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Gosto do Contetido ou Gosto da Forma?? The Taste of Content or the Taste of Form? Igor Alexandre Capelatto (UNICAMP)? Resumo: O problema do gosto ¢ a enigmitica relacdo kantiana de que ele envoive conhecimento e prazer, simaultaneamente. Hd algo estranho que nos conduz a prezar or este ou aquele signe. Algumas vezes é estética, outras veces, essa atracdo eivolve cognicdo. Neste panorama surge a ideia de belo e de estética, E mina analogia entre 0 que é agradével e 0 que é repulsive, surgem os conceitos de gost. Este estudo pretende investigar a nogéo de gosto a partir dos conceitos freudiano, de que 0 prazer é realizacéo do desejo e, flusseriano, de que o ser Inumano vé-se obrigado a criar simbolos e a ordend-las em eddigos para transpor 0 abismo que ‘nd enrre ele e o mundo (e assim compreender-nogdes tais quais conceito de arte) Sendo gestos, movimentos pelos quats se manifesta roma maneira de dominar 0 ‘mundo, compatibiliza-se partir dos gestos de conhecimento e de prazer para ‘analisar @ relagdo entre cultura e gosto, e como 1m produto gana status de obra de arte, com fundamento na concepcdo cultural do gosto. Patavras-Chave: 1. Gosto 2. Arte 3. Cultura 4. Flusser 5. Freud Abstract: The problem of taste is an enigmatic Kantian relation of which it engages Inowledge and pleasure simultaneously. There is something that has led us 10 cherish this or that sign. Sometimes it is aesthetic, sometimes it involves cognition In this panorama comes an idea of beauty and aesthetics. And in an analogy between what is pleasant and what is repulsive, the concepts of taste arise. This study intends to investigate the idea of thinking of Freudian, that pleasure is the Julfillment of desire and Flusser’ thinks, about the idea that human beings need to ‘create symbols and order them i codes to bridge the abyss benween him and the world (and assimilating notions such as the concept of art). Being gestures, to satigfy the needs af a way to dominate the world, fo be compatible ofthe gestures of pleasure with the evaluation and the cultural culture of the taste. Keywords: 1. Taste 2. Art 3. Culture 4, Finsser 5. Freud * Resumo submetido a0 Grupo de Trabalho GTS - Comunicacao e Experiéncia Estética do 3°, CONEC: ‘Congresso Nacional de Estudos Comuicacionais da PUC Minas em Pocos de Caldas, 30 e 31 de ontubro de 2 Lider Coordenador e Pesquisador do Grupo Linguagem ¢ Cinema: 0 Gesto em Foco, pelo IEL, UNICAMP: Doutor pelo IA, Departamento de Multimeios, Unicamp. E-mail: capuccinoprod@gmail.com. 1. Realizagiio do Desejo Se considerarmos 0 desejo nao como uma satisfagao de uma necessidade, mas como simbélico de uma falta (LACAN, 1995, p.9), om seja, uma representagio de uma relagio de transferéncia, em que o sujeito projeta no objeto uma caréncia, de modo que esse objeto passa a simbolizar no mais a sua fimgao a qual foi originalmente designado, entretanto uma fungio que 0 sujeito a determina (representacao afetiva), ¢ possivel conceber como os objetos se tormam pessoais, no sentido subjetivo, realizando analogias, conexdes com nossas emogdes. ‘Segundo Flusser (2007, p.130), o ser humano para se interagir e integrar-se ao mundo, precisa criar simbolos e ordena-los, on seja, dar sentido ao mundo, mas nao é apenas um sentido légico, funcional, mas um sentido simbélico. O ursinho de pelicia que representa a mie para uma crianga; na auséncia da mie, ele figura a mae, mas ndo vai superar a falta da mnie; ele nao substitui a mie, ainda que a simbolize. Hé uma uecessidade de dar sentido aos objetos, as coisas, aos acontecimentos, para suprir a angiistia, de modo, que o sujeito define como sentido aquilo que Ihe melhor conforta (seja através da religidio: ‘Deus quis assim’, seja pela viucia. ‘a uatweca € assin’, ele.), uv eutaulu, esse seulidu udu suze apenas desta uecessidade de suprir uma falta, resolver uma angustia, como uma resposta quase que instintiva, de sobrevivéncia, conquanto ele comega a nascer na formagao cultural do sujeito Aprendemos a dar sentido as coisas para determinar um mundo (uma ‘realidade’) que convenha a nossa condigio social (por exemplo, ‘Deus quis assim’, como uma resposta a uma condigao social cristi a qual o sujeito pertence). Se o desejo é coustrugio por meio de eédigos culturais apreendidos (e como o mundo tende a abrir diferentes perspectivas ao sujeito, é preciso formular uma associagaio de signos para dar um sentido légico ao pensamento), ¢ preciso compreender que desejo & conhecimento no podem se desassociar. Nos, seres humanos, aprendemos a desejar (LACAN, 1995, p.9); nascemos coutinuos, ligados a um outro ser, ¢ assim sendo, temos esse sentimento de falta que surge quando o cordio umbilical é rompido. Essa descontiauidade (BATAILLE, 1987, p. 78) nos faz perceber nosso limite, nosso contomo, nosso ser-em-si todavia, essa descontinuidade também nos faz perceber a caréncia. Na caréncia, criamos uma aversio a tudo que consideramos incompleto: ¢ assim, definimos 0 que € ‘correto’ e 0 que é ‘deficiente’ (completude e incompletude) m4 [Em nossa origem, ha passagens do continuo ao descontinuo ott do descontino 20 continuo. Somos seres descontimuos, individuos que mortem isoladamente numa aventura ininteligivel, mas temos a nostalgia da contimuidade perdida (...) Ao ‘mesmo tempo que temos o desejo angustiado da duracao desse perecimento. temos a obscsséo de uma continuidade primeira que nos une geralmente a0. scr. (BATAILLE, 1987, pI) © prazer surge nesse panorama, come uma satisfagao 4 uma vontade, a vontade de completar o que esta incompleto, dar contir jilade ao descontinno; essa emogao que traz. um, bem-estar (alegria, jibilo, regozijo), quando conseguimos ordenar os e6digos, dar sentido a0 mundo e superar os abismos que nos distanciam das incompletudes entre ser € objeto, entre sujeito ¢ mundo (FLUSSER, 2007, p.130), ¢ que coloca as coisas em um estigio de identificagio, representaco, na qual elas passem a ‘serem nossas” - e entio, compreende-se a necessidade humana de dar nome as coisas (LACAN, 1985, p.215), 0 que as fazem representar 0 sujeito, dar sentido ao mundo, situando no tempo e espaco: construindo o sentido da historia (de uma sociedade e pessoal). A memoria € apontada por Pollak (1992, p. 204) se destaca como um fator cextremamente importante do sentimento de continuidade e de coeréncia de una pessoa/erupo em Sua reconsirugéo de st. |...] A Jembranga € um modo de constitu ‘eo sujeite.” (RABELLO, 2007, p.184) Mediante o prazer, comegamos a fazer uma triagem do nnundo, das coisas, dos signos Como é da natureza do ser humano, € do universo ao qual pertencemos, a necessidade de oposigées para definir (comparat) as coisas: escuro-claro, alto-baixo, quente-frio, etc., nossas escolhas sobre as coisas passam a serem definidas nesses contrastes. O desejo € progenitor das contradigdes: desejar algo para suprir a falta é uma relagao de oposigao entre o pertencer € o1nio pertencer, entre o preenchimento e o vizio, entre continuo e descontinuo. E sendo, da natureza humana, essa preciso em ter as coisas para si, em dominar o mundo e preencher 0 vazio, coerentemente, & prazeroso aquilo que preenche, que dé continnidade, e angustiante aquilo que causa falta Para explicar as escolhas humanas, como resposta ao prazer, no somente no campo da satisfagao (na qual entra a sedugao), a sociedade elaborou 0 conceito de gosto. Do latim “gustus?”, que significa, no sentido amplo, ‘tomar o interesse por’, gosto é o termo que designamos para explicar 0 que nos agrada e 0 que nos repugna, Todavia, se gosto ¢ associagiio entre prazer e conhecimento, gosto também pode ser apreendido (um gosto in: https:/swurw priberam p/dpo/gosto - acesso em 27/08/2018, 5 adquirido). Na formulagao do que Lacan (1985) chama de realizagao do desejo: o satisfazer- se, observa-se 0 quio intensa é a fungio do conhecimento e do aprendizado. Passamos a gostar das coisas (adquitir gosto por) quando descobrimos sua necessidade, sua importancia Entio © ‘eu como determinado alimento por necessidade’, € ‘en fago isso por que sou ‘obrigado” tomam-se 0 ‘eu no sabia que era gostoso esse alimento’, e o ‘agora eu fago porque quero’. Quando Flusser (2007) coloca que passamos a dominar 0 mundo para dar sentido a nossa existéncia, ele discursa sobre a ideia de que 0 sujeito modela 0 gosto a partir de como ele foi educado a ver e pensar 0 mundo — podemos associar a esse proceso a meméria afetiva, que é um elemento de extrema importincia na formulagio do gosto. A meméria afetiva ¢ uma combinagdo de registros no inconsciente de nossas vivéncias sensoriais e nossa imaginagio. Ela afeta esiados de conseiéneia ‘passados’, pelos meios sensoriais (cheiro, sabor, textura, etc.) resgatando signos do nosso inconsciente ¢ trazendo-os a0 plano consciente — por exemplo, ‘se isso me lembra meu pai on minha mae, de modo positivo, entao isso é bom’. Associamos entio, a nossa histéria a historia das coisas ¢ desta torma, transpomos as coisas, nossas memorias afetivas. Detinmmos simbolicamente sabores, cheiros, texturas etc., quando falamos, por exemplo, ‘esse sorvete tem gosto de praia’, nao que ele seja de gua do mar (e ‘ndo o é°), mas por nos lembrar de uma infaineia na praia Nesse contexto de definir 0 gosto, ¢ pertinente o fato de que construimos 0 gosto, de acordo com aquilo que nos vai suprir nossa falta, mediante a realizacdio de nosso desejo. E, por assim, quando observamos alguma coisa, somos condicionados a procurar algo nesta coisa que nos afeta, nos atinge, que faga sentido para nés, ¢ a partir deste signo que nos punge, que definimos se gostamos ou nao da coisa: se atinge de maneira positiva (niio apenas uma sensagao ¢ alegria, mas como sensagao de preenchimento — as vezes pode haver um, signo na coisa que nos traga a tristeza, mas que faz com que a coisa simbolize a outra coisa perdida ¢ portanto preencha), passamos a gostar da coisa, se nos atinge de maneira negativa, criamos aversio a coisa (ou apenas nos tomamos indiferente a ela) [..] gosto ¢ um outro saber, que 1ito pode dar azo de seu objeto, mas que goza dele; como uma forma especial de saber que goza do objeto belo ¢ como uma forma especial de prazer que julga a beleza; como um lugar privilegiado no qual emerge a fratura do objeto do canhecimento em verdade e beleza, em conhecimento e 2070. (OLIVEIRA, apud AGAMBEN, 2005, p. 82) 726 2. O Desejo Coletivo Somos moldados diante da cultura, por Zatores sociais, politicos ¢ educacionais. Nossa historia infere na formagao da cultura, agregando sintomas a favor de um interesse coletivo: séio os modos, os costumes, as etiquetas, as regras, a lei. Nesse interesse, que € tanto subjetivo quanto instintivo (a natureza do ser humano exige que existam alguns regras para sobrevivéncia), o gosto € modulado a favor da convenigncia. Surge o que Lipovetsky (1989) chama de moda: ferramenta de modelar e autenticar um modo de ser. Mas a moda nfo é sé 0 contemporaneo (e passageiro, reflexo de tendéncias e mndangas), mas também ha uma moda que permeia por um longo tempo (que se estabelece e cunha um legado). A moda é essa ferramenta que julga a beleza, pois transfooma socialmente um prazer particular, em um prazer coletivo: e passamos a gostar das mesmas coisas (0 desejo coletivo) Neste cumho coletive a arte se crava como objeto determinado por um gosto social. O interesse de um grupo dominante determina 0 que é arte (assim como 0 que é moda, uma vez. que moda pode ser considerada como uma verteute da arte). Na Idade Média por exemplo, duaute u Reuascimeutu © Baiucu, a Tgigja (Catélica Apostélica Romana) detenminou o que era arte (padres estéticos e regras de ‘produgio’); uo séeulo XIX, os mecenas tinham forte influéucia sobre os padrdes artisticos, quais artistas e movimentos entrariam para a sociedade. HE uma linha ténue entre o gosto subjetivo eo interesse social, politico e econdmico. que nos aproxima das coisas, e nos faz interessar por elas; ¢ algo critico, quando se tem em jogo, dois fatores conflitantes, que podem caminhar de méos dadas, mas que atritam em certas condigdes: 0 conhecimento (¢ ai entra a historia social) e a estética. A atrago estética aniquila 0 conhecimento? Como definir 0 belo, enquanto estética, nessa condigao pura de atragio imagética? © chamado gosto pessoal ¢ definido por um desejo particular do sujeito associado a ‘uma atragdo sensorial (também particular). No entanto, aprendemos a compreender as coisas, por meio de cédigos que apreendemos por meio da cultura (educagio, sociedade, ete.); sendo assim, 0 gosto pessoal sofre influéncia do desejo coletivo: a sociedade define os padrdes de beleza, da estética, conforme interesse politice, social, mas também por meio de crengas que se modificam com a cit cia: houve uma época que era ser gordo era padrio de beleza (pois associava-se a gordura a uma boa saiide), hoje temos o caminho contririo (0 magro € belo, pois é sinénimo de saudével). E, no meio destas crengas, afloram os extremos (exageros). rr [0 que facultamos como fundamento de beleza, que nos aproxima do belo ‘gozamos no belo é] “o puro remeter de uma coisa a outra coisa; por outras palavras, ‘9 seu caréter significante, independentemente de qualquer significado concreta” (AGAMBEN, 1992, p. 146) Aarte é conduzida, assim, do mesmo modo, ao extremo: quando una determinada obra se torna mais importante que um conjunto de cutras obras. Buscamos, culturalmente, associar esse destaque a uma outra situagao histérica, social, a qualidade (peculiaridade) do artista. Ha uma necessidade humana, para dominar o belo, de Ihe conferir conteiido, como meio de pertencer o belo ha nossa histéria (ou de justificar o belo), no permitindo que o belo seja apenas subjetivo e sensorial. © comportamento em relagdo ao belo como tal, diz Kant, é ofnve favor: pprecisamos liberar 0 que vem ao encontro como tal no que ele é, deixar e permitir~ The alcangar © que pertence a ele mesmo e © que ele pode trazer para nds. (BERLINK, 2007, sin) Para distinguir se algo ¢ belo ou nfo, referimos a representagao nao através do entendimento ao objecto [Objekt] com vista ao conhecimento, mas mediante a ‘maginagao ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer, O juizo de gosto ‘do é, pois, nenbum juizo de conhecimento, por consegwinte, nao ¢ l6gico mas satético, polo quo 2c entsnde aguilo cujo findamcuto de determinate mito pods ocr senao subjectivo [nicht anders als subjektiv]. Toda a referéncia (Beziehung] das representacoes, mesino a das seusacOes [Empfindungen], pode, porém, ser objectiva (cla significa nesse caso o teal de uma tepresentagao empirica); s6 nao pode sé-lo a referencia ao sentimento de prazer ¢ desprazer, mediante 0 qual nao € designado absolutamente nada no objecto [Objekt], mas no qual o sujeito sente-se a si proprio [sich selbst fuhlt] do mod> como ¢ afectado [affiziet wird] pela representacao. (DOS SANTOS, 2010, p.43-44) Para Agamben (OLIVEIRA, apud AGAMBEN, 2005, p. 82), “o gosto é uma faculdade a partir da qual proferimos juizos estéticos sobre a obra de arte”. Ao definir 0 belo estético, definimos a forma da obra, ¢ acabamos moléando a sociedade de consumo da obra, assim sendo, moldando a moda e os modos de pensar e agir (como exemplo, temos a arte dada* que fez.o mundo enxergar as coisas como outras coisas, ressignificando os objetos, e © nome das coisas, pelo qual a sociedade passou a apropriar-se de objetos do cotidiano como objetos de decoragao, ressignificando o belo, de maneira que o funcional passa a dar vez ao estético). Gosto é a faculdade de ajuizamento de um objeto ou de um modo de representagao ‘que se da por meio de um deleite ou de um desprazer, desprovido de todo interesse, ‘O objeto de tal deleite chasra-se belo. (KANT. apud BERLINK. 2007. s/n) “Dada, movimento criado por Arp, Ball, Duchamp, Ray entre outros artistas, que durou de 1916 a 1919, e tinha como critica a nomatizacio das coisas, na arte, no mmdo, no qual © processo criativo se deixava fhuir pelo aleatério, pelo acaso, e pela associacao casual das coisas. 728 3. Ordenaciio do Desejo “Forma e contetido sao visios em sua inseparabilidade: o contetido nasce como tal no préprio ato em que nasce a forma, ¢ a forma nao € mais que a expressio acabada do conteido [..] “a iuseparabilidade da forma e contetido ¢ afirmada do ponto de vista do conteiido: fazer arte significa ‘format’ conteddos espiritais, dar uma ‘configuragio 4 espirtualicade” (PAREYSON, 1997, p. 55) Gesto é © movimento no qual se articula uma liberdade, afim de se revelar ou de se velar para o outro (FLUSSER, 2014, p.17). Segundo Flusser (ibid..), gestos so movimentos pelos quais se manifesta uma maneira de estar no mundo, Os gestos de conhecimento informam, numa perspectiva cultural como se comporta o sujeito diante dos cédigos e historia que formulam 0 gosto. Diante de das coisas, somos determinados a vé-la como signo que traz certa significagao, ¢ a agir em prol deuma resultante, que munca é estética, por mais, que 0 que nos atinja primeiramente seja o belo estético, mas conceitual: somos educados a conferir sentido para as coisas. gesto traz esse ritual, observar a coisa, compreender a coisa, definir a coisa (seu contomo, sia descontinnidade em relagao as demais coisas), dar nome a coisa, ¢ dar uma fungo logica a coisa (o que é € para que serve a coisa). Buscamos as informagdes que aprendemos na nossa vivéncia, com a sociedade e as instituigées e realizamos este gesto conclusivo de significar as coisas, Diante de uma obra de arte, somos designados a significa-Ia. Conferimos a ela uma importincia no mundo. E temos essa necessidade de responder o porqué dela ser importante Muitas vezes, esse ¢ 0 nosso gesto primordial, pois perante a formagao cultural, parece que o contetido é mais importante que a forma. Nés somos condicionados a criar essa separagio, contetido ¢ forma, nao hé uma palavra sequer que explique © conjunto entre conteiido e forma, talvez nos estudos somaticos, cuja palavra soma designa “unidade corpo-mente e se apoia nas relagdes em rede que esto presentes no fincionamento do corpo, entre seus diversos sistemas e do corpo com o ambiente” (NEVES e MILLER, 2013, resumo®), mas para as demais coisas ‘ndo compo humano’, nao temos uma designagao precisa dessa composigao corpo-mente que pode ser compreendida como forma-contetido. 5 Conceito de Soma. In: http://www:cocen.unicamp betevistadigital/index php/lume/article/viewFile/258/242 ~ acesso em 08/05/2017 9 ‘Se conhecimento supera a forma, também 0 oposto ¢ recorrente (depende do ‘ponto de vista’): pois é inegavel, que a forma define muito de sua fungao e vice-versa, tal qual a fonma sendo uma fungao percebida sensorialmente, é 0 primeiro contato do sujeito com a coisa, do sujeito com a obra de arte, e consequentemente, ¢ ponto de start de qualquer observagio e definigao. De certa maneira, forma ¢ contetido tem de estar conectados e fluindo ao mesmo tempo, pois é pelo contefido que se encontram os elementos percepto-cognitivos que nos ‘permitem os sentidos captarem a forma (estética, contomo), ¢ & a forma que modela a fungao do contetido, Um simples exemplo que nos revela essa relagio: uma caneca - é a sua forma que determina que ela serve como recipiente para se colocar liquidos, ao mesmo tempo que aprendemos que para reservar um liquido precisamos de um recipiente, portanto olhamos a caneca e percebemos uela a capacidade de colocar liquido; a caneca foi criada para tal fungio, uma coisa funcional, mas transformamos a caneca em objeto de arte quando aderimos a ela signos outros (uma pintura, um design que remete a um conceito artistico, uma fotografia, uma iconografia, etc.) e ela se torna uma coisa estética (um objeto de decoragao, ‘uma obra de arte, um souvenir). Talvez nessa inseparabilidade, nao seja possivel definir gosto do conteiido e gosto da forma, teoricamente estes dois gostos estio entrelagados® Hii arte quando exprimi apresenta-se como um fazer e o fazer é a0 mesino ‘Tempo, um exprimir, quando a formacao de um contetido tem lugar como formacao de uma matéria e a formacdo de uma matéria tem o sentido da formagao de um contetido, [...] formalismo ¢ conteudismo sao defeitos simetricos ¢ complementares, [J para abandonar un € necessério eliminar ambos, porque cles esto juntos € act juntos. PAREYSON, 1997, p. 62-9) A forma se toma 0 contettdo € 0 conteiido a forma. A forma é simbolizagio do contetido. Referencial. A coisa passa a representar no mais a sua fungZo para qual foi designada originalmente, mas a representar aquilo que se tomou mediante a transferéncia. E, quando o desejo se organiza que compreendemos 0 “todo” da coisa: 0 que deseja-se & que a coisa resolva una angiistia, que simbolize aquilo que o sujeito perdeu, preencha a sua falta, e colocamos sobre a forma a responsabilidade dos sentidos: deve ter a cor, a textura, 0 cheiro, a forma, o sabor, daquilo que estow projetando nela, E ao se organizar, a coisa se toma o proprio gesto do desejo. O ursinho de pelitcia fala, abraga, beija, cuida, protege © Contenido ¢ Forma: “[..] a unio de forma e contetide como uma jungio: a forma se acrescenta ao contetido, vvindo-Ihe de fora e, permanecendo-Ihe exterior”, um “omamento que o embeleza” (PAREYSON, 1997. p. 56) 730 4. A Retérica do Desejo © desejo, desviado de seus fins primrios, obscuros para o sujeito, em diresto a objetos secundarios que aparecem para a consciéneia como objetos possiveis cujo alcance depende pelo menos em parte de nossa agao voluntirio ¢ conscieut. (KEHL, 1990, p. 368) ‘Temos que diferenciar a alegria da fome do prazer da saciedade da experiencia da privagto, j4 gue esta nunca é vivida sem imensa angistia, a propria angistia de Inorte: a divida sobre as possibilidades de sobrevivencia do stjeito. A alegrin de desejar depende de uma certa dose de confianca no real, uma certa quantidade de experiéncias de gratificagio que permitam alguma espécie de prazer ¢ de ‘confirmagao, de aplacamento, pelo menos temporario do desejo. (KHEL, 1990, 7366). Quando 0 sujeito observa uma obra de arte e cria uma afinidade com ela, 0 desejo é transferido a obra tomando-se referencial de analogia simbélica do proprio desejo. Trés instincias sao observadas: a. quando o sujeite encontra na forma, algo que Ihe atinge pelos sentidos € provoca: 0 sorriso da Monalisa (Da Vinci), a ferida pelas flechas em Sao Sebastido (Rubens); b. quando 0 sujeito encontra algo no contetido (na narrativa, no contexto) da obra de arte com o qual ele se identifica: a desconstrugio da linguagem em Flores do Mal (Baudelaive) ow eur Foute (Duchamp), e. yuendo o sujeito Wausfere para a obra un relagao com um fato extemo a obra (Monalisa nao representa Da Vinci ou uma obra Renascentista, mas passa a representar 0 dia que 0 sujeito esteve em Paris, a lua de mel, o nascimento de um filho, a celebragio de um aniversirio, a morte de um ente querido) Aobra de arte, quando esti na condigdo de representagao do desejo do sujeito, adquire uma nova narrativa, que nao mais é a de seu fator histérico, social, educacional, nao é mais a narrativa do autor da obra, mas é a narrativa do sujeito que a observa. O gesto de observar é 0 gesto de perceber e dar sentido ao que se observa, ¢ tomar-se parte do que se observa, é destituir da descontinuidade, o hiato que separa sujeito e obra de arte e colocar ambos num, processo de continuidade que nao se define mais onde comega um ¢ termina outro. Ativar a percepgao é interagir com as coisas por meio dos sentidos. Eles causam satisfagio (quase que imediata), ¢ 0 caminho mais direto do regozijo: e que ativa partes do cérebro e das terminagdes nervosas, que nos trazem essa sensagdio de deleite. Sendo satisfagdo sindnimo de gosto, ¢ ao mesmo tempo tendo em sua origem (do latim, satisfactio) o significado de “pagamento de uma divida, reparagao”’, podemos definir "An: http:/origemdapalavra.com.br/ = acesso em 28/0872018, satisfagdo como sendo 0 gesto de retratar um desejo (aprender a gostar ~ gosto adquirido — para compensar uma perda, para contentar a angustia), "Um componente essencial dessa vivéncia de satisfagéo € uma percepgio specifica, cuja imagem maémica fica associada, dat por diante, ao trago mnéinico da excitaggo produzida pela necessidade. Em decoréncia do vinculo assim estabelecido, na proxima vez em que essa necessidade for despertada, surgira de imediato uma mogio psiqnica que procurara recatexizar a imagem mmémica da percepgdo ¢ reevocar a propria percepsao, isto <, restabelecer a situagao de ‘aitsfagio original. Uma nogio desa especie € o que chamamos de desejo (..)" (Freud, 1987, p. $16). Gosto do Contetido ou Gosto da Forma? Essa foi a dubiedade que fomentou essa reflexdo sobre estética ¢ conceito, Partimos de uma divida e, duvidar é fundamental para tal investigagio. A divida & necesséria diz Flusser (2011, p.11), “a diivida é um estado de espirito polivalente. Pode significar o fim de uma fé, 01 pode significar 0 comego de outra”. O que de fato nos atinge quando vemos uma coisa, © que nos faz interagir com uma obra de arte? Quando lidamos com a incerteza (uma vez que 0 conceito de gosto sempre sera subjetivo) sobre o gosto, lidamos com a ideia de que gosto & mutivel, transcende sen signo primirio, construindo novos significados, o simbdlico da coisa atualiza se conforme a historia se atualiza, conforme a cultura se renova. O sujeito passa a apreciar obras de artes que outrora no apreciava, passa a compreender signos que outrora desconhecia, ou deixa de gostar de alguma obra que outrora gostava No campo da estética, o gosto transmuta pela atualizagao e nossos sentidos, é uma fusio entre o biolégico eo aprendizado (aprendemos a conhecer nosso corpo e ele passa a desfrutar mais precisamente dos sentidos de maneira que outrora nao desfrutavamos). No campo do conhecimento, 0 gosto se comporta como uma esponja, absorve as moléculas dos dominios das ciéncias; depois funciona como uma peneira que filtra esses signos (mas nio de ‘uma maneira precisa, pois deixa transpassar do inconsciente, por exemplo, a meméria afetiva) e por fim tenta ordend-los para dar um sentido a coisa observada. Ainda que sendo subjetiva as respostas a essa diivida incipiente, arrisco pois, uma pequena reflexdo: Uma vez que Contetido e Forma caminham juntos, 0 gosto &, por sendo, uma predilegao pelos signos que nos satisfazem nossos desejos 0 desejo de possuir uma grande quantidade de ouro, tanto ouro quanto possivel, foi, é verdade, em grande parte arrefecido por nosso conbecimenta atual dos fatores ddcterminantes da riqueza, as a quimica nao mais encara a transmutagao dos metais, ‘em ouro como impossivel. (FREUD. 1981. s/n). 132 ‘A felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possivel, constitui ‘um problema da economia da libido do individuo, Nao existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo ‘especifico ele pode ser salva. Tados os tipos de diferentes fatores operarao a fim de dirigir sua escolha. E uma questao de quanta satisfaca0 real cle pode esperar obter do mundo extemo, de até onde levado para tomar-se independente dele, e, finalmente de quanta forga sente a sua disposicdo para alterar o mundo, a fim de adapté-lo a seus desejos. (FREUD, 1927-31, p. 47) Perfazendo essa reflexdo, amemato com uma insigne elucidagio realizada por Antonioni no filme Blow up (1967), no qual Bill, 0 artista plistico, diz “they don't mean anything when I do them. Just a mess. Afterwards, I find something to hang on to, like that...”*, ao explicar suas pinturas ao amigo Thomas. FIGURA 1 Frame de Blow up (ANTONIONI, 1967) FONTE ~ BLOW UP, dires4o: Antonioni, M. Reino Unido/Italia/EUA, 1966. DVD (110 mim), color, son. A alegria do desejar deperde de uma certa dose de confianga no real, uma certa quantidade de experiéncias de gratificagao que permita esperar que esse lugar cextemo ao psiquismo para onde se espraia a —fome do nundol seja um lugar de onde pode vir alguma espécie de prazer ¢ alguma espécie de confirmacao. de aplacamento, pelo menos temporitio, de minhas indagagdes. [..] quando a realidade cede a0 acordo que 0 desejo faz com suas exigéncias, que a fome do mundo ¢ senfida como antzcipagio feliz, afirmago do sujeito que ao dizer —eu querol esti também dizendo —eu possol ou, pelo menos, —eu acho que possol. (KEHL, 1990, p. 366-7) 8 “Elas nao significam nada quando eu fago-as. Apenas uma confusio. Depois, eu encontro algo para agarrar como aquilo...” (tradnga0 nossa) 733 Referéncias AGAMBEN, G Gosto. Sio Paulo: Auténtica, 2017 AGAMBEN, G Gosto. Enciclopédia Einandi. Vol. 25. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1992. BATAILLE, G. 0 erotismo, Porto Alegre: L&PM, Porto Alegre, 1987. 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