau de desenvolvimento ou subdesenvolvimento das regides: factores econémico- ais internos, factores econémico-sociais externos factores de natureza © primeiro destes grupos — factores econdmico-sociais internos— esta relacionado com interpretagdes formuladas apenas ou predominantemente em funcdo das caracteristicas internas das regiGes. ‘A. segunda classe de factores—factores econémico-sociais externos —esta relacionada predominantemente com teorias que procuram explicar © desenvolvimento regional em fungio das relagdes de natureza econémica € social da regio com o exterior. De entre estes factores podem referir-se como mais importantes: —as flutuagées da procura extra-regional de produtos da regido; quando essa procura aumenta a regido exporta mais produtos, o que aumenta as suas disponibilidades financeiras e, consequentemente, 0 seu nivel de vida ¢ a velocidade do seu crescimento econémico; —as vantagens relativas absolutas da regio do ponto de vista do comércio inter-regional; estas podem ser devidas a factores de ordem locacioral (por exemplo as facilidades de acesso aos mercados para onde exporta os seus produtos ou as fontes das suas importacies), REGIONALIZAGAO E ORDENAMENTO DO TERRITORIO. ou ainda as caracteristicas da sua dotagao nos diferentes factores de producdo, que Ihe conferem condigSes de competitividade em deter- minados sectores relativamente a outras regides cuja composiggo de factores ¢ diferente; Existe, finalmente, um terceiro tipo de factores —factores de natureza politica — que se relaciona essencialmente com a localiza¢o espacial do poder politico € econémico ¢ da capacidade de decisio que the anda associada. # esse tipo de factores que se invoca habitualmente para explicar 0 desenvolvimento da regio de Lisboa, nas décadas de 1940 a 1960. Com feito, a localizacio da sede do Governo em Lisboa, numa altura que coin- cidiu com o segundo e mais forte impulso no sentido da industrializagio em Portugal, aliada a politica centralizada do mesmo Governo, teve como consequéncia que foi em torno da capital que se localizou a maior parte dos novos empreendimentos industriais, e portanto do crescimento econémico em desfavor das outras regides do Pais, s dois primeiros tipos de factores tém, sobre o desenvolvimento das regides, efeitos relativamente evidentes—embora, por vezes, dificeis ou quase impossiveis de quantificar. © mesmo, porém, no acontece no que diz respeito & distribuicéo espacial do poder ¢ da capacidade de decisao, © que justifica que dela nos ocupemos um pouco mais demoradamente, Ainda antes disso, porém, uma observagdo se impée: 0s factores que influenciam (© desenvolvimento das regides, acima referidos, actuam, na maior parte dos casos, simultaneamente e com intensidade varidvel, acelerando ou retar- dando 0 processo do desenvolvimento das regides. A sua identificagio cons- titui um quadro disponfvel para a estruturagio do estudo de casos individuais, sem quaisquer pretenses de aplicabilidade universal: assim, nem todos os factores tem efeitos significativos em cada caso e, por outro lado, pode haver factores, ou combinagées de factores, que no se encontram entre os refe- Fidos, que desempenham um papel crucial em determinadas situagdes parti- culares. Analisemos agora, brevemente, 0 papel da concentrago do poder politico e econémico numa determinada regio (que designamos por «centro» ou regido central) sobre o desenvolvimento dessa regido ¢ das outras regides do mesmo pafs (que constituem a respectiva «periferia»). Tal concentragéo acarreta, como consequéncia natural, uma situagdo privilegiada para a regiéo central relativamente as periféricas, sobretudo aquelas que mais SI NAGAO E DEFESA afastadas se encontram do centro das decisdes. Assim, independentemente da distribuigéo dos recursos naturais, funciona a favor da regio central, mais desenvolvida, todo um conjunto de mecanismos, de natureza social, econémica e politica, que actuam no sentido de aumentar o afastamento, em termos de prosperidade e desenvolvimento, entre essa regio ¢ as regides periféricas. De entre estes mecanismos, podemos destacar, por mais impor- tantes, os seguintes: 52 «@) a centralizagio da capacidade de decisio— politica, econémica, finan- ceira—constitui um factor extremamente forte de atraccdo para todo um conjunto de actividades industriais tecnologicamente evolu- fdas, que necessita de acesso facil e directo a essa capacidade de decisdo, bem como aos imémeros canais, formais ¢ informais, de informaco © comunicagéo, que uma tal concentragio necessaria- mente implica. Por sua vez, a localizacdo, na regido central, destas actividades, vai reforcar ainda mais a sua atracefo relativamente novas actividades; 5) por outro lado, o dinamismo que deste modo adquire a regidio central —com tudo 0 que ele implica em termos de oportunidades socio- Profissionais—constitui forte motivo de atraccdo para uma grande quantidade de pessoas das regides periféricas, que para ela emigrario em grande niimero. Ora, € bem sabido que a emigragio ¢ um fend- meno s¢lectivo, sendo precisamente os elementos mais actives e indmices das regides periféricas os que maior tendéncia t&m a emigrar: daqui resulta que a regido central vai retirar a periferia precisamente os seus melhores ¢ mais necessarios elementos, deixan- othe uma populagdo desequilibrada do ponto de vista etério e, por isso mesmo, com capacidade diminuida para receber ¢ adoptar as diversas inovagdes que so essenciais ao seu desenvolvimento; ¢) a consequéncia natural dos mecanismos referidos seré, entiio, que nas trocas comerciais entre as regides periféricas ¢ a regio central se estabeleca € reforce uma complementaridade baseada na espe- cializagéo do centro em produtos industriais tecnicamente avancados € em servigos de nivel elevado, ¢ das regides periféricas em produtos do sector primério e de um secundario pouco evoluido. A tendéncia para a progressiva degradagio da razdo de troca—isto €, para o REGIONALIZACAO E ORDENAMENTO DO TERRITORIO aumento relativo dos pregos dos produtos do sector industrial avan- ado em termos dos produtos primérios ¢ dos sectores industriais menos evoluidos—acarreta uma efectiva transferéncia de recursos das regides periféricas (menos desenvolvidas) para a central (mais desenvolvida), 0 que reforca os desequilibrios regionai 4) esta transferéncia de recursos é acompanhada de uma outra, muito importante, que decorre da localizacdo, na regio central, da maioria das sedes ¢ gabinetes de estudos das instituigées financeiras do Pais. Com efeito, a estrutura centralizada dessas instituigées faz com que 1 maior parte do investimento e da concessio de créditos seja decidida nivel da sede; daqui resulta que uma parte preponderante destas decisSes vi beneficiar as indistrias situadas na proximidade fisica do centro. Deste modo, as estruturas bancérias canalizam para a regio central uma grande quantidade de recursos que tém origem na poupanca realizada nas regides periféricas; esta poupanca vai, assim, contribuir para o agravamento dos desequilibrios regionais, em ver de ser utilizada para melhorar a posigio relativa das periferias; ©) poder-se-ia pensar que os factores anteriormente referidos seriam susceptiveis de correcgdo por meio de uma adequada intervenc&o do Estado —ou, 0 que neste caso 6 0 mesmo, do Governo Central. As possibilidades de que isso ocorra sem se proceder a uma descen- tralizagio so, porém, diminutas. Com efeito, por um lado os problemas da regio central, pela sua proximidade fisica dos centros de decisio, tm muito maiores probabilidades de serem detectados € resolvidos do que os problemas de populagdes mais distantes, cuja preméncia ndo & sentida do mesmo modo imediato palpavel. A propria capacidade de influenciar, por meios informais, a prontidgo ‘ou o resultado das decisies & muito atenuada pela distancia, Para além deste aspecto, a sectorializagao dos ministérios, conjuntamente com a estrutura vertical que em todos eles se encontra, torna extre- mamente dificil a coordenagdo indispensével a0 sucesso de accbes de desenvolvimento que se pretendam integradas € coerentes. Ainda neste caso a posicéo das regiées periféricas € desfavordvel relativa- mente & da regio central, uma vez que a distancia alonga os canais de comunicagdo e provoca atrasos que frequentemente impossibilitam, na prética, uma coordenacdo eficaz, mesmo quando as agéncias envolvidas se encontram nela interessadas. 53 NAGAO E DEFESA Do que até agora se expos 6 possivel concluir resumidamente, que as relagdes de dependéncia entre regides, traduzidas pela localizagéo da capa- cidade de decisio politica, econémica e financeira numa regido privilegiada, tendem a criar e acentuar desequilibrios no desenvolvimento regional, ainda quando as regides se encontram em posicdes idénticas do ponto de vista da dotagio em recursos naturais. Estes desequilibrios surgem pelos processos acima referidos, os quais tem a sua origem na centralizaco mencionada. Aplicar-se-4 esta descriglio ao caso portugués? Vejamos: Pode dividir-se 0 territério do Continente em duas grandes éreas com caracteristicas distintas: uma, constituida pela faixa costeira ocidental entre Braga ¢ Setdbal ¢ estendendo-se trinta ou quarenta quilémetros para o interior; a outra, constituida pelo resto do territério (com possivel excepgio de uma parte do Algarve, em que o desenvolvimento turistico originou oportunidades e problemas especiais). A primeira, com uma érea igual a cerca de 1/4 da superficie total do Continente, tem cerca de 2/3 da popu- lacdo total e a ela correspondem 4/5 do produto total e 9/10 da produgao da inddstria transformadora. Ai se situam também as melhores vias de ‘comunicagao, maior e melhor parte do equipamento colectivo, a maioria dos servigos de informagéo ¢ (especialmente em Lisboa) a maior parte da capacidade de decisio politica, econémica e financeira—em suma, o poder. Na outra érea, com excepcio de algumas zonas pequenas € pouco represen- tativas, a actividade produtiva predominante é a agricultura, frequente- ‘mente uma agricultura subdesenvolvida © pobre, peada por métodos arcai- cos, tecnologias obsoletas ¢ estruturas irracionais. Muitas vezes, também, existem recursos naturais no explorados ou cuja explorago, levada a cabo a partir do exterior, praticamente néo beneficia as populacdes locais. As relagdes econdmicas entre estas grandes 4reas acentuam e reforcam as diferencas epontadas: assiste-se, em muitos casos, a uma transferéncia iquida de recursos do interior para a faixa costeira, seja pela degradacio dos termos da troca entre produtos agricolas ¢ industriais, seja pela via dos sistemas fiscal e bancério que canalizam do interior para a costa mais recursos do que desta para aquele, seja ainda pela emigragdo dos elementos mais vélidos, educados € dinamicos da populagdo activa do interior que buscam nas regides mais desenvolvidas ou no estrangeiro realizar aspiragdes que, de outro modo, nunca passaro de vagos anseios, para sempre insatis feitos. 4 REGIONALIZACAO_E ORDENAMENTO DO TERRITORIO, Em resumo, a relagdo entre regides centrais e periféricas apresenta todas as caracteristicas de uma relagio de dominio colonial. Sem ser 0 linico factor do subdesenvolvimento de téo grande parcela do territério portugués, o colonialismo interior é, sem duivida, um dos mais importantes. Este facto implica, entre outras coisas, que necessério alterar profun- damente as relagdes entre regides ricas € pobres, para quebrar o ciclo icioso do subdesenvolvimento a que estas t#m estado condenadas. De tudo 0 que até agora foi dito podem tirar-se algumas conclusdes importantes, do ponto de vista de formulacdo ¢ implementago de uma politica de desenvolvimento regional equilibrado e, emt especial, da relacio entre tal politica © uma politica de regionalizago e de ordenamento do territério. A identificagdo de um certo nimero de factores que afectam diferen- cialmente as vérias regides de um pats, dando origem a assimetrias de desen- volvimento entre elas, aponta, imediatamente, para um certo niimero de medidas de politica destinadas a corrigir os efeitos dos factores desfavordveis © a reforcar os efeitos que, pelo contrario, se consideram desejaveis. Assim € que, por exemplo, fazem geralmente parte da panéplia de instrumentos da politica regional medidas como: o estimulo da formacdo e reciclagem pro- fissionais para aumentar a mobilidade profissional; o levantamento integrado dos recursos das regides; a realizacdo de investimentos, em infra-estruturas ¢ equipamentos colectivos, nas regides mais carecidas; a realizagao ¢ o estimulo 40 investimento em sectores produtivos; a politica de constituiggo ou correcgo de uma rede equilibrada de lugares centrais; ete. A correcta definicéo de uma politica regional que vise a atenuacio das assimetrias regionais deve conter medidas de politica de despesas piblicas, de pregos, de controles, de aumento de modalidade dos factores de produgao mas, também ¢ para mim essencial, de devolugiio do poder as Regises. Aqui a regionalizago surge com uma nova dimensio. & também um instrumento de politica regional ¢, como instrumento que também 6, teré de ser gerido atendendo aos efeitos interdependentes que necessariamente se estabelecerfio com outros instrumentos a utilizar com vista a concretizagao de objectivos definidos numa politica regional. Na definigéo dessa politica, ¢ no que respeita A sua tradugéo no espaco fisico, € pressuposto que as acces a desenvolver nio poderio tocar de igual ‘modo todas as partes do territério. 35 NAGAO E DEFESA © quadro privilegiado de actuagdo sobre 0 espaco € 0 dos planos de ordenamento do territério, se eles tiverem cardcter integrado © abarcarem ‘08 sectores com reais implicagdes sob 0 ponto de vista espacial. A forma de os elaborar tem vindo a experimentar um progresso substancial, dando- -se-lhe cada yez mais 0 cardcter de «processo» em contraposig&o com 0 «documento» que eles representavam hé duas décadas. A dicotomia entre 0 meio rural e 0 meio urbano pode ser atenuada se houver acessibilidade dos habitantes do primeiro ao equipamento social que Ihes garanta melhor qualidade de vida e Ihes permita usufruir de nfveis de ‘oportunidade de acesso aos bens da cultura, & satide, & educago e aos outros servigos, comparaveis aos dos que residem nas cidades. # no contexto de uma rede de lugares centrais hierarquizada ¢ devidamente localizada que isso pode acontecer. E os instrumentos operacionais para 0 conseguir so 0 planos de ordenamento do territério tomados no conjunto da sua hierar- quia, em termos de pormenor, horizonte temporal ¢ ambito espacial, ¢ entendidos numa éptica de processo que envolva todos os interessados € os potenciais agentes. Num grande espago econémico diversificado, uma politica regional © a sua tradugéo em termos de ordenamento do territério, além da inte- grago horizontal referida, no quadro de uma mesma érea, reclamam uma ‘outra, que articule as diferentes areas que o compéem. Cada uma destas exibe vantagens comparadas de que ¢ necessério tirar beneficios para bem de todos ¢ de cada um. A definigo de linhas de politica respeitantes ao con- junto © digeridas a nivel de cada uma das partes torna-se, assim, um exer- cicio basico € fundamental Trata-se pois de reconhecer na pritica a existéncia de interdepen- déncias espaciais e sectoriais, numa perspectiva de maximizagio da utilidade dos recursos. ¥ evidente que tais linhas de politica ¢ a sua compatibilizacdo no séo imediatas, aulomaticas ou facilmente acordadas. Cada parte tem, natural- mente, as suas ideias acerca do que vem a ser 0 conjunto das suas poten- cialidades e formula sempre um alto juzo acerca da legitimidade das suas proprias expectativas. Por isso, as linhas de politica geral tém de ser nego- ciadas entre as diversas partes interessadas. No mundo ocidental os agentes auténomos sio numerosos e tém actuagGes que desfrutam de grandes graus de liberdade, 56 A definigéo de linhas de politica tem, por isso, que ser racional ¢ relevante para os seus autores, mas também que exibir os seus méritos para a grande multiplicidade daqueles que as hio-de traduzir na pratica, Aqui a componente do conhecimento profundo da situagaio — os recursos os homens —é determinante. Haveré assim que conciliar a acgéo de autoridades locais, regionais € nacionais ou mesmo, em certos casos, supranacionais. POe-se assim 0 problema da definigdo das atribuigdes e competéncias de cada nivel de administrago ou de governo e da adequagio dos meios de execugio a0 que, naquele dominio, for estabelecido. Em muitos césos, certas fungdes podem ser desempenhadas somente num dos niveis ¢ outras terdo de ter responséveis em varios estratos. Surge, deste modo, uma complicagdo operacional adicional que resulta da necessidade da convergéncia das actuagées de varias entidades piblicas com nfveis de responsabilidade © meios técnicos ¢ financeiros distintos. Face & complezidade progressiva do sistema econémico e social, associada a evolugdo crescente, em mimero e qualidade, das fungdes que se reclamam dos poderes piiblicos ¢, ainda, tendo em conta a necessidade da melhor coordenagao dos meios imposta pela situagdo de crise em que vivemos, surge como imperiosa a eficiéncia do sistema administrativo, muitas vezes julgada antagénica da descentralizacio. Nao 0 €, de facto, se esta for acompanhada da desconcentracdo de fungdes da administragdo central que permita a coordenagdo de politicas ou estratégias com implicagdes a diversos niveis. Todo 0 processo se vera enriquecido pelas contribuigdes que, de baixo para cima, traduzem 0 empenhamento dos cidadios na reso- lugo dos seus préprios problemas. Por outro lado, no se perderé a capa- cidade de coordenagéo que requer uma politica com distintos escalées de agentes responsdveis © com muitos sectores cuja complementaridade é indispensével ‘Nao se repetiri aqui uma detalhada exposicto sobre a descentralizacéo politico-administrativa e regionalizagdo, seu significado e justificagdo; mas 6 dela que, efectivamente, se trata, Em Portugal nos ultimos anos deram-se Passos coneretos neste sentido, pelo que respeita as autarquias locais ou, com mais preciso, as Cimaras Municipais. Mas as Cémaras no esgotam © poder autarquico e a experiéncia mostra quanto é urgente completar 0 edificio descentralizador de modo a superar a alternfincia entre um poder central absorvente ¢ paralizante © um poder municipal, multiplicado por ” NACAO E DEFESA por mais de trés centenas de concelhos, cada um com 0 seu plano, seus projectos © suas obras, independentemente uns dos outros, alheios ou excluidos dos projectos globais, regionais ou nacionais. ‘As insuficiéncias duma estruturacdo do poder politico distribuido, sem graus intermédios, entre 0 Governo Central as Camaras isoladas, verifi- cam-se, igualmente, quanto aos servigos sectoriais da Admini damente 0s relatives as actividades produtivas. A estruturacao paralela duns € doutros, cada um com os seus planos, ou seus técnicos e 05 seus objectivos, multiplica custos, desaproveita meios, sobrepde projectos e duplica aces. ‘Com todo este processo & preciso no esquecer que o agente € 0 desti- natrio do desenvolvimento e da ocupacéo do territério ¢ um ser humano, com as suas espiragées ¢ limitagdes, com as suas potencialidades ¢ os seus valores pr6prios, com um comportamento evolutivo mas nfo amorfo, com uma capacidade de absorcio de inovag6es condicionada por inimeros factores na base das quais esté, antes de tudo, a educagéo a que ele teve oportunidade de acesso.. Pensar ne regionalizagdo e procurar estabelecer ¢ analisar as relagdes das suas miiltiplas dimensées com outros aspectos da administracao, nomea- damente 0 ordenamento do territério, ¢ tarefa entusiasmante. Sendo um mundo complexo nao existem panaceias. Penso que nio se poder avancar sem experimentar, para ajuizar dos bons e maus resultados, para conseguir propor edaptagdes ou para alterar a direcgiio do percurso. # este cardcter evolutivo das instituigdes que tem que estar presente em processos de reforma como os que aqui foram aflorados. Passou o tempo do Estado estavel. O processo tecnolégico, a rapidez de alteragao dos condicionalismos internos © externos ¢ a consequente modificagdo de metas e objectivos, determinam a necessidade de encontrar istemas capazes de introduzir inovagées no seu modo proprio de operar, sem fracturas geradoras de tenses ou de situagdes de anomalia, fomentando 1 evolugio, que a pritica mostra ser lenta, das mentalidades ¢ das estruturas. Numa altura em que tanto se fala de regionalizagio procurei, da forma que sei e sou capaz, analisar as miltiplas dimensdes do conceito e, aqui ¢ acolé, procurar ligé-lo aos conceitos de ordenamento do territério € de politica de desenvolvimento regional. Ser portugués nao é uma mera abstraccéo. & um modo de ser, um modo préprio de estar no mundo. 58 REGIONALIZAGAO E ORDENAMENTO DO TERRITORIO. E esse modo nasce, cresce ¢ alimenta-se das raizes donde provém ¢ no pode deixar de ser a resultante da integracZo numa unidade solidéria das variedades regionais existentes. Por isso & que entendo que a regionalizagéo ¢ um fenémeno que marca uma nova época, um estédio avangado, como sinal de desenvolvimento € factor de desenvolvimento. Gostaria de terminar formulando um voto: que Portugal, para aceder 0 estédio democratico da representagio central ndo entre, inconsciente- mente, na destriig&o sistemética do que tem de mais rico—os seus sub- universos regionais—para tentar, mais tarde, organizar a recuperacéo do tempo e dos valores desbaratados. Seria ento muito melancélico gerir um espago que modelava um homem portugués que foi capaz de ser universal em muitos momentos da sua Histéria, porque habituado a ser ele mesmo através do tempo, das mudangas, das diferengas. Dr. José da Silva Peneda 9 O PODER E O ESTADO: A NECESSIDADE DE ASSUMIR A POLITICA Francisco Sarsfield Cabral O PODER E O ESTADO: A NECESSIDADE DE ASSUMIR A POLITICA A desconfianga em relago 0 poder politico e & sua forma moderna, © Estado, manifesta-se, hoje, nos mais diversos quadrantes de opinifo. Desde 0s herdeires dos esquerdistas libertarios de Maio de 68 até aos adeptos radicais do livre funcionamento do mercado, é notéria a hostilidade perante ‘© que € sentido como opressio das pessoas pela maquina do Estado. E compreensivel a reaccio. Por um lado, a crise econdmica desacreditou as politicas de intervencdo estatal anticiclica e, de um modo geral, 0 keynesianismo com precocupagdes sociais que, no mundo ocidental, presi- div & maior expansio econémica de sempre, desde o fim da guerra até pouco antes do primeiro choque petrolifero, no final de 1973. Por outro lado, o século XX conheceu, ¢ infelizmente ainda conhece, as mais implacéveis tiranias da Historia. O nosso tempo assistiu nao s6 a0 aperfeicoamento das téenicas € dos apareclhos de coaccio politica, como & sistematica invasio, por essas técnicas e esses aparelhos, de areas até ai livres da submisio a0 politico. O século XX 6, afinal, 0 século dos totalitarismos, Tem razéo Bertrand de Jouvenel ao observar, ha quase quarenta anos: «Onde est a liberdade? A nossa sociedade europeia procura-a desde ha dois séculos: deparou-selhe ide estatal mais vasta, mais maciga, mais pesada, que a nossa vilizag&o jamais conheceu» (). DO ANARQUISMO AO MARXISMO A aspirago a liberdade, & auséncia de coaccéio externa ¢ a plena autodeterminagéo da pessoa tomou uma expressio extrema, no século pasado, com o anarquismo. Inimigos de toda e qualquer autoridade, os anarquistas visavam, naturalmente, a aboli¢éo do poder politico. © Estado () Bertrand de Jouvenel, Du Pouvoir— Histoire Naturelle de sa Croissance, Hachette 1972 (primeira edigao em 1945, Genéve), pis. 387. 63 NAGAO_E DEFESA era para eles uma forma de repressdo organizada para manter a propriedade privada ¢ a exploracéo das classes trabalhadoras. «Quem diz Estado politico —seja ele monarquia absoluta, monarquia constitucional ou mesmo repiiblica~- diz dominio © exploracdo. (...) Que pretende o socialismo? A constituigdo de uma sociedade humana equitativa, liberta de toda a tutela, de toda a autoridade ¢ dominagdo politica, bem como de toda a exploragdo econémica» ). Assim escrevia Bakunine. Mas o anarquismo tinha um curto folego te6rico, surgindo mais como uma manifestacio romantica ¢ libertéria do que como uma sélida doutrina pera fundamentar a acco. Essa doutrina concebeu-a Marx. No marxismo o horizonte tltimo permanece o mesmo: 0 fim do Estado. Mas as coisas jA no se apresentam to lineares como no anarquismo. Tam- bém para o marxista o Estado nio passa de um intrumento para manter a ditadura da dasse dominante. Nao reside na esfera politica mas na econd- mica, porém, a raiz tiltima da alienagio que produz tal estado de coisas. ‘Uma vez superada a alienagio econémica desapareceré a necessidade de manter um aparetho repressivo—em boa verdade, para o marxismo desa- pareceré a politica. Depois de salientar que nem sempre houve Estado (criado para manter © dominio de certas classes sociais), Engels afirma que tais classes desapa- recerdo to inevitavelmente como surgiram ¢ que, com elas, cairé o Estado. 4A sociedade, que reorganizaré a produgo na base da associagio livre ¢ igualitéria dos produtores, relegard todo o mecanismo do Estado para onde passaré, entio, a ser o seu lugar: 0 museu de antiguidades, ao lado da roca € do machado de bronze»). Nessa altura, «o governo das pessoas é substituido pela administragdo das coisas ¢ pela direcgdo das operagies de produgo. O Estado nfo é “abolido”, ele extingue-se» (0). Esta frase de Engels ajudaré Lenine —que foi, acima de tudo, um politico — a distinguir-se dos anarquistas (que visavam a abolicdo do Estado) € a elaborar a sua concepsio da ditadura do proletariado. A revolucdo, segundo 0 marxismo-leninismo, vai abolir imediatamente tio-s6 0 Estado da burguesia, substituindo-o pelo Estado proletério. Este —que j4 néo seria, © M. Bakunine, Le Socialisme Libertaire— Contre les Despotismes (entologia de textos preparada por Fersand Rudo), Denéel/Gonthier 1973, pég. Sl (OF. Engels, citado por Lenine om L'Etat ot la Révolution, Bd. Gonthier, pls. 18. (© tem, és, 20. “o © PODER £ O ESTADO: A NECESSIDADE DE ASSUMIR A POLITICA aliés, um Estade na plena acepeio da palavra— extinguir-se-ia por si, gradualmente, a medida em que a apropriagdo colectiva dos meios de pro- dugéo fizesse, entretanto, desaparecer as classes. Mas —e isso interessa particularmente a um Lenine escrevendo na Primavera de 1917 — néo s6 0 velho Estado burgués tera de ser derrubado pela violéncia, como esta devers prosseguir durante 0 periodo de transicgéo para o comunisiro, durante a ditadura do proletariado. A substituigéo do poder de repressio da burguesia pelo poder de repressio do proletariado representa, para Lenine, um progresso da democracia— pois agora sio as maiorias a dominar as minorias. Aliés, esta «forma revolucionéria e passageiray de Estado comecaré a extinguir-se por si, créem os marxistas. «O aparelho especial, a méquina especial de repressio, 0 Estado, € ainda necessirio, mas trata-se de um Estado transitéric, néo é jé 0 Estado propriamente dito, porque a repressio ‘exercida contra uma minoria de exploradores pela maioria de eseravos assala- riados de ontem &, relativamente, coisa téo facil, tfo simples ¢ tio natural que ela custaré muito menos sangue do que a repressio das revoltas dos escravos, dos servos e dos operdrios assalariados; ela custaré muito menos caro & humanidade. E seré compativel com a extenso da democracia a uma to grande maioria da populagdo que a necessidade de uma méquina especial de repressio comegaré a desaparecer» (). De qualquer modo, terminada esta fase transitria (de duragio incerta) durante a qual continuaré a haver Estado € politica para acabar de vez com 0 Estado a politica, o futuro néo difere do proposto pelos anarquistas. «0 proletariado apenas teré necessidade do Estado por algum tempo — diz Lenine—. Nao estamos de maneira nenhuma em desacordo com os anar- quistas quanto & aboligio do Estado como um fim»(*). Na fase final, comunista, «os homens habituar-se-Go gradualmente a respeitar as regras elementares da vida em sociedade conhecidas desde hé séculos, repetidas durante milénios em todos os preceitos morais, € a respeité-las sem violencia, sem coacgio, sem submissdo, sem este aparelho especial coercivo que tem um nome: Estado» (. ©) Lenine, ob. ct, pég 103. © Idem, pag. 7. (0) Ider, pag. 102 NAGAO E DEFESA O PARADOXO DO FIM DO ESTADO A perspectiva da extingao do Estado permite compreender melhor 0 aparente paradoxo de os mais ferozes totalitarismos de hoje se reclamarem do marxismo—ou seja, de uma ideologia que tem como meta o fim da coacedo estatal. Precisamente porque existe essa meta—mas em data indeterm nada— a «ditadura do proletariado» pode, sem m4 consciéncia, atingir 0 piores extremos. Trata-se da luta final contra a alienagdo do homem, contra 0 mal. Perante 0 horizonte ultimo do homem reconciliado consigo mesmo ¢ da sociedade sem classes (logo, sem Estado), pouco contam as violéncias do presente —muito embora estas desmintam a profecia de Lenine de que 0 Estado comecaria a extinguir-se ainda durante a ditadura do proletariado. 'S6 depois deste combate iiltimo pelo fim da alienagéo do homem comecaré verdadeiramente a Hist6ria, Uma Historia sem politica, acres- cente-se, Para o marxismo a politica é, de facto, uma manifestagdo do mal, um reflexo da alienagao fundamental — econémica — da humanidade. Supere-se essa alienacdo ¢ a politica (como a religido) deixaré de ter sentido ¢ luger. Compreende-se, assim, o fraco interesse que os tedricos marxistas tradicio- nalmente dedicam ao fenémeno politico, ao qual no podem deixar de negar autonomia, Nem as inflexdes, a partir de Gramsci, de certos intelec- tuais marxistas (forgados, pela evidéncia das coisas, a olhar mais a sério para o Estado) podem fazer esquecer que é da esséncia do marxismo a desvalorizagio da instancia politica, Em contrapartida, os governantes marxistas (lembremos a Pol6nia) sabem bem do que se trata, nesta fase em que o Estado «ainda» nio acabou. Reconhecem, como Trotsky, que «todos os Estados se baseiam na forga» ©, como Mao-Tsé-Tung, que «0 poder nasce do cano de uma espingardav. E, sem complexos, consolidam tiranias que nio so apenas privacio da liberdade politica e opressio econémica. As ditaduras marxistas nfo se confinam a esses limites tradicionais pois, pretendendo criar 0 homem novo, repressiio no conhece barreiras nem dominios auténomos vedados a0 politico. Mesmo tendo em conta que o facto de os paises «socialistas» terem inimigos externos Ihes dé mais um alibi para reforcarem o aparelho repres- 6 © PODER EO ESTADO: A NECESSIDADE DE ASSUMIR A POLITICA sivo, € forgoso concluir que nada aponta para o eventual recuo desse apa- relho (pense-se, por exemplo, nas abortadas reformas liberalizadoras do sistema econémico, com a parcial excepgio da Hungria). Os Estados marxistas séo, afinal, Estados como os outros. Com uma pequena diferenge: a ideologia, projectando um paraiso terreal como resul- tado das actuais medidas, desinibe-os quanto a utilizagdo de meios, a0 ‘mesmo tempo que permite disfarcar, no plano externo, 0 desenvolvimento de uma estratégia imperialista. Ou seja, 0 totalitarismo € exercido por aqueles que oficialmente acreditam estarem a pdr termo & coaccio, a0 Estado € & politica. O que no acontece por acaso. O INDIVIDUALISMO LIBERAL Mas 0s marxistas no sio os tinicos a desvalorizarem a politica, «reino do mal». Encontramos atitude semelhante (ainda que menos estruturada filosoficamente) no pensamento liberal (*). © liberalismo surge historicamente em oposi¢ao ao poder politico na Europa. O absolutismo mondrquico, as perseguigdes religiosas em que os monarcas se empenhavam, e 0 «terror» da Revoluséo Francesa levavam 0s europeus literalmente a fugirem do Estado (para o outro lado do AUantico, nomeadamente). A liberdade aparccia, assim, aos olhos de muitos como estar «livre» do Estado, do poder e da sua opressdo. Ao mesmo tempo, 0 desenvolvimento das relagées mercantis favorecia a rebelido contra quaisquer entraves politicos aos mecanismos econémicos considerados «naturais». A hostilidade ao poder politico e ao Estado traduzia, afinal, a pers- pectiva individualista do liberalismo, reforcada com a exaltagdo romantica do Eu. (Mas o romantismo também foi reacco contra 0 individualismo, na medida em que contribuiu para o reforgo do sentimento nacional.) Desvalorizada a dimensio social e colectiva da existéncia humana, do ‘mesmo passo se teria de desvalorizar 0 poder —ou seja, aquilo que, em Ultima instancia, assegura a vida da comunidade enquanto tal (Como € evicente, 0 adie Como se sabe, nos Estados Unidor favordvel & intervengio stata liberal € aqui usado no sentido tradicional europe. iberal» quer dizer oposto a conservador, we esauerda», o NAGAO E DEFESA Essa perspectiva individualista est hoje presente, por exemplo, na obra porventura mais significativa do moderno pensamento liberal, a obra de F. A. Hayek. Para Hayek, a sociedade € um mero aglomerado de individuos actuando ‘em fungdo de fins diversos € no compardveis. A defesa radical que ele faz do ndo-intervencionismo do Estado, da meta observancia de regras gerais © abstractas de conduta, baseia-se na ideia de que néo pode haver acordo entre 05 homens quanto aos fins a prosseguir—apenas quanto aos meios. O mercado, «ordem espontineay e processo impessoal, surge como tinica forma de assegurar a convivéncia entre pessoas cujos projectos finalidades divergem ¢ conflituam. Nao haverd, entio, valores colectivos, finalidades para a sociedade como um todo? Nao, diz Hayek. «A sociedade, no sentido estrito que a distingue do aparelho estatal, € incapaz de agir segundo um propésito especifico», pondo-se, até, 0 problema de saber «se existe um dever moral de ‘nos submetermos a um poder que coordena os esforgos dos membros da sociedade com 0 objectivo de atingir um determinado padrao distributive considerado justo» (). Haeyk nega esse dever: para ele, a «justica social» ni passa, logicamente, de uma expressio sem sentido, de uma miragem. E que procurar uma determinada distribuigéo da riqueza implicaria aque o processo da sociedade deveria ser deliberadamente orientado para certos resultadas © que, personificando a sociedade, esta seria tomada como um sujeito dotedo de espirito consciente ¢ capaz de ser guiado na sua acco por principios morais»(""). Ora isso no passa, para F. A. Hayek, de um antropomorfismo anacrénico, Para este autor, € para os liberais que dele se aproximam, os senti- mentos colectivos, ¢ designadamente o amor pelo préximo, sé tém sentido fem pequenos grupos, em que todas as pessoas se conhecem. Na wgrande sociedade» deve reinar a regra geral ¢ abstracta, meramente instrumental, contra reminiscéncias do «espirito tribal © colectivo é equiparado a primitivo, tribal, e dai a oposi¢ao de Hayek a0 direito pablico (que subordina 0 cidadio @ autoridade e € composto por regras de organizaco para funcionsrios) que contrapée ao direito privado, composto por regras de conduta para o individuo particular. 0) F. A. Hayek, Law, Legislation and Liberty —The Mirage of Social Justice, Routledge sand Kegan Paul Ld, London and Henley, 1976, pég. 64 (0) Idem, 6x. 79 “8 © PODER E ESTADO: A NECESSIDADE DE ASSUMIR A POLITICA A negagio do piiblico e do colectivo é, ao fim e ao cabo, negacdo da dimensio politica. $6 na esfera privada, sobrevalorizada, pode, assim, situar- se a liberdade, De facto, para F. A. Hayek a liberdade € simplesmente a auséncia de coacyio, ¢ «a coacgdo ¢ 0 controle dos dados essenciais da acco de um individuo por outro; ela apenas pode ser evitada dando ao individuo meios para assegurar a si mesmo uma esfera privada no interior da qual esteja ac abrigo de tais intromissdes» (*). ‘Numa «grance sociedade» concebida nos termos de Hayek dificilmente haveria lugar pare coisas como a defesa nacional. F ele proprio quem impli- citamente 0 dé a entender quando escreve: «as regras de justa conduta apenas podem ser iguais para todos quando no s4o levadas em conta finalidades particulares para o exercicio da coacgdo (excepto em certas circunstén- ccias especiais © passageiras, como guerra, rebelidio, ou catéstrofe natu- ral)» (4). As excepgdes dio que pensar. Se tudo se passasse assim, quem, por exemplo, estaria disposto a arriscar a vida pela patria? O COLECTIVO SEM POLITICA A cideia de que 0s homens so a realidade © a sociedade uma convengio», como diz Bertrand de Jouvenel (*), esté por detris das teorias do contrato social, ainda quando este consiste em mera hipétese explicativa destinada 4 justificar determinada escala de valores (#). Mas o liberalismo deu também origem a uma corrente —o utilitarismo— que, por outra via, procura encontrar critérios de organizacdo social. © utilitarism € mais sensivel & dimensio colectiva das. sociedades humanas: 0 bem-star da comunidade € a sua norma suprema. Nesse sen- tido, propée certas formulas de célculo da utilidade social, partindo do pressuposto de que a vontade humana € racional e admitindo como viéveis comparagées interpessoais de utilidade. ©) FA. Hayel, The Constitution of Liberty. Chicago, 1960, pe. 158. Citado por Reymond Aron, Essai sur Tes Libertés, Calmann-Lévy, 1965, pi. 150 (CF. A. Hayek, The Mirage of Social Justice, pie. 14. (©) Ob. cit, pag 77 (0) Bo que acontece, nomesdamente, com John Rawls, A Theory of Justice, Harvard, 1972, cy NAGAO E DEFESA Nao interessa, aqui, analisar onde falha esse célculo, que ndo conse- gue superar a circunstancia de as pessoas viverem segundo valores dife- rentes € finalidades diversas, ndo comparaveis, nem é este o lugar para discutir se 0 utilitarismo € capaz de resolver o eventual conflito entre o bem-estar da actual geragdo ¢ o das geragées futuras. O que vale a pena notar é que a orientagdo utilitarista revela uma tentativa, de resto extre- mamente pertinaz e que constantemente se faz sentir, para governar a colectividade através de normas julgadas cientificas — isto é, prescindindo da politica. «Bentham estava convencido de que a politica deveria ser uma espécie de aritmética utilitarista e que se poderia sempre determinar a norma de acco adequada por operagdes puramente Iégicas ou matemé. ticasy (5), Como Gunnar Myrdal observou ha mais de meio século, @ teoria econémica, ou larga fraccéo dela, adoptou 0 método utilitarista, o que permitiu uma impressionante longevidade doutrina do utilitarismo como sistema de ética social positiva. A propria revolugio keynesiana ¢ 0 pre- dominio da macroeconomia que the anda associado contribuiram, jun- tamente com as experiéncias de direceao central das economias de Leste, para alimentar esperancas de que seria possivel formular cientificamente polit 6 I. E, depois do Produto Nacional Bruto, jé se tem tentado calcular a Felicidade Nacional Brut... Nao 36 05 economistas, porém, tém procurado dispensar a polit ‘Também se tem tentado reduzir 0 Estado ao direito, tendéncia que culmina em Hans Kelsen, Levando a0 extremo I6gico @ propensio de muitos juristas para néo verem no Estado ¢ na politica mais do que normas, Kelsen — como, noutra perspectiva, 05 utilitaristas— cede tentacdo do cientismo ¢ pretensio antimetafisica. proprio dircito é para ele, ndo tanto um comando ou um imperativo de conduta, como um juizo I6gico-formal: se tal procedi mento no for observado, seguir-se-4 aquilo (por hipdtese, uma sancdo). E 0 Estado nio sera sendo a expresso institucional do direito. Mero sistema de normas, 0 Estado €, assim, esvaziado da politica. Marx ¢, na pratica, certos liberais haviam subordinado a politica a eco- (©) Gunnar Myrdal, Aspectos Poitces da Teoria Econdmica, trad, brasileira, Zahar Editres, pie. 46 70 © PODER E © ESTADO: A NECESSIDADE DE ASSUMIR A POLITICA nomia; alguns juristas reduzem-na ao direito. Fenémenos centrais no Estado, como a vontade ¢ 0 poder, sio portanto escamoteados. Fica apenas 0 con- junto instrumental de normas ¢ técnicas juridico-administrativas que a Progressiva racionalizagéo do Estado moderno multiplicou. S6 que a iden- tificagdo do Estado ¢ do direito no faz justica a nenhuma das duas realidades. A VIOLENCIA £ O PODER Sendo dominio de homens sobre outros homens, 0 poder pol evoca algo de mégico ¢ simultaneamente de maléfico. O sofrimento cau- sado pela violéncia ao servigo do poder empresta m4 reputacio a politica Compreendem-se as tentagdes para recusar qualquer autoridade, qualquer coacgao. E hoje, em que a destruigfo nuclear esta a mercé de uma decisio politica, aumenta a hostilidade em relagdo a esfera do politico, que facil- mente se equipara a esfera do mal —nio obstante no terem sido os politicos quem inventou a bomba atémica. Aliés, em anélise serena terd de se concluir que, no podendo ser «desinventadasy as armas nucleares, 86 através da politica se podera evitar a destruicio da humanidade. Acresce que a politica & algo que envolve vontade, luta, sentimento, valores. No estéo em causa meras teorias, mas, afinal, concepgdes do mundo que preterdem impor-se. Por isso dizia Albert Camus que todas as Fevolugées sio metafisicas. Daf a paixo que a politica provoca e que a tora por vezes temivel Mas néio parece que a melhor forma de exorcisar os deménios do poder seja fugir da politicé. A propria tendéncia liberal que se limita a empurrar © Estado para longe da esfera privada do individuo pode dar caugo a regimes socialmente opressores ¢ destituidos de liberdades politicas. ‘Sem a politica néio seria possivel a vida do homem em sociedade —e 86 em sociedade o homem é homem. Por isso a politica, assumindo a dimensio colectiva da vida, € uma realidade eminentemente humana. A razo de ser do poder politico, do Estado, é a subsisténcia da comu- nidade, defendendo-a do exterior ¢ assegurando-the ordem no interior. Sem 0 poder politico, a comunidade desagregar-se-ia e no s6 os homens perderiam toda a seguranca (recordemos certos momentos da vida portu- Buesa em 1975, quando o Estado quase deixou de existir) como deixa n NAGAO E DEFESA de ter sentido, entdo, falar de liberdade. Como disse von Thering, «a forma mais insuportivel de Estado é a auséncia de Estado» (") ‘Animal politico, o homem tem na sociedade 0 seu «meio naturalv. Nao € preciso recorrer a ficgo do contrato social para aceitar o colectivo: cle é simplesmente inerente ao humano, embora néo encerre todo 0 humano. ‘A esfera do politico implica uma dialéctica entre 0 piiblico e o privado. Ora o piiblico, escreve Julien Freund, «é, no sentido politico, afirmagio de uma unidade» (17), Essa unidade — que os liberais desvalorizam, apenas encarando 0 individuo— é suporte de uma ordem comum que transcende © pluralismo intemo da comunidade ¢ dé a esta possibilidade de se manter © desenvolver. «Enquanto exprime a necessidade de uma unidade, a nogdo de piiblico significa que a colectividade age em autonomia, o que implica que cla € simsltaneamente razo ¢ vontade superiores ao individuo, sem por isso Ihe ser hostily (). Como é que isso se passa na pritica? Através do exercicio do poder politico, fenémeno to «natural como a sociedade. E poder politico im- Plica autoridade, coaccéo, forca, violéncia. Sublinho implica —nio digo que uma coisa equivalha & outra. A forca, a violéncia se quisermos, € uma condigao normalmente necesséria a0 Estado, a0 poder politico— embora condigéo manifestamente no suficiente. ‘Afirma Hannah Arendt que «o poder corresponde & capacidade humana para agir mas agir em concertagao; 0 poder nio € nunca propriedade de um individvo — pertence a um grupo € permanece em existéncia apenas enquanto © grupo se mantiver unido» ("). # verdade © poderd, até, inver- ter-se a proposicio e dizer que o grupo s6 subsistiré enquanto existir poder. Mas nada justifica a oposigéo—que H. Arendt invoca (*)—entre poder violencia. ‘A violéncia € um instrumento do poder. «Se nenhuma instituig&o social empregasse a violencia, entéo 0 conceito de Estado seria eliminado © teriamos uma situagdo que poderiamos designar por anarquia no sentido (0) Citado por Bertrand de Jouvenel, ob. cit, pie. 345, (©) Julien Freund, Essence du Politique, Sirey, 1965, pig. 320. €) J, Freund, ob. cit. pég. 321. (9 Hannah Arendt(On ‘Violence, Harcourt, Brace & World, Inc, New York, pi. 44. ©) Idem, pie. 49. n © PODER E O ESTADO: A NECESSIDADE DE ASSUMIR A POLITICA proprio da palavray, escreve Max Weber, acrescentando: «A forca nfo é, certamente, 0 meio normal € nico de actuagio do Estado —ninguém diz isso—mas a forga € um meio especifico do Estado (...) Um Estado € uma comunidade humana que (com éxito) reivindica 0 monopélio do legitimo uso da forca fisica num dado territérion (), Por vezes as situagdes excepcionais, extremas, revelam a esséncia de certas realidades, que @ normalidade encobre. & que se passa com a instancia ultima do poder, tradicionalmente designada por soberania. Ora, como sustenta Carl Schmitt, «é soberano 0 que decide do estado de excep- do»), comentando Julien Freund: «Seré soberano quem decidir em ‘itima insténcia, no em nome do direito, mas da forca, ou seja: € soberano no apenas quem decidir do estado de excepgio mas, também, quem decidir em caso de situagdo execpcional. As revolucdes so deste tipo» (). Eis 0 ‘que nos mostra o coeficiente de vontade pessoal e necessariamente arbitréria que, em maior ou menor grau, sempre 0 poder politico terd. isso que as vezes custa a aceitar a mentalidade moderna. Isso € a circunstincia de que se trata do dominio do homem sobre 0 homem. Para F. A. Hayek, por exemplo, «quando obedecemos as leis, no sentido de regras gerais ¢ abstractas, formuladas sem referéncia a uma eventual aplicago a nés préprios, ndo estamos submetides a vontade de ‘outros homens © somos, portanto, livres» (*), Acrescenta Hayek: «Se 0 poder significa que os homens esto submetidos & vontade de outros homens, numa sociedade livre 0 governo nao tem o poder» @). Esta a ilusio liberal. Voltemos a Max Weber: «Tal como as instituigdes que o precederam, Estado € uma releg#o de homens dominando homens, uma relagdo baseada no uso da violéncia iegitima (isto €, considerada legitima). Se 0 Estado ‘existe, os governacos devem obedecer a autoridade reivindicada pelos poderes ‘constituidos» (*). Ora, «a obediéncia ¢ determinada por fortes motivos de (0) Max Weber, Politics as a Vocation, na colectinen organizada por H. H. Gerth ¢ C. Weight Mille From Mex Weber: Essays in Sociology, Routledge & Kegan Paul Lid. pég. 78. (©) Citado por |. Freund, ob. cit. pag. 126 ©) Ob. cit, par 126. () FA. Hayek, The Constitution of Liberty, pig. 180, Citado por R. Aron, Essai sur les Liberés, pg. 132. (©) The Constiution of Liberty, pig. 186. Citado por R. Aron, Essa sur les Libertés lg. 152, 1°) 0b. pig 78 7a NAGAO E DEFESA medo ¢ de seguranga —medo da vinganga dos poderes magicos ou dos irigentes, esperanca de recompensa neste mundo ou no outro— e, além isso, por interesses da mais variada ordem» (*). ‘Mesmo num Estado moderno, racionalizado ¢ regido por um complexo sistema de leis, existe a obediéncia. Mas —é evidente— a forca pura, a violéncia no bastam para se obter a obediéncia. Sem um certo consen- imento dos governados no hé governante que se aguente, por mais tirdnico que seja, E aqui que se coloca o problema da legitimidade, a que Max Weber se referia ao falar de violéncia legitima, salientando querer isto dizer «vio- léncia considerada legitimay. Bertrand de Jouvenel sublinha este aspecto decisive ao escrever: «O que existe efectivamente € a crenca humana na legitimidade do poder (...) Ndo ha cardcter legitimo a ndo ser através da conformidade com 0 que os homens consideram o modo legitimo do poder» @) Por outras palavras, 0 conceito-chave de legitimidade do poder nfo & juridico mas sociolégico. Max Weber aponta varios tipos de legalidade: baseada na tradigio, no carisma pessoal do leader», e na legalidade, Outras modalidades se poderiam indicar, mas é quanto basta para dar uma ideia de que o poder implica uma dialéctica estreita entre comando ¢ obediéncia (*) que de maneira nenhuma se reduz ao uso da forga, embora 0 nao dispense normalmente (pelo menos como possibilidade). Nesse sentido tem razio Madison ao dizer que «todos os governos se baseiam na opinion (*) A LIBERDADE E O ESTADO A limitago do Estado € uma das maneiras de evitar que o exercicio do poder politico redunde em tirania. A dimensio colectiva e piblica do homem no é tudo — por isso, 0 poder politico (que possibilita tal dimensio, ac assegurar ¢ vida em comunidade) nio deve invadir todas as esferas da actividade do homem, destruindo a autonomia da vida privada e das ©) Ob. cit, pig 79. ©) Ob. eit, pis. 37 ©) Cir. J. Freund, ob. cit, pigs. 101 e seas. (9 Citado por Hannah Arendt, On Violence, pég. 41. 7 © PODER E 0 ESTADO: A NECESSIDADE DE ASSUMIR A POLITICA instituigdes da chamada sociedade civil. S6 num regime totalitario o politico pretende ter a ver com tudo (¢, na pritica, o poder politico em tudo é capaz de interferir, extravasando a sua fungio especifica: tudo pode ser politizado, © que mostra 0 carécter decisivo da politica —daf, porventura, © célebre «politique d’abord!» de Maurras). ‘Mas a liberdade no & apenas, nem sobretudo, a salvaguarda contra o poder potencialmente opressor dos governos, ou seja, a justa preservagdo da esfera privada das pessoas. Essa, como vimos, a concepco — inadequada— de um certo liberalismo. As liberdades civis so importantes; mais do que clas, porém, € a participagio activa no, governo da cidade. Quando os europeus fugidos a tirania politica e a intolerancia religiosa atravessaram o Atlntico e chegaram & terra americana, 0 seu sentimento mais forte tera sido, talvez, a sensagio de terem escapado & opressio, Mas cles no se ficaram por essa liberdade apenas negativa. Ao criarem novas comunidades, os colonos deram simultaneamente vida a uma forma diferente da europeia de exercer 0 poder: a forma democrética, 0 autogoverno. No culminar desse processo —na altura da proclamagdo da indepen- déncia— para os «founding fathers» da Revolucio Americana «a principal questo nfo era certamente a de saber como limitar 0 poder, mas como 0 estabelecer; no era saber como limitar o governo, mas como fundar um novo» (*), Foi a constitutio libertatis, diz Hannah Arendt, referindo-se & Constituigéo norte-americana e fundago daquele novo corpo politico (*). ‘Acentua H. Arendt que no ¢ legitimo «confundir direitos civis e liber- dade politica, ou identificar esses preliminares do governo civilizado ¢ a substincia mesma de uma repiblica livre. Porque, geralmente falando, liberdade politica significa 0 direito de ser parte no governo, ou nfo significa nada» (*). Ter-se-é perdido esta heranga da Revolugio Americana, como afirma (e lamenta) H. Arendt? Hé, sem diivida, evolugdes preocupantes, desde a fuga tecnocratica & politica (fuga sempre ¢ apenas aparente) até ao confor- mismo perante 0 cercear das liberdades (porventura em troca de seguranca ou de bem-estar econémico —mas nem sequer existe sempre essa troca). A democracia € um bem frégil—vejase em quantas regides do globo (°) Hanoah Ars, Eso sur la Revolution, trad francesa, Calinard, pig. 26. @) Idem, pag. 225. - 0) Tem: a. 322 p NAGAO E DEFESA existe liberdade politica — mas parece irrecusdvel que a organizagio demo- eratica do Estado é a que melhor alcanca a finalidade do politico, ou seja a que mais contribui para a plena realizacéo dos homens na sua dimensio colectiva. Por isso ndo desaparecera 0 ideal dos «pais» da Revolugio Ameri: cana (€ que jé havia sido 0 dos atenienses), por muito negro que nos pareca © horizonte, Se o fenémeno politico for plenamente assumido na sua esséncia propri © Estado sera limitado, nao invadindo os outros dominios onde se mani festa a actividade humana. Aliés, rigorosamente ¢ como observa J. Freund, 456 um partido ou um movimento podem ser totalitérios, nfo 0 Estado -— porque este tem em si mesmo um fim especifico, enquanto um movimento totalitério prossegue fins que ultrapassam o politico» (%). Importa, por outro lado, assegurar a participagdo dos cidadios no poder, aperfeicoando cs mecanismos da democracia representativa. Mas isso no quer dizer que se deva conferir o essencial da representatividade politica aos interesses privados ¢ parcelares enquanto tais (como parece ser a tendéncia de um certo neocorporativismo pritico). Assumir o politico significa, antes de mais, formular o interesse piblico geral em fungio do bem da comunidade enquanto comunidade —o que, por definigdo, nfo pode ser tarefa de porta -vozes de interesses privados, nessa qualidade. Assistimos, no entanto, & politizagio de sindicatos © a crescente influéncia politica, sobretudo nos Estados Unidos, de grupos de pressio lutando pelas mais variadas e circunscritas causas (ao mesmo tempo que definham os partidos), Que isto ocorra numa época de estatizagio crescente no deverd espantar-nos, pois, ao politizarem-se, as instituigSes da sociedade civil perdem @ sua autonomia—a qual permitia, precisamente, a subsis- téncia de areas de impenetrabilidade ao politico. Assumir 0 politico, portanto o colectivo, quer também dizer que o poder nio receia tomar decis6es em nome da colectividade (e que esta deve- 4 sancionar, naturalmente). A colectividade como tal, e nfo apenas os individuos que a formam—adere a ideais, a valores, a critérios éticos, ‘8 que os politicos devem dar expresso. O que ha de criticével na tecnocracia 09 Ob. it, nha 301. 76 © PODER EO ESTADO: A NECESSIDADE DE ASSUMIR A POLITICA no € que haja bons técnicos—é que eles tentem fazer crer que, por detrés das decisies técnicas, ndo existam opgdes politicas, ou seja, escolhas de valores. Mas estas opedes esto 1é sempre (até no langamento de um imposto, por exemplo, h& escolhas morais implicitas); importa fazé-las com transparéncia, Ao poder politico cabe arbitrar entre imperativos parcialmente contra- dit6rios, mas sempre presentes—entre a liberdade e a seguranca, entre a iguakdade e a entre o bem-estar do presente e 0 das geragdes futuras, ete, —e entre os interesses dos varios grupos sociais (0 que, evidentemente, nio € aceite para quem o Estado € mero instrumento ao servico da classe dominante). Trata-se, por certo, de uma missio dificil numa época, como a nossa, em que pluralismo de concepgdes de vida ndo favorece um consenso geral mnimo sobre 0s valores ético-politicos bsicos, isto é, sobre os fund: mentos da prépria vida da colectividade. E porque o Estado de certo modo fala em nome da colectividade que, por exemplo, ele pode mobilizar coercivamente meios humanos ¢ materiais para organizar a defesa e preparar a guerra. Ou que ele intervém na econo- mia em fungdo de critérios éticos. Combater a excessiva estatizagio (em Portugal, nomeadamente) € 0 sis- temético intervencionismo na economia parece-me saudavel — mas com base em razdes de eficécia econémica ¢ social, nao invocando argumentos ligados 4 pretensa «naturezay do Estado. B legitimo, por exemplo, procurar cor- rigir — em fungio de exigéncias éticas sentidas pela comunidade — um deter- minado padrao de distribuigéo da riqueza, que no evoluiria no sentido desejado se apenas funcionassem as forgas do mercado. E. ha valores de seguranca que solicitam a intervenco estatal na economia (assim nasceu 0 ‘evelfare staten) e, até, meros critérios de eficdcia do sistema (pense-se na intervengéo conjuntural anticiclica), Claro que a substituigio do mercado pelo processo politico facilmente atinge limites para além dos quais os beneficios da intervenc&o se tormam negativos, designadamente pela perda de eficécia do sistema produtivo. A par- tir de certo ponto (ja atingido em muitos paises do Ocidente), a propria socia- lizago da repartigo suscita problemas semelhantes aos correntes nos socialismos de preducdo. Por outro lado, o funcionamento das forcas do mer- cado permite, de um modo geral, mais autonomia as pessoas (aos consumidores 7 NAGAO E DEFESA € a0 produtores) do que a intervengao administrativa —embora em certas circunstincias © mercado seja também susceptivel, se nfo for corrigido, de climinar, na pratica, a liberdade ¢ a autonomia dos mais pobres. A politica cabe a tiltima palavra. A uma tipica situagao politica limite —A guerra—se deve, alids, o grande impulso para o intervencionismo estatal nas economias ocidentais. Ou seja, a pressio da ameaga externa obrigou 0 Estado a langar-se em novas tarefas econémicas — correspondendo, portanto, a uma necessidade politica. Mas esse tipo de necessidades pde-se em muitos outros dominios; e s6 em termos politicos podem ser satisfatoriamente equacionados os problemas dai decorrentes. Janeiro de 1982 Francisco Sarsfield Cabral 78 A ADESAO AS COMUNIDADES EUROPEIAS E O SISTEMA ECONOMICO PORTUGUES Paulo de Pitta e Cunha A ADESAO AS COMUNIDADES EUROPEIAS E 0 SISTEMA ECONOMICO PORTUGUES (*) 1. Os regimes econmicos do nosso tempo reconduzem-se basicamente a uma dicotomia de modelos, combinando determinado tipo de organizagao econémica com uma férmula definida de regime de propriedade dos meios de produgao. ‘Com especial referencia & 4rea europeia, depara-se-nos clara demarcac&o entre 0 modelo ocidental (dispersio de decisies econémicas por via dos mecanismos do mercado, combinada com um esquema pluralista de apro- priagdo) © 0 modelo de leste (direcgdo central da economia, conjugada com uma solugdo de colectivizagdo dos instrumentos produtivos). B teoricamente possivel um terceiro modelo, em que a descentralizacéo de decisbes coexiste com a apropriagdo colectiva (para ele apontando a cia de pafses que procuram eximir-se a0 monolitismo do tipo ico de economia). Mas parece tratar-se de f6rmula infixa, tendendo fa resvalar para um dos tipos basicos de sistema econdmico, ¢ em todo © caso ainda nao suficientemente experimentada, 2. Os modelos em referencia tendem, na actualidade, a articular-se com determinadcs tipos de regime politico: o sistema de decisies descen- tralizadas com apropriagdo privada aparece ligado & democracia represen- tativa e pluralista, aberta a pratica da alternancia; o sistema de direcedo central € apropriago colectiva a solugGes politicas autoritérias ¢ monopar- tidéias. Até A data, todas as democracias politicas (na acepcio ocidental) acolhem o modelo de economia de decisdes descentralizadas, sujeita as regras do mercado e provida de amplo sector privado dos meios de produgio (na formula concreta da economia mista, que integra graus ¢ proporgdes diversas de participagio do Estado no processo econémico). ) Tépicos part uma intervengio no I Congresso das Actividades Econémica. 81 NAGAO E DEFESA 3. No caso portugués, observou-se na evoluedo posterior a Abril de 1974 um desfasamento entre a definigo do regime politico eo delineamento do modelo eccnémico: a primeira fazendo-se com relativa clareza nos moldes das concepgdes democriticas ocidentais, 0 segundo processando- se num quadro extremamente confuso, para 0 qual concorreu contraste, observado na actual Constituico, entre a visio ocidental das liberdades politicas, dos direitos individuais e da regra de alterndncia e uma concepgao de dominante marxista da organizagio econémica do Pais. Para além do texto da Lei fundamental, porém, ¢ inegével que, ultra. passada uma fase inicial de desorientacdo, se foram acentuando na estrutura econémico-social portuguesa os tracos de identificagao ao modelo ocidental das economias mistas—o que revela que a opeio pelo sistema de mercado se encontra efectivamente realizada, sem embargo de nio se ter operado ainda 0 ajustamento da caracterizago constitucional da organizagio da economia as condigGes da realidade socioeconémica portuguesa. ‘A clarificaséo das regras de funcionamento da economia em termos da opgao pelo sistema descentralizado ¢ aberto ao influxo da iniciativa individual, conjugando-se com a adopcio da forma de governo correspon- dente & concer¢do democrética ocidental, traduziu uma escolha definida de modelo de sociedade. 4, Esse modelo ¢ aquele que, em variantes diversas, se encontra realizado nos paises membros das Comunidades Europeias; esta subjacente a0 processo de integragdo econémica que a todos envolve, ¢ impregna os proprios meca- nismos basicos dessse processo. Por isso, a decisio de aderir & C-E.E. pressupde a formulagéo de uma opcao pelo modelo ocidental de sistema econdmico. 5. A assuncdo de qualidade de membro do Mercado Comum néo corresponde a uma mera escolha de novo contexto de relagdes comerciais externas. Representa a integracio numa Comunidade que se rege pela logica da economia de mercado com decisdes descentralizadas, oposta a inerente a0 padréo da apropriagdo colectiva com atribui¢éo autoritéria dos recursos; que, embora em sectores limitados, assume poderes econémicos transferidos a2 A _ADESAO AS COMUNIDADES EUROPEIAS E 0 SISTEMA ECONOMICO PORTUGUES dos Estados membros, regendo-se por uma ordem juridica propria, que prevalece sobre as ordens juridicas nacionais; que, por tltimo, se reconduz fa certa concepgio politica associada & promocéo da unido europeia. 6. Embora na CEE. a integragdo no se processe unicamente por via do alargamento do mercado (integragao liberal), porquanto também nela se abre via i harmonizacdo ¢ porventura centralizagio de politicas, © certo é que estas formulas aparentemente opostas tendem a convergir ‘numa mesma especifica referéncia de sistema econ6mico. A primeira porque, em si mesma, corresponde & implantago do esquema descentralizado em quadro plurinacional; a segunda porque traduz a deliberada transposi¢ao para plano dos poderes e responsabilidades comunitarias de aspectos de regulagio inerentes a0 modelo de economia de decisdes descentralizadas, Praticado nos diferentes paises envolvidos no proceso de integraca A adesio & CELE. supe, assim, a abstengo de prossecugtio de modelos de organizacio econémica dissociados daquele modelo comum (em cujo Ambito hé lugar, no entanto, para variantes significativas, a traduzir, Pe. diferentes concepgdes quanto ao grau de penetraséo do Estado no Proceso produtivo). H& que admitit, porém, que a inserg%o da economia portuguesa no contexto europeu ¢ mundial e o elevado coeficiente de dependéncia externa jé de si representavam, independentemente das exigéncias especificas da adesio, uma forte condicionante da liberdade de escolha do sistema econémico do Pais, 7. A clarificecio das regras de funcionamento da economia, que se foi operando em termos de aproximaco gradual ao modelo europeu ocidental a partir da suspensio do processo de alargamento do ambito do sector puiblico, carece ainda de ser completada, designadamente pela criagio das condigées necessérias a dinamizago da fun¢do empresarial privada. E € a este respeito que, para além do ja referido ajustamento do texto constitucional & realidade socioeconémica, se tem preconizado a redugio do campo de reserva piblica de actividade econémica (matéria em que até a0 presente se revelaram infrutiferos os esforgos governamentais de revisio do regime legal em vigor); a restauragio dos mercados financeiros em con- jugagio com a disponibilidade de novos instrumentos de captagao e canali- zagio das poupangas; a insuflagio de preocupacdes de maior flexibilidade 3 NAGAO E DBFESA no quadro da politica de emprego; a revisio do sistema fiscal em termos de conveniente consideragdo dos objectivos de eficiéncia; e, em geral, a instauragio de um clima de estabilidade ¢ de confianga capaz de suscitar © reviver do investimento produtivo ¢ a recuperacdo dos mecanismos do mercado. ‘A forma como o sector privado da economia soube reagir aos trauma- tismos do periodo de 1974 a 1976 revela uma capacidade de resisténcia a condicionalismos adversos, que autoriza certo optimismo quanto & possi- bilidade de assuneio em pleno da fungao empresarial no contexto econémico portugués dos anos 80—com o que tal assungio implica em termos de activagio do espitito de empresa, de capacidade de inovar, de transformar, de contrariar o estado de inércia socioeconémica, tantas vezes associado, a justo titulo, ao excesso de burocracia centralizadora. 8. As dificuldades que no plano interno se deparam ao completamento do modelo, desde as que se ligam ao peso da cristalizacdo de situagdes adqui- ridas &s que se relacionam com a necessidade de efectivar, concomitantemente, as reformas scciais indispensiveis & consecugo de um aprecidvel grau de ‘consenso democritico em torno do esquema de organizago econémica roposto, acrescem, na ordem internacional, os problemas que se ligam & crise das economias mistas contempordneas e ao adensamento das incertezas sobre a evolucio econémica futura. E, como se isto nao bastasse, suscita-se, no ambito das Comunidades Europeias, um debate em que avulta a divergéncia de posigées nacionais € So postos em causa alguns dos fundamentos da prépria construgdo comu- nitéria, 9. Da verificago da crise das economias mistas néo h& que extrair consequéncias em termos de superioridade das economias centralizadas, j& que estas se defrontam, por seu turno, com os gravissimos problemas da patente ineficiéncia da «economia administrada» e da inibigdo quanto a intro- dugio de reformas dos respectivos mecanismos. Aquela crise, de que sio reflexos determinadas formas de contestagéo mais ou menos andrquica que irrompem do tecido social, certos comporta- ‘mentos de descrenga quanto validade das instituig6es da democracia repre- sentativa, esté associada A tomada de consciéncia dos limites do «welfare state», que, traduzindo a convicydo da acsio benéfica do Estado e da a4 A ADESAO AS COMUNIDADES EUROPEIAS E 0 SISTEMA ECONOMICO PORTUGUES capacidade dos governos para abarcar os problemas cada vez mais complexos que thes eram postos, constituiu 0 quadro do desenvolvimento das economias evoluidas do Ocidente no pés-guerra, até ao inicio da década de 70. A concepcdo do Estado protector, em que os valores da promogio do crescimento econémico ¢ da riqueza material se associavam & prossecucéo de politicas de regulago da procura de inspiragio keynesiana, ¢ eram temperados pela consideracdo de preocupacies de igualdade social no quadro de sociedades meritocraticas, tende actualmente a contrapor-se a crescente frustragio perante a nova dependéncia suscitada em relagdo aos extensos aparelhos burocréticos criados pelo «welfare state», ¢ a diivida fundamental acerca da «governabilidaden das sociedades modernas. 10. A crise das economias mistas insere-se em todo um contexto complexo de interacgio de factores, desde a desregulago do sistema monetério interna- ional as alteragées na oferta mundial de produtos energéticos, as implicagGes em matéria de custos da protecgdio do ambiente, ao peso de sectores piblicos hipertrofiados, tudo se conjugando na configuracio de novo quadro de funcionamento das economias industrializadas, assinalado pela acuidade dos problemas do desemprego, da inflacio, da incerteza quanto ao futuro. E a necessidade de abrandar o ritmo do crescimento opde-se a forga das arising expectations», das expectativas de satisfacdo crescente e, a curto prazo, de miltiplas necessidades individuais e sociais. 11. A exaustio da concepgio do «welfare state» Ievou & afirmagio de novas correntes, que a nivel do pensamento econémico constituem focos de contestagio do «fundo comum keynesiano». E a mensagem de inspiragio neomarxista, que constitui a oposicio A esquerda A concepgio dominante, € contrabalancada com surpreendente vigor, a direita, pela visio de uma sociedade libertada dos excessos ¢ das serviddes do «welfare state», em que se combate o «big government», se preconiza a introducdo de incentivos a iniciativa individual, ¢ se estrutura uma estratégia de politica econémica baseada na perspectiva «supply-side, envolvendo redugées com alcance estrutural nas taxas dos impostos ¢ um paralelo abandar do crescimento das despesas puiblicas. Desentha-se, assim, @ influéncia de um refluxo no sentido de uma reafirmacéo mais nitida do modelo de decisdes descentralizadas, refluxo que 85 NAGAO E DEFESA no deixaré de se reflectir, em maior ou menor escala, nas con funcionamento das economias europeias nas proximas décadas. Mas no é ainda clara a resposta as incertezas que deixaram para tris © «paraiso dos anos 60»; € 0 quadro confuso em que se debate a crise do Estado-providéncia assume, por vezes, aspectos de certa incongruéncia quando observado de um pais onde, ndo se tendo atingido os niveis de bem-estar das modernas democracias industriais, a necessidade de reduzir as expectativas ao novo referencial de um crescimento «sbbrio» depara com naturais resisténcias, e constitui um foco de instabilidade social. 12, Embora, neste circunstancialismo, esteja longe de se justificar a aplicagio a Portugal do receituério das experiéncias correspondentes & pura reacgdo de catiz conservador ao «welfare state» (experiéncias que estlo, alids, longe de demonstrar a sua eficécia), o certo 6 que algo se poder apro- veitar da voga internacional no sentido da limitagio do alastramento do sector piblico © de acentuacdo das caracteristicas liberais do modelo eco- némico. Por outro lado, das novas contestagdes da concepsio do Estado protector pode extrair-se um itil corolério em termos de afirmac&o da iniciativa © da responsabilidade individuais, dentro da linha de que, como jé alguém afrmou, «a merket society is at least as important as a market economy». Do torvelinho das correntes de pensamento € de acco que assinala a crise das economias mistas € possivel, alids, que venha a resultar uma nova visio do crescimento que, preservando os fundamentos das sociedades abertas e democraticas, da igualdade de oportunidades, da cooperacio interna- cional, que importa conservar das concepgses do «welfare state», procure harmonizar 0 objective da consecusio de niveis aceitaveis de prosperidade econémica com a incluso de novos horizontes de aspiragées a uma melhor qualidade de vida ¢ a maior liberdade © responsabilizacio no quadro da sociedade civil. 13. A evolugdo das Comunidades Europeias apresenta-se, por seu turno, envolvida em toda uma teia de incertezas, levando a uma situago de impasse 0 processo de integracdo econémica da Europa Ocidental. Para além das habituais ambivaléncias da construgéo europeia (0 contraste entre o gigantismo econdmico ¢ a debilidede da influéncia potitica no plano mundial, a falta de um consenso sobre o sentido da unio europeia), tendem 86 A ADESAO AS COMUNIDADES EUROPEIAS E 0 SISTEMA ECONOMICO PORTUGUES a acentuar-se tracos de imperfeigo no campo do funcionamento da unio aduaneira (fazendo-se reviver formulas de proteccionismo selectivo), ressaltam as incongruéncias da politica agricola comum (na origem da n&o resolvida disputa sobre as contribuigdes para o esquema agro-financeiro da Comu- nidade), 0 Sistema monetério europeu nfo parece constituir a via da convergéncia de politicas econémicas. # contra este pano de fundo movente que se projecta a candidatura portuguesa, E se cumenta o grau da incerteza quanto as efectivas implicagées da acessio qualidade de pafs membro, desenha-se, por outro lado, perspectiva de maior flexibilidade na determinag&o das condigées da adesio, popodendo, porventura, deixar de se mostrar intocavel a regra da aceitago integral do «acquis communautaire». Paulo de Pitta e Cunha 87 POTENCIALIDADES DA INDUSTRIA NACIONAL. PERANTE A DEFESA NACIONAL Pedro Ferraz da Costa POTENCIALIDADES DA INDUSTRIA NACIONAL PERANTE A DEFESA NACIONAL (+) 1 —QUESTOES PREVIAS Como o tema que me foi distribuido ¢ muito vasto, julgo que néo posso deixar de levantar algumas questées prévias antes de o tentar abordar: 1) O desconhecimento pela Indistria da politica de Defesa Nacional € da composig&o das verbas orgamentais que Ihe sio consignadas; 2) A separagdo existente entre o Orgamento Geral do Estado ¢ 0 Orgamento das Forgas Armadas, separacio que & partida —e pelo menos no plano teérico—dificulta a optimizagao dos escassos recursos financeiros nacionais ¢ a interacgio positiva dos orga- mentos militares e civis na prossecugdo dos objectives do desen- volvimento econémico; 3) O erescerte endividamento externo que, no limite, pode, levando & perda prética da independéncia nacional, esvaziar de sentido comtetido 0 conccito de defesa nacional, mas que também, jé na fase actual, limita fortemente a capacidade de decisio do Pais, nas suas componentes militar ¢ civil, sobre mltiplos aspectos da sua politica industrial e do equipamento militar. A primeira questio—a do desconhecimento muito generalizado sobre a politica de defesa nacional e do seu potencial como factor de desen- volvimento industrial —espero que este seminério possa dar alguma res- posta para o futuro, nomeadamente através do tema «Perspectivas para a indistria nacional resultantes das necessidades da defesa e da NATO». Julgo que, se esta questo que levantei € verdadeira, estamos entio, no fundo, a discutir as possibilidades da Indistria face a um objectivo—a Defesa () Comunicasto apresentada pelo stnhor Pedro Ferraz da Costa no Seminério realizado NAGAO E DEFESA Nacional —que é qualitativa ¢ quantitativamente pouco conhecido ¢ nio pode haver didlogo util sem conhecimento dos objectivos reciprocos. ‘Quanto a segunda —a da separagio entre o orcamento civil € 0 orga~ ‘mento militar ¢ dos inconvenientes que dai resultam—, parece-me ébvio que uma articulagao éptima de recursos escassos ndo se pode obter com o sactificio do principio da unidade orgamental. Articular as necessidades ilitares com a politica cientifica, a investigacio e 0 desenvolvimento € a politica industrial exige clareza de objectivos ¢ assungdo de riscos finan- iros que, separadamente, nem as Forgas Armadas nem a Indéstria podem assumir no quadro de limitagdes orgamentais—canhées ou manteiga — que caracteriza 0 Mundo Ocidental. Em relagio & terceira—o endividamento externo ¢ as limitagdes que introduz nas nossas capacidades de decisio—, proponho-me deter um pouco mais por me parecer questo de importancia fundamental. Tao fundamental que, a ndo ser resolvida, nfo s6 néo haverd Indds- tria como também deixar de existir Pais, mesmo que a coberto de uma integracdo qualquer essa triste realidade nfo seja evidente ao comum dos mortais. © nivel actual da nossa divida externa e interna, as previsbes de endividamento anual a médio prazo que se avangam, a frequéncia com que se comeca a ouvir falar de divida oculta e o facto de no vivermos sentados em cima de jazidas de ouro nem termos acesso privilegiado a matérias-primas valiosas, justificam quer a minha apreensio quer o tempo que agora gostaria de dedicar a analisar o ciclo de declinio em que 0 Pais tem vivido ma sequéncia de, através de um colete de forgas consti- tucional, se ter vedado aos empresérios uma actuago positiva para o progresso do Pais. E isso néo foi feito s6 a0 nivel constitucional e da legislagdo ordiraria. A prética do dia-adia na gestio do Estado como agente econémico de peso crescentemente negativo completou o cenétio, Proponho-me por isso analisar 0 ciclo de declinio em que o entrou em 1974 para depois apresentar propostas de rotura do circulo vicioso de molée a restabelecer um nivel de investimento que, sendo com- ativel com as condicionantes externas, permita, através da modernizaco do nosso equipamento produtivo, enfrentar com sucesso os problemas da economia mundial que entre nds tendem a ser minimizados ¢ reduzir o nosso endividamento externo, isto é, garantir um sustentéculo econémico & independéncia nacional. v2 POTENCIALIDADES DA INDUSTRIA NACIONAL PERANTE A DEFESA NACIONAL —0 CICLO DO DECLINIO ‘A maioria dos. portugueses j4 esté hoje consciente de que 0 nosso inyestimento © 0 nosso crescimento real é minimo comparado com o dos nnossos principais competidores. A que ponto ele € mfnimo e de como nos vamos deixando atrasar j& € menos generalizadamente reconhecido. Do mesmo modo enquanto a maioria de nés conhece os factores que afec~ tam 0 investimento, s6 poucos compreendem como a interacglio desses factores produz um ciclo auto-sustentado de declinio na nossa economi 2.1 —Baixa produtividade — Saldrios crescentes — Lucros decrescentes Tratando-se ce um ciclo auto-sustentado podemos analisé-lo comegando por qualquer parte. Partamos de baixa produtividade, salérios mais elevados ¢ lucros decrescentes. Produtividades mais elevadas, isto 6, maior valor acrescentado na producto por trabalhador—séo a nica fonte de nova riqueza para o Pais © consequeniemente de niveis de vida mais elevados para todos. Em termos irternacionais a nossa produtividade industrial é, em médi baixa e a respectiva taxa de crescimento também o €. E por isso que 08 nossos niveis de vida no se aproximam dos dos nossos futuros par- ceiros da CEE. & também por isso que dificilmente competimos nos mer- cados internacionais, de modo a através dum aumento mais répido das nossas exportagdes travar a progressiva erosio da nossa balanga de paga- mentos @ medida que a factura das importagdes cresce por razbes que no controlamos, que dificilmente poderemos controlar em relago a mui- tas mercadorias ¢ que nunca controlaremos em relagdo a outras, nomea- damente, o petréleo. © valor acrescentado da industria € canalizado para salérios ¢ encargos sociais, por um lado, © para lucros, por outro. Os lucros so fonte prin- cipal dos recursos necessérios para substituir fébricas ¢ equipamentos gastos ou obsoletos para criar capacidade adicional que sustente o cres- cimento futuro © 0 emprego. Como, a nivel nacional, aceitémos aumentos salariais que ultrapassam © erescimento da nossa produtividade, os nossos lucros tendem a tornar-se ainda menores. Como consequéncia a rendibilidade do nosso sector indus- 93 NAGAO E DEFESA trial tem declinado e € j4 inferior ao custo da obtengaio de novos capi- tais, A baixa da rendibilidade originada por um crescimento menor da produtividade do que 0 dos salérios é ainda extremamente agravada pelo facto de a politica de pregos nfo permitir sequer a repercussio da tota- lidade dos salérios nos custos e de na sua dptica de «Profit Controller» ‘© Ministério da Agricultura, Comércio ¢ Pescas ter até agora fixado taxas de remuneracéo aos capitais proprios que, embora confidenciais, sabemos evarem a taxa de rendibilidade, apés impostos, a niveis inferiores aos dos depésitos a prazo e, por maioria de razio, aos dos empréstimos a qualquer prazo. 2.2 — Baixo investimento— Reduzido crescimento industrial — Empre- gos perdidos e austncia de criagio de novos postos de trabalho Lucros—ou 0 excesso do valor acrescentado que resta apés 0 paga- mento dos encargos salariais—é uma das duas principais origens de fun- dos para financiar o investimento, sendo a outra o investimento de par- ticulares que querem pér as suas poupancas a trabalhar. Tanto estas fontes internas ¢ externas de investimento foram reduzidas por salérios crescentes. A indistria € hoje menos possivel recorrer a reservas criadas para financiar investimentos. As concluses do I Congresso das Actividades Econdmicas jé referiam que de 1972 até 1976 a taxa de autofinancia- mento tinha baixado de 60% para 10%. E porque o investimento na indistria nao oferece perspectivas atraentes, os particulares inevitavelmente procuram oportunidades de investimento noutros sectores, nomeadamente, nos especulativos e/ou nos clandestinos. A Industria é, portanto, confron- tada com aumentar o seu endividamento—e a que custo—ou nio rea- lizar o investimento. N&o 6 nés em Portugal j4 dedicamos menor parcela dos recursos nacionais ao investimento no geral ¢ ao da indistria em particular como aumentimos esse investimento no passado recente a uma taxa mais lenta. A consequéncia é que o aumento da produ¢do na industria transformadora € na construcdo civil nem sequer ¢ suficiente para reempregar a mio-de- -obra que poderiamos libertar através do nosso penoso progresso na me- Ihoria da produtividade. Nao 6 assim que podemos evitar a perda de empregos na indistria ou reduzir a situacdo de subemprego existente. 94 POTENCIALIDADES DA INDUSTRIA NACIONAL PERANTE A DEFESA NACIONAL E se nao for na indistria onde asseguramos emprego a nossa populagéo? Nao continuaré a ser na fungio publica com certeza. 2.3—Saldrios e subsidios crescentes no sector ptiblico—Crescimento slobal reduzido e impostos mais elevados— Défices do sector ptiblico (OGE) e da balanga de pagamentos A medida que as oportunidades de emprego, € até postos de trabalho existentes, vio cesaparecendo na inddstria, alguma mao-de-obra é absor- vida no sector publico, ¢ outra engrossa simplesmente 0 ntimero dos desempregados. Estimulado por encargos salariais crescentes no sector piblico admi- nistrativo e, também, no sector piblico empresarial e subsidios de desem- rego crescentes, 0 crescimento das despesas ptiblicas ultrapassou a taxa baixa—de crescimento da nossa economia. © efeito ¢, portanto, cumultativo a0 minar 0 nosso potencial de cres- cimento utilizando a nossa forga de trabalho nos sectores da economia ‘onde existe 0 mais baixo potencial—se é que existe algum— de aumen- tar a respectiva produtividade. 2.4— Inflagéo e subida das taxas de juro— Baixo investimento Para alimentar a voragem crescente das despesas piblicas, os impostos tiveram de ser aumentados, Mas 0 reduzido potencial de crescimento da economia, 0 ndo-crescimento do emprego e a evasio fiscal tornaram impos- sivel aos sucessivos governos juntar fundos suficientes através da tributa- so, Aliés, s6 ¢ fundo pacifico dos portugueses permite explicar como ainda ndo assistimos a uma revolta dos contribuintes, a exemplo do que causas semelhantes originaram nos E.U. A. simbolizada na aprovagio da famosa proposicio 13, na California, e realizada em numerosos estados através de alterayées constitucionais limitativas da autonomia governamen- tal em matéria de impostos. ‘Nao conseguindo através da tributagdo fazer face a0 crescimento das despesas, 0s governos foram levados a levar os défices para além dos limites da prudéncia e a balanca de pagamentos sofreu as inevitéveis con- sequen 95 NAGAO E DEFESA Para financiar um défice, um governo pode pedir empréstimos exter- nos ou interns. Se 0 défice € demasiado grande ter de recorrer a ‘ambos para reduzir parte do excesso de procura da economia—e foi isso que se fez. A custa dos particulares ¢ do sector privado, sugando 0 aforro quer duns quer doutros antes de cle se constituir, aforro esse que poderia ser canalizado para novos investimentos industriais. Com efeito, os governos ‘competem com as empresas por fundos que eram necessérios & industria para investir e canalizé-los para consumo. Esta luta pelos recursos financeiros disponiveis—os do pasado jé no existiam—levou a subida das taxas de juro obrigando as empresas portuguesas a pagar mais por dinheiro novo do que as suas congéneres no estrangeiro, Para atrair do exterior os fundos necessérios, nomeada- mente, os dos emigrantes, 0s governos precisam de oferecer condigdes ‘mais vantajosas que as que existem noutros paises, © isso significa ofere- cer as mesmas taxas aos aforradores internos, subindo simultaneamente as taxas de juro para a indistria. ‘A. indéstria portuguesa esté por isso hoje altamente dependente de capitais alheios. Lucros decrescentes ¢ custos financeiros crescentes tor- nam-lhe jé dificil cobrir os juros anuais, quanto mais financiar investi- mento adicional. Os défices governamentais alimentaram, também, a inflagdo desen- corajando ainds mais 0 investimento industrial, obrigando as empresas a canalizar para capital circulante recursos que, de outro modo, poderiam ter estado disponiveis para investimentos em capacidade produtiva adicio- nal. Incertezas acerca da inflagio futura escurecem ainda mais o planea- mento dos investimentos e verifica-se que a indistria ensaia a retoma do inyestimento quando acredita na capacidade governamental de a controlar. 25—Perda de empregos— Deterioracio das relagées laborais — Baixa produtividade ‘A perda de oportunidades de emprego deteriora o ambiente de tra- batho nas empresas em relacio a aumentos de produtividade. De facto, quando acréscimos de produtividade significam perdas de postos de trabalho—como € caso sempre que nfo haja aumentos mais do que proporcionais da produgdo—, os trabalhadores compreensivelmente resistem ao esforgo de racionalizacdo por questdes de principio, 96 POTENCIALIDADES DA INDUSTRIA NACIONAL PERANTE A DEFESA NACIONAL 2.6—Impostos mais elevados — Salérios crescentes A medida que os impostos sobre salérios ¢ ordenados sobem e a infla- Go erosiona 0 respectivo poder de compra, desencadeia-se a tentativa de reservar esse poder de compra pela reivindicagio de salérios mais eleva- dos. Os salérios crescendo, entio, mais depressa do que a produtividade, reforgam novamente 0 ciclo do declinio. 3—COMO QUEBRAR O CICLO? Este modelo simplificado dos factores econémicos que afectam 0 cres- cimento ¢ investimento sugere algumas conclusdes importantes sobre como, quando ¢ onde romper este circulo infernal e sobre quem deve tomar as iniciativas. Mas primeiro deve ser evidente que a nica maneira de escapar, de forma duravel, a este ciclo é aumentar sensivelmente 0 nosso crescimento ‘econémico— codigo para resolver os maiores problemas nacionais. Uma rodutividade global mais elevada, maior produgao, mais emprego, salérios mais elevados ¢ melhores niveis de vida a longo prazo estio intimamente ligados & regeneragio do sector privado da indistria portuguesa © Governo e os sindicatos deverdo reconhecer explicitamente que a forga propulsora do crescimento econémico de que tanto precisamos ve dum sector industrial vasto, altamente produtivo e financeiramente vidvel, € que uma taxa de investimento mais répida neste sector devia ser a prio. ridade das prioridades. © primeiro passo nessa direc¢io — os estudos sectoriais para identificar as reas fortes da nossa indtistria—-j& foi dado. Mas por muito sedutor que seja 0 conceito de jogar nos pontos for- tes a nossa situagdo € demasiado grave e composta de tantos elementos, como espero ter conseguido demonstrar, para ser susceptivel de remédio simples como o investimento sectorial selective. Seré preciso uma multiplicidade de acgdes a tomar por todos os interessados — accionistas, empresérios, gestores, lideres sindicais, trabalhadores responsiveis da administragéo pablica—para transformar o actual clima econémico num clima que permita e, se possivel, encorage o investimento confiante em todo 0 sector privado. Embora a mudanga de clima seja encorajante, hé 97 NACAO E DEFESA ainda pouca consciéncia, como disse antes, da complexidade do problema e da natureza do que tem de ser feito. Espero ter tornado evidentes quatro pontos essenci 1.* NAO HA UMA CHAVE UNICA PARA AUMENTAR © INVES- TIMENTO NO SECTOR PRIVADO DA INDUSTRIA —Muitos factores influenciam a possibilidade € 0 desejo de investir. B fatil atacé-los isoladamente—€ necessério um programa global ¢ coe- rente; 2.2 A DIMENSAO DOS PROBLEMAS & TAL QUE POUCO SE OBTERA POR AJUSTAMENTOS MARGINAIS—Séo necessé- rias mudangas profundas. Nos titimos anos a economia desequi- librou-se gravemente; 32 A ESCALA DE TEMPO DA TAREFA & MUITO MAIOR DO QUE OS POLITICOS SE ATREVEM A SUGERIR — A tendéncia de anos no pode ser invertida num ano ou dois. Travado o de- clinio, um programa a longo prazo de crescimento gradual seré necessério para construir base firme do nosso futuro progresso, ‘Aces precipitadas poderiam comprometé-lo; 42 E finalmente TEREMOS DE ABANDONAR DE UMA VEZ POR TODAS A IDEIA DE QUE, SE CONSEGUIRMOS ULTRAPAS- SAR AS DIFICULDADES PRESENTES, PODEMOS REGRES- SAR CALMAMENTE A UM CLIMA DE IRRESPONSABILI- DADE. Regras fundamentais, tais como articular de modo firme o crescimento dos salérios com 0 crescimento real da produtividade, devem tornar-se caracteristicas permanentes da nossa vida econémica. Se s6 recorrermos a elas em situaydo de crise, a crise tornar-se-4 permanente, 3.1—Como quebrar entao o ciclo? ‘A nica maneira € através duma taxa de crescimento muito mais répida no sector industrial —_medidas de acco que néo se dirjjam a este objectivo central fracassam a longo prazo ¢ todas as que so normalmente indicadas tém ée ter esta como condigéo prévia para serem eficazes. 98 FOTENCIALIDADES DA INDUSTRIA NACIONAL PLRANTE A DEFESA NACIONAL Sendo vejames: @) REDUZIR © SUBEMPREGO—Néo resulta enquanto novos em- pregos nfo forem criados em sectores com grande potencial de erescimento rapido. Novos empregos s6 serio criados se o eres- cimento industrial igualar ou ultrapassar 0 crescimento da produ- tividade; b) MELHORAR A RENDIBILIDADE— A rendibilidade de novos investimentos nfo pode ser muito melhorada sem que o cresci- mento da produtividade seja superior ao dos salérios, como vimos atrés. Mas a produtividade no cresce mais depressa sem o crescimento mais répido da producdo e este exige mais investimento. Logo, © investimento e 0 crescimento ¢ que abrem 0 caminho a uma maior rendibilidade; ©) CORTAR AS DESPESAS PUBLICAS E REDUZIR O CUSTO DO DINHEIRO—O custo do dinheiro néo pode ser reduzido enguanto 0 Governo nfio conseguir viver sem défices macigos que © obrigam a pedir empréstimos externos € internos pesados. Cortar servigos piblicos ndo reduzira significativamente os nossos déficites enquanto os respectivos funciondtios no puderem ser reabsorvidos pela industria. Sairemos dos défices aumentando a nossa producio industrial a taxa suficiente para cobrir as nossas reais necessidades em servigos piblicos 0 que, alids, com o nfvel actual das despesas nem sequer tem acontecido, € suficiente, tam- bém, para reduzir a divida que acumuldmos por incapacidade de adequar as promessas féceis as realidades. INVESTHR PARA CRESCER E ASSIM A PRE-CONDIGAO E. NAO A CONSEQUENCIA, DA MELHORIA DO CUSTO DO DINHEIRO. 3.2—O consenso necessirio Um crescimento mais rapido s6 atingido se todos os interesses envolvidos o aceitarem como objectivo comum a obter por um esforco participado dirigido a todos os aspectos do problema, v9 NAGAO E DEFESA Quem faz o qué? —Os empresérios e os gestores terdo de investir para um crescimento futuro, apostando que os resultados acabem por justificar os riscos; Os sindicatos ¢ os trabalhadores terdio de estar preparados para apoiar programas de melhoria da produtividade e ndo forgar aumen- tos de salérios que absorvam completamente os ganhos de pro- Gutividade ou que até os excedam. A maior rendibilidade daf resultante para as empresas pode ser usada para financiar o rein- vestimento necessirio a criacdo de mais empregos; —0 Governo terd de estar preparado para conter as despesas piblicas dentro de limites compativeis com a nossa taxa de crescimento industrial e que permite uma redugéo do servigo da divida. A eli- minagio gradual de défices correntes liberta fundos, ajudando a baixa da taxa de juro. A baixa da taxa juro estimularé investimento adicional, que pelo crescimento induzido tornara mais fécil supor- tar saudavelmente um nivel realista de servigos puiblicos. 3.3—As regras do jogo Assumit os comportamentos acima descritos pe em causa a totalidade das concepgées aue sobre a economia e 0 papel dos agentes econémicos foram instiladas pelos arautos do marxismo € ndo € possivel sem simulta~ neamente desmascarar os efeitos perversos do crescimento da burocracia estatal Pressupée alteragdes de fundo no quadro institucional regulador da actividade ecorémica ¢ exige o estabelecimento de principios basilares de referéncia, estaveis a longo prazo—as regras do jogo admitidas por todos. Estas regras necessitam de ser definidas sem ambiguidades num pe- queno nimero de pontos fundamentais: @) Aceitagio por todos os agentes econémicos e pelas forsas demo- eréticas de que 0 funcionamento da nossa economia deve ser pau- tado pelas leis do mercado concorrencial. Isto conduziré & remoco dos entraves ao anormal funcionamento das empresas © de acesso a sectores até hoje fechados, ¢ ao fun- cionamento correcto do mercado. E preciso recolocar a funao das empresas e dos empresdrios na perspectiva de uma economia em crescimento, aberta a0 exterior 100 POTENCIALIDADES DA INDUSTRIA NACIONAL PERANTE A DEFESA NACIONAL © potenciar-thes a sua capacidade de actualizar 0 progresso técnico ¢ de criar riqueza a partir dos recursos internos disponiveis; 5) Cabe ao Governo assegurar 0 funcionamento correcto do mercado, no sendo ele proprio, na obsessio da regulamentaglo, a distorcé-lo. Cabe-the, também, responsabilizar todos os agentes econ6micos pelo seu funcionamento ¢ assegurar uma igualdade de oportunidades. ‘A submisio de largo conjunto de actividades hoje subtrafdas ao mercado, por razdes histéricas ¢ ideol6gicas, as regras de gestio concorrencial deve ser determinadamente encarada, em funcéo do rumo exterior da economia ¢ das exigéncias do interesse piblico. ( ideal de verdade dos precos ¢ custos deve ser prosseguido © nlio deve ser escamoteado ou destrufdo pela interven do Estado. E preciso delimitar bem as excepcdes a esta regra de jogo fun- damental. 3.4—Consenso sociolaboral ‘A aceitagio e compreensio a todos os niveis das regras do jogo implica que os parceiros sociais, € particularmente os sindicatos, adquiram uma maior maturidade e tornem socialmente aceitével o ajustamento per- manente das estruturas produtivas ¢ a dindmica de especializagio que é preciso acelerar para sobreviver em mercado aberto. As transformagées a operar na economia ¢ na sociedade portuguesa sto feitas para os homens quer eles sejam produtores, trabalhadores ou simples consumidores. S6 os marxistas pretendem negar esta evidéncia. Os fenémenos de instabilidade ¢ de bloqueamento laboral afectam a capacidade de adaptacio da economia ¢ a sua competividade. E € com responsabilidade, solidariedade ¢ estabilidade social que se cobtém um clima favorvel ao investimento. ‘Manter esse clima a longo prazo e as condig6es objectivas de investir implica uma segunda condicio. A relagio entre os salarios ¢ a produtividade € 0 factor critico que influencia a longo prazo a rendibilidade subjacente ao investimento. #, por- tanto, forgoso que as discussoes das cldusulas salariais dos nossos contratos colectivos deixem de ser pretexto fértil para, a coberto duma lei da greve demagégica que incompreensivelmente néo é alterada, desencadear con- flitos. geradores de custos sociais ¢ que néio contribuem para resolver 0 ror NAGAO E_DEFESA problema fundamental —fixar salérios justos que, permitindo o investi- mento € 0 crescimento, melhorem de forma estavel € progressiva o nivel de vida de todos. ‘Todos 0s parceiros sociais, ¢ as associagées empresariais em particular, terfo de fazer esforgos sérios para melhorar a informago econémica disponivel sobre esta matérie, ndo esquecendo que os aumentos dos salé- rios reais devem seguir, ¢ ndo antecipar, 05 acréscimos da produtividade. 3.5—Canalizagdo de fundos para o investimento No essencial, precisamos ou de poupar mais, tanto ao nivel das empre- sas.como ao nivel dos particulares, ou de canalizar em maior propor¢ao as nossas poupancas para investimento industrial... ou de ambas as coisas. Se esquemas de participacio nos lucros, prémios de produtividade, mais alargada participacio no capital das empresas ¢ incentivos fiscais as com- pras de titulos so ou nfo esquemas que ajudam a orientar o valor acres- centado de salérios e consumo para aforro e investimento, & questi que deixo a reflexdo de todos. 3.6—Melhoria da gestdo ¢ reorientagio da estratégia empresarial 4) Melhorar 0 processo de decisio sobre investimentos ¢ reorientar a cestratégia empresarial so condicGes importantes. De facto, os sinais que os agentes econémicos recebem de um sis- tema muito distorcido levam-nos a: —Depositar dinheiro a prazo; —Evitar investir em sectores intensivos em mao-de-obra — tanto mais quanto € certo que taxas de juros negativas com que vivemos durante algum tempo nao ajudam, ao contririo do que se diz, € beneficiam, em termos relativos, o investimento em sectores capital-intensivo e contribuem para mascarar a inviabitidade de muitas empresas. No fundo so subsfdios & ine- ficdcia; — Adquirir activos em boas condigdes em vez de investir em nova capacidade; sz POTENCIALIDADES DA INDUSTRIA NACIONAL PERANTE A DEFESA NACIONAL Estas estratégias podem beneficiar a curto prazo os accionistas —sio a defesa legitima e até saudavel perante o sistema em que temos vivido, mas néo contribuem para o crescimento do Pais como um todo. b) Medir a eficécia produtiva em termos reais, em quantidades fisicas © no em valores, € necessirio se se quiser considerar o cresci- mento real como prioridade fundamental a nfvel de empresa; ©) Assumir parte da responsabilidade de criar novos postos de traba- Tho, postes de trabalho realmente produtivos, deve ser objectivo das empresas — particularmente das maiores— para criar oportuni- dades de emprego necessérias a poder libertar trabalhadores do subemprego, por acréscimo de produtividade; 4) Tirar pleno partido dos incentivos ao investimento; 2) Nao sobrevalorizar a inflagao. Se na anilise de projectos de investimento reflectirmos 0 impacte da inflagéo mos custos, nas necessidades de capital e de custos de reposicio adicionais e formos indevidamente pessimistas quanto aos rendimentos € margens futuras, nenhum projecto é viével—é preciso avaliar cuidadosamente as premissas usadas na andlise; f) Finalmente melhorar o plancamento dos investimentos. Todos os «booms» econémicos param por estrangulamentos criticos de capacidade. Os investimentos necessérios A sua ultrapassagem sio feitos tardia- mente e ndo em antecipagéo da procura —desperdigamos poten- cialidades ocultas de produtividade. 4—0 DESAFIO QUE SE NOS COLOCA & ENORME ‘A integragdo de Portugal na CEE e, independentemente da adesio, a necessidade de sermos mais competitivos obrigam-nos a considerar a tarefa de relancer o investimento como urgente € inadiével. Descrevi as consequéncias do perfodo pés-revolucionério na nossa economia ¢ apontei para a necessidade imperiosa de assegurar uma taxa de crescimento mais répida na inddstria. Esse objectivo implica esforcos conjugados ¢ uma modificagéo pro- funda dos comportamentos das forgas politicas ¢ dos agentes econémicos. 103 NAGAO E DEFESA Se 0 no fizermos continuaremos a assistir a um aumento asfixiante da burocracia estatal, fomentada pela conciliago com um sistema econd- mico confuso ¢ que j& demonstrou a saciedade que nem promove 0 pro- gresso material nem estimula a responsabilizago dos portugueses no seu destino colectivo. ‘Néo promove nem promoverd o progresso material — as solugSes buro- craticas conduzem sempre a uma menos ¢ficaz utilizaglo dos recursos da sociedade deviéo & auséncia da concorréncia que forga os empresérios a baixar os seus custos de produgio, devido & I6gica burocrética que conduz as repartigdes a produzir em excesso os servigos que so teoricamente supostos assegurar e devido & auséncia de forma, conhecida no mundo, de controlar eficazmente a adequacdo entre os interesses reais da colec- tividade a forma como o responsivel pelos servigos piiblicos concebe, paternalisticamente, esses interesses. ‘As dificuldades © 0s riscos que sio parte importante deste desafio no sero ultrapassados se os portuguests nfo forem motivados por um projecto politico claramente assumido pelo Governo ¢ motivador de todas as iniciativas individuais ‘Também nio serdo ultrapassados se ndo aproveitarmos todas as possi- bilidades do mercado que nos sao oferecidas. A defesa nacional, ¢ a sua componente de seguranca ¢ defesa civil so para_nés muito importantes. Analisei to detalhadamente as condigdes de relancamento do inves- timento—e espero nfo ter sido demasiado longo— porque me parece que no € possivel construir esquemas de colaboragéo sem partir dum conhecimento realista das bases de que se arranca, mas também porque quereria justificar, por antecipagdo, eventuais criticas a falta de iniciativa ‘empresarial ou pouco interesse em investir. Suponho que esto explicadas. No me compete, neste preciso momento, tecer consideragdes acerca de uma estratégia da Defesa Nacional adequada para nosso pais, mas ‘tdo-somente referir-me & perspectiva da indistria nacional face a uma indispensével colaboragio entre as Forcas Armadas Portuguesas © a Indiistria, Todavia, solicito a vossa compreensio ¢ paciéncia para tentar, em torno de alguns conceitos relacionados com a Defesa Nacional, emitir alguns considerandos ¢ juizos prévios aos que, de um modo mais apro- fundado pretendo, embora brevemente, cingir-me. 104 POTENCIALIDADES DA INDUSTRIA NACIONAL PERANTE A DEFESA NACIONAL A Revolugdo Industrial, pelas suas miltiplas consequéncias econémicas € sociais, desde logo, ¢ politicas e estratégicas, posteriormente, veio intro-

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