You are on page 1of 31
we an pasts 9B 3% Tena a SAGEM BASIA A PAISAGEM DOS GEOGRAFOS* Paut Cuavat tact (© TeRMo Paisacen © termo paisagem aparentemente no tem mistério. Surgiu no século XV, nos Paises Baixos, sob a forma de landskip. Aplicase aos quadros que apresentam um pedaco da na tureza, tal como a percebemos a partir de ‘um enquadramento - uma janela, por exem- plo. Os personagens t@m af um papel apenas secundirio. A moldura que circunda 0 qus- dro substitui, na representagao, a janela atra- vés da qual se efetuava a observagio. No inicio dos anos de 1420, em Floren- a, Brunelleschi descobre (ou redescobre) as leis da perspectiva. Masolino ¢ Masacchio imediatamente utilizam os novos procedi- mentos, que logo ficam conhecidos na Ité- lia do norte e em Flandres. Roger van der Weyden os domina perfeitamente. Em seus * Texto inédito, Traduside do francés por Marcia Trigueiro, ~ Profesior da Universidade de Paris IV. Sorbonne quadros, a paisagem ainda é aquilo que se vé através das janelas das salas onde ele pinta seus personagens: algumas casas, um cam- po distante. Alain Roger comenta: A invencio decisiva, na histéria da paisa: gem ocidental, € efetivamente a da janela na pintura flamenga da primeira metade do século XV. A janela constinti um enquadra- mento, um quadro no quadro, que, isolan- doo, encaixando-, instiwui 0 pays’ na pi sagem. $6 a passagem por essa vedula (a vista pela janela), aparentemente paradoxal porque ela se deve a uma reducio, ow seja 4 uma miniaturizacao do pays, permite afasti- lo da cena religiosa, que geralmente ocupa a frente da cena, e, 20 laicizé-lo, 0 transfor- ma em paisagem auténoma (Roger apud Berque, 1999, p. 65) 0 alemao forja 0 termo Landschafi, € 0 inglés, landscape, para traduzir 0 novo ter- mo holandés, cujo emprego se impde com a difusio do novo género pictural. O italia- no transcreve a idéia de extensio de pays, que vem da raiz land, criando paesaggio, de onde deriva o termo francés. Seu emprego € verificado a partir de 1549. * Pays (grifo do autor) = regido; patria, lugar de nas- ccenca; donde paysage = vista de um conjunto de uma extensio do pays. A seguir, sempre que o termo aparece no texto sem grifo, € waduzido por regido (N. da T), 14 O surgimento da paisagem como forma de pintura € uma das conseqiiéncias da re- voluco que 6 uso da perspectiva introduz entéo. De inicio, s6 se sabia criar a ilusio de profundidade construindo rigorosamen- te as linhas de fuga. O método nao é bem aplicado, uma vez que tudo aquilo que se vé sao bosques, colinas, rios, lagos: nao exis- tem as linhas retas. Aos poucos € colocada a perspectiva atmosférica, que influi nas cores mais claras € mais vaporosas daquilo que esté distante. Durante muito tempo um género menor, a paisagem torna-se uma das formas essenciais da arte pictural no século XVII - imaginase que devido ao impacto dos quadros de Claude Lorrain por toda a Europa, € especialmente na Inglaterra. A pintura busca reproduzir objetivamen- te um fragmento da natureza, mas 0 ponto de observacdo, o angulo ¢ o enquadramento da vista resultam de uma escolha. Existe, portanto, uma dimensdo subjetiva na base de uma representacao que se deseja tao fiel quanto posstvel Rapidamente se impés a maneira de considerar a paisagem como qualquer “par- te de um pays que a natureza apresenta a um observador” (Petit Robert). Neste sentido amplo, desaparece a idéia de enquadramen- to da vista: 0 observador pode elevar ou abaixar seu olhar, virar sua cabeca, dar al- guns passos, contornar um obstaculo. O destaque se transfere da perspectiva ¢ do enquadramento observados para a parte do pays do qual se discerne a fisionomia. 15 Os cedcraros & a DESCRIGAO DAS PAISAGENS. Os gedgrafos se interessaram pelas pai- sagens desde que sua disciplina foi constitu da: & através deles que 0s viajantes, que se utilizam da geografia, apreendem a nature- za das regides que percorrem. Até a segun- da metade do século XVIM, no entanto, a descricio das paisagens é dificil. Como res- salta Bernardin de Saint-Pierre, faltam pala- vras para falar das formas do relevo ou das rochas. Mas 0s progressos nessa area sio répidos, como atesta 0 sucesso da taxonomia de Lineu, que permite classificar e nomear uum ntimero crescente de plantas ¢ animais. Trinta anos apés a Voyage Uile de France, de Bernardin de Saint-Pierre, a linguagem dos naturalistas progrediu de tal forma nos pai ses curopeus que existem palavras para des- crever, onde quer que seja, as formas do terreno, a cobertura vegetal e as instalagdes humanas. Estabelece-se a preocupacio des- critiva entre os ge6grafos, como Malte-Brun, por exemplo, na Franga. E preciso traduzir a fisionomia, dizem eles. Como as palavras nao sio suficientes para isso, eles passam a ilustrar seus trabalhos com gravuras Retornando de seu grande périplo na Amé- rica Latina, Alexandre von Humboldt edita Vues des Cordillives et Monuments des Peuples Indigines de VAmérique, onde apresenta, em 69 pranchas comentadas, uma selecdo de paisagens, muitas vezes em aquarelas, que dao uma idéia muito mais sugestiva do con- tinente do que o poderiam fazer centenas 16 de paginas de descri¢ao. O texto que acom- panha as pranchas é sébrio. Relativamente a “vista do Chimborazo e do Carguairazo”, Humboldt observa que esses picos muito altos se elevam sobre altas planicies ¢ que 0 viajante pode apenas imaginar sua altitude real. “Distinguimos [diz Humboldt] trés espécies de formas principais que afetam os altos picos dos Andes”. Segue-se uma impe- cvel classificacio das formas vulcdnicas, sua origem ¢ sua evolucdo. Mas nao falta sensi- bilidade ao observador, como atestam as linhas com as quais ele termina essa vinheta: E assim que, & beira do mar do Sul, apés as Jongas chuvas do inverno, quando a trans- paréncia do ar aumentou subitamente, ve- mos 0 Chimborazo aparecer como uma nuvem no horizonte: ele se destaca dos cumes vizinhos; eleva-se sobre toda a cadeia dos Andes, como um domo majestoso, obra do génio de Michelangelo, sobre os monu- mentos antigos que cercam 0 Capitélio (Humboldt, 1810, prancha XVI, p. 107) Acompanhando Humboldt, os geégrafos alemies conservam o habito de guarnecer suas descricées objetivas com observacées pessoais. E que essa € a época das filosofias da natureza, 4 maneira de Goethe: a con- templacao da natureza leva 4 descoberta das profundas harmonias concedidas pelo Cria- dor. Nas outras escolas geograficas, a descri- cdo continua mais sdbria. Os gedégrafos do século XIX estao aten- tos A diversidade das paisagens. Seu papel 6 Pon les "7 fazer com que seus leitores a descubram. Os progressos da litografia e depois a desco- berta da fotografia facilitam sua tarefa Humboldt se arruinou para publicar as magnificas obras ilustradas que permitiram compreender © que eram as paisagens na- turais ¢ as formas de ocupacao do solo da Venezuela, dos patses andinos, do México de Cuba. Por volta de 1900, os autores dis- punham de meios mais eficazes para pro- por uma iconografia sugestiva das regides que descreviam. A invencao do autocromo pelos irmaos Lumiére, em 1908, oferece possibilidades ampliadas. O banqueiro Albert Kahn logo compreende isso € decide criar “Les Archives de la Planéte”, fundacio encarregada de enviar fotdgrafos para fixa- rem as paisagens que a modernizacao amea- ¢a desnaturalizar. Ele pede a Jean Brunhes que assuma a direcao dessa ambiciosa expe- rigncia. ‘A PAISAGEM COMO INTERFACE: UMA NOVA MANEIRA DE CONCEBE-LS Mesmo se os geégrafos demonstram sensibilidade, como Humboldt, sua paisagem. é aquela da linguagem comum, e nao a dos pintores. Em suas narrativas, 0 autor faz a sintese de tudo aquilo com que se familia- rizou em suas peregrinagdes: multiplica os pontos de vista para fornecer uma imagem mais fiel da realidade; é assim que Humboldt explica que a Cordilheira dos Andes apre- sentase de modo muito diferente segundo © ponto a partir do qual é observada: 18 Olhando © dorso das Cordilheiras como uma vasta planicie limitada por cortinas de montanhas distantes, nos acostumamos a considerar as desigualdades do cume dos Andes como se fossem picos isolados. O Pichincha, 0 Cayambe, 0 Cotopaxi, todos esses picos vuleanicos que designamos por nomes particulares, até mais da metade de sua altura total constituem uma massa ini: ‘a, parecendo, aos olhos dos habitantes de Quito, como montanhas distintas que se elevam no meio de uma planicie desprovi- a de florestas (.); também os Andes s6 apresentam o aspecto de uma cadeia quan- do 0s vemos de longe, das bordas do Gran- de Oceano ou das savanas que se estendem até 0 sopé de sta encosta oriental, Situados sobre 0 dorso das Cordilheiras (...), $6 ve- ‘mos um amontoado de cimos esparsos, gru- pos de montanhas isoladas que se destacam do planalto central; quanto maior é a massa das Cordilheiras, mais dificil € perceber 0 conjunto de sua estrutura e de sua forma (idem, p. 105) A imagem que temos da natureza em um ponio pode gerar confusio. O papel do ge6grafo que analisa a paisagem € multiplt- car os pontos de vista, olhar o relevo de perto € dé Tonge, desde a base das cadeias ¢ desde seus picos, € construir, a partir dai, uma imagem sintética da regido que analisa A geologia conheceu progressos consi- deraveis desde o fim do século XVII. E chegado o momento das sinteses. A obra de Eduard Suess, Das Antlitz der Erder, a face da 9 Terra, causou um impacto considerdvel. 0 titulo traduz de maneira notavel uma preo- cupacio que o autor partilha com os gedgrafos: explicar a superficie da Terra Falando de face, e nio de superficie, ele faz da Terra uma entidade da qual possivel perceber a fisionomia. Isso é possivel por que ela esta, de um lado, na interface da litosfera e da hidrosfera, e de outro, da at mosfera (foi Suess quem definiu pela pri- meira vez as nocdes de litosfera, hidrosfera ¢ atmosfera). Essa interface € 0 lugar onde se desenvolvem as formas vivas: as plantas extraem da terra os elementos minerais ¢ a Agua, € da atmosfera 0 gas carbénico que elas necessitam para a fotossintese ¢ a fabri- cacao de matéria organica. A biosfera carac- teriza, assim, a interface atmosfera/litosfera ~ hidrosfera Quando fala da face da Terra, Suess estd préximo de todos os gedlogos ¢ de todos os geégrafos que, desde a metade do século XVII, procuram tornar conhecidas, de maneira precisa, as paisagens que a su- perficie terrestre oferece. Analisando-a como interface, Suess introduz uma idéia nova: a crosia terrestre néo é apenas uma superficie que se oferece ao observador; a zona de contato tem uma espessura que permite que a vida se aloje. Ela se caracte- riza por processos originais. Concebida em termos de interface, a paisagem deixa de ser um quadro sem vida; ela é feita de ambientes. No momento em que a ecolo- gia nasce, definir geografia como discipli- na cujo objeto é a paisagem é dar-the um 20 contetido de acordo com as tendéncias mais recentes da pesquisa A idéia da paisagem como interface at- mosfera/litosfera ~ hidrosfera, como supor- te da biosfera, logo se acrescenta uma ou- tra. Por que nao ver na paisagem a interface entre os homens ¢ a natureza? A idéia é atraente. Os geégrafos interessam-se apenas pelos fendmenos naturais. A distribuicao dos homens, suas atividades e suas obras na superficie da Terra é muito fascinante torna-se um dos principais dominios da pesquisa nos anos 1880 e 1890: Ratzel deli- mita 0 campo da antropogeografia, da geo- grafia humana. A obra que ele dedica a esse campo repercute fortemente na Alemanha, na Franga € em outros paises. O propésito nao € opor a nova geografia humana a uma geografia fisica com a qual ela tinha poucas relagdes. Muito pelo contrério, trata-se de, na perspectiva que a ecologia acaba de abrir, estudar as relacdes complexas que se desen- volvem entre os homens ¢ os ambientes onde eles vivem. Assim, os geégrafos que se voltam para a geografia humana nao procu- ram explicar a distribuigo dos homens, as formas de habitat e as utilizacdes do solo pelo jogo de forcas sociais ou de mecanis- mos econdmicos. Eles se interrogam sobre a influéncia que o meio exerce sobre os individuos € grupos, ¢ procuram medir as transformagdes que a atividade humana desencadeia no meio ambiente. A geografia humana assim concebida situase na interface entre natureza e fatos sociais - natureza e cultura, como 21 freqiientemente se falava entio nos Estados Unidos, onde as legendas dos mapas topo- grificos colocam seus simbolos sob dois tulos: natureza para as formas de relevo ~ vegetacio ¢ as éguas~e cultura para as casas, as cercas, as estradas; tudo aquilo que resul- ta da atividade humana Nao é de espantar, portanto, que por volta de 1900 sejam numerosos os gedgrafos que definem sua disciplina como uma cién- cia_da_paisagem ou das paisagens. Agindo assim, conjuirase a cfivagem que a distingao entre um dominio fisico ¢ um dominio humano ameaca introduzir no estudo das distribuigdes terrestres. O lugar destinado face da Terra é sublinhado. O privilégio dado 20 olhar é confirmado. Conceber a paisagem como uma interface transforma, de modo mais profun- do do que se costuma dizer, as maneiras de analiséla, / A PAISAGEM COMO INTERFACE, A VISAO VERTICAL & 0 OLHAR DO GEGGRAFO Da idéia de interface & visao vertical da paisagem geografica A paisagem que os gedgrafos descreviam diferia da paisagem dos pintores pela multiplicidade dos pontos de vista que cle procurava sintetizar: Humboldt combinava a experiéncia do viajante que se encontra nas altas planicies que ele chama de dorso dos Andes (série de altas bacias que separam os cumes das duas cordilheiras) ¢ a experiéncia 2 que se tinha quando se observavam os cur mes a partir do sopé andino ou do litoral do Pacifico. Ele percorria a paisagem com um olhar que oscilava horizontalmente: varria 0 ambiente para o alto, a partir do nivel dos olhos até os cumes, quando 0 observador se encontrava em um vale; para baixo a partir desse mesmo nivel, até as zonas mais rebai- xadas, quando ele acabava de escalar um pico. A paisagem do gedgrafo resultava da recons- trucio sistematica daquilo que pontos de vista sucessivos haviam permitido descobrir, mas continuava suficientemente préxima do olhar do pintor para que sua descricio falasse da harmonia das formas e das cores A partir do momento em que a paisa- gem € concebida_como-interface-entve. at- mosfera e litosfera/hidrosfera, ou entre natureza ¢ cultura, € grande a teniagZ — depois que a analisamos - de levar os resul- tados para um mapa. A visio do gedgrafo deixa de ser horizontal ou obliqua. Ela se. torna vertical. A_paisagem ¢ cartografavel. Chegamos assim a mapas da paisagem vege. tal, da utilizagdo do solo, das formas de habitat. O empreendimento ganha entio em eficdcia, porque podem-se abarcar grandes conjuntos com um lance de vista, perceber 08 contrastes que existem de uma zona para outra, comparar as éreas onde os elementos da paisagem sio uniformes em grandes es- pacos € aquelas onde eles formam um mosaico cujos tragos se repetem a peque- nos intervalos. A passagem da construcio da paisagem pelo cruzamento de olhares obliquos a sua 23 reelaboracio na ética de uma visio vertical di peso a elementos até entio um pouco negligenciados: 0 desenho das parcelas de terras, as estradas, 0 plano das aldeias ¢ das cidades, Surgem novos usos do termo paisa- gem. Assim, comeca-se a falar de paisagens agrarias, “expressio que designa as obras do homem na superficie do solo para a produc do agricola” (Fénelon, 1970, p. 484). O termo se refere a muitos aspectos: A paisagem rural aparece como uma com: binagao concreta na qual um grande nrime- ro de fatos intervém: o habitat, as parcelas de terras, os caminhos etc. Esses elementos. revelam uma organizacéo do espaco rural: assim, 0 habitat pode se dispersar sobre 0 conjunto das parcelas, ou, ao contrério, concentrar-se no centro do territério (finage); cada parcela pode se comunicar com 0 conjunto de parcelas ou, ao contra rio, encerrar-se em cercas (p. 314) Uma construcio como essa desencadeia toda uma série de procedimentos e de fontes: A paisagem agearia [..] ou paisagem rural [1 € revelada pela observacdo direta, pelo estudo de fotografias aéreas, de documen- tos cadastrais etc. Sua interpretacdo supe um conhecimento aprofundado da geogra- fia, da hist6ria, da arqueologia rural (ibidem) A observacio direta € 0 olhar horizon- tal ou obliquo do passante, é a leitura da 24 paisagem a qual todos tém acesso. A passa- gem para a visio vertical, sem a qual a no- ao de paisagem agraria nao teria surgido, & confirmada pelos outros procedimentos ~ a utilizacio de fotografias aéreas, 0 recurso aos mapas especiais que sio os planos cadastrais. Uma etapa importante decorre, a0 mesmo tempo, da consulta aos planos cadastrais e das entrevistas realizadas com 0 agricultores: é a evidéncia, na paisagem, de unidades de gestao, os estabelecimentos rurais, evidentemente, mas também de seu reagrupamento por territérios (finages) muitas vezes submetidos a um controle co- letivo. A passagem para a percepcao vertical ~ que permite as generalizacées, evidencia a estrutura das distribuicdes e permite a leitu- ra dos reagrupamentos regionais ~ nao ocor- re sem perigo para o gedgrafo: ela as vezes leva a esquecer os objetos que realmente importam na vida das pessoas, que sio subs- tituidos por outros. Era disso que sofriam as geografias dos séculos XVII e XVII, antes de a descrigdo precisa das paisagens ter aprendido a manter os pés na terra. ‘A preocupagéo de nao reduzir a paisa- gem apenas a sua dimensio vertical deman- da correcées. E 0 que se aprende educando © “olho” do gedgrafo O olhar do gedgrafo Frente a paisagem, o gedgrafo € ativo. E nesta condicao que evita as simplificacées do olhar vertical. O inconveniente do olhar 25 horizontal ou obliquo é que cle desvela apenas uma parte do real: as partes escon- didas a partir de um dado ponto de vista ‘ocupam sempre uma parte consideravel do espaco, € aumentam rapidamente com a distancia e quando os movimentos do terre- no disfarcam lados inteiros da topografia Por isso, convém multiplicar os pontos de vista, como fazia Alexandre von Humboldt, desejoso de fazer compreender a natureza da topografia andina: seu olhar era prove- niente tanto do “dorso do terreno”, da de- presséo intermediaria da cordilheira, quan- to de suas regides pré-andinas ocidentais ¢ orientais. Quando exploramos um objeto geogrdfico sob todos os seus angulos é que tomamos consciéncia de sua extensio € podemos, a partir de visées horizontais ou obliquas, imaginar 0 que forneceria uma visdo vertical. © gedgrafo aprende, assim, a multipli- car os pontos de vista. Também procura aproveitar-se da visto obliqua_para dar a paisagem a dimensao vertical que a visio vertical ésmaga: vistos do solo, os tracos da topoggtatia sao lidos diretamente; as colinas, as montanhas dominam a cena. Na plantcie ow sobre planaltos, 0s horizontes se afas- tam, dando as vezes a impressio de um horizonte indefinido, ou, quando nos apro- ximamos do degrau que limita uma grande superficie plana, de uma abertura profunda sobre espacos dominados. Ao relevo somam-se aqueles aspectos da vegetacdo — as massas arborizadas, as matas, as Atvores isoladas — ¢ das construgdes - 26 casas, granjas, muros, cercas de arame far- pado ou outras formas de fechamento dos campos; as sebes ficam no limite dessas duas categorias. Nao faltam procedimentos para melhor compreender as dimens6es verticais da pai- sagem. Em estrutura sedimentar, sabe-se que a encosta das camadas descobertas, onde elas afloram, prolongam-se no subsolo, 0 que permite construir mentalmente empilhamento de estratos, a maneira como sio basculados ou dobrados. Em um maci- 0 vulcanico, é 0 caminho das lavas antigas que procuramos reconstituir, por uma gi- nastica intelectual andloga. Técnicas foram imaginadas para facili- tar essa apropriacdo da terceira dimensao. Quando se estd no interior de uma floresta, muitas vezes calculase mal o didmetro das 4rvores acima € os andares das folhagens Entdo os especialistas constroem perfis que permitem que se perceba a estrutura verti- cal das massas florestais: aqui, as zonas sil- vestres; acima, arvores de oito a dez metros: dominando 0 conjunto, troncos muito de- senvolvidos, com Arvores cujas copas estio a vinte € cinco ou trinta metros. Na extremi- dade das matas os andares nao sao legiveis, pois a luz permite que todas as plantas ‘multipliquem lateralmente sua folhagem, de tal modo que é um muro vertical, ou quase, que se oferece ao olhar. Sio necessirias condigdes excepcionais para que o perfil seja Visivel: isso me ocorreu depois de mais de cem quilémetros seguindo uma rota que acabara de ser aberta através do native bush 27 da Ilha do Sul, na Nova Zelandia, floresta pluvial muito semelhante a seus homélogos tropicais, mas que aqui avanca até 45° de latitude Sul. © corte de arvores era muito recente para que novos ramos tivessem ocu- pado 08 vazios. Como ocorre nos esquemas dos manuais, liam-se perfeitamente os tés estdgios, a densidade do interior do sub-bos- que sendo ainda mais forte, porque nesse ambiente ela nao fora percorrida senao por animais cujo tamanho no excede o dos kiwis! Desdobrar a vista no sentido vertical é ainda mais dificil quando procuramos com- preender a estrutura geoldgica de uma re- gido: até onde prolongar as camadas da encosta visivel? Quando dispomos de um mapa geolégico da regido assinalada, a coi- sa torna-se facil. Comecamos por estabele- cer um perfil topogréfico ao longo de um tracado considerado interessante. Nele lan- camos os limites dos afloramentos, com as inclinagdes indicadas no mapa. Isso muitas vezes fornece indicacdes sobre a profundi- dade das camadas. A partir desses elemen- tos, ¢ desenhando passo a passo, reconstituimos devidamente a série que emerge, a inclinacdo de suas camadas, as falhas que interrompem sua continuidade, as dobras que a afetam. O corte permite ver em profundidade, por algumas centenas de metros, a litosfera. A relacdo entre a resis- téncia das rochas € © relevo, o papel das inclinagées, a influéncia dos horizontes mais resistentes tornam compreensivel o papel dos elementos estruturais na constituicdo da topografia. 28 © bom gedgrafo é aquele que aprende a combinar todos esses olhares para anali- sar uma paisagem. AS FORMAS CLASSICAS DE LEITURA DAS PAISAGENS GEOGRAFICAS, A atencéo voliada para as maxcas ¢ os limites de sua interpretacéo A educacio para se ver que € assim ensinada predispée para determinados tipos de interpretacio, que desempenharam um papel dominante na geografia dos primei- ros sessenta anos do século XX. A dimensio vertical leva a considerar tudo aquilo que incide sobre 0 que se vé porque esté em relevo: 0 campanario da igreja, a torre da prefeitura, 0 minarete da mesquita em uma aldeia ou em uma cidade tradicional, os arranha-céus das cidades modernas, as barreiras do relevo que atra- vessam a vista, os cimos que a fecham ao horizonte, as sebes e cercas que separam os campos, as Arvores isoladas nos prados, as folhagens das grandes massas florestais. Todos esses elementos sao iteis, porque estruturam a percepcao e fornecem pontos de referéncia na descricdo. Assim, a inter- pretacdo tende a reté-los ¢ a atribuir-lhes um significado que as vezes nao esté de acordo com o seu real papel Alguns dos elementos referidos tém um papel simbélico: os campanérios, os minaretes € as torres foram construidos para serem vistos por todos ¢ para dominarem 29 8 telhados das casas ao redor. Eles lem- bram a fé das respectivas populacdes, a ri- validade do poder municipal ¢ do poder religioso no caso das torres, 0 desejo de publicidade para as grandes empresas que ficam felizes quando os iméveis onde insta- lam suas sedes sociais trazem um nome © sio conhecidos por todos. Estas sio nota- Ges titeis, mas que nao permitem que se faca uma interpretacao global e sintética da paisagem. A andlise vertical das paisagens naturais ¢ 4 interpretacdo de sua génese - Os cortes assumem essse lugar nas abor- dagens seguidas pelos gedgrafos fisicos por~ que permitem que se vé além da referéncia aos elementos definidores, que se ultrapas- sem os aspectos episddicos e que se esclare- ¢a a génese dos conjuntos naturais. Colocar em evidéncia os estratos de uma floresta torna compreensivel 0 seu funcio- namento: 0 interior dos sub-bosques é feito de espécies cuja renovagao de folhas e cujo florescimento sao precoces. Estes ocorrem antes que 0s estratos intermediarios e as copas verdejem. A estrutura estratificada é indispensdvel para a boa renovacao da flo- resta. As grandes arvores que chegam a vin- te, trinta, quarenta metros, as vezes mais, acabam morrendo ou sendo desenraizadas ou partidas por um temporal, Seu desapare- cimento cria pocos de luz na massa flores- tal. Algumas das Arvores cujo crescimento estava limitado a cinco ou dez metros apro- 30 veitam para desenvolverse vigorosamente. Em alguns anos, os pocos de luz desapare- cem ¢ a estrutura inicial € reconstituida. Se a massa florestal é afetada por um incéndio, sio as espécies helisfilas que pri- meiro se instalam e logo criam uma cober- tra continua, que oferece as espécies ombréfilas o abrigo de que necessitam. As- sim se reconstitui a diversidade da vegeta- cio. Com 0 tempo, a competicao pela luz faz renascer a estrutura em estratos: a vege- tacdo inicial é reconstituida. O processo leva tempo. A floresta secundaria que se instala depois do fogo fica marcada pela presenca até a copa de arvores helidfilas, as embaribas, que em seguida desaparecem — na mata atlantica do Brasil. A volta & floresta inicial leva dezenas de anos, as vezes mais. A confeccao de perfis € cortes geolégi- cos permite passar da descricao das formas 4 leitura das relacdes entre formas ¢ estru- turas. Quando revela lacunas na estratificacao, permite ir mais longe, sobre- tudo quando a zona de discordancia € marcada pela presenca de paleosolos ¢ de depésitos correlativos de antigas superficies de erosio. Uma primeira fase na hist6ria das formas da regiao ocorre frente a discordancia: sedimentacao, emergéncia de terras, eventualmente dobras, tudo isso se- guido por uma fase de aplainamento, de que so testemunho as argilas versicolores que atestam a presenca de antigos solos tro- picais, os scixos que lembram que as super- ficies regularizadas eam percorridas por escoamentos, ou depésitos de alteraces 31 siliciosas como as que as vezes se desenvol- vem nas areas pediplanas. Apés a discordncia comecou uma nova hist6 com seus episédios de sedimentacio soerguimento, dobramento, falhas etc. Os elementos-chave da histéria das formas a0 longo dos ititimos dez, vinte, cingiienta ou cem milhdes de anos sio postos em evidén- cia: todos os gedgrafos que se formaram antes da década de 1980 recordam a espé- cie de éxtase que sentiram quando, depois de analisarem a topografia do mapa que Ihes haviam pedido para comentar, depois de assinalarem as relagdes entre as grandes massas de relevo e a distribuicio dos afloramentos geolégicos, descobriram na estratigrafia as discordancias significativas, fazendo pasar seu(s) corte(s) geolégico(s) pelos pontos onde elas se exprimiram mais claramente ¢ onde se achavam depésitos correlativos, reconstituindo as grandes eta- pas da histéria do relevo, A visdo vertical das paisagens humanixadas e sua interpretagao funcional Em geografia humana, a leitura da pa sagem implicava outros procedimentos: ela se apoiava muito mais na apreensao verti- cal, cartografica, da paisagem, do que na reconstituicao de seqiiéncias evolutivas. Dois exemplos 0 demonstram, 1 = Nao ha paisagem agraria mais espe- cifica que a do openfield (sistema de agricul- tura européia em campos abertos, sem cer- cas): em um mesmo territério comunal se 2 justapdem florestas que pertencem a comu: nidade, campos abertos longos € estreitos, dispostos em grandes conjuntos, uma aldeia bastante densa, cercada de jardins com ér- vores frutiferas. Essa paisagem torna-se com- preensivel por implicar dois niveis de ges- tao: os agricultores sio responséveis pelas terras que Ihes pertencem (ou que arren- dam) ¢ que cultivam; a comunidade admi- nistra as florestas, estabelece a rotacdo das culturas nas grandes secdes (folhas), fixa a data das colheitas e utiliza os campos € as terras em pousio para a alimentacao de um rebanho posto sob a responsabilidade de um pastor comunal, que retine os animais de todos ~ produtores ¢ camponeses sem terra. A paisagem torna-se esclarecida quan- do compreendemos como e por que ela funciona: a cultura esté nas maos de produ- tores individuais, o que garante que os tra- balhos sejam realizados com a atencdo ne- cessaria para que as colheitas sejam bem- sucedidas; as florestas comunais, os campos © as terras em pousio asseguram a todos, produtores agricolas ou nao, 0 acesso a determinados recursos, 4 floresta € aos pro- dutos da criagao de animais. O sistema € de notacao de culturas, 0 que assegura a ma- nutencéo da fertilidade € garante o futuro da comunidade. Ele combina gestao priva- da € gestéo ptiblica dos recursos, 0 que concilia, até certo ponto, justica social ¢ eficiéncia. Através da visio cartografica, “ver- tical”, dos campos em openfield, todo o fun- cionamento das células rurais do mundo tradicional é esclarecido. 3 2 ~ Uma cidade se apresenta como um conjunto construido, estruturado por arté- rias que Ihe asseguram a circulacdo. Os ti pos de edificacdo variam de um bairro para © outro: pequenas casas de tabique, de tijo- los ou de pedra no centro antigo; belos palacetes aristocraticos dos séculos XVII € XVIIL; residéncias burguesas ricas *vilas” em lindos parques do século XIX e i do XX; tristes alinhamentos de quarteirdes operarios da mesma época; pequenas casas dispersas do perfodo enire as duas guerras ou nos iiltimos trinta anos; grandes linhas de conjuntos edificados principalmente en- tre 1955 © 1975. A descricéo de paisagens urbanas tais como as descobrimos percor- rendo a cidade dé idéia das etapas de sua evolugao, mas nao explica seu papel, nao mostra do que a cidade vive, nao permite compreender seus problemas. Passemos do olhar do visitante 4 pers- pectiva vertical daquele que dispde de ma- pas, fotografias aéreas € pesquisas sobre os habitos de deslocamentos dos citadinos. A cidade deixa de aparecer como um calei- doscépio. Tudo se torna claro. O espaco se estrutura em torno de um bairro central, ‘onde se localizam os escritérios, as lojas, uma parte significativa de oficinas ou de fébri- ‘cas. Pela manha, as pessoas deixam suas casas para ir 4 fabrica, a0 escritério ou a escola; de tarde, fazem o trajeto no sentido inver- so, muitas vezes parando nas lojas para fa- ze compras. O que faz a cidade viver sio atividades que necessitam de contatos € que nio podem prosperar sendo em um ponto 34 facilmente acessfvel ~ a area central, onde a generalizagéo do automével nao ameace de congestionamento. Para um cineasta que se instalasse acima da cidade e tirasse fotos em intervalos bastante longos para reconstituir de modo acelerado a vida urba- na, a visio vertical deixaria de ser estatica: evidenciaria no inicio da manha a pulsio regular que conduz ao centro todos aqueles que trabalham e que os leva de volta as suas casas no final da tarde. Como na interpretacio fisica, a aborda- gem cronologica tem importincia, mas nao se baseia em cortes ¢ perfis; apdiase em uma cartografia em movimento, cinematogréfica. As paisagens que mentem Ha cerca de vinte anos, eu me encon- trava em um kibuts vizinho de Latroun, onde as colinas da Judéia comecam a se elevar acima da planicie litordnea, na estrada en- tre Tel Aviv e Jerusalém, Conversava com Madame Fabian, uma geégrafa que fazia parte do kibutz. A algumas centenas de metros dali, tendo como fundo © mesmo vale, as edificacdes de um mochaw consti- tufam uma aldeia mais importante que o Kibutz; ali se distinguia o edificio de uma grande escola primaria. Sobre uma das co- linas que dominam o vale, uma das nume- rosas cidades que Israel fundou nos anos cingtienta ostentava suas pequenas constru- Ges quadradas de um branco ofuscante. ‘Também eram visiveis edificios escolares, no estilo de escolas secundérias. Perguntei a Mme. Fabian: “As criancas do kibutz vio A escola priméria do mochav vizinho ¢ A escola secundaria da pequena cidade que estamos vendo?” ‘Com minha formacao de gedgrafo fran- cés, isso parecia natural: 05 servicos se hierarquizam em funcio da freqiiéncia de sua utilizacdo ¢ da clientela a que se desti- nam; era isso 0 que en havia entendido sobre a légica dos lugares centrais - uma das maneiras de explicar racionalmente as pai- sagens lidas como mapas ~ que havia traba- Ihado. Mme. Fabian reagiu vivamente: “Claro que nao! © mochav vizinho é uma colénia de iemenitas, de sefardins. A cidadezinha é essencialmente povoada por judeus norte- africanos, sobretudo marroquinos, Nem pensar em mandar as nossas criancas para as mesmas escolas deles. Nosso kibutz € po- voado por ashkenazes vindos da Africa do Sul. N6s somos liberais!” Esta era, evidentemente, uma outra 16- gica, na qual eu nao havia pensado. E Mme. Fabian continuou: “Israel tornou-se uma terra de guetos. Somos todos judeus, mas queremos educar nossas criancas dentro dos princfpios que escolhemos. Os Aibutzim empregam muito mais recursos que as ou- tras comunidades de Israel na educacao de nossas criangas; em nosso caso, metade da renda da coletividade. Nossas criancas fre- qitentam as escolas da rede dos kibutzim li- berais. Nés as levamos de dnibus. Sao mais de quarenta quilémetros que elas percor- rem diariamente para ir ao colégio! 36 Os constrangimentos causados pela pro- ximidade sio amenizados pelos meios de transporte modernos. A sociedade israelen- se é, a0 mesmo tempo, una € comparti- mentada ~ 0 Estado nao coordena uma colecao de individuos, mas sim uma pluratidade de comunidades. Depois da in- dependéncia, 0 afluxo de colonos fez com que se planejasse uma répida expansio do habitat. Gradus, 0 urbanista responsavel por desenhar a nova geografia do pats, era de origem russa, mas havia sido muito marca- do pela teoria dos lugares centrais. Assim, semeou pelo pais pequenos centros e cida- des médias planejadas, de tal forma que o ‘mapa atual do habitat se assemelha aos que encontramos nos paises ocidentais: caracte- riza-se pela disposicdo relativamente regu- lar dos lugares habitados e por sua hierarquizacao. Mas tudo isso em nada re- flete a realidade funcional. O mapa mente: 0s contatos ndo se estabelecem de forma nenhuma na escala dos lugares centrais mais préximos; cada pessoa circula em rede(s) que Ihe €(sio) pr6pria(s) ¢ freqitenta os pontos de contato dos quais tem necessidade. Da leitura funcional ¢ leitura arqueoligica da paisagem — A leitura funcional encontra, portanto, limites: nem sempre a realidade visivel es- clarece sobre aquilo que realmente aconte- ce. As vezes basta pouca coisa para transtor- nar as condigdes de exploracao das terras. Em muitos openfields antigos, o fim de ve- 37 Ihas obrigacdes coletivas foi acelerado pela invengio do arame farpado ou da cerca cletrificada: os agricultores nao modificaram as suas parcelas de terra. A paisagem ¢ sen pre ade um openfield, mas cada campo esta separado dos outros por uma linha que é suficiente para evitar a intromissio do gado. Nao é mais necessario enviar seus animais manada comunal, uma vez que suas terras esto cercadas ~ ¢, assim, ndo hd mais ma- nada comunal, porque nao ha mais campos € areas em pousio abertos para percgrrer! Funcionalmente, esté-se num bocage’. Na paisagem, ainda predominam os tracados herdados do openfield. A apreensdo das rea lidades visiveis ndo nos ajuda a compreen- der como funciona realmente a economia rural da regiao. Ela nos ensina outra coisa a existéncia, no pasado, de um sistema de openfield, A paisagem tornase documento arqueolégico. Os exemplos de evolucao dese tipo sio humerosos: em todo 0 oeste norte-america- no a paisagem foi modelada no momento em que o Homestead Act permitia que se desenhassem, por toda parte, lotes geom: tricos de 64 hectares; a superficie das terras a serem exploradas era dividida em secdes de 256 hectares, ou seja, uma milha de lado, € 08 distritos tinham seis milhas de lado. As linhas gerais da paisagem em grid pattem nio mudaram. Muitas das exploracées originais ainda existem, convertidas em residéncias * Campo fechado com cercas vivas e habitat rural disperso. 38 permanentes para as pessoas que trabalham nas cidades préximas, ou em residéncias secundérias. Quase sempre as exploracées tém hoje duzentos, quinhentos ou mil hec- tares, € nao 64, Suas terras geralmente se situam a varios quilémetros umas das ou- tras; 0 reagrupamento das fazendas nao as funde necessariamente com as mais proxi- mas. A paisagem é uma espécie de paisa- gem fantasma, Ela nos fala mais da América dos anos de 1880 do que daquela do inicio do século XI. © valor arquesléico da_paisagem é iodelar elementos da paisagem que per- tencem a proprietarios diferenies fmplica o resgate das terras por apenas uma pessoa ow 0 aparecimento de um sistema coerciti- vo de remembramento ou de reorganiza- cao. O poder hesita em fazé-lo, porque se trata de operagies dificeis ¢ necessariamen- te impopulares. Assim, o desenho dos limi- tes de estradas continua 0 mesmo, bem depois do desaparecimento da economia ¢ da sociedade que os estabeleceram: encon- tramos com facilidade, nos tracados das partes antigas de muitas de nossas cidades, © planejamento galo-romano original. O cadastramento romano continua sendo um dos tracos dominantes da paisagem nas pla- nicies da Itélia do norte, particularmente em Emilia e Venécia. Ele desempenha igual- mente um papel importante em uma parte da Tunisia ¢ em boa parte do Midi mediter- neo francés. Estamos prestes a redescobrir 39 os tracos que ele deixou na Alsécia, nas planicies do Sadne, nas Regides Médias sui- cas, na regido de Rennes etc. Dimensio cultural, perspectivas comparati- vas ¢ andlises histéricas A descrigéo das paisagens evidencia a variedade das formas associadas A atividade humana: 0 parcelamento das terras, modo de cercélas, forma e distribuicio das cons- trugdes das exploracdes agricolas, orienta- co das fachadas nos lugares habitados. Aqui, edifica-se em pranchas de madeira superpostas; ali, bastam vigas de sustenta- cdo de madeira, preenchendo a armacao com argamassa, 0s tijolos ou pedras; muitas vezes, 0 conjunto da construcéo é de alve- aria, utilizando-se, conforme 0 caso, a ar- gamassa, a pedra ou 0 tijolo. Entre os geégrafos franceses, Jean Brunhes é 0 mais sensivel a esses aspectos da paisagem: mostra cartograficamente as formas € os materiais com os quais sao fei- tos os telhados na Franca, A geografia cultural, tal como a concebe Pierre Deffontaines, dedica um grande espaco a esses materiais. Ela se detém igualmente nos utensflios, observando que em alguns luga- Tes 0s campos séo revolvidos com arado, enquanto que mais adiante se permanece fiel a uma outra maneira de arar. Os gedgrafos sio sensiveis 4 dimensio cultural das paisagens. Observam os marcos € 08 sinais visiveis sobre o terreno: as igrejas, nas pequenas cidades, as cruzes a0 longo 40 dos caminhos, as pequenas capelas, as ests tuas da Virgem nas regides catdlicas, € os minaretes, os cemitérios de geometrias in- decisas, a meio caminho entre o jardim ¢ 0 terreno baldio, nas regides muculmanas. FE. viajando, familiarizandosse com paisagens diferentes, que os geégrafos se tornam sen- siveis a esses marcos, cuja presenca repetida é sinal de pertencimento, de reconhecimen- to, de onfirmacao de identidades. Assim, nas cidades dos paises muculimanos, 0 pa- pel da grande mesquita e a concentragio do comércio nos mercados (souks) apare- cem como elementos especificos. A presenca de marcos conduz muitas vezes a interpretagdes simplistas: considera- se que todos eles resultam da vontade da- queles que praticam a mesma religiao, fa- lam a mesma lingua ou foram criados numa mesma cultura, de afirmar sua especifici- dade. A cruz é um simbolo, € verdade, as- sim como 0 crescente. Mas as mesquitas tém um minarete para que 0 muezzin possa cha- mar os figis para a prece, e as igrejas tém sinos para que seu soar relembre aos cren- tes os momentos importantes do dia cris- tio. Eles resultam de necessidades funcio- nais. Seu papel simbdlico é derivado. ‘A abordagem funcional associada A vi- sio vertical da paisagem permite, dessa for- ma, irmos mais longe. Por que os centros das cidades do Isla diferem tanto daqueles da Europa ocidental? Sera que af marca a tal ponto essas regides que a légica que tende a ordenar a distribuicao das ativida- des humanas é diferente num lugar e nou- a tro? Certos tracos esto indubitavelmente ligados ao Isla, especialmente a grande mesquita da sextafeira: todos os crentes que estejam na cidade devem entéo ali se en- contrar para rezar; a prece tem mais senti- do se retine, dessa forma, toda a comunida- de. Essa obrigacao religiosa criou, portanto, uma centralidade religiosa que pesa sobre todas as fungdes da cidade: os mercados (souks) séo construfdos na proximidade ou em torno da mesquita para beneficiar-se dos deslocamentos dos crentes. Estamos total mente na légica dos lugares centrais, Mas € por causa da f€ que 0 comércio se apresenta de uma maneira tio original? Nao, Além do mais, a formagio dos mere: dos (souks) & de trés a quatro séculos pos terior 4 chegada do Isla. O agrupamento do comércio em ruas especializadas, fechadas a noite e colocadas sob a vigilancia de guar- das por conta da comunidade dos mercado- res, conserva o estilo administrative que pouco a pouco se impés: mais do que agir diretamente através da intervencao de fun- cionérios e criar um espaco puiblico policia- do, 0s governantes preferem delegar a ges- tao dos espacos comerciais as associacdes de comerciantes. Isso facilita sua tarefa. Os espacos piiblicos s4o, portanto, gerenciados por grupos privados. Este € um costume juridico, ¢ n3o um elemento ligado aos valores dominantes da cultura. Com relacdo ao habitat, a visdo vertical conduz também a uma anélise mais critica de fatos cuja variedade parece 0 traco do- minante. As sedes dos estabelecimentos agri- a2 colas diferem de tal forma por seus detalhes de arquitetura que parece dificil estabele- cer uma tipologia a respeito delas. Se pro- curamos enfatizar a disposicio das constru des, a superposicio ou a justaposigao das habitacdes ¢ de outras construgdes agrico- las, a disposicao das construgées em blocos macicos ou alongados num patio aberto ou inteiramente em volta de um patio fechado, uma ordem aparece, como demonstra Albert Demageon. Isso porque essas disposicoes respondem a necessidades funcionais. E tentador renderse as especificidades culturais das populacées responsiveis pela variedade infinita das paisagens. Os ge6grafos formados nas disciplinas do olhar = que sabem passar da visio horizontal ou obliqua do passante, sensivel a tudo 0 que the chega ao olhar, a visio sintética ofereci- da pela percepcao vertical ~ so sempre reticentes quando lhes s4o propostas inter- pretacdes culturais: eles tém o sentimento de que as abordagens funcionais que apren- deram a desenvolver vio mais longe € per- mitem entrar mais profundamente na inti- midade dos fatos sociais e na sua traducio espacial Outras leituras geogréficas da paisagem A atencdo concedida a paisagem na Alemanha ou nos Estados Unidos foi pelo menos tio intensa quanto ocorreu na Fran- a, mas nao tomou exatamente as mesmas formas. L4, os geégrafos igualmente rompe- ram com a disciplina do olhar, mas a B reconstituicao das formas do relevo - na qual ‘William Morris Davies se destacou ~ perma- neceu nos Estados Unidos como tarefa dos geomorfélogos € pesou menos sobre 0 con- junto da disciplina. Na Alemanha, a pers- pectiva ecolégica experimentou um sucesso mais precoce que em outros lugares. As tentativas de reconstrucao cronolégica das formas da paisagem teve por finalidade con- tar a histéria da biosfera, tanto quanto a historia das formas do relevo, Assim, a visdo que se tem da paisagem deu maior énfase a biosfera do que ocorreu na Franca. O gedgrafo se dedica mais do que nés a determinar a evolucio da cober- tura vegetal. E a isto que se dedica especial- mente Otto Schliiter, 0 primeiro teérico da geografia como ciéncia da paisagem. Ele se esforcou, ao longo de toda a sua carreira, para datar as grandes fases de desmatamento que afetaram a Alemanha e a Europa Cen- tral. Datou os momentos em que as clarei- ras se expandem e aqueles em que a flores- ta retoma o terreno, Em seguida, tentou acompanhar 0s efeitos derivados da agricul- tura, que desnuda os solos e precipita a erosio. Os cortes efetuados nas camadas de sedimentos recentes dos vales corroboram aquilo que se apreende da anélise dos pé- lens encontrados nas turfeiras. A anilise das paisagens realizada pelos gedgrafos alemies , portanto, mais biolégi- ca e€ mais ecolégica que a de seus colegas franceses. Entretanto, a passagem para a concepcio vertical da paisagem Ihes é fami- liar: testemunho disso é 0 papel decisive que 44 eles desempenham na andlise das paisagens agrarias, A visio vertical thes serve, muito mais do que na Franca, para cartografar os elementos fésseis da paisagem — os topénimos, as formas de edificacdo ou a divisio do territério agricola em parcelas, que podem ser atribuidos com seguranca a tal ow tal periodo da historia, a tal ow tal grupo invasor Para Hermann Lautensach, representan- te tipico da geografia alema das paisagens no intervalo entre as duas guerras, essa vi- sio vertical permite situar cada porcao de espaco em uma grade que leva em conside- rac: | - a situacdo em latitude; 2— a maior ‘ou menor continentalidade; 3 - a oposicao das fachadas leste ¢ das fachadas oeste dos continentes; 4 ~ a altitude. 0 método con- duz a definicéo objetiva de unidades de paisagem, destacando o lugar essencial que 0s determinantes fisicos ocupam na confi- guracdo da terra. A andlise ndo ignora o papel da histéria eo da cultura, mas os si- tua de outra maneira nessa grade: no caso da Peninsula Ibérica, a influéncia arabe foi muito mais forte e duradoura do que aque- la que se encontra nas regides mais meridio- nais, mais préximas do litoral oriental € mais marcadas pela secura das reas continentais (Lautensach, 1967, pp. 20-4) A geografia cultural € assim redurida confunde-se com a histéria do povoamento apresentada em um quadro geral naturalis- ta, Nem todos 0s geégrafos alemaes estio de acordo com tal simplificacao. Para Josef Schmithiisen, é preciso ir mais longe ¢ des- 45 cobrir as marcas globais de um povo sobre as paisagens que ele modelou. Wilhelm Heinrich Riehl, na metade do século XIX, havia compreendido perfeitamente isso. Os gedgrafos alemaes da metade do século XX nao vio téo longe. Isso porque foram blo- queados pela idéia de que a paisagem é um objeto, quando deveriam olhéla como a obra de um sujeito, 0 povo, que persegue seu destino e marca 0 espaco segundo modalidades que variam com sua divisao em grandes linhagens, com os diversos status de seus membros e com as oposigdes sociais © politicas que ali se desenvolveram (Schmithiisen, 1954, p. 538). A necessidade de ultrapassar as abordagens muito positivistas entio dominantes manifesta-se, assim, desde a metade do século XX. Nos Estados Unidos, a abordagem da paisagem desenvolve-se sobretudo em Berkeley, sob a instigacio de Carl O. Sauer. [As pesquisas de campo sio muito atentas a variedade de artefatos, utensilios, formas construfdas. As anilises que Fred B. Kniffen consagra ao habitat rural antigo do leste dos Estados Unidos sao perfeitamente represen- tativas desse componente do empreendimen- to que inspira Sauer (Walker & Haag, 1974) 0 que ha de mais original na apreen- sio das paisagens conforme recomenda Sauer esté em outro lugar: na atengao que se deve prestar a sua dimensio viva. Sauer pratica a geografia humana. Em seu enten- der, essa dimensio leva a medir 0 impacto da acio humana sobre a biosfera. Em seu ponto de partida, o objetivo de Sauer esté 46 muito préximo ao de Otto Schliiter. Contu- do, diferenciase dele rapidamente, porque © primeiro nao enfatiza tanto a evolucio das paisagens vegetais naturais e sua substi- tuigao progressiva por pastagens ou campos, mas as transformagées floristicas ocasiona- das pelo homem. Quando os empreendi- mentos humanos desaparecem, seus tracos permanecem visiveis por muito tempo atra- vés das espécies que eles voluntariamente introduziram para cultivé-las, que foram propagadas por seu gado, ou que se insinua- ram como parasitas nos espacos desmatados. Existe, quando se leva em consideracio 0 componente vivo das paisagens, uma ma- neira apaixonante de fazer da biosfera 0 piv dos esiudos geograficos. Isto leva Sauer a tomar posicdes ecolégicas muito avancadas em relagéo as que caracterizam seu tempo (Leighly, 1963). NOVOS OLHARES SOBRE AS PAISAGENS As maneiras de ler as paisagens coloca- das em pauta pelos gedgrafos entre o final do século XIX € 0 inicio dos anos de 1970 revelaram-se muito fecundas. Fizeram com que se tomasse consciéncia das relacdes fntimas que unem os aspectos fisicos, os componentes bioldgicos e as realidades nos ambientes sociais que os homens constitui- ram. Na combinacao do choque que nasce do contato direto do viajante com as coisas € 08 seres, € 0 recuo que resulta da recons- trucio ¢ da leitura vertical da paisagem, 0 pesquisador coloca em evidéncia as grandes a7 distribuicdes que levam as analises funcio- nais ¢ os signos em relacdo aos quais ele mede 0 alcance simbélico. No entanto, 0 desejo de se mostrar objetivo o impede de ir ao fundo das coisas. As atitudes se modificaram no decorrer da década de setenta. O impacto das filoso- fias fenomenolégicas influenciowas signifi- cativamente: 0 mundo que o individuo per- cebe jamais € objetivamente dado. E preci- so fazer um esforco para retornar as sensa- cOes e desconstruir aquilo que nossa educa- cio nos ensinou; entio, € s6 entio, € poss vel, através de uma descri¢do critica ¢ minu- ciosa das sensacdes, compreender as coisas como elas sio € penetrar na sua verdadcira natureza. Nao € este um convite para se re- fletir a respeito do olhar sobre o real que os ge6grafos sustentam ha duas gerages? Nao € este 0 momento de lembrar que a paisa gem é criada pelo observador ¢ que ela de- pende do ponto de vista que ele escolheu & do enquadramento que ele Ihe dé? A liber- dade que tem o geégrafo de se deslocar para multiplicar os angulos no elimina essa di- menséo subjetiva. Roger Brunet ressalta aquilo que 0 oho abarca [..] de uma s6 olhadela, © campo do olhar. A’paisagem é, portanto, uma aparéncia ¢ uma representa: cdo LJ. $6 é paisagem quando percebida Alguns de seus elementos nao aguardaram a humanidade para existir mas, se compdem uma paisagem, & sob a condicao de serem olhados. Somente a representacao os faz paisagem (Brunet, 1992, p. 337) 43 Essas consideracdes levam @ anélise das paisagens uma significacgo completamente diferente A paisagem como conivincia e a emergéncia de uma nova epistemologia De acordo com a ética que esta em vias de nascer, 0 olhar do observador deve con- siderar tanto o pesquisador quanto 0 objeto que constitui a paisagem. Ha alguns anos tentase uma proposicao satisfatéria para essa nova abordagem. E Gilles Sautter quem a formula, propondo estudar a paisagem como conivéncia (Sautter, 1978). Nao € mais a realidade_objetiva que nela reconhecemos que deve reter a atencao, mas a-maneira comio essa realidade fala aos sentidés da- Giele que a descobre, a maneifa pela qual cfiira em harmonia com seus ¢stados d’alma ow Coritraria seus humores. O registro geo- gaACO deixa de considerar que os homens sio independentes do meio onde se encon- tram: eles 56 podem existir nos meios geo- grificos com os quais mantém relacdes mais complexas do que até entio se pensava. Analisar a paisagem como conivéncia explorar fios cruzados, trocas reciprocas, F pelas dimensdes filosdficas de problemas assim colocados que Augustin Berque se interessa a partir do inicio da década de oitenta, Ele comeca esse empreendimento em 1984, debrucando-se sobre a paisagem como marca ¢ como matriz, questio que Ihe parece estar no centro da nova geogra- fia cultural (Berque, 1984). Ele a apresenta da seguinte maneira 49 Na evolucao histérica dos ambientes huma- nos, parece que as sociedades organizam seus ambientes em fungao da percepcad que elas ‘fem deles e, reciprocamente, parece que elas os percebem em funcao da organizacao que dio a eles. Em Hokkaido, por exemplo, os rizicultores japoneses nao perceberam nem ‘organizaram as planicies como o fizeram os cagadorespescadores ainos predecessores, nem como preconizaram seus conselheiros americanos (Berque, 1999, p. 59) O conhecimento que Augustin Berque tem da filosofia japonesa 0 levou a tirar partido dos trabalhos de Watsuji Tetsoro, um aluno de Heidegger que se dedica ao significado do fudo, a tradicional maneira Japonesa de colocar em relacdo os homens © 0 meio onde vivem. Para traduzir os con- ceitos utilizados por Watsuji, Berque pro- poe a introdugéo em francés dos termos médiance © trajection (Berque, 1990) O que a mudanca filoséfica ¢ epistemo- logica acarreta no Ocidente € uma rejeicao do dualismo homem/matéria, tornado cen- tral com Descartes, mas cujas raizes certa- mente sio antigas. Augustin Berque afirma vigorosamente: Trajection. [...] A idéia expressa por trans (tra) € a de um limite, de passar para o outro lado. O limite, no caso, @ aquele que © dualismo modermo instituiu entre o mun- do interior subjetivo eo mundo exterior objetivo. Ora, essa dicotomia é radicalmen- te incapaz de explicar a realidade do 50 ectimeno, logo, da paisagem. Com efeito como mostrou a fenomenologia (principal mente Watsuji) € a antropologia pré-histé- rica (principalmente Leroi-Gourhan), os ambientes humanos sio, por assim dizer, uma extensfio de nosso proprio corpo, tan- to pelo simbolo quanto pela técnica. A téc- nica estende materialmente as fangdes do corpo humano (...]. 0 simbolo, inversamen- te, anula materialmente as distancias A trajection conjuga, assim, transferéncia material e metéfora imaterial (Berque, 1999 pp. 85-6) Através da nova abordagem da paisa- gem, um aggiornamiento de toda a geografia é, assim, colocado em acio. Paisagem ¢ intencionalidade: as organiza- gies Iumanas, a arte dos jardins, a paisa- gem como arte pictural A nova concepgio que os gedgrafos tm da paisagem os leva a se interessarem pelas motivacées daqueles que as desenharam ou organizaram. Para a geografia classica, a paisagem resultava sempre do jogo de me- canismos fisicos, biolégicos ou sociais. Sua andlise nao se detinha absolutamente sobre © sentido que ela teria para os homens. (© ectimeno resultante de um espraiamento 20 mesmo tempo técnico e simbélico da cextensio terrestre, as coisas que o compdem, participam simultaneamente da dimensio ecol6gica da biosfera (onde elas existem fisi SI camente) ¢ da dimensio simbdlica da semiosfera (onde elas existem enquanto que rem dizer alguma coisa para a humanidade que as representa) (Berque, 1999, p. 68) Isso oferece pistas para pesquisa. O gedgrafo nao estuda mais apenas a paisa gem como realidade objetiva. Preocupase com a maneira como a paisagem est carre- gada de sentido, investida de afetividade por aqueles que vivem nela ou que a descobrem. O que faz as pessoas sonharem com as prai- as, com 0 sol, com os mares do Sul © os coqueiros? Com os picos cobertos de neve, com a pureza cristalina do gelo, com 0 perfume revigorante dos abetos ou das es- peciarias? Com os grandes © longinquos horizontes nos quais, por vezes, se desco- brem campos de altitude? © que impulsio- nna os ascetas a se retirarem para 0 deserto? Por que eles procurariam meios tao hostis & vida? Por que a mesma fascinacao é encon- trada em muitos jovens citadinos? A paisagem como objeto de investimentos afetivos Certas porcdes do espaco sio objeto de um investimento afetivo mais profundo do que outras: por que as pessoas tém necess dade de construir monumentos? O que os torma diferentes das construgdes ou dos es pacos verdes em volta? Por que as pessoas consideram alguns acidentes da topografia, certas construgdes, como lugares nobres? Por que valorizam determinados elementos 52 da paisagem ¢ os consideram como elemen- tos de um patriménio cuja preservacao Ihes parece essencial para preservar sna integri- dade? As razdes sio variadas: 0 fato de eles serem lugares de culto, de simbolizarem 0 poder que neles esta instalado, de lembra- rem momentos gloriosos ou dolorosos da histéria de uma coletividade. Outros espa- gos que em nada se distinguem daqueles que 0s cercam sio, no entanto, carregados de poder numinoso: é perigoso visitélos, pois sio freqiientados por espiritos ou pe- Tos deuses; estio 14 para lembrar que exis- tem outras realidades além daquelas do mundo senstvel. Reconhecer que uma area, um edificio religioso, um bosque, sio sagra- dos, significa que as realidades sensiveis tém menos densidade, menos forca, menor sig- icacio que aquelas do além, das quais os espiritos humanos tém necessidade de se beneficiar para descobrir o que deve € 0 que nao deve ser 0 mundo, para fixar as fronteiras do bem e do mal ¢ para dar a todos razdes para esperar. A organizacao planejada como expres- sio de sonhos, apetites € interesses © ato de organizar esté no centro das hovas abordagens. As paisagens nao foram cegamente construidas por atores tao influ- enciados pelo momento que nao projetas- sem para o futuro. Cada decisio tomada para delimitar os terrenos, abrir uma estra- da, erguer uma construcao, resulta de espe- culagdes sobre © futuro: ao se subdividir o 53 pequeno parque em torno de uma residén- cia burguesa, permitese que cada um dos filhos construa uma casa a seu gosto; a rua que se traca é indispensvel ao crescimento da aglomeracdo e em parte a orientard; a0 se construir uma casa estamos pensando no crescimento da familia, nos filhos por vir, no gramado onde eles poderdo brincar etc. Ha freqitentemente uma distancia con- sideravel entre 0 que as pessoas projetam ¢ © que podem realizar? F assim? Mas a ma- neira como as pessoas falam delas mesmas, de suas esperangas, interesses € sonhos nos planos que preparam nao atrafam absoluta- mente a atencdo dos gedgrafos. Estes nao Ievavam isso em consideracdo em seus estu dos da paisagem, a nao ser quando um principe impunha uma reforma agraria que modificava por toda a parte a distribuicao das terras; quando ele mesmo ou os mem- bros de sua corte construfam belos castelos em meio a imensos parques; ou quando 0 crescimento de uma cidade se realizava de acordo com planos de urbanismo a longo prazo ~ estamos pensando na influéncia de Haussmann sobre Paris Na nova tica, levar em consideracao os planejamentos é indispensavel para a com- preensao das paisagens. Pouco importa que a organizacdo resultante seja permanente ou transitéria: 0 que importa é 0 que cla evi- dencia quanto as preocupacées que a moti- varam ¢ as aspiracdes as quais elas respon- dem. Existia uma regra nao escrita que postulava que os geégrafos ndo se ativessem as paisagens do efémero, das festas, das 54 exposic6es internacionais ou das olimpiadas Mas por que nao se deter na exposicio colonial de 1930 se desejamos ter uma idéia da maneira como © imperialismo foi vivido e pensado na Franca entre as duas guerras mundiais? Por que nao se deter na Exposi cao Universal de 1937 para compreender como a Alemanha nazista, a Uniio Soviéti- cae as democracias liberais ~ Gri-Bretanha, Estados Unidos, Franca ~ concebiam a modernidade e apresentavam os temas para justificar as orientacdes dadas a seu desen- volvimento? As estancias hidrominerais, os balnedri- os € os lugares de vilegiatura falam mais da parte de sonho que existe na vida das popu- lagdes do que as cidades industriais. O mesmo se passa com os jardins. Os pintores do Renascimento fazem nascer nos seus quadros, ¢ segundo regras, de perspectiva que eles acabam de desco- brir, pracas regulares, avenidas que fogem de maneira regular até a linha do horizon- te. Uma geracao ou duas mais tarde, os principes se esforcam por desenvolver no- vos baitros ou criar cidades conforme esses sonhos j4 materializados sobre a tela. Desde a década de 1930, Walt Disney fazia sonhar criancas € adultos gracas a seus, desenhos animados € 20s ratos, cies, gatos, elefantes meio humanizados colocados em cena, Em 1954, Disney decide construir no condado de Anaheim, na parte meridional da 4rea metropolitana de Los Angeles, 0 primeiro grande parque de atracio moder- na, Disneyland, onde os cendrios € os per- 55 sonagens dos desenhos animados tornaram- se reais. O sucesso foi tal que a empresa criou, segundo o mesmo principio, 0 Disneyworld, na Florida, depois uma Disneyland em Téquio, a Eurodisneyland em. Paris. Em dez anos, a aventura mudou de dimensao: nao sio mais cenarios de parque que Disney criou, mas cidades inteiras. Tal como no Renascimento, os desenhos acaba- ram por transformar 0 mundo. Os jardins como livres criacies do universo de sonho € como expressao de ideologias Até recentemente, os jardins nao cha- mavam absolutamente a atencao dos gedgrafos, porque ocupavam uma extensio reduzida e tinham um lugar limitado na producio. O mesmo nao acontecia quando se falava de regides rurais, porque era la que se cultivavam os legumes € as arvores frutiferas que contribuiam para dar uma certa variedade a alimentacao. Acontecia 0 mesmo nas cidades, onde a maior parte dos jardins tina os mesmos fins utilitérios, Mas © jardim ornamental que nas casas burgue- sas duplicava a horta, 0 jardim formal, ou 0 parque, néo chamava de nenhuma forma a atengio. Nao se sabia o que dizer deles. Pareciam situar-se fora do corpo principal da geografia Para os defensores da nova perspectiva, © tema do jardim ornamental é, ao contra rio, apaixonante. Aquele que o projeta deve compé-lo de acordo com as particularida- des do lugar onde o traca, com a natureza 36 do solo, com as possibilidades de ligacio a canais de irrigacdo ou de aducao favoravel a irrigacdo, fazer espelhos dos lencéis d’agua e multiplicar as fontes, as cascatas e os cha- farizes. A gama de cores ¢ de formas das quais ele pode dispor depende das espécies de arvores, de arbustos e de flores que pode fazer brotar. Mas o jardim é, sobretudo, um exercicio de composicio livre: para permitir a meditagao solitiria, para evocar a Jerusalém celeste (esta era a ima- gem A qual estavam associados os patios dos conventos medievais, entre suas galerias), falar das ithas dos bem-aventurados; © jar- dim é concebido para servir de ornamento a festas ou para o passeio piiblico, Acontece 0 mesmo com os jardins € com a planificacio das cidades: a arte do pintor precede muitas vezes a do arquiteto paisagis- ta. A paisagem torna-se uma arte importante no século XVII. Geracées de ingleses admi- ram os panoramas encantadores de Claude. Duas geracdes mais tarde, quando a oligar- quia Whig sente necessidade de romper com ‘© modelo do jardim a francesa para mostrar a especificidade dos valores republicanos que ela exige, é em Claude Lorrain que se inspi- ram Lord Burlington e Chambers, os inven- tores do parque inglesa Nao ha arte que fale mais das aspira- Ses profundas ¢ dos sonhos de felicidade dos povos que a arte dos jardins: 2 humani- dade nao nasceu no jardim do Eden? Este nao era construido como os jardins fecha- dos persas, os quais deram seu nome a nosso paraiso? construido 57 O jardim no expressa somente as aspi- rages profundas das pessoas, seu gosto pela harmonia, seu sentido de beleza. Esté carre- gado de ideologia. E isso o que mostram as sabias andlises de Denis Cosgrove: 0 que os nobres de Veneza procuravam, quando cons- trufam belas “vilas” € as cercavam de jar- dins, era afirmar sua legitimidade ostentan- do publicamente o gosto do qual apresenta- vam prova e a qualidade das organizacées que realizavam, Na Inglaterra do século XVIII, a aristocracia Whig se regozija gm mostrar, gracas a suas “vilas” palladianas’ a seus parques, sua recusa ao despotismo a francesa, e em afirmar o seu éxito € 0 seu direito de governar, pelo sucesso 20 mesmo tempo econdmico ¢ estético, as proprieda- des onde ela gosta de residir A arte do jardim, a pintura de paisagens ¢ as sociedades “paisagistas” Nem todas as civilizagées so criadoras de jardins ornamentais ~ neste dominio, as tradicdes sdo originarias do Oriente Médio, da China, da Europa mediterranea, e termi- naram por se difundir do Japao as margens do Atlantico, ¢ em seguida para a América. Os paises onde se pratica a pintura de pai- sagens sio menos numerosos ainda: de um lado, 0 mundo chinés a partir do século IV de nossa era; de outro, 0 Ocidente desde o Tratase do estilo arquitetdnico de Andréa Palladio, arquiteto veneziano do século XVI (N. dos Orgs.) 58 século XIV. “Por que nem todas as culturas chegaram a esses mods de expressio artis- ica?” Esta foi uma das questdes colocadas ha vinte anos por Augustin Berque ¢ Alain Roger (Roger, 1978 e 1997; Berque, 1995) Berque formula a questio nestes termos: © que véem entio as sociedades que nao véem a “paisagem’? Isto 6, a totalidade das sociedades humanas antes que a China do Sul, no século TV da nossa era, reunisse os quatro critérios de uma cvilizacdo “paysagere” ou seja, pela ordem decrescente conceitualizacio da paisagem como tal marcada pela existéncia de palavras para exprimicla ¢ de compéndios estéticos sobre a paisagem (...]; 2 ~ pintura da paisagem; 8 = literatura oral ou escrita exprimindo uma sensibilidade paisagista: 4 — jardins ornamen- tais (Berque, 1999, p. 53) Em outras sociedades, as pessoas nio sio indiferentes ao ambiente onde vivem, mas o exprimem diferentemente Na verdade, a invencdo da paisagem teste- munha uma estetizacao, isto é, um refina- mento, pelas elites cultas, da relacio com 0 meio ambiente. Antes disso, 0 sentimento estético permanecia inserido em uma per- cepcao éinica mais global, diretamente pro- veniente de alguma cosmologia (as razdes de ser do mundo), nos geogramas de um meio determinado. [...] Essa perda da cosmicidade significa uma perda de sentido (Berque, 1999, pp. 53-4) 59 A andlise antropolégica das relacdes com a paisagem implica, portanto, uma reflexdo sobre as formas de visio englobante que caracterizariam o mundo ainda encan- tado das religides tradicionais, onde 0 sa- grado estava em todos os lugares, ¢ sobre as relacées entre o desencantamento do mun- do ¢ a estetizacao da visio da natureza. A natureza das paisagens vernaculares' ¢ as razées de seu sucesso contemporiineo Nao era necessaria nenhuma revolucio nas sensibilidades para que os gedgrafos se interessassem pela estética dos grupos litistas e pela marca que eles imprimiam sobre a paisagem. Mas seria diferente com relacdo as paisagens vernaculares Os tracos da maioria das paisagens re- sultam das miltiplas decisées dos atores sociais, muitas vezes modestos, que edificaram as construcées da fazenda, culti- varam os campos, criaram e mantiveram as estradas, Suas preocupacdes eram sobretu- do utilitérias: era preciso viver, tirar do meio ambiente a sua nutticio, ou o que vender para obter 0 trigo que nao produziam; as construgdes eram concebidas para conser- var as colheitas, abrigar os animais, debu- Ihar os graos no abrigo dos portdes da granja ou sobre uma area adequada, plana e dura, No texto em francés, vemaculaires (= vernaculares, indigenas, originais, nativas, relative & massa da po pulagio) (N. da T.), 60 proteger os instrumentos de trabalho € alo- jar as pessoas, Para construtlas, os agricul tores apelavam para os artesaos, carpintei- ros, pedreiros e oleiros, aos quais ajudavam muitas vezes como mao-de-obra, e que thes serviam de mestres-de-obras. As preocupa- ces destes tiltimos nao eram explicitamen- te estéticas: eles tentavam, com meios limi- tados pelas disponibilidades do mandatério e pelos materiais localmente disponiveis, responder as necessidades expressas por seus clientes. Tinham em mente, para guié-los, uma imagem do que deveria ser uma fun- dacio, um muro, uma janela, uma granja, uma casa. Os trabalhos dos gedgrafos dos sessenta primeiros anos do século XX estabeleceram perfeitamente as condigdes praticas nas quais se realizavam as arquiteturas vernaculares ~ € na escala dos territérios das aldeias, as paisagens vernaculares. Suas andlises para- ram afi existiam formas vernaculares de paisagens agrarias, de fazendas, de aldeias. Elas mostram como essas formas surgiram, mas nio se detém sobre sua qualidade esté- tica, como se essa questéo nao se colocasse. Os pontos de vista sobre as formas vernaculares mudaram. Hoje somos sensi- veis 4 maneira como as aldeias provencais ou languedoquianas, com stas pedras ama- reladas e seus telhados de telhas descora- das, justificamse devido ao meio ambiente das reas de garrigue, em parte minerais, que as envolve. A alegria elegante das aldei- as alsacianas, com seus pinhées sobre as ruas, seus telhados agudos de pequenas telhas, a suas casas com estrutura de madeira, os gerdnios nas janelas, falam de comunidades cuidadosas consigo mesmas. No sul do Cantal, os telhados de pesadas ardésias que brilham ao menor raio de sol ¢ 08 coyaux que escondem a parte inferior de suas incli- nacées, dio uma estranha nobreza as cons- tmugées cujo conforto é, alias, freqiientemen- te muito sumério. Poder-se-iam multiplicar (05 exemplos ao infinito. Isto poderia ser feito inclusive para os bairros modestos e antigos das cidades Os gedgrafos que hoje analisam essas paisagens vernaculares levantam, a seu res- peito, algumas questées importantes. Por que formas que nao foram concebidas para serem belas nos comovem por sta elegin- cia e por sua harmonia? Por que paisagens que resultam de iniimeras pequenas deci- sdes independentemente escalonadas no tempo nos parecem grandes composicdes orquestradas? As respostas sio muiltiplas: uma certa harmonia resultava dos modelos aceitos por todos e que determinavam a inclinacao dos telhados ¢ o material com 0 qual eles eram cobertos. As dificuldades, portanto, eram devidas a estreiteza das es- colhas que se encontravam a disposicao dos agentes, num mundo onde as informagées © 0 conhecimento das técnicas circulavam mal. Elas também resultavam da necessida- de de dispor dos recursos materiais locais, numa época em que os transportes ainda > Coyaux = pecas que prolongam 0 caibro para além dda parede ou muro (ef. Diziondrio Larousse N. aT.) 2 eram muito caros. Nao se pode deixar de pensar também em uma forma de sentido “estético incrustado em uma percepcao ét- nica mais global” (Berque, 1999, p. 54) Outra questio se coloca igualmente para © geégrafo que adota uma abordagem cul- tural. Ela nao diz mais respeito 4 maneira ‘como as paisagens vernaculares nasceram, mas A maneira como hoje sio percebidas e valorizadas, A obra de John Brinckerhoff Jackson nos auxilia a compreender essa mudanca de atitude, da qual ele participa. Desmo- bilizado na Franca, depois da Segunda Guer- ra Mundial, foi ai que ele se interessou pela einologia ¢ descobriu a geografia humana tal como ¢ praticada por Pierre Deffontaines. De volta aos Estados Unidos e fixando-se no Arizona, ele langa nos anos 1950 a revista Landscape, cuja tiragem & modesta, mas cujo ‘impacto intelectual é consideravel. A revista nao trata das grandes composigdes urbanis- ticas 4 maneira do urbanismo da Belle Epoque ow de seu equivalente, 0 movimento City Beautiful dos Estados Unidos. Ela apresenta fazendas modestas, casas de subtirbio, gara- gens, alinhamentos comerciais, como eram vistos no periodo entre as duas guerras mundiais, € como aparecem numa época onde as pessoas se deslocam em viaturas, € onde elas precisam fixar a atengio em al- guns sinais simples e apelativos, os tinicos que se tem tempo de distinguir quando se estd dirigindo. John B. Jackson nos leva 4 descoberta da nobreza ¢ das qualidades estéticas dese 63 vernacular completamente contemporanco, As razdes que o impulsionam a analisé-lo © a amélo sio profundas. A fé de John B, Jackson € penetrante. Ele é sensivel ao pro- fundo sentido humano das comunidades locais. A arquitetura vernacular merece a priori ser estudada porque é aquela da pes soa comum; é aquela que fala a pessoa co- mum; é aquela de uma sociedade crista onde todo mundo é, por principio, considerado; um regime democratico nao € coerente com ele mesmo se nao sabe apreciar aquilo que agrada a suas populacdes mais modestas. Alguns arquitetos americanos foram seduzidos pelas idéias de Jackson. Foram essas idéias que levaram, por exemplo, Venturi a se voltar para a arquitetura de Las Vegas ¢ a fazer, daquilo que se apresentava como um caos sem charme, um modelo daquilo que o urbanismo tinha entéo ne- cessidade ~ 0 que convém a um mundo que quer se ajustar a. uma modernidade muito clitista e muito segura de si mesma A valorizacio das paisagens vernaculares testemunha, portanto, a transformacio pro- funda do olhar que os geégrafos lancam sobre 0 meio ambiente que os homens cons- troem. A paisagem como texto, ou os limites da abordagem semiolégica As pessoas tentam exprimir 0 que elas sio € 0 que desejam parecer através das construgdes que mandam fazer, ou pela maneira como as habitam: 64 [As paisagens] comportam ao mesmo tem- po indicios e signos. Os primeiros sio for- ‘mas sem intencao, Os segundos sao intencio- nis, mas muito raros. (...] A paisagem esté recheada de paingis indicadores da identi- dade do lugar, das diregdes, de obrigagées. de interdigées, de autorizacio, de orienta cao € de canalizacao da cireulagao (Brunet 1992, p. 338) Mare Augé refletiu sobre o papel dessa profusio de indicadores generalizados do ‘espaco que caracteriza 0 espaco modero e orienta as pessoas, permiteshes conviver nas estradas € nos espacos piiblicos sem se co- municarem diretamente: s40 esses espacos preparados para formas estandardizadas de relacdes sociais, de modo que ele os quali- fica de ndo-lugares; eles permitem o desa- brochar da contra-atualidade solitaria que caracteriza as civilizacdes pssmodernas (ou sobre-modernas, como escreve Augé) (Augé, 1962) [A paisagem} € ornamentada pelos teste- munhos dos rituais de socializacdo, monu- mentos que comemoram, palicios que exal- tam 0 poder, lugares de culto que retinem ‘os crentes, lugares separados para outras comunhées: esses pontos de referéncia onde se reconhece a comunidade. Ela é retalha- da por barreiras invenciveis onde se define a individualidade das unidades da comuni- dade, Bem visiveis em certas sociedades; tdcitas, mas percebidas, em outras (Brunet, 1999, p. 388). 65 Mas nem todos os lugares si portado- res de mensagens de igual intensidade: Alguns signos dizem aquilo que parece, outros aquilo que é. Habitamos aqui, e nao em outro lugar: isso pode ter sentido, esta- belece a distingao. As barreiras sio compac- tas ou eves, opacas ou transparentes, com cacos de vidro ou flores. As casas sio and- rnimas e nao dizem nada, porque seus ocu- pantes nada querem dizer; ou sao discretas, elegantes, pretensiosas, excessivamente des- proporcionais; elas expressam a modéstia e a mindcia, a arrogincia ¢ a fortuna, 0 po der e a gloria (ibidem). Fica claro que os homens procuram pasar mensagens quando organizam um espaco ou 0 constroem. Mas podemos ir além disso? E possivel ler, por detras daqui- Jo que as pessoas quiseram dizer, um outro sentido? Podemos reconhecer na paisagem sinais com valor arquetipico que nos escla- recam sobre o inconsciente das populacées que a organizaram? Seria possivel que a geografia, no sentido etimolégico de esc tura sobre a terra, nao se apoiasse em cédi- gos de signos carregados de valores que as pessoas seriam incapazes de explicitar, mas que guiariam suas escolhas e dariam as pai- sagens uma significacao profunda? Na década de 1970 fizeram-se muitas tentativas para construir uma semiética da paisagem, Pouco a pouco elas foram sendo abandonadas, porque repousavam sobre hipoteses frégeis, para nao dizer arbitrérias: 66 A partir dai comega a ambigiiidade funda- mental da semistica da paisagem. As torres, ‘0s campanarios © as mesquitas sio “filicos”, ‘ou sera que foram levantados simplesmente porque essa é a melhor maneira de ver, de ser visto ou compreendido? O mai’ florido que se planta na Gasconha diante da casa do prefeito, € por vezes na de seus adjun- tos, simbolizaria sua virilidade ou simples- mente a amizade dos eleitores ¢ uma infor- macao para os de fora? Os porties € as estreitas passagens, os tinicos que permitem ovacesso as cidades fechadas, estariam Id para marcar ritos de passagem, ou para melho- rar a defesa da cidade? (ibidem) Esses poucos exemplos sio suficientes para mostrar a futilidade do projeto semiético sobre a paisagem. Paisagem e discurso, ow o interesse pela abor- dagem retérica ¢ hermenéutica Os signos de que as paisagens sio por tadoras transmitem mensagens intencionais, geralmente muito féceis de serem decifra- das pelas pessoas familiarizadas com a cul- tura local. Mas nao para os outros. A men- sagem nao se torna clara a nao ser que se conhecam os textos que ela procura trans- crever Mai = devore que se planta no dia 1° de maio em frente & porta de alguém. como homenagem 2 essa pessoa (cf. Dicionério Larousse ~ N. da T) or No inicio do século XIX, no Sri Lanka, © rei de Kandy encontrava dificuldade para controlar uma nobreza muito hostil ¢ influ: enciada pelos agentes ingleses. Carecendo de meios para afirmar seu poder, recorreu, como acontece freqiientemente na Asia meridio- nal ou oriental, a um programa de grandes obras para estabelecer sua autoridade sobre novas bases. Resolveu remodelar € aumentar seus pakicios e apoiar a edificacao de novos mosteiros budistas. Estétuas ornamentam por toda a parte as novas construcées. Para compreender seu significado, de- vemos nos reportar a duas linhas de discur- so: 0s textos do Sakra que falam do rei dos deuses, 0 modelo do monarca universal, no qual se inspira evidentemente 0 rei de Kandy; ¢ os textos asoquianos, que lisonjei- am também o poder ea autoridade, mas de maneira diferente, mostrando 0 soberano cuidadoso em multiplicar os trabalhos para © bem piiblico e a grandeza do budismo - a felicidade espiritual de todos, Nao se pode compreender a cidade sem conhecer essas duas séries de textos. Para ilustrélos, os artistas falam de bom grado da matéria em vez do objeto (do ferro que se cruza, mais, do que da espada), de um traco particular, em vez de uma categoria englobante (dos mortais, em vez dos homens). E multipli cando os sinédoques que os artistas trans- mitem suas mensagens: Um muro que toma a forma de uma vaga ‘ondulante em torno do lago, em Kandy, € que € chamado de Mar de Leite, tornase 68 portador de significacdo que evoca toda a historia complexa da agitagao do Mar de Leite mitico, pelos deuses, na época da cri- acio do mundo. Esse discurso € uma alego- ria da energia criadora que se cré emanar da pessoa do rei ¢ de sua capital (Duncan. 1992, p. 86) E Duncan explica: Foi assim, eu o sustento, que a cidade foi escrita, Podemos compreender sua escritu- ra como a transformacao de outros textos que vém do discurso do poder. Podemos compreender como essa transformacio ocor- reu gracas a0 emprego de sinédoques que permitiram a esses complexos textos escri- tos serem simplificados ¢ inscritos no espa- co ena pedra. Podemos compreender como essa necessaria transformacao foi enriquecida pela recorréncia [...]. Mas ndo devemos entender a compreensio da ma- neira como a cidade € escrita com aquela como ela € lida. Porque, se existe uma po- litica da escritura da cidade, por que nio existitia uma politica da leitura da cidade? Duncan prossegue entio com as leitu- ras da cidade que os textos do inicio do século XIX the permitiram reconstituir: aquela que 0 rei procurou promover e que insiste, conforme a tradicdo dos textos Sakra, na gloria que o reino inteiro obtém da maneira como seu soberano honra as tradi- 6es religiosas; € aquelas que foram desen- volvidas pelos nobres revoltados contra 69 rei, depois pelos camponeses, © que repow- sam numa leitura na tradi¢io Asoka: impon- do um programa de construcio muito caro, © rei desviou-se do modelo do grande sobe- rano, que deve pensar, antes de tudo, no bem de seus stiditos (idem, pp. 89-90) Qs trabalhos de Duncan oferecem um maravilhoso exemplo daquilo que 0 desen- volvimento das concepcées recentes da and- lise de texto pode trazer para a geografia As pesquisas, em sua maioria, nao se atém, como 0 faz Duncan, a dialética entre a es- critura € a leitura da paisagem. Consideram grandes paisagens complexas, em grande medida vernaculares, se bem que seja im- possivel ver nisso a expresso de um projeto claro. Quando as viagens comecaram a se desenvolver, no século XIX, os turistas se confrontassem com paisagens que os sir preendiam e que, espontaneamente, nio compreendiam. Eles tinham necessidade de ‘guias para ajudéclos a interpretar o que viam. Os editores compreenderam que existia dinheiro a ganhar nesse setor. Analisando- se 0 contetido dos guias publicados sobre uma cidade durante um perfodo bastante prolongado, ¢ possivel, a0 mesmo tempo, ver como as transformacées - como a che- gada do vapor, o desenvolvimento da indtis- tria € do comércio ~ sio levadas em consi- deracio ¢ seguir a génese dos esteredtipos que acabam por imobilizar a leitura. Os trabalhos de Saunier sobre Lyon e de Claire Hancock sobre Londres dio uma boa idéia dessas novas orientacdes da pesquisa geo- grafica sobre a paisagem. 70 ConcLusio ‘Avaliamos, com a rapida enumeragio das pistas abertas pela mudanca de perspec- tivas que presidem 0 estudo geografico das paisagens, a profundidade das alteragdes que neste aspecto nossa disciplina conheceu. O que, evidentemente, nao significa dizer que as novas abordagens tornaram obsoletas aquelas empreendidas na primeira metade do século, Elas as complementam, mostran- do 0 quanto as preocupagées atuais vio mais longe: ndo se trata mais de contentarse em descrever o meio ambiente no qual vivem ¢ trabalham os homens; 0 que se procura compreender sao as relacdes complexas que se estabelecem entre os individuos € os gru- pos, 0 ambiente que cles transformam, as identidades que ali nascem ou se desenvol- vem. Este é um dos caminhos reais para compreender 0 mundo. O perigo, talvez, é esperar muito dele: A paisagem como conjunto de indicios diz muito sobre a sociedade que a produziu, Nao sem tendenciosidade: partes escondi- das, indicios enganosos, polissémicos, reme- tem a indicagdes diferentes; a “mensagem” € embaralhada, em parte por causa dos remanescentes: intimeros tragos estio mor- tos, vém de movimentos do passado. Devi- do a todos esses vieses, a paisagem nio é uum reflexo. Se ela ensina, o faz mal. Ela permanece o que é, o que é suficiente para améla € consideréla como obra dos homens ¢ das forgas naturais. E aquilo que ela reve- 7 la a quem sahe olhar. Se a esquecermos, erraremos e perderemos uma dimensio do mundo (Brunet, 1992, p. 339) REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ANDREOTTI, Giuliana. Paesaggi Culturali. Teoria © Cast di Studio. Milao: Unicopli, 1996 BERQUE, Augustin. “Paysage-empreinte, Paysage- matrice: Eléments de Problématique pour une Géographie Culturelle”. L'Espace Géographique, v.13, n. 1, 1984, p. 334 “Médiance”. De Milieux en Paysages. Montpellier: Reclus, 1990. ——. Les Reisons du Paysage. De la Chine Antique aux Environnements de Synthese. Paris: Hazan, 1995. et al. Mowance. Cinguante Mots pour le Paysage. Paris: Editions de la Villette, 1999. BRUNET, Roger (org.). Les Mots de la. Géographie, Dictionnaire Critique. Paris/Montpellier: La Documentation Francaise /Reclus, 1992 CHENET, Francoise (org.). Le Paysage et ses Grilles Paris: L'Harmattan, 1996. CLAVAL, Paul. "L’Analyse des Paysages", Geographic et Cultures, v. 4, n. 18, 1998, pp. 55-74 COSGROVE, Denis. Social Formation and Symbolic Landscape. Londres: Croom Helm, 1984. COSGROVE, Denis & Stephen Daniels (orgs) The Tconography of Landscape. Cambridge: Cambridge University Press. DUNCAN, James W. City as Text: The Potties of Landscape Interpretation in the Kandyan Kingdom. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. 2 “Re-Presenting Landscape: Problems of Reading the Intertextual”, In: MONDADA, L: PANESE, F. & SODERSTOM, O. (orgs.) Paysage et Crise de la Lisibilté. Lausanne: Institut de Géographie, 1992, pp. 81-91 FENELON, Paul. Vocabulaire de Géographie Agraire Gap: Louis Jean, 1970. HUMBOLDT, Alexandre von. (1810). Vues des Cordillres et Monuments des Peuples Indigines de VAmérique, Paris/Nanterre: Réédition/ Editions Erasme, 1989. JACKSON, John B, “The Order of a Landscape Reason and Religion in Newtonian America” In: MEINIG, Don (org.). The Interpretation 0 J Ordinary Landscapes. Geographical Essays Nova York: Oxford University Press, 1979, pp. 15363. LAUTENSACH, Hermann. Gengrafia de Espana y Portugal. Barcelona: Vicens Vives, 1967. Edt

You might also like