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RUPTURAS IRREMEDIAVEIS: SOBRE TRISTAO E ISOLDA ROBERT CASTEL “Senhores, vos agrada ouvir um belo conto de amor e de morte? E 0 de Tristéo e Isolda, a rainha. Escutai, como em grande alegria e grande pesar eles se amaram, disso morreram em um mesmo dia, ele por ela, ela por ele”.! tanto quanto posstvel, evitar interpretar uma vez mais esse mito cujo fascinio acompanha ao longo dos séculos a nostalgia dos amores perdidos, para poder 1é-lo, ou relé-lo, como uma histéria de vida. O desenrolar do romance se deixa, entao, aprender como uma sucesso de acontecimentos que podem em cena igual ntimero de rupturas irreme- didveis em relagdo a uma organizagao da existéncia moldada nas formas dominantes da sociabilidade e governada pelas regras da reprodugao e da troca que comandam 0 comércio social e sexual em uma dada sociedade. Tristdo e Isolda ou o romance da desafiliagao: esse conto nos fala ainda porque cada €poca revive A sua maneira a tragédia de uma mo- dalidade de alianga que ndo se pode cumprir sendo com a morte. Mas essa historia, Tristdo e Isolda a inventaram — ou pelo menos a viveram sob uma * “Le roman de la désaffiliation. A propos de Tristan ct Iseut”. Publicado originalmente na revista Le Débat. Traducio de Carlos Thadeu C. de Oliveira. TSeigneurs, vous plaitil d’entendre un beau conte d’amour et de mort? C'est de Tristan et Iseut, Ia reine. Ecoutez comment & grand’ joie & grand deuil ils s'aimérent, puis en moururent ‘un méme jour, lui par elle, elle par lui". Joseph Bédier, Le roman de Tristan et Iseut (1900), reedigio Paris, U.GE., 10/18, 1981, p.17. 72 WA NOVAK" 43 —98 forma limite que permanece sendo o paradigma de um amor, cujo cardter absoluto se nutre da impossibilidade, no qual se trata de adotar os con- strangimentos do século. A morte de Tristdo e Isolda é, assim, uma morte social: o social que se vinga por ter sido sistematicamente negado e que re- torna sob a forma do poder de aniquilar. O mito de Trist4o e Isolda mergulha nas antigas e profundas lendas célticas. Mas nés dispomos somente de versGes tardias de varios poemas incompletamente conservados dos trovadores franceses e anglo- normandos do século XII, aos quais se juntaram em seguida diversos frag- mentos, até 0 século XVI ?. A matriz do mito, tal como a conhecemos, foi, portanto, elaborada em um contexto de sociedade feudal, entao em seu apogeu, ¢ é 0 equivalente ocidental da poesia dos trovadores de langue d'oc > . Nao € possfvel reconstituir as caracterfsticas primitivas da lenda reinterpretada por um publico nobre no quadro e segundo as convengdes de escrita desse meio especffico’. Mas nao abordarei aqui o problema das fontes nem me entrega- rei a qualquer tentativa de embasamento do texto ou de critica histérica. Tomo por material os acontecimentos que “ocorrem” a Tristao e Isolda e, para arrold-los, me refiro principalmente & reconstitui¢do publicada em 1900 por Joseph Bédier, Le roman de Tristan et Iseut (op. cit.). Esse texto, 2A maior parte dos fragmentos dos poemas franceses foi publicada por F. Michel, Tristan, recueil de ce qui resie des poemes rélatifs d ses aventures (Paris, Techener, 1835-1839). Os dois textos mais importantes, ambos do século XII, sdo trés mil versos do Roman de Tristan, de Béroul, trovador francés, publicados por E. Muret em 1904, e trés mil versos do também Roman de Tristan, de Thomas, trovador anglo-normando, publicados por J. Bédier, em dois volumes, em 1903 e 1904. Finalmente, acaba de ser publicada sob o titulo Tristan et Iseut. Les podmes francais, la Saga norroise (Patis, Livre de Poche, 1989) uma reedigio dos poe- ‘mas franceses acompanhada de sua tradugao e da tradugdo da “Saga norroise” [Saga oriunda do noroeste ou dos normandos ~ N. do T.], a partic da traducao islandesa do século XIII do essencial do romance de Thomas. Essa excelente publicagdo, de responsabilidade de Danie! Lacroix e Philippe Walter, toma doravante facilmente acessivel o essenciat do corpus. 3 Lingua falada antigamente em toda a provincia do Languedoc, que se estendia mais ao Norte € a Oeste da atual regio Languedoc-Roussillon, na fronteira com a Espanha e voltada para o Mediterraneo [N. do T.]. 40 Tristan et Iseut de René Louis (Paris, Livre de Poche, 1972), resume em posficio as con- junturas mais verossimeis que se podem formar sobre 0 quadro arcaico da lenda. E provavel ue a narrativa tenha nascido no Pafs de Gales ou na Escécia e tenka circulado em diversas versdes jé na civilizagdo celta antes de ser retomada pelos trovadores do século XII, que tra- taram dé revesti-la com as cores da cavalacia, RUPTURAS IRREMEDIAVEIS 13 espantoso pela fidelidade de seu estilo ao espfrito da poesia medieval, jun- ta e reagrupa segundo uma ordem cronolégica os principais epis6dios da hist6ria tirados do corpus do século XII. René Louis (Tristan et Iseut, op. cit.) sé entregou recentemente a uma empreitada do mesmo tipo, mas acentuando ainda mais as reminiscéncias arcaicas do poema, enquanto o estilo e a construgdo de Bédier visam a reproduzir a tonalidade propria & elaboracao do século XII. ‘A comparacio dos dois feitos ilustra a coeréncia do corpus fatual constituinte da trama da hist6ria. H4 um grande consenso sobre a existéncia de um certo mimero de momentos chave que estruturam 0 de- senrolar do mito, do nascimento infeliz de Tristéo 4 morte dos amantes. Evidentemente, constatam-se também algumas divergéncias, cujo estudo implicaria uma anélise aprofundada das diferentes versdes dispontveis. Mas essas diferencas se referem principalmente & interpretagdo dessas seqiiéncias. Por exemplo, na maior parte das narrativas, os amantes bebem por engano 0 filtro que estava destinado a selar a unido de Isolda com seu esposo legitimo, o rei Marcos. Mas pode-se também defender uma verso minoritéria segundo a qual Isolda conhecia a natureza do “vinho ervoso” ¢ foi ctimplice de sua serva para seduzir Tristéo (cf. R. Louis, op. cit., posfacio). A diferenga néio é pequena. Ela n&io pée em causa, todavia, 0 “fato” de que o preparado tenha sido bebido em um navio, no momento em que Tristdo levava da Irlanda, Isolda, que havia sido conquistada afim de desposar o rei Marcos. Logo, parece-me legitimo tomar a histéria de Tristéo e Isolda como uma seqiiéncia finita de acontecimentos significativos, fiel, alids, 0 seu carter de “romance”, para me perguntar pela razdo de sua presenga si- multénea em um mesmo conjunto’ . O que tém em comum todos esses “acontecimentos” cuja sucesso conduz progressivamente a encerrar a sorte dos amantes em um destino que condena seu amor & morte? Ao invés de interpret4-los a partir de um quadro de referéncia exterior °, gostaria de mostrar que, no interior do mito, eles trazem & cena, sob a forma de qua- dros parciais, uma mesma situagao de ruptura. Cada vez que Tristdo e Isol- da sdo representados, 0 so para atuar em uma seqiléncia com 0 mesmo 5 Quando existem divergéncias sobre os “dados” bdsicos nas versées conservadas fago-lhes eventualmente mengao 2 medida que concernem minha pr6pria construcSo. 6 Podemos, por exemplo, identificar no filtro um trago cultural arcaico ou uma metéfora para ilustrar a vertigem do desejo, etc, Sem pretender escapar & interpretagao, me aterei a apontar sua fungdo no conjunto do mito, isto & a mostrar em qué ele comunga com todas as outras seqincias da hist6ria para construir esse destino flamejante. 174 LUA NOVA N° 43 — 98, papel, o da anulagdo da sociedade e da histéria. O mito como totalidade significativa é 0 despojamento do conjunto de efeitos dessa anulagdo até seu tiltimo termo: a morte. Minha hipétese é, portanto, a de que a histéria de vida de Tristéo ¢ Isolda apresenta intimeras seqiiéncias de uma mesma experiéncia de desengajamento social que eu chamo a desafiliagao, quer dizer, 0 descolamento de regulagées por meio das quais a vida social se reproduz e se reconduz. Moisés flutuando sobre o Nilo em um cesto de vime e reco- Ihido pela filha do faraé é um desafiliado, assim como Jesus Cristo que ndo era filho de seu pai José. Mas tanto um como outro inventou, a partir desse desvio, um Reino que nao € deste mundo. Situados fora do jogo das transmissGes e sucessdes socialmente reguladas, eles conceberam uma fi- gura totalmente diferente da organizagao dessas trocas, uma maneira com- pletamente nova de representar o parentesco, de cerrar aliangas e habitar 0 mundo ?, Assim € a hist6ria de Tristdo e Isolda: 0 encontro de dois seres totalmente desafiliados cujo fruto é a invengdo de uma forma especifica da relagio entre os sexos, 0 amor trdgico e absoluto. Suas vidas so um per- pétuo desenraizamento de todos os territérios familiares, sociais, geograficos, e essa ruptura sempre reiterada é a condigao de possibilidade para a emergéncia de um novo tipo de alianga entre o masculino e o femi- nino. O cardter absoluto dessa relago se dé pelo fato dela se originar no abandono a todos as pertinéncias e no descolamento de todas as regu- lagdes que tecem, a um dado momento, uma rede definida de constrangi- mentos nos quais se inscreve a unio do homem e da mulher, a aceitagao desse princfpio de realidade, atribuindo a relag&o amorosa sua fungdo so- cial e sua legitimidade moral. Inversamente, um amor como 0 de Tristfo € Isolda, construido sobre essas negagées, n&o pode se realizar sendio na morte, tiltima e Gnica territorializagdo disponfvel. E somente ao final de seu itinerério, quando estardo deitados no mesmo chdo ¢ na mesma paz, 7 Se a desafiliagdo & uma das vias pelas quais 0 novo advém na histéria, suas inovagées nem sempre tém esse cardter de criagdes abaladoras. Refiro-me aqui, sob outro ponto de vista, & questdo do surgimento da face negativa e obscura da desafiliagdo sob a forma dos vagabun- dos errantes ¢ da instalago de uma precariedade coletiva para os sem-status de todos os ti- pos, mas que nao deixam de ser, & sua maneira, o sal da hist6ria. Existem, assim, desafi- liagbes individuais como as de Tristao, dos herdis dos romances picarescos ou dos bastardos de Diderot, e as desafiliagdes coletivas, como a do povo judeu ou do pré-proletariado no inicio do século XIX. Ha também estratégias diferentes, coietivas, de reafiliagdio, Mas isso € uuma outra histéria que ndo mais se relaciona com a histéria de vida mas com a histéria da hist6ria. RUPTURAS IRREMEDIAVEIS 175 que um arbusto estenderé as rafzes em seus corpos e os enlacaré por uma eternidade doravante sem histéria. Seja feito, ento, um comentario “ao que aconteceu” a Tristio e Isolda. Nos esforgaremos ao maximo para reter as interpretagGes externas e para construir uma estrutura de abstragdo do mundo que é, a0 mesmo tempo, a matriz de constituig&o do amor absoluto 8. £ indispens4vel recapitular rapidamente o desenrolar dos princi- pais episédios do romance para apontar a onipresenga desta desterritoriali- zagao dos herdis. Segundo os fragmentos retidos e reorganizados por Joseph Bé- dier, Tristao nasce 6rf'0. Quando vem ao mundo seu pai jé est4 morto, por ato de traigdo de um senhor rival que se apodera de suas terras, e sua mae sucumbe imediatamente batizando-o Tristdéo, porque “também ele veio 2 terra por tristeza”. O 6rfao é recolhido pelo senescal, administrador da casa de seu pai, Rohalt. Entretanto, temendo que ele seja morto pelo usur- pador, o fiel servidor o faz passar por seu pr6prio filho. Tristao é, assim, criado sob um nome falso, mas recebe todavia a educagdo de um nobre de alta linhagem. Adolescente, é capturado por mercadores que o levam para a Noruega. Mas uma tempestade os atinge e os raptores so obrigados a abandoné-lo perto de uma costa. Tristéo desembarca entdo, por acaso, na Cornualha, nas proximidades do castelo do rei Marcos, seu tio, onde se apresenta sob falsa identidade. Ele é, contudo, acolhido com fervor e 0 rei Marcos, seduzido por suas virtudes, passa a am4-lo mais ¢ mais, Entretan- to, trés anos mais tarde, Rohalt, 0 senescal que 0 criou, vem buscé-lo e se faz reconhecer. Tristao volta 4 Bretanha, mata o assassino de seu pai e re- conquista as terras. Mas nao muito depois as abandona ao seu pai adotivo € seus descendentes, retornando & Cornualha aos servigos do rei Marcos. ° 8 Evidentemente, essa leitura nao exclui ovtras, particularmente as psicolégicas ou psica- naliticas. Sabemos, por exemplo, que Jacques Lacan via na literatura erética da Idade Média uma antecipagao do reconhecimento do cardter infinitamente aberto que caracterizaria a es- trutura do desejo inconsciente (cf., por exemplo, Charles Baladier, “Amour et désir: Lacan medievaliste”, Esquisses psychanalytiques, n°5, primavera, 1986). Das interpretagdes desse tipo nada tenho a dizer aqui a ni ser que elas se situa em um outro registro. Essa leitura é também, como veremos, totalmente estranha célebre tese desenvolvida por Denis de Rougemont em L'Amour et l'Occident (Paris, Plon, 1939, reedigio U.G.E., 10/18, 1977), € estranha também & reinterpretagdo wagneriana de Tristan und Isolde. 9 Bédier, op. cit, capitulo I, “Les enfances de Tristan”, 176 LUA NOVA N°43 —98 Acentuando outros elementos do corpus, René Louis d4 uma verso um pouco diferente do nascimento e da infancia de Tristao: ele é concebido antes do casamento de seus pais, sua mde morre ao trazé-lo a luz, mas seu pai € morto apenas quando ele tinha quinze anos. Ele parte voluntariamente para Cornualha para ficar sob a protegao do rei Marcos '2, Mas a mesma estrutura de desafiliagao se manifesta diferentemente nesta segunda versdo: seus proprios pais transgrediram a ordem das aliangas antes de seu nascimento, ele também nasce na infelicidade, torna-se drfao e estrangeiro em suas terras, é criado & margem do quadro familiar, chega igualmente a Cornualha dissimulando sua filiagdo, 6 reconhecido por suas eminentes qualidades mas sob outra identidade, etc. Essa observacao vale para o restante. Seria evidentemente inttil Pprocurar uma “verdadeira” versao da histéria de Tristao ¢ Isolda. Os dife- rentes fragmentos disponfveis articulam os ingredientes, ora idénticos, ora diferentes, mas convergindo em um mesmo vetor organizacional, a saber, a linha de ruptura da desafiliagao. Retomemos pois 0 fio condutor de Joseph Bédier para resumir a seqiiéncia da histéria de vida. Tristdo, tornado um bravo a servico do rei Marcos, mata 0 gigante Morhold, emissério do rei de Irlanda, vindo & Cor- nualha a cada quatro anos para cobrar um tributo devido, na forma de um confisco de jovens homens e mulheres. Ferido no combate, Tristaéo erra durante sete dias e sete noites em uma barca sem remo nem vela |! ¢ as correntes 0 levam em dire¢ao a Irlanda, onde Isolda, filha do rei, trata-o sem saber quem ele 6. Em perigo, pois é o assassino do tio de Isolda, ele foge antes de ser reconhecido e volta 4 Cornualha, onde o rei Marcos quer adoté-lo e legar-Ihe seu reino. Mas ele faz a contraproposta de partir para conquistar Isolda para Marcos. De volta a Irlanda, ele mata um dragdo que aterrorizava a regio € 0 rei € obrigado a conceder-Ihe Isolda. No momento em que ele a levava para que Marcos a esposasse, os dois jovens bebem o filtro. So impulsio- nados um contra 0 outro, de maneira irresist{vel, e consumam 0 ato do amor fora do casamento e antes do matrim6nio de Isolda e Marcos, que 10 R. Louis, op. cit., capitulo I, “Naissance de Tristan” € capitulo II, “Les enfances de Tris- tan”. 11 Joseph Bédier atribui a Tristdo, no momento em que esse ganha o mar, estas palavras que exprimem bem o sentido global de seu destino: “Quero tentar 0 mar aventuroso... Quero que ‘me leve longe, s6. Para que terra? Nio sei, mas Id onde talvez encontrarei quem me cure” (op. cit, p.33). Ele aporta em Irlanda e encontra Isolda que efetivamente 0 cura. Mas seu feri- mento € mais profundo que o golpe da espada envenenada de Morhoid. RUPTURAS IRREMEDIAVEIS 7 tem lugar tdo logo chegam & Cornualha. Comegam ento os amores clan- destinos cujas peripécias nao desornariam um vaudeville burgués. Eles s0 finalmente descobertos, condenados, conseguem escapar e se refugiam dois anos na floresta de Morois. Tentam entdo se separar e voltar a uma vida normal. Isolda retorna para o rei Marcos, seu marido, e Tristo reto- ma suas andangas: 0 Pafs de Gales, a Frisia, a Alemanha, a Espanha, a Bretanha... Ele acumula as proezas, mas sempre & servico de um outro, e nunca se fixa. Esta sempre atormentado pelo desejo de Isolda e ocorrerdo ainda alguns encontros furtivos sob disfarces e nomes tomados de emprés- timo até o epis6dio final: Tristdo ferido de morte manda buscar Isolda que de imediato ganha o mar para encontré-lo. Mas Tristdo, enganado por sua esposa legitima, a segunda Isolda que desposou nesse meio tempo, no sabe da vinda de sua amada e morre acreditando ter sido por ela abandona- do. Isolda desembarca tarde demais e morre de desespero, abragada ao cad4ver de seu amante. Era necessério, sem divida, reiterar os principais episédios da hist6ria de Tristdo e Isolda para trazer & tona a espantosa sucesso de rup- turas que a pontuam: esse amor é construfdo, a cada nova ocasido, sobre uma negacéio ou um vécuo de pertinéncia. Esses acontecimentos nao sio meros acasos da relacdo entre dois amantes que atravessa esses epis6dios € 0s une até a morte. Sao, antes, uma repetigao de descolamentos em relagao a0 princfpio social de realidade. Todos os episédios chave do romance sublinham esta ndo-inscrigdo nas regras da filiagdio ¢ da reprodugao bem como nas relagdes sociais convencionadas entre os sexos. Tristdo esta imediatamente alojado, se podemos dizer, nessa extraterritorialidade, pelo seu nascimento ¢ orfandade, 0 despojamento de seus dominios e a dissi- mulagdo de seu nome. Entretanto, ndo é de modo algum um transgressor da lei social. Ao contrério, € um nobre irrepreensivel cujas proezas fisicas e virtudes morais saturam os valores de exceléncia préprios de sua linha- gem: o contrério de um cavaleio desleal cuja figura assombra toda a lite- ratura de cavalaria e o préprio romance em questo !2. Assim, Tristéo néo é um errante, ele € desviado de sua tra- jet6ria. Nao € um desclassificado, € um desafiliado. Ele conserva todos os 12 Qs quatro “bardes desleais” que cortejam o rei Marcos sentem por Tristio um 6dio mortal € estdo na origem das peripécias perigosas pelas quais Tristdo tem que passar na corte do rei. Assim, no mesmo lugar onde trai 0 rei, enganando-o todos os dias com sua mulher, Tristao representa o paradigma do bravo cavaleiro ao qual se ope a figura negativa dos bardes desieais 178 LUA NOVA N°43 — 98 atributos de sua condigiio mas nao os realiza, sem que possamos dizer que © que estd no princfpio dessa vacuidade seja uma tara pessoal ou uma falta moral. E uma pessoa deslocada, nao desvaliosa, em revés ou fracassada, mas em retirada. A despeito da imoralidade objetiva de sua conduta, sua relagdo com a lei moral e social ndo € de oposigao, nem mesmo de indife- renga, Ele as ultrapassa porque esté fora da realidade regida pelas leis: fora da propriedade, da sucesso, da linhagem, quer dizer, de tudo que preside a0 mesmo tempo a troca de bens e de pessoas. Deixa espalhar-se, por seus caminhos errantes, a forma vazia da realizagdo social sem que possa ja- mais e em qualquer lugar encarné-ta. Falta de poder fazé-lo ou falta de querer faz8-lo? Uma das forgas do romance é a de economizar nessa questo, 0 que convidaria 0 leitor a tragar a psicologia de Tristdo. A l6gica da narrativa leva ao limite o traba- Iho da desafiliagao, além ou aquém do que poderia depender da vontade. Tristdo, sem diivida, freqiientemente no romance, ¢ em particular em sua juventude, softe os efeitos de sua situagao de desafiliado. Mas por trés ve- zes pelo menos a reafiliagdo Ihe € oferecida, e trés vezes Tristdo a recusa. A primeira vez 6 no momento em que Tristéo, jovem cavaleiro armado por Marcos, retorna & Bretanha, provoca e mata o rival e assassino de seu pai e reconquista suas terras. As infelizes peripécias de sua juven- tude so apagadas, pelo menos no que tinham de objetivo, e o vencedor poderia se reinscrever no seu 4mbito com qualidades. Mas nesse momento ele retoma seu bastdo de peregrino, ou melhor o barco de suas andangas, ¢ Bédier lhe atribui este discurso: “... Ele convocow seus condes e bardes Ihes falou assim: Senhores de Lednis, eu reconquistei esse pais e vinguei o rei Rivalino por ajuda de Deus e por vossa ajuda. Assim, restituf a meu pai seu direito, Mas dois homens, Rohalt e 0 rei Marcos da Cornualha susten- taram 0 6rfao errante e eu devo também chamé-los pais; a esses, igual- mente, nao devo restituir-lhes o direito? Ora, um grande homem possui duas coisas: sua terra e seu corpo. Portanto, a Rohalt que aqui esté abando- narei a minha terra: Pai, v6s a guardareis ¢ vosso filho a guardaré depois. Ao rei Marcos abandonarei meu corpo, deixarei esse pais ainda que me seja caro e irei servir meu senhor Marcos em Cornualha” "3, Aqui, como em outras passagens, podemos, se assim desejar- mos, “edipianizar” (¢ de fato a relagdo entre TristZo e Marcos é de uma ex- traordindria complexidade, diriam alguns, perversidade). Mas me atenho 13 J, Bédier, op. cit., pp.25-6. RUPTURAS IRREMEDIAVEIS 179 ao “fato” que o narrador se exprime assim: “Todos os bardes o louvaram com légrimas e Tristéo, levando consigo apenas Gordeval, partiu para a terra do rei Marcos”. ‘Apés esse retorno & Cornuatha, uma segunda oportunidade se apresenta a Tristdo de se reinserir e tomar parte em uma filiagao. Marcos, a quem ele torna-se cada vez mais indispensdvel, quer adoté-lo ¢ legar-lhe suas terras quando morrer. A decisio real se depara evidentemente com a hostilidade dos barées que véem, ou fingem ver, em Tristdo um intrigante. Este timo quer provar que seu amor ao rei é desinteressado e decide correr um risco singular: ele retornaré @ Irlanda, onde ¢ odiado por ter ma- tado Morhold, e trar4 Isolda para Marcos, ou jamais reapareceré em sua corte. Assim Tristdo corta a possibilidade de prolongar a linhagem de Mar- cos jd que, em principio, Isolda poderia ter dado um herdeiro ao rei. Na verdade, a despeito de sua dupla relacdo completamente car- nal com Tristdo e Marcos, Isolda nunca terd filhos. A estrutura do mito do amor absoluto como reciprocidade exclusiva da relagéo do homem e da mulher se impée. Isolda pode ser a parceira dessa aventura tinica porque ela propria adentra na légica da desafiliagZo no momento do episédio do filtro. Até entdo, filha submissa ao rei, normalmente conquistada por um outro rei segundo as regras de troca das mulheres, seu destino derrapa quando a alianga se desloca em diregdo a Tristao. Sem divida que, apesar de tudo, ela se torna esposa de um rei, mas permanece essencialmente liga- da a um homem sem status. A alianca legitima é uma concha vazia que no daré frutos e Tristéo encontrou um alter ego que vai relangar a dinamica de sua desafiliagao. A situago recfproca se pode encontrar do lado de Tristo, que a constréi, é a terceira peripécia na qual ele deixa claramente marcado, ain- da que paradoxalmente, seu desengajamento em relagdo a qualquer perti- néncia sociofamiliar. Guerreando na Bretanha, ele liberta 0 castelo do rei de Carhaix sitiado por um rival e reestabelece a suserania. Em seu retorno, o rei Ihe oferece em casamento a filha, Isolda das maos brancas. Tristdo, sem noticias de Isolda a loura, acreditando-se abandonado, aceita. Eis entao, Tristéo, nobre senhor casado com uma filha de um rei, desta vez conquis- tada segundo as regras de troca de mulheres entre homens de sua estirpe e, agora, em seu proprio nome. Entretanto, na noite de ntipcias, no momento em que ele se despe, cai no chao e tilinta o anel que Ihe foi dado pela pri- meira Isolda como simbolo de amor eterno. Bruscamente a situagao se in- verte, a possibilidade de inscrigdo do desejo na realidade cotidiana é enfra- 180 LUA NOVA N43 — 98 quecida pela fidelidade reativada & uma relagdo socialmente impossfvel que une os antigos amantes. Trist4o inventa um pretexto e se recusa a con- sumar a unio '4, Esse casamento virgem aniquila por dentro a fungo so- cial da unido conjugal. Tristéo ndo é excluido do casamento, ele recusa efetiva-lo na lgica da filiagao. Isolda das mos brancas, despeitada, se vingard. E ela que anun- cia ao Tristdo moribundo que o barco que traria Isolda porta uma vela ne- gra, 0 que leva & morte os dois amantes. Assim, 0 casamento legitimo ma- tou a unido ilegitima, mas o amor est do lado da ilegitimidade. Aparentemente, essa seqiiéncia, como os amores adtilteros de Tristdo e Isolda a loura, remete ao /eitmotiv da literatura cortesa que, como sabemos, concebe o “fino amor” somente fora do casamento. A estrutura do mito de Tristio e Isolda €, todavia, diferente, De uma parte, o amor de Tristdo e da primeira Isolda se ata e se consuma carnalmente antes do ca- samento dela. A relagdo deles nao se instala pois a partir do jogo da “cor- tesania” entre um pretendente solteiro e uma mulher casada de alta estirpe. De outra parte, o casamento de Tristdo com a segunda Isolda o impede de se tornar um membro desse grupo de jovens rapazes momentaneamente solteiros ou definitivamente exclufdos do sistema de aliangas, do qual Georges Duby mostrou as estratégias eréticas, que sob os arabescos com- plicados da “cortesania”, implicariam relagdes sociais dominantes entre os sexos, invertendo-os na cena lidica '5 Tristéo nao é um cagula de familia entregue as peripécias do co- mércio regulado das relagGes entre sexos, aguardando seu alistamento. A distancia que separa o mito do amor absoluto da estrutura do casamento & mais radical que a da erética dos trovadores, que consiste em estabelecer um tipo de divisio do trabalho entre as unides prosaicas de finalidade so- cial e as unides poéticas ¢ Itidicas por meio das quais se realizaria, carnal- mente ou ndo, uma forma superior de amor. A relagao de Tristéo com as estruturas do casamento ndo é a de um jogo “cortesdo” com as regras da 14 Segundo alguns episédios, a visto do anel age como um feitigo que toma Tristao im tente; em outros, é somente a ocasido de reanimar a lembranca da primeira Isolda, 0 que ta Tristao a se decidir voluntariamente por no consumar 0 casamento (comparar J. Bédier, op. cit, pp.141-2 € R. Louis, op. cit, pp.186-7). Hustragao, entre outras coisas, da énfase co- locada diferentemente segundo as versOes na fabulagdio magica de certos acontecimentos, mas que deixa sempre margem a uma leitura do seu sentido antropolégico (conforme mais, adiante, para 0 epis6dio do filtro). 15 Cf, Georges Duby, Male Moyen Age, Paris, Flammarion, 1988. Poderfamos acrescentar que 0 amor de Tristao € Isolda, completamente carnal, nao se complica com qualquer das sublimagGes, reais ou fingidas, do amor cortesio. RUPTURAS IRREMEDIAVEIS 181 unido legitima, mas uma anulagdo dessas regras. O que é recusado ~ ainda que no préprio’ casamento com a segunda Isolda - ¢ a filiagdo, a trans- miso do nome e dos bens. E uma interpretacdo reducionista a de ver, como Denis de Rougemont, na hist6ria de Tristdo e Isolda uma ilustragéio do “grande mito europeu do adultério” '6, A atitude em relagdo ao casamento ou ao adulté- rio é, aqui, apenas uma manifestagdo particular, nunca fundante, da postura de desafiliagao radical que constitui o nucleo do mito. Tristéo e Isolda esto fora do casamento assim como esto fora das regras de qualquer in- scrigdo social: ndo tém nada a transmitir e nada a reproduzir, exceto seu amor reciproco, Tudo se passa como se tivessem compreendido que Ihes caberia somente viver até a morte a tragédia de uma unido que nao pode re- pousar sendo nela mesma, como 0 reflexo de dois seres sem pertinéncias. Assim, a estrutura do amor de Tristao e Isolda compreende-se a partir da desterritorializagdo que o constitui originariamente. Os dois amantes despiram 0 mundo. Desde entdo, seu amor estd condenado a ser ele mesmo absoluto, pois néo possui qualquer suporte possivel na vida so- cial. Ele nao regula sucessdes ou divisdes de terras, nao se inscreve entre as estratégias matrimoniais ¢ sociais, ndo se transmite a uma descendéncia. Nada o limita, o relativiza, nem o prolonga. S6 pode ser vivido como ex- periéncia total, voltado sobre ele mesmo, porque n&o tem nem pontos de apoio nem conseqiiéncias fora do quadro no qual se auto-circunscreve. E 0 que exprime maravilhosamente o epis6dio do filtro: 0 “vinho ervoso” sim- boliza o éxtase que arranca os dois protagonistas de todas as pertinéncias anteriores para colocé-los, a sds ¢ nus, um face ao outro. Mas é preciso acrescentar que se esse transporte fora do tempo e do espago pode ocorrer, se portanto a magia opera, 6 porque eles j4 so, a0 menos Tristdo, jé € um ser de lugar nenhum. A magia do filtro aparece assim como uma fabulagéo cultural determinada para significar a extraterritorialidade deste amor !7. 16 Denis de Rougemont, L'Amour et 'Occident, op. cit, p.14. a maiotia das verses limita a trés anos 0 poder do filtro e faz.coineidir o fim da ma- gia com 0 momento em que os amantes, refugiados hi dois anos na floresta de Morois, decid- em voltar a0 mundo € normalizar sua situagao. De fato, no decorrer do romance sua relagio tomna-se mais inquieta, ocorre-thes a dlvida de um em relagdo ao outro e chegam mesmo por incompreensdo miitua, Mas se tormam-se desse modo mais humanos, o duplo vetor que estrutura sua relagdo permanece o mesmo: nio podem separar-se um do outro € essa 182 LUA NOVA N43 — 98 O resultado é que essa forma de amor evidentemente s6 pode se realizar com a morte. & irrealizdvel sem a morte porque esse amor é com- pletamente desprovido das ligagdes com a vida, Desde logo, onde e como poderia ser vivido? Nao pode se exprimir, se infiltrar, dirfamos, sendo na clandestinidade, acobertado pela dissimulagdo ¢ pela mentira. Daf a im- portancia dos jogos de papéis indignos e dos disfarces vis: Trist4o louco, Tristao leproso, Tristéo peregrino miseravel, etc, Todos esses artificios sio no entanto contradit6rios com o status que ao mesmo tempo ele encarna de homem de honra por exceléncia, como eram também paradoxais e literal- mente insustentdveis as situagdes rocambolescas que os amantes tinham que inventar para se encontrar na corte do rei Marcos. Mas enquanto esti- verem em vida estarao de facto na ilusdo e no desconhecimento. Sempre desalinhados em relago a um princfpio social de realidade que daria peso e seriedade & relagdo, eles podem somente viver o afeto que os domina como uma comédia que se encaminha para acabar mal. A mais profunda autenticidade de sentimento se traveste necessariamente quando se mani- festa por meio da duplicidade, j4 que nao pode nunca realizar-se no primei- ro nivel da realidade social. Nunca, ou quase. Duas excegdes confirmam a contrario essa exigéncia. Duas vezes, de fato, Tristdo ¢ Isolda vivem seu amor em plena tansparéncia. A primeira seqiiéncia, muito curta, ocorre no barco, imedi tamente aps eles terem bebido o filtro e antes de chegarem & corte do rei Marcos, isto é, & sociedade. A liberdade se encarna fugidiamente neste mar que tanta importancia tem no romance e que Tristio, 0 desafiliado, per- corre incessantemente. Nesse espago onde se pode errar sem limites e sem leis, os constrangimentos sociais estéo como que suspensos. Em meio ao elemento aquatico, sem referéncias ¢ limites, o amor dos dois encontra um lugar, aquele que os fantasmas desenham no nevoeiro. A segunda situagao na qual o amor é vivido sem méscaras é a da floresta de Morois, onde os amantes se refugiam apés terem sido descober- tos, condenados e expulsos da corte do rei Marcos. A floresta, como o mar, uma no man’s land fora da civilizac%o, o tnico espaco onde os amantes podem existir porque é um espago nao social. Mais precisamente, ao final de dois anos, eles compreendem que essa anulagao de tudo que constitui a ligagdo continua a se alimentar do desligamento em relagao a qualquer forma de integraca estavel na sociedade. Assim, mesmo nas mais numerosas versdes, inclusive as mais vvas do mito, a ago do filteo como forga magica exterior aos amantes nd ¢ indispensvel para dar conta da indissolubilidade de sua relagao. RUPTURAS IRREMEDIAVEIS 183 sociedade, as comodidades e as honras, o reconhecimento de outros, 0 fato de ocupar um lugar e um posto social, desumaniza-os. Eles decidem entéo renunciar a esta relagdo, reduzida a um face a face intersubjetivo. Mas essa decisdo “razodvel” é impossfvel de ser mantida e logo recomega a repe- tigdo de situagdes impréprias, vividas de uma maneira cada vez mais in- sustentdvel € dolorosa, até a morte inelutavel. A morte nao € 0 fim deste amor mas sua realizacaio no tinico territ6rio que pode ocupar. Esse itinerério que conduz necessariamente & morte foi freqtientemente interpretado como uma “aventura mfstica”'® . Esta é uma extrapolagio que superinterpreta os dados do mito. Esse amor, efetiva- mente, ndo é deste mundo, nao tem lugar nele, mas isso néo implica que esteja em busca de outro mundo. A recusa de participagao nas estruturas do mundo social permite apenas construir um modelo de amor absoluto que ndo pode ter lugar sendo alhures. O mesmo ocorre com a reinterpretacéio de Wagner que deturpa 0 sentido do mito fazendo dele o produto de uma complacéncia pela indife- renciagao, a Noite, a Morte. Mas nada nos episédios da histéria nem nos propésitos atribuidos aos amantes confirma uma tal atragdo. O poema, ao contrério, respira um apego pela vida e pelo amor, uma vitalidade carnal e, para dizer tudo, materialista, que é traida pelo gosto do combate, da proeza € pelo gosto do sexo. A morte é 0 fim inelutavel de uma estratégia de vida endo de uma escolha consciente ou inconsciente pela aniquilagao. Se Tristdo e Isolda so infelizes, eles néo s40 mérbidos. A tonalidade do mito evoca muito mais o belo filme de Bergman, O Sétimo Selo. Como 0 cava- leiro do filme, eles jogam xadrez com a morte e ganham varias partidas. Mesmo se perdem a titima (com a morte perde-se sempre a iiltima parti- da), Tristéo e Isolda morrem infelizes por morrer. Essa leitura em termos de desafiliagao parece assim poder dar conta do sentido ~ ou pelo menos de um sentido ~ de todos os episédios 18 D, de Rougemont, op. cit., p.120 e seguintes. Toda a construgdo de Rougemont comunga ‘com essa interpretagio que vé as novas formas de amor surgidas na Idade Média como o efei- to da infiltragao de heresias espiritualistas. Mesmo se essa leitura tinha certa credibilidade para 0 amor cortesio ~ 0 que € duvidoso se concebermos o amor cortesdo de uma maneira mais escrupulosamente hist6rica, como faz Georges ‘Duby — ela no conviria ao mito de Tristdo e Isolda. Rougemont o toma contudo, paradoxalmente, como 0 paradigma do amor cortesio, quando na verdade ele € 0 paradigma do amor trégico. 184 LUA NOVA N43 —98 principais do mito. Salvo erro, néo apenas ela nao € contradita por qualquer Passagem que mostraria que Tristio e Isolda poderiam viver em outro lugar que nao nesta extraterritorialidade, mas também nao hé nenhuma passagem que deixe de apontar o lugar dessa fissura, que nao a acentue e néo mostre como os amantes se dirigem a ela mais e mais. Assim, torna-se com- preensivel o surgimento de uma figura da relago masculino-feminino que se constitui como uma relagdo de reciprocidade total que sela uma alianga imreversfvel entre dois seres. Segundo essa hipétese, é a maneira especifica pela qual eles despiram o mundo que constitui Tristéo e Isolda como iguais € idénticos, a parte a diferenga dos sexos. Os dois néo-papéis sociais que eles assumem se equivalem em razo de sua auséncia de inscrigao na reali- dade. A recusa do jogo da sociedade torna entao possfvel a uma s6 vez a igualdade e a paixdo, isto é, o desaparecimento das diferencas objetivas (igualdade) e 0 reencontro fascinado da alteridade-complementaridade completa do masculino e do feminino reduzida a ela prépria (paixao). Esta reciprocidade ~ que no ocorre no amor cortestio ~ 6 pro- fundamente espantosa levando-se em conta a configuragéo dominante das Telagdes entre os sexos na sociedade medieval. Sem diivida uma andlise mais detalhada do romance apontaria para diferengas de tonalidade e mes- mo alternancias de intensidade na maneira pela qual os dois amantes vi- vem sua relagao apés terem decidido se afastar um do outro, saindo da flo- resta de Morois. Essas disparidades explicam-se pela diferenga de situacio que Ihes é prépria apés a separago: Isolda, de volta & corte do rei Marcos, leva aparentemente uma vida de rainha adulada ¢ amada, enquanto Tristo continua errante, ocorrendo-Ihe duvidar de Isolda e até aceitar casar-se com uma outra mulher. Mas jamais essas diferengas se inscrevem na tra- jetéria dos amantes a ponto de alterar a reciprocidade se sua relagdo: eles tratam de relegé-las 0 quanto antes ao status de meras contingéncias. As- sim, Tristéo repudia o casamento antes mesmo de consumé-lo. Quanto a Isolda, ela deixaré sua prisdo dourada para, fiel a seu juramento ¢ a despei- to de tudo, voltar a ver Tristéo uma tiltima vez e se unir a ele definitiva- mente na morte '?. 19 Um epi do romance, entre outros, ilustra essa reciprocidade da relagdo dos amantes elevada A vontade de sofrimento miituo com relagao & separagao. Tristio fez chegar a Isolda um presente, um pequeno cio que porta um guizo encantado: quando o guizo tilinta a triste- za se apazigua. E um tranqillizante, Mas to logo se dé conta do sortilégio, Isolda arranca 0 -guizo e joga-o a0 mar: “Ah, pensa ela, convém que eu conhega 0 reconforto enquanto Tristo € infeliz? Ele poderia ter guardado 0 cio encantado e esquecer assim toda a dor, por bela cor- tesia preferiu envir-mo, dar-me sua alegria e retomar sua miséria, Mas ndo é permitido que seja assim; Tristao, quero sofrer enquanto softeres” (J. Bédier, op. cit, p.132). RUPTURAS IRREMEDIAVEIS 185 Porque é fundada sobre um juramento, a alianga de Tristio e Isolda é e permanece estritamente igualitéria. Os amantes trocaram anel e juramento ao se deixarem apés o episdio da floresta de Morois, no mo- mento em que tomam consciéneia que Ihes serd necessério, de certa ma- neira, compor com o mundo, aceitar a durago, a separago, a diferenga na gestdo do cotidiano (o que coincide significativamente na maior parte das versdes do romance com 0 momento em que 0 filtro deixa de exercer seu efeito). Mas o juramento afasta de pronto a ameaca que representaria a aceitagao do principio de realidade. Funda a alianga fora de todas as trocas de servigos e de todos os comércios, fora da esfera das transagdes contra- tuais. Todo contrato, ¢ 0 contrato de casamento também, inscreve uma unido em certa duragdo, regulando-Ihe os interesses e estratégias. Submeti- do & temporalidade, ele € revogavel se as condigées que ele relaciona se transformam. O contrato s6 escapa A contingéncia dobrando-se & azo so- cial, A alianga, ao contrério, nao inscreve uma relacdo na sociedade e na hist6ria, mas a arranca da temporalidade e a desprende de tudo que puder acontecer, em qualquer parte e amanhé, e até o fim. Mas afirmando por meio do juramento que ela prépria escolhe a atemporalidade em detrimen- to de qualquer outro fim, a alianga traga seu caminho em diregdo & morte. Assim, podemos compreender como, gragas ao juramento, “o amor é mais forte que a morte” — mas & condigGo de acrescentar que € preciso que a morte esteja efetivamente presente ao encontro, como garante titima da validade desse pacto Gnico. O amor absoluto é absoluto apenas no momen- to em que a morte provou que ele estava acima e além de tudo, isto é, aci- ma também da vida Mas mesmo se € verdade que a descoberta da reciprocidade to- tal entre os sexos se fez por meio de uma hist6ria que poe em cena o maximo desligamento em relag4o as determinacées sociais ¢ historicas, nao poderiamos com isso concluir que a sociedade é estranha a esse jogo que parece exclui-la. A recusa do social possui condigdes sociais de possi- bilidade e recebe uma sangdo social. De um lado, efetivamente, esta suspensiio das regras do jogo social tornou-se possfvel pelo fato de Tristdo e Isolda estarem em situagao de endogamia social. Filho e filha de alta nobreza, sua condicio é homéloga. Mas & igualmente eminente, j4 que eles ocupam o topo da pirdmide social. A diferenciagao, ou a distingdo, nao podem operar nem 186 LUA NOVA N°43— 98 entre eles nem com eles em relacdo a uma posicdo superior (0 que fornece um esquema para compreender a desenvoltura com que Tristdo, em si- tuagdo de reafiliacdo possivel, recusa-a: ela nao seria mais que um retorno aum statu quo ante). Significa isso que Tristao e Isolda podem fazer “como se” esses determinantes sociais tivessem um peso quase nulo, j4 que, privilegiados, eles os vivem sobretudo sob a forma da liberdade que lhes é por essa con- digo propiciada? Seria uma extrapolagdo unilateral e reducionista pois, si- multaneamente, por sua condigao de desafiliagio, os dois amantes encon- tram-se completamente deslocados (mas nao rebaixados) de sua casta: eles n&o ocupam um lugar do qual, contudo, conservam as prerrogativas for- mais. Tristéo e Isolda se situam assim no coragéo de um dispositivo es- pecffico que vai funcionar como uma armadilha mortal. De um lado, toda a pesada maquinaria da sociedade feudal é conservada mas ao mesmo tempo estd para eles desvitalizada, em estado de flutuagao. Eles esto, assim, ata~ dos em um double bind entre um estado de supersaturagao dos valores so- ciais e um estado zero de existéncia do social. A morte é 0 tinico outro lu- gar para essa maneira contraditoria de estar em fugar nenhum. Fi a sangio dessa negagdo do social, entretanto onipresente. Sem dtivida € certo destacar, como fez com vigor Denis de Rougemont, que a temética da associago do amor e da morte assombra 0 Ocidente cristao. Poderfamos também mostrar, de uma maneira mais sécio- hist6rica que a que foi tentada por este autor, que o investimento total da relacio do homem e da mulher se conquistou quase sempre contra os en- quadramentos do casamento ¢ daquilo que a unido legitima regula social- mente: bens, filhos, sucessGes, capital simbélico e cultural. Mas seria ne- cessério ainda distinguir, em meio a uma gama de situagdes que v4o do trdgico ao melodramitico, algumas figuras especificas. O mito de Tristao Isolda representa uma delas, a mais radical. Porque a desafiliagdo é aqui le- vada ao extremo e dividida entre os dois protagonistas, o amor assume a ca- racterfstica absoluta de nao se apoiar absolutamente sendo sobre si mesmo. A prova a contrario da diferenga de estrutura entre este mito do amor absoluto e de outras grandes histérias de paixfo que associam o amor e a morte pode ser vista em Romeu e Julieta, Manon Lescaut ou A Dama das Camélias. Em Romeu e Julieta, a tragédia do amor impossivel é produzida pelo antagonismo irredutivel de duas familias concorrentes no mesmo nivel de estratificagao social. Presos em uma oposigao de clas situados em paridade, mas onde cada qual afirma a preeminéncia absoluta de sua fi- RUPTURAS IRREMEDIAVEIS 187 liagdo e de seus valores, Romeu e Julieta ndo podem encontrar um espaco comum para sua unido. Morrem também por no poderem se territoriali- zar, mas nfo so desafiliados. Ao contrdrio, é a forga juntamente com a in- conciliabilidade de suas linhagens que faz da morte o tnico destino de seu amor. Romeu e Julieta morrem porque so superafiliados, mas segundo duas filiagdes incompativeis. Manon Lescaut e A Dama das Camélias ilustram a dramaturgia, banalizada, do risco da desclassificagdo social, do qual a unio do filho de famflia com a cortesd ou com a semi mundana representa um dos paradig- mas. No romance do abade Prévost como no de Alexandre Dumas Filho, as familias e sobretudo os pais, desempenham um papel fundamental (os pais da linhagem masculina se entendem pois as familias das cortesas nao suportariam perder coisa alguma) 2. Sao eles que defendem a dignidade de uma posi¢ao e de uma respeitabilidade social que a mulher, salvo se inscrita em uma estratégia matrimonial, s6 faria ameagar. O caréter dramético da paixdo 6 aqui 0 efeito de uma hubris do coragao ou dos senti- dos, incompatfvel com a razo social. Esses filhos, dominados tanto por seus pais como por suas amantes, arriscam uma decadéncia que seria 0 efeito de um esquecimento das exigéncias da sociedade em proveito de im- pulsos afetivos irracionais. Mas a desclassificagao nao é a desafiliagao. Se tampouco ha territério para esses amores € porque 0 principio de realidade da estratificago social é, a uma $6 vez, impiedoso, e finalmente respeita- do. A morte esté igualmente presente ao encontro, mas dirfamos, pela me- tade. Basta extirpar o elemento de paixo irracional representado pela mu- Iher ndo desposdvel para que se restaure a ordem do mundo. Apés a morte da amada, Des Grieux e André Duval relatam, chorando, seu romance de amor, que € a tragédia de sua amante morta, antes de se reinstalarem em sua trajet6ria social. A historia deles & a de seu desgarramento passageiro. Também a filiagdo atual de TristZo e Isolda é igualmente es- pecifica. Romeu e Julieta est4 representado hoje em West Side Story e A Dama das Camélias nos miiltiplos dramas ou melodramas da ruptura oca- sionada pela disparidade das condigdes sociais ou da diferenga de idade entre os amantes. Les Chemins de la Haute Ville estao calcados de amores enganados ou traidos. Mas Tristdo e Isolda revivem em personagens de 20 Em Manon Lescaut, 0 itmao da herofna desempenha um papel, mas € 0 de alcoviteiro. Confirmagdo do fato de que contra a linhagem masculina que reitera e impde em dltima andlise a lei e a ordem, a Tinhagem da muther sem stazus nao faz. sendo reforgar a via da deca- déncia, 188 LUA NOVA N° 43 — 98, outro tipo, que nada tém a perder ou a ganhar porque nada tém a preservar. Sem dtivida, quase ndo hé mais grandes senhores e nobres damas para jo- gar essa nova partida cujo desenlace é ganhar ou morrer, mas existem sempre desafiliados, por exemplo, os adolescentes em ruptura ou os herdis de romances noirs portadores de paixdes sem solugio. O romance de Tristo e Isolda, hoje, 6 possivelmente a histéria dos personagens de A bout de souffle (Acossado) ou desses filmes de série B, ao mesmo tempo lamentaveis e tragicos, cujo her6i é um vadio que acaba de sair da prisdo ¢ encontra uma gargonete perdida em um bar. Eles se amam absolutamente, e como se amam, pois como poderiam eles amar-se de outro modo, se ndo possuem nem passado nem futuro, nem dinheiro, nem filhos, nem si- taco, nem esperangas? So como Tristio ¢ Isolda diante da vertigem do reencontro, de um face a face sem regulagées coletivas nem suportes nego- cidveis. Entretanto, como para Tristao e Isolda, também o social ausente a0 mesmo tempo um social onipresente que vai liquidé-los porque eles no podem com ele conciliar-se. Os policiais chegam e atiram. Antes de ir combater Urgan, 0 peludo, um gigante que arrasava as terras do duque de Gales, Tristdo diz: “O bem s6 pode vir a um pafs por meio de aventuras” !. Mas a aventura das aventuras, todo 0 romance de Tristdo o atesta, € a desafiliagdo. Ela é a pedra filosofal que, por meio de rupturas na trama da existéncia, transmuta 0 comércio dos sexos em amor absoluto, a histéria de vida em destino, os acontecimentos prosaicos em tragédia e, finalmente, a vida mundana em morte social ROBERT CASTEL é diretor de estudos na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paris. Tem em vias de publicago no Brasil 0 livro Les métamorphoses de la question sociale. 21 J, Bédier, op. cit. p.131. RESUMOS/ABSTRACTS 221 RUPTURAS IRREMEDIAVEIS: SOBRE TRISTAO E ISOLDA ROBERT CASTEL O relato medieval de Tristio e Isolda é estudado como um “romance da desafiliagdo”, entendo-se este termo como designando uma separagiio, uma exclusdo de lagos sociais. Tristdo e Isolda constituem um. caso paradigmatico de lacos condenados a ruptura. Nas entrelinhas h4 uma leitura de processos de “desafiliagao” nas sociedades contemporaneas. HOPELESS RUPTURES: ABOUT TRISTAN ET ISEUT The medieval story of Tristan et Iseut is studied as a “roman de la désaffiliation”, with this last term designating a severance, an exclusion from social ties. Tristan and Isolde form a paradigmatic case of ties condemned to rupture. Between the lines there is a reading of “désaffiliation” processes in contemporary societies.

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