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DOCUMENTOS de LDENTIDADE Tomaz Tadeu da Silva Uma introducéo as teorias do curriculo | } 214.1 38 Tracar|lam mapa dos estudos sobre sie 8 gyno vinte,até sigtuais teorias ps-criticas €0 | curticulo jones UE Se propOE este livro. Em capitulos. by curtos ¢ redigidios em tinguagem diretay autor nos fOffece tum panoranna sin tico, mas ante, das. princi perspectivas sobte Ghrriculo. “O que ensinar?” s¢_constiviitu questi que;a principio,as teorias do cur: responder, Concebida tradicionais como uma questio simplesmeiiiertéenieay ico © mobinds. perspectivas tradicige nals tomavaberpPUponts 9 questaocg cn ensinar?” clini) diclt © se cofitentravam fa questio e@como ensinae”, Pars sal perspectivas, teorizar” 0 curriculo res mise em discutir as melhiores © mais ef Gientes formas de organiza to As teorlas criticas aFlam, contestar, dé (/) 0. form raclical, esse ra “y primero movimento seria ‘le questio- nar. o conhecimento corporiexde HO"CUE riculo, Hus entio perguntam: por que este conheciy » fiz parte do curricula e nao outho? Por que alguns conhecimenton Sho considerdos” willdosme ralge Outs? nhecimentos Ccurriculo,enaygnto outros exec Copyright ° 1999 by Taraz Tadeu da Sia cara Jairo Atrarengo Fonseca, compesido sobre as pinures “The teacher (su o)"e “Jesus — Serene”, de Marlene Dumes, rebroduzidas com autorizacda do artista da lire Marlene Dumas, de autor de Deminic an den Boogerd, Barbara Bleora ¢ Manuccia Casadi,pubicado pela edtora Phoidon EDITORAGAO ELETRONICA Waldénia Alvarenga Sontos Ataide REVISAO. Ranerta Arreguy Maia Silva, Tomaz Tadeu da Sood Documentos de identiéade ; uma Introducio as teorias do curricula Tomaz Tadeu daSilva. ~2.00, 5 reimp. ~ Belo Horizonte: Auténtice, 2005 Isep. IBN 85.26503-448 |, Educagto 2, Curriculos escolares. | Titulo cua? wiaiat 2005 Teas os dicitos reservads pela AutEniies Fanora, Senhons pane desta pablicicio poderi ser reproduzida, soja pon melas mecinicos ews, suja 01 ctipie Serogrdfica sewn a autorbagio paca ea edtora AUTENTICA EDITORA 18 — Nova Floren ~ Bela HevironteyMGe 140-290 — PAL: (95 31) Mas 3022 swweautenticaeditera.com:br e-mail anteniics Gautenticsed zora.com br Agradecimentos Meu muito obrigado 4s pessoas que leram as primeiras versces deste livro © me deram valiosas sugestOes: Alfredo, Antonio Flévio, Gelsa, Guacira, Sandra. Agra- deco, especialmente, 4 Guacira, 0 estimulo e 0 apoio que me fizeram sobreviver as solitarias sess8es frente a tela do computador. Agradeco a Rejane, da Auténtica Editora, pelo apoio irrestrito & concepsio do livro. LIVRABIA CONHECER Tet. (011) 4586-2351 4500-2070 Suma 1. INTRODUGAO. Toorias do curricule: © que é isto? "1 Il, DAS TEORIAS TRADICIONAIS AS TEORIAS CRITICAS Nascem os “estudes sobre curriculo”: as worias tradicionals 2 Onde a critica comeca: ideologia, reproducio, resisténcia 29 Contra a concepgio técnica: os reconceptualisas 37 A critica neomarxista de Michael Apple 45 © curriculo como politica cultural. Henry Giroux si Pedagogia do oprimido versus pecagogia dos contetidos 57 © curriculo como construgio social a "nova sotiologia da ecucagao” 6 Cédigos ¢ reproducio cultural: Basil Bernstein 7 Quem escondeu 0 curriculo ceulto? 7 Ill. AS TEORIAS POS-CRITICAS Diferenga e Ideneidade: 0 curriculo multicutturalisia 85 As relagées de género e a pedsgogia feminizta 91 © curriculo como narrativa etnica ¢ racial ” Una coisz “estranha” no curriculo: a teoria queer 105 © fim cas metanarrativas: 0 pds-modernismo i A critica pés-estruturalista do curricule 7 Uma teoria pos-colonialista do curricula 125 Os Estudos Culturais e 0 curriculo 131 A pedagogia como cultura, a cultura como pedagogia 139 IV. DEPOIS DAS TEORIAS CRITICAS E POS-CRITICAS CCurriculo: uma questo de saber, poder ¢ identidade 45 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS 1S I. INTRODUGAO Teorias do curricul © que @ uma teoria do curriculo? Quando se pode dizer que se tem uma “teoria do curriculo"? Onde comeca e como se desenvolve a histéria das teorias do curriculo? © que distingue uma “teoria do curriculo” da teoria educacional mais ampli? Quais sto as principais teorias do curriculo? © que dstingue as teorlas tra dicionais das teorias criticas do curriculo? E 0 que dstingue as teorias criticas do eurricule das teorias pos-criticas? Podemos comecar pela discussio da propria nogao de “teoria”. Em geral, est implicita, na noo de teoria, a suposigio de que a teoria “descobre” o “real”, de que ha uma correspondéncia entre a “ceoria” © a “realidade”, De uma forma ou de outra, a nogio envolvida ¢ sempre representacional, especular, mimética: a tworia represents, rellece, espelha a reali- cade. A teoria & uma representacio, uma imagem, um reflexo, um signo de uma redlidade que — cronologicamente, on- tologicamente — a precede. Assim, para ja entrar no nosso tema, ura tearia do curricuio comegaria por supor que existe, 3 O que é isto? “Ya fora’, esperando para ser descoberta, deserita © explicada, uma coisa chamada “ecurticulo”. © curriculo seria um objeto que precederia a teoria, a qual sé entraria em cena pata descobri-lo, descrevé-lo, explica-l. Da perspectiva do pés-estruturalismo, hoje predominante ne anilise socal e cul- tural, precisamente esse viés represen- ‘tacional cue tora problematico 0 préprio. conceito de teor'a. De acorde com essa Visio, € impossivel separar a descricio simbélica, linglistica da realidade — isto é a teoria — de seus “efeitos de realida- de", A “teoria” nao se limitaria, po's, a descobrir, a descrever, a explicar a reali- cade: a teoria escaria irremediavelmente implicada na sua produgao. Ao descre- ver un “objeto”, a teoria, de certo modo, inventa-o. © objeto que 2 teoria supesta- mente descreve 6, efetivamente, um pro- duto de sua criacio. Nessa directo, faria mais sentido falar no em teorias, mas em discursos ou tex- tos. Ao daslecar a anfase do conceito de teoria para o de discurso, a perspectiva pos-estruturalista quer destacar precisa- mente 0 envolvinento das descricSes in- glisticas da “realidade” em sua produsée. Uma teoria supostamente descobre descreve um objeto que tem uma exis- téncia independent relativamente 8 teo- ria, Um discurso, em troca, produz seu proprio objeto: a existéncia do objeto 6 inseparével da trama linguistica que su- postamente o descreve. Pare volear ao nosso exemplo do “curriculo”, um dis- curse sobre o curriculo — aquilo que, uma outra concepsio, seria uma tecria — no se restringe a representar uma ccolsa que seria 0 “curriculo”, que existi ria antes desse discurso e que esta ali,ape- nas & espera do ser descoberto e descrito. Um discurso sobre o curriculo, mesmo que pretends apenas deserevé-lo “tal como ele realmente 6”, 0 que efetivamen- te faz & produzir uma nogio particular de curricula, A suposta desericio ¢, efetiva- mente, uma criagdo. Do porto de vista do concelto pés-estruturalista de discurso, a “teria” esea envolvide num processo cir- cular: ola desereve como uma descober- taalgo que ela prépria criou, Bla primeiro ria e depois descobre, mas, por um arti ficio resérico, aquilo que ela cria acaba aparecendo come uma descoberta Podemos ver como isso funciona num caso concreto. Provavelmente o curriculo aparece pele primeira vez como um ob- jeto especifico de estudo e pesquisa nos Estados Unidos dos anos vin:e. Em co- nexéo com © proceso de industr G20 € OS movimentos imigratorios, que intensificayam a massificagic da escolar za¢io, houve um impulso, por parte de pessoas ligadas sobresude & administra fo da educacio, para racionalizar 0 pro cesso de construgéo, desenvolvimento € testagom de curriculos. As idéias desse grupo encontram sua maxima expresso no livre de Bobbitt, The curriculum (1918). Aqui, 0 curricalo ¢ visto como um pro- cesso de racionalizagio de resultados edu- cacionais, culdadosa e rigorosamente especificados ¢ medidos, O modelo insti tucional dessa concepgao de curriculo € a fabrica, Sua inspiragdo “tedrica” é a “ad- ministracio cientifica”, de Taylor. No modelo de curriculo de Bobbict, os estur dantes devem ser processados como um produto fabril. No discurso curricular de Bobbitt, pois, © curriculo & supostamen- te isso: a especificagdo precisa de objett- vos, procedimentos © métodos para a ‘obtencio de resultados que possam ser precisamente mensurados. Se pensamos ro modelo de Bobbitt através da nocéo tradicional de teoria, ele teria descoberto © descrito 0 que, verdadeiramente, @ 0 “curricula”. Nesse entendimento, o “cur- Ficulo” sempre foi isso que Bobbitt diz ser: ele se limitou a descobri-lo e a des- crevé-lo, Da perspectiva da nocio de “discurso”, entretanto, néo existe ne- nhum objeto “li fora” que se possa cha- mar de “curriculo”, © que Bobbitt fez, como outros antes depois dele, foi criar uma nogéo particular de “curriculo’ Aquilo que Bobbite dizia ser “curriculo” assou, efetivamente, a ser 0 “curricula! Para um niimero considerével de esco- las, de professores, de estudantes, de ac- ministradores educacionais, “aquilo” que Bobbitt definiu como senco curriculo tor- nowse uma realidade. A nocio de discurso teria uma vanta- gem adicional. Ela nos dispensaria de fazer 0 esforgo de separar — como seria- ‘mos obrigados, se ficéssemos limitados & nogio tradicional de teoria — assergées sobre a realidade de assercbes sobre como deveria ser a realidade, Como sa: bemos, as chamadas “tearias do curricus Jo, assim como as ceorias educacionais mais amplas, esto recheadas de aficma- ‘sOes sobre como as coisas deveriam ser. Da perspectiva da nocdo de discurso, es- tamos dispensados dessa operasio, na medida em que tanto supostas asserg6es sobre 2 realidade quanto assergbes so- bre como a realidade deveria ser tém “efeitos de realidade” similares, Para die zer de outra forma, supostas assergBes sobre a realidade acabam funcionando como se fossem asser¢des sobre comoa realidade deveria ser. Elas tm o mesmo feito: 0 de fazer com que a realidade se torne © que elas dizem que é ou deveria ser. Para retomar o exemplo de Bobbitt, & irrelevante saber se ele esti dizendo que © curriculo ¢, efetivamente, um proces: 80 industrial e administrativo ou, em vez disso, que o curriculo deveria ser um pro- cesso industrial e administrative. O efei- to final, de uma forma ou outra, € que © curriculo se torna um processo industrial © acministrativo, ‘Apesar dessas adverténcias,a uslizagio da palavra “teoria” esti muito amplanen- te difundida para poder ser simplesmente abandonada. Em vez de simplesmente abandoni-la, parece suficiente adotar uma compreensio da nogio de “‘teeria” que ‘ngs mantenha atentos ao seu papel ativo a constituigo daquilo que ela suposta: mente descreve, £ nesse sentido que a palayra “teoria’, 20 lado das palavras “dis- curso” @ “perspectiva”, sera utilizada 20 longo deste livro. ‘Aadogio de uma nogio de teoria que levasse em conta seus efeitos discursivos ‘nos pouparia de uma outra dor de cabe- gata das definigdes. Todo culo que se preze inicia com uma boa discussie sobre © que 6, afinal, “curricu- Jo”. Em geral, comecam com as definigoes cadas pelo diciondrio para, dopeis, per- correr as definigées dadas por uns quan- ‘tos manvais de curriculo. Na perspectiva aqui adotada, que vé as “teorias” do cur- riculo a partir da nogdo de discurso, as defnicées de curricula nio sio utilzadas para capturar, finalmente, o verdadeiro significado de curriculo, para decidir qual delas mais se aproxima daquilo que 0 curriculo essoncialmento &, mas, em voz disso, para mostrar que aquilo que o cur- riculo € depende precisamente da forma como ele & definido pelos diferentes au- tores € teorias. Uma definigéo néo nos revela 0 que 6 essencialmente, 9 curri- culo: ume definigéo nos revela 0 que uma determinada teoria pensa o que 9 curri- culo 6, A abordagem aqui é muito menos entolégica (qual 6 0 verdadeiro “ser de curriculo?) e muito mais histérica (como, 0 de curri- em diferentes momentos, em diferences teorias, © curricula tem sido definide?). Telvez mais importante mas interes sante do que a busca da definicgo ultima de “curriculo” seja a de saber quais ques- tes ume “teoria” do curriculo ou um discurso curricular busca responder. Per- correndo as diferentes e diversas teorias do curriculo, quais questées comuns elas tencam, explicit ou implicitamente, res- ponder? Além das questSes comuns, que questbes especifcas caracterizam as di- ferentet teorias do curricula! Como es- sas questoes especiticas distinguem as diferentes teorias do currieulo! A questio central que serve de pano de fundo para qualquer teoria do curricu- lo 6 a de saber qual conhacimento deve ser ensinado, De uma forma mats sintética a questio central & © qué? Para respon- der a essa questio, as diferentes teorias podem recorrer a discusses sobre a natureza humane, sobre a ratureza da aprendizagem ou sobre a natureza do co- nnhecimenco, da cultura e da sociedade. As diferentes teorias se diferenciam, inclusi- ve, pela diferente énfase que déo a esses elemencos. Ao firal, entretanto, elas tém que vokar 4 questio bisica: 0 que eles ou eas devem saber? Qual conhecimento ou saber & considerado importante ou valido ou essencial para merecer ser considera- do parte do curriculo? ‘A pergunta “o quél”, por sua vez, nos revela que as teorias do curriculo esto envolvidas, expiicita ou implicitamente, em desenvolver critérios de selegio que iustifiquem a resposta que darSo Aquela questdo. © curricule ¢ sempre o resuka- do de uma selegio: de um universe mais amplo de conhecimencos e saberes sele- ciona-se aquela parte que vai constitui precisamente, o curriculo, As teorias do curriculo, tendo decicido quais conheci mentos devem ser selecionados, buscam justifiear por que “esses conhecimontos” @ no “aqueles” devem ser selecionados. Nas teoras do curriculo, entretanto, 2 pergunta “’o qué?” nunca esté separada de uma outra importante pergunta: “o que oles ou clas devern ser?” ou, melhor, "o que eles ou elas devem se tornar’”. Afinal, um curriculo busca precisamente modifi car as pessoas que vio “seguir” aquele curriculo, Na verdade, de alguma forma, ssa pergunta precede # pergunta “o que”, na medida em que as teorias do currfculo deduzem o tipo de conhecimento consi- derado importante justamente a partr de descri¢des sobre 0 tipo de pessoa que elas consideram ideal. Qual 6 6 tipo de ser hit mano desejavel para um determinado tipo de socedade? Seré a pessoa racional e lus: ‘ada do ideal humanista de educago? Ser a pessoa otimizadora © competitiva dos atuais modelos neoliberais de educagio! Sord a pessoa ajustada aos ideais de cida- dania do moderno estado-nagio? Seré a pessoa desconfiada e critiea dos arranjos sociais existentes preconizada nas teorias educacionais criticas? A cada um desses “modelos” de ser humano corresponderd um tipo de conhecimento, um tipo de curriculo. No fundo das teorias do curriculo esta, pois, uma questo de “identidade”” ou de “subjetividade"’ Se quisermos recorrer 4 etimologa da palavra “curriculo”, que vem do latim curriculum, “pista de corrida”, podemos dizer que no curso dessa “corr da” que 6 © curriculo acabamos por nos tornar © que somos, Nas discussdes cot dianas, quando pensamos em curriculo pensamos apenas em conhecimento, esque- cendo-nos de que 0 conhecimento que constitui 0 curriculo esta inextricavelmens te, centralmente, viaimente, envolvide in qulo quesomos, naquilo que nos tornamos; fa nossa identidade, na nossa subjetivida de. Talvez possamos dizer que, além deuma questio de conhecimento, o curriculo & também uma questio de identidade. E so- bre essa questo, pols, que se concentram também as teorias do curriculo. ¥ Da perspectiva pés-estruturalista, po- demos dizer que 0 curriculo & também uma questio de poder e que as teorias do curriculo, na medida em que buscam dizer 0 que © curriculo deve ser, nio podem deixar de estar envolvidas em questées de poder. Selecionar é uma ope- ragio de poder. Privilegiar um tipo de conhecimento 6 uma operagio de po- der. Destacar, entre as miltiplas possibi- lidades, uma identidade ou subjetividade como sendo a ideal é uma operacto de poder. As teorias do curriculo nio es- to, neste sentido, situadas num campo “puramente” epistemolégico, de compe- ticio entre “pures” teorias. As teorias do curriculo est8o ativamente envolvidas nna atividade de garantir 0 consenso, de obver hegemonia, As teorias do curri- culo estio situadas num campo episte- mologico social. As teorias do curricule estio no centro de um territério con- testado. E precisamente a questéo dopoder que vai separar as teorias tradicionais das teo- Flas criticas e pés-criticas do curriculo, As wori tradicionais pretendem ser apenas isso: “teorias” neutras, cientificas, desin- teressades. AS teorias criticas e as teorias pés-critieas, em contraste, argumentam que nenhuma teorie € neutra, cientifica ou dosinteressada, mas que std, inovieavel- mente, implicada em relagbes de poder. ‘As teorias tradicionais, ao aceitar mais fa- ilmente 0 status quo, 0§ conhecimentos e os saberes dominantes, acabam por se concentrar em questies técnicas, Em ge- ral, elas comam a resposta a questi “o qua?” como dada, como ébvia @ por isso buscam responder a uma outra questo: “comel”. Dado que temos esse conheci- mento (inquestionavel?) a ser transmitido, qual & a melhor forma de transmit-lo? As teorias tradiclorais se preocupam com questes de organizacao. As ceorias eriti- ase pés-criticas, por sua vez. néo se limi= tam a perguntar “o qué?”, mas susmetem este “qué” a um constante questionamen- to, Sua questao central seria, pois, ndo tanto “0 qué?”, mas “por qué”. Por que esse conhecimento e nao ourro? Quais interes- ses fazom com que esse conhecimento nfo outro esteja no curriculo? Por que privilegiar um determinado tipo de iden- tidade ou subjetividade e nao outro! As teorlas criticas e pos-crticas de curriculo estio preocupadzs com as conaxdes en- tre saber, identdade e poder. ‘Como vimos, uma teoria define-se pe- os conceitos que utliza para conceber a “cealidade”, Os conceltos de uma teoria dirigem nossa atencio para certas coisas, que sem eles nao “veriamos”. Os concel- tos de uma teoria organizam e estruturam nossa forma de ver a “realidade”. Assim, tuma forma itil de distinguirmes as dife- rentes teorias do curriculo é através do ‘exame dos diferentes conesitos que clas empregam. Neste sentido, as teorias eriti- as de curriculo, ao deslocar a énfase dos conceitos simplesmente pedagégicos de ensino e aprendizagem pera os conceitos de ideologia © poder, por exemplo, nos permitiram ver a educac3o de uma nova perspectiva, Da mesma forma, ao enfatiza- rem 0 conceito de discurso em vez do conceito de ideologia, as teorias pos-crit- cas de curricule efetuaram um outro im- portante deslocamento na nossa manei de conceber 0 curriculo, Por isso, a medi- da que percorrermos, nos tépicos a se- guir, as diferentes teorias do curriculo, podesser dul ver em mente o seguince qua- dro, que resume as grandes categorias de teoria de acordo com os conceitos que ‘las, respectivamente, enfatizam TEORIAS TRADICIONAIS ensino aprendizagem avaliagio metodologia diciatica organiza¢ao planejamento eficiéncia objetivos TEORIAS CRITICAS ideologa reprodueio cultural e social poder classe social capitalismo relacdes socials de produgo conscientizaglo ‘emencipacio ¢ libertagio currfculo oculto resisténcia ‘TEORIAS POS-CRITICAS. identidada, alteridade, diferenca subjetividade significagéo e discurso saber-poder representacio cultura enero, raga, etnia, sexualidade mukiculturalismo Il. DAS TEORIAS TRADICIONAIS AS TEORIAS CRITICAS Nascem os “estudos sobre curriculo”: as teorias tradicionais A existéncia de teotias sobre 0 curri- culo esté identificeda com a emergencia do campo do curriculo como um campo pro- fissional, especializado, de estudos e pes- quisas sobre 0 curriculo. As professoras @ 08 professores de todas as épocas e luge- res sempre estiveram envolvidos, de uma forma ou outra, com o curriculo, antes mesmo que © surgimento de uma palavra especializada como “curriculo” pudesse designar aquela parte de suas atividades que hoje conhecemos como “curriculo”, A emergéncia do curriculo como campo de estudos esti estreitamente ligada a pro- cess0s tals como a formacio de um corpo de especialistas sobre currieulo, a forma G20 de disciplinas ¢ departamentos univer so de setores especizlizados sobre curriculo nna burocracia educacional do estado ¢ surgimento de revistas académicas espe- cializadas sobre curriculo, sithrios sobre curriculo, a institucion De certa forma, todas as teorias peda- ‘gogicas ¢ educacionais so também teorias sobre 0 curriculo, As diferentes filosofias educacionais e as diferentes pedagogias, em a1 diferentes épecas, bem antes da insticucio- nalizagdo do estudo do curricule como campo especializado, nio debaram de fe- zer especulacées sodre o curriculo, mes- mo que nio utilizassom © tormo, Mas as teorias educacionais ¢ peda- gogicas nao sao, estritamente falando, teorias sobre 0 curriculo. Ha anteceden. tes, na historia da educagio ocidental moderna, institucionalizada, de preocu- pagoes com 2 organizacdo da atividade educacional © até mesmo de uma aten- 40 consciente A questo do que ensi- nar. A Didactica magna, de Comenius, & um desses exemplos. A prépria emer- géncia da palavra curriculum, no sentide que modernamente atribuimas 20 ter- mo, esti ligada a preocupacoes de or- ganizac30 e método, como ressaltam as pesquisas de David Hamilton, O termo curriculum, eneretanto, no sentido que hoje Ihe damos, s6 pessou a ser utiliza- do om paises curopeus como Franca, Alemanha, Espanha, Portugal muito re- centemente, sob influéncia da literacu- ra educacional americana. E precisamente nessa literatura que 0 termo surge para designar um campo es: pecializado de estudos. Foram calvez as condiges associadas com a institucionali- aco da educzgio de massas que permiti- ram que © campo de estudos do curriculo surgiste, nos Estados Unidos, como um campo profissional especializado, Esto centre estas eondigdes: a formacao de uma burocracia estatal encarregada dos nego- cios ligades 4 edueacio; 0 estabelecimen- to da educagao como um objeto proprio de estude cientifico; a extensio da educa- lo escolarizada em niveis caca vez mais altos a segmentos cada vex maiores da populz¢io: as preocupagbes com a manu tengo de uma identidace nacional, como resultado das sucessivas ondas de imigra- 620; 0 processo de crescence industrial zagio 6 urbanizagio, E nesse contexto que Bobbitt escre- ve, em 1918, 0 livro que irla ser conside- rado © marco no estabelecimento do curriculo como um campo especializado de estudos: The curriculum. O livro de Bobbict € escrito num momento crucial da histéria da ecucagio estadunidense, num momento em que diferentes forcas econémicas, peliticas e culturais procu ravam moldar 0s objetivos ¢ as formas da n educacao de massas de acordo com suas defense parteularac-visean E-nesee momento que se busca responder ques- tes crucisis sobre as finalidades ¢ os con. tornos da escolarizacio de massas. Quais 08 objetivos da educagio escolarizada: formar 0 trabalhador especializado ou proporcionar uma educagao geral, acadé- mica, 4 populacio? © que se deve ensi nar: as habilidades basicas de escrever, ler @ contar; as disciplinas académicas hu- manisticas; as disciplines clenuificas; as habilidados priticas necessérias para as ocupacées profissionais? Quals 2s fontes principais do conhacimento a ser ensina- do: 0 conhecimento académico; as disci- plines cientificas; os saberes profissionais do mundo ocupacional adulto! O que deve estar no centro do ensino: os sabe: res “objetivos” do conhecimento organi rado ou as percepgbes € as experiéncias “subjetivas” das criancas e dos jovens? Em cermos sociais, quais devem ser as finali- dades da educagio: ajustar as criancas € 08 jovens 4 sociedade tal como ela existe ‘ou prepari-los para transformi-la; a pre- paracio para a economia ou a prepara- gio para a democracia? As respostas de Bobbitt eram claramen- te conservadoras, embora sua intervencio bbuseasse transformar radicalmente 6 sisto: ‘ma educacional, Bobbitt propunha que a escola funcionasse da mesma forma que qualquer outre empresa comercal ou in- dustrial. Tal come uma indistria, Bobbi queria que sistema educacional fosse capaz de especificar precisamente que re- sultados pretenda obter, que pudesse es: tabclecer métodos para obté-los de forma precisa e formas de mensuracdo que per- ‘mitissem saber com preciso se eles foram realmente alcangados, O sistema educaco- nal deveria comecar por estabelecer de for- ima precisa quais si seus objetivos. Esses objetivos, per sua vez, deveriam se basear num exame daquelas habilidades necessa- rias para exercor com eficiéncia as ocupa- (g0es profissionais da vida aduka. O modelo de Bobbitt estava claramente voltado para a economia. Sta palavre-chave era “eficien- cia", O sistema edueacioral devera ror tio eficiente quanto qualquer outra empresa econémies. Bobbitt queria eransforir para a escola o modelo de organizagio propos: co por Frederick Taylor. Na proposta de Bobbitt, a educagio deveria funcioner de acordo com os principios ch administracio clentiica propostos por Taylor: A orientagko dada por Bobbitt iria constituir uma das yertentes dominantes da educagfo estadunidense no restante do 2 século XX. Mas ela iria concorrer com vertentes consideradas mais progressistas, como a liderada por John Dewey, por exemplo, Bem antes de Bobbitt, Dewey tinha escrito, om 1902, um livre que tinh a palavra “curriculo” no titulo, The child and the curriculum. Neste livro, Dewey estava muito mais preocupaco com a construe fo da democracia que com o funciona mento da economia, Também em contraste com Bobbitt, ele achava importante levar em consderagio, no planejamento curr cular, of interesses as experi€ncias das criangas @ jovens. Para Dewey, a educagio no era tanto uma preparacio para a vida ‘ocupacional adulta, como um local de vie véncia e pratica direta de principios democraticos. A influéncia de Deway, en- tretanto, nfo iria se refletir da mosma forrra que a de Bobbitt na formagao do curricule como campo de estudos. A atracio e influéncia de Bobbitt de- vem-se provavelmente ao fato de que sua proposta parecia permitir a educagao tor nar-se cientifica. Nao havia por que ¢is- cucir abstratamente as finalidades uummas da educacgo: elas estavam dadas pela pré= pria vida ocupacional adulta. Tudo © que ora precise fazor era pesquisar e mapear quais eram as habilidades necessarias para as diversas ocupagées. Com um mapa preciso dessas habilidades, era possivel, entdo, organizar um curriculo que per- mitisse sua aprendizagem. A tarefa do as- pecialista em curriculo consistia, pois, em fazer 0 levantamento dessas habilidades, desenvolver curriculos que permitissem que essas habilidades fossem desenvol- vidas e, finalmente, planejar e elaborar instruments de medicéo que possibili- tassem dizer com precisio se elas foram realmente aprendidas, Na perspectiva de Bobbitt, a questio do curriculo se cransforma numa ques- tio de organizagao. O curriculo € sim- plesmente uma mecénica. A atividade supostamente cientifica do especialista em curriculo nfo passa de uma atividade burocritica. Nao € por acaso que © con- ceito central, nessa perspectiva, & “desen- volrimento curricular”, um conceito que iria dominar a literatura estadunidense sobre curriculo até os anos 60. Numa perspectiva que considera que as finali- daces da educacio estao dadas pelas exi- géncias profissionais da vida adulta, 0 curriculo se resume a uma questo ce desenvolvimento, a uma questio técnica. Tal como na indéstria, ¢ fundamental, ma ecucacdo, de acordo com Bobbitt, que 50 estabelocam padres. © estabelecimento 24 de padres & tio importants na educagio quanto, digamos, numa usina de fabrica- io de agos, po's, de acorde com Bobbitt, “a educacio, tal como a usina de febrica~ fo de aco, € um processo de moldagen © exemplo dado pelo préprio Bobbitt & esclarecedor. Numa oitava série, ilustra ele, algumas criancas realizam adigBes "a um ritmo de 35 combinagdes por minuto”, enquanto outras, “ao laco, adi ritmo medio de 105 combinagoes por minuto”. Para Bobbitt, 0 astabelecimento de um padrac permitiria acabar com essa variagio. Nas dltimas décadas, diz cle, os educadores vieram a "perceber que é pos- sivel estabelecer padres definitivos para 08 varios produtes educacionais. A capa- cidede para adicionar a uma velocidade de 65 combinacées por minuto (..) € uma especificagio cdo definida quanto a que se pode estabelecer para qualquer aspecto do trabalho da fabrica de agos”.! O modelo de curricule de Bobbitt iria encontrar sua consolidagao definitiva num livro de Ralph Tyler, publicado em 1949. © paradigma estabelecido por Tyler iria dominar 0 campo do curriculo nos Esta~ dos Unidos, com influéncia em diversos paises, incluindo © Brasil, pelas proximes quatro décadas. Com o livro de Tylor, os estudos sobre curriculo se tornam deci- didamente estabelecidos em torno da idéfa de organizagao e desenvolvimento, Apesar de admitir a flosofia e a socieda- de como possiveis fontes de objetivos para ¢ curriculo, © paradigma formulado por Tyler centra-se em questdes de or ganizagio e desenvolvimento, Tal como no modelo de Bobbitt, o curriculo 8, aqui, essencialmente, uma questdo técnica, Vejamos, de forma sintétiea, 0 modelo proposto por Tyler. A organizacio eo desenvolvimento do curriculo deve buscar responder, de acordo com Tyler, quatro questées bisi- cas: “I. que objetivos educacionais deve a escola procurar atingir?; 2. que experién- cies educacionais podem ser oferecidas que tenham probabilidade de aleancar esses propésitos?: 3. como organizar eficiencemente essas experiéncias educa- cionais?; 4, como podemos ter certeza de que esses objetivos esto senco alcanca- dos?” As quatro parguntas de Tyler cor- respondem @ divisdo tradicional da atividade educacional “curriculo” (1), “en: sino @ instrucio” (2.€ 3) e “avaliagio” (4) Em termos estritos. pois, apenas a pri melra questio diz respeito a “curriculo” as € preciarnente a esta questio que Tyler dedica a maior parte de seu livre. Tyler idencifica tres fontes ras quals se devem buscar of objetivos da educagio, airman: do. que cada uma delas deve ser igualmen- te levada em consideragio: |. extudos sobre 0s proprios aprendizes; 2. estudos sobre a vida contemportinea fora da edu cago; 3, sugestées dos especialistas das diferentes disciplinas. Aqui, Tyler expan- de 0 modelo de Bobbitt, 20 incluir duas fontes que nfo eram contempladas por Bobbitt: a psicologia e as disciplinas acadé- micas, A segunda fonce é uma demonstra~ cdo de certa continuidade relativamente 20 modelo de Bobbitt, Essas fontes gerariam, entretanto, um numero excessivo de objetivos. os quais poderiam, além disso, ser mutuamente contraditérios. Para consertar essa situa sto, Tyler sugere submeté-los a duas es- pécies de “filtros”: a filosofia social € educacional com a qual a escola esti com- prometida e psicologia da aprendizagem. Tyler insiste na afirmaco de que os objetivos devem ser claramente definidos ¢ estabelecidos, Os objetivos devem ser formulados em termos de compertamen= to explicito. Essa orientagio comporiias mentalist ira se radicalizar, aids, nos anos 60, com o revigoramento de uma tendén- cia fortemente tecnicista na educacio estadunidense, representada, sobretudo, por um livro de Robert Mager. Andlise de abjetivos, também influente no Brasil na isaina epoca, Laplois atravie desea tor: mulagao precisa, detalhada € comporta- mental dos objetivos que so pode responder s outras perguntas que cons- tituem © paradigna de Tyler. A decisio sobre quais experiéncias devem ser pro- picadas © sobre como organizé-les de- pende dessa especificacio precisa dos objetivos. Da mesma forma, & impossivel avaliar, como adiantava Bobbitt. sem que se estabelecesse com preciséo quais sto os padres de referéncia E interessante observar que tanto os modelos rrais tecnocriticos, como os de Bobbitt e Tyler, quanto os modelos mais progressistas de curriculo, como o de Deway, que emergiram no inicio do sé- culo XX, nos Estados Unidos, constituiam, de certa forma, uma reagio a0 curriculo dlassico, humanista, que havia domina- doa educagio secundiria desde sua ins- titucionalizacao, Como se sabe, esse curriculo era herdeire do curriculo das chamadas “artes liberais” que. vindo da Antiguidade Classica, se estabelecera na uw educagio universitaria da Idade Média do Renascimento. na forma dos chama- dos trivium (gramatica, retérica, dialética) quadrivium (astronomia, geometria, mii- sica, aritmética}. Obviamente, o currfcu- lo classico humanista tinha implicitamence uma “teoria” do curriculo, Basicamente, nesse modalo, © objetivo era introduzir (5 estudantes a0 repertério das grandes obras literdrias e arvsticas das herancas clssicas grega e latina, incluindo 0 domi- rio das respectivas linguas. Supostamen- fe, esszs obras encarnavam 2s melhores realizagBes © os mais altos ideais do espl- ito humano. O conhecimento dessas obras rio estava separado do objetivo de formar um homem (sim, 0 macho da es- pécie) que encarnasse esses idea's Cada um dos modelos curriculares contemporineos, o tecnacritico € 0 pro- gressista, ataca o modelo humanista por um flanco. O tecnocrético destacava a abs- tragdo e a suposta inutilidade — para vida moderna e para as atividados Isborais — das habilidades © conhecimentos cultiva- dos pelo curriculo clissico, O latim ¢ ogrego —e suas respectivas literaturas — pouco serviam como preparacio para © trabalho. ch vida profissional contemporinea, No se aceitava, aqui, nem mesmo os argumen- tos que no século XIX tinham sido de- senvolvidos pela perspectiva do “exerct- clo mena’, segundo a quala aprendizagem de matérias como o latin, por exemplo, servia para exercitar 0s “mitsculos men- tais’, de uma forrra que podia se aplicar a outros contatidos. © modelo progressis- ta, sobretudo aquele “centrado na crian- a", atacava 0 curriculo clissico por seu distanciamento dos interesses € das ex- periéncias das criancas ¢ dos jovens. Por estar centredo nas matérias cléssicas, © curricalo humanista simplesmente des- consicerava a psicologa infantil. Ambas as contestagdes s6 puderam surgir, obvia- mente, no contexto da ampliagao da es- colarizacio de massas, sobretudo da escolarizagao secundir'a que era 0 foco do curriculo clissico humanista. © curriculo cléssico 86 péde sobreviver no contexto de uma escolarizagio secundéria de aces- So rescrito a classe dominance, A demo- cratizegio da escolarizagio secundari ignificou também o fim do curriculo hue manista cléssico. Qs modelos mais tradicionais de cur riculo, tanto os técnicos quanto os pro- gressistas de base psicolégica, por sua vez, 6 iriam ser definitivaente contestados, nos Estados Unidos, a partir dos anos 70, 7 com 0 chamado movimento de “recon: ceptualizagio do curriculo”, Mas esta & uma outra histéria, Leituras HAMILTON, David. “Sobre as crigens dos termos classe © curriclum’, Tears © edueagdo, 6, 1992: 33-51 KUEBARD, Herbert M. "Os principios de Tyler In Rosematy G, Messick, Lyra Pabcio « Lilia da R.Bastos (org). Currev andlie © debate, Riot ‘Zahn, 1980; 29-52. KUEBARD, Herbert. "Burocracia« seoris do cu riculo' In Rosemary G. Messick, Lyra Pablo @ LU da R. Bastos (org). Curicule:endise e deba- te ley Zahar, 1980: p.107-126. MOREIRA, Antonio FB e SILVA. Tomar T: da "Socisloia e teori erkiea do currieulo: ume Introducio”. In Antonio FB, Morsira e Tomaa T ch Sika (orgs). Curricula, socedade « cuter, Sto Paulo: Corvez, 1998: p.7.38, TYLER, Ralph W. Principle bélcor de cum «ena ne. Ports Alegre: Globo, 1974 Nota "Para nd sobresarregar @ texto, 28 fortes de todat 35 cagBes esto listadas 30 final do lo, m8 seefo "Referdnciasbibliogiias" Onde a critica comeca: ideologia, reproducdo, resisténcia Como sabemos, a década de 60 fot Uma década de grandes agitagdes 0 trans- formac6es, Os movimentos de indepen- déncia das antigas colonias européias; os provestos estudantis na Franca @ em vé- ios outros paises; a continuagao do mo- vimento dos direitos civis nos Estados Unidos: os protestos contra a guerra do Viet © movimento feminista: a liberacio sexual: as lutas corera a ditadura militar no Bra- sil: so apenas alguns dos importantes movimentos sociais e culturais que carac- terizaram os anos 60. Nao por coincidén- ia foi também nessa década que surgiram. livros, ensaios, teorizagées que colocavam em xeque 0 pensamento ¢ a estrutura ‘educacional tradicionais. os moyimencos de contracultura; E compreensivel que as pessoas en- volvidas em revisar esses movimentos tendam a reivindicar a precedéncia para aqueles movimentos iniciados em sou proprio pais. Assim, para 2 literatura edu- eacional estadunidense, 2 renovacio da teorizacao sobre curriculo parece ter sido ‘exclusividade do chamado “mevimente de reconceptualizagao”. Da mesma forma, a » liceratura inglesa reinvidica prioridade para a chamads “nova sociologia da educagio”, um movimento Ideneificado com © socio- logo inglés Michael Young. Uma revisio. brasileira nao deixaria ce assinalar 0 in porsants papel da obra de Paulo Freire, enquanto os franceses certamente nao deixatiam de destaear 0 papel dos enssios fundamentais de Althusser, Bourdieu Passeron, Baudelot e Establer, Lima avalia- Zo mais equilibrada argumentaria, entre- tanto, quie © movimento de renovagio da teoria educacional que iria abalar a teoria educacioral tradicional, tendo influ&ncia do apenas tebrica, mas insprrando verda- deiras revolucées nas préprias experién- cias educacionais, “explodiu” em varios locais ae mesmo tempo. As teorias criticas do curriculo efetuam uma completa inverstio nos fundamentos das teorias tradicionais. Como vimes, 05 modelos tradicionais, como o de Tyler, por exemplo, nio estavam absolutamente pre~ ocupados em fazer qualquer tipo de questionamento mais radical relativamen- to aos arranjos educacionais existentes, 4s formas dominances de conhedmento ou, de modo mais geral, forma sodal domi- ante, Ao torrar 0 statur quo como refe- réncia desejivel, as teorias tradicionals se concentravam, pois, nas formas de orga- niragio e elaboracio do curriculo, Os ‘modelos tradicionals de curricule restrin- siam-se& atividade técnica de como fazer 0 currieulo, As teorias criticas sobre o cur- riculo, em contraste, comecam por co- Jocar em questo precisamente os pressupostos dos presentes arranjos so- dials e educacionais.As teorias crticas des- confam do status quo, responsabiizando-o elas desigualcades ¢ injusticas socais. As teorias eadicionais eram teorias de acoita- fo, ajuste e adaptacio. As teorias crticas Ho teorias de desconfianga, questionamen- to € transformacio radical. Para as teorias critcas 0 importante néo é deservolver sécnicas de como fazer 0 curricula, mas desenvolver conceitos que nos permitam compreender 0 que 0 curriculo faz E preciso fazer uma distingao, mente, entre, de um lado, as teorizages criticas mais gerais como, por exemplo, @ importante ensalo de Althusser sobre 2 ideologia ou o livro conjunto de Bour- dieu e Passeron, A reprodugdo, ¢, de ou- tro, aquelas teorizagées centradas de forma mais localizada em questoes de inicial- 30 curriculo, como, por exemplo, a “nova sociologia da educagio” ou 0 “movimen- to de reconceptualizacao” da teoria cur- ricular, E importante, de qualquer forma, revisar tambem aquelas teorias criticas mais gerais sobre educaglo pela influén- cia que teriam sobre 0 desenvolvimento da teoria critica do curriculo, Poderiamos comecar por uma breve cronologia dos mareos fundamentais tanto da teoria edu- cacional critica mais geral quanto da teo- ria eritiea sobre © curriculo: 1970 — Paulo Freire, A pedagogia do oprimide 1970 — Louis Althusser, A idealogia e os aparelhos ideoligicas de estado 1970 ~ Pierre Bourdieu ¢ Jean-Claude Passeron, A reproducdo 1971 — Baudelot e Establet, ’école coph taliste en France 1971 - Basil Bernstein, Class, codes ond control. | 1971 — Michael Young, Knowledge ond control: new directions for the socio. logy of education 1976 - Samuel Bowles e Herbert Gintis, Schooling in copitalst America 1976 — William Pinar © Madeleine Gru- met, Toward 0 poor curriculum 1979 ~ Michael Apple, Ideologic € currcule © agora famoso ensaio do filésofo francés Louis Althusser, A ideologia e os aparelhos ideotégicos de Estado, iria for- nocer as bases para as eriticas marxistas de educacdo que se seguiriam. Particu- larmente, Althusser, nesse ensaio, iria fazer a importante conexio entre edu- cagio © ideologia que seria central as subseqiientes teorizacdes criticas da educagio ¢ do curriculo baseades na andlise marxista da sociedade. A referén- cia que Althusser faz & educagio neste breve ensaio é bastante suméria. Essen- cialmente, argumenca Althusser, a per- manéncia da sociedade capitalista depende da reproducao de seus com. ponentes propriamente econémicos (forca de trabalho, meios de producéo) @ da reproducio de seus componentes ideoldgicos. Além da continuidade das condicdes de sua produgdo material, a sociedade capitalista no se sustentaria se nio houvesse mecanismos e instituigces oncarregadas de gerantir que © staius quo no fosse contestado, Isso pode ser obti- do através da forga ou do convencimen- to, ca repressiio ou da ideologia. O primeiro mecanismo esté a cargo dos aparelhos re- pressivos de estado (a policia, ojudiciério); © segundo responsabllidade dos apa- u relhos ideol6gicos de estado (a religito, ‘a midia, a escola, a familia). Na primeira parte do ensaio, Althusser da, implicitamence, uma definicéo bastan- te simples de ideologia. A ideologia 6 cons- tituida por aquelas crengas que nos levam a accitar as estruturas socials (capitalstas) existentes como boas € desejévets, Essa definicfo é substancialmente modificada na segunda parte do ensaio, na qual 0 concei- tode ideologia se torna bastante mais coms plexo, mas esta é uma outra discussio, A produgio ¢ a disseninacio da ideologia ¢ feita, como vimos, pelos aparelhos ideo- legicos de estado, entre os quals se situa, de modo privilegiado, na argumentacio de Althusser, justamente a escola. A es cola constitui-se num aparelho ideolégico central porque, afirma Althusser, atinge praticamente toda a populacéo por um periodo proiongado de tempo. Como a escola transmice a ideologial A escola atua ideologicamente através de seu curriculo, seja de uma forma mais die reta, através das matérias mals suscetivels 20 transporte de crencas explicitas sobre a desejabilidade das estruturas sociais axis. tentes, como Estudos Socials, Historia, Geografia, por exemplo; seja de uma for ma mais indireta, atraves de disciplinas mais “técnicas”, como Ciéncias e Mate- mitica. Alem disso, a ideologia atua de forma discriminatéria: ela incina as pes- soas das classes subordinacas & submis- sio e 4 obediéncia, enquanto as pessoas das classes dominantes aprendem a co- mandar @ a controlar. Fssa diferenciacio @ garantida pelos mecanismos seletivos quo fazem com que as criangas das clas- ses dominadas sejam expelidas da escola antes de chegarom aqueles rivois onde se aprendem os habitos e habilldades pro- prios das classes dominantes. ‘A protlemicica central da anilise mar- xista da educagao e da escola consiste, como mestra 0 exemple de Althusser, fem buscar estabelecer qual & a ligacao entre a escola € a economia, entre a edu- cacio ea produgio. Uma vez que, na ané- lise marxista, a economia e a procugso ‘estio no centro da dinamica social, qual & © papel da educagio € da escola nesse processo! Como a escola e a educacio contribuem para que a sociedade cont- nue sendo capicalista, para que 2 socie- dade continue sendo dividida entre capitalistas (proprietarios dos meios de producto), de um lado, e crabalhadores (proprietarios unicamente de sua capac: che de trabalho), de outro? Althusser nos deu, como vimos, um tipo de res: posta: a escola contribul para a roprodu- so da sociedade capitalista a0 transmicir, através das matérias escolares, as crencas que nos fazem ver os arranjos sociais exis- entes como bons e desejaveis. Baudelot © Establet, num livre também agora cléssi- co, A escola capitotista no Frenga, iriarm desenvolver, em detalhes, a tase althus- seriana, Caberia, entretanto, 2 dois eco- nomistas estadunidenses, Samuel Bowles e Herbert Gintis, fornecer uma respos- ta um pouco diferente aquela pergunta central sobre as conexdes entre produ: gio ¢ educagio. Em seu livre, A excolo capitalista na América, Bowles ¢ Gintis introduzem 0 conceit de correspendéncia para esta. belecer a natureza da conexao entre es- cola ¢ produgic, Como vimos, Althusser enfatizava © papel do contedde das maté- rias escolares na transmissio da ideologia capitalisca, embora a definicio de ideolo- gia que ele dava na segunda parte de seu tensaio (a ideologia como pratica) apontas- se para a possibilidade de uma outra util- zagio dasse conceito. Fm contraste com essa énfase no contetido, Bowles e Gints cenfatizam a aprendizagem, através da vi- véncia das relagies socials ¢a escola, das atitudes necessdrias para se cualificar como um bom trabalhador capitalista. As relagées sociais do local de trabalho capi- talista exigem certas atitudes por parte de trabalhador: obediénciaa ordens, pon- tualidade, assiduidade, confiabilidade, no caso do trabalhador subordinado; capa- cidade de comandar, de formular planos, de se conduzi- de forma auténoma, no caso dos trabalhadores situados 108 i veis mais altos da escala ocupacional Como, no esquema de Bowles ¢ Gintis, @ escola garante que essas atitudes sejam incorporadas a psique do estudante, ou soja, do future trabalhador? A escola contribui para esse proceso nao propriamence através do conteddo explicito de seu curriculo, mas a0 espe- thar, no seu funcionamento, 2s relocdes socizis do local de trabalho. As escolas di- rigidas aos trabalhadores subordinados tendem a privilegiar relacdes sociais ras quis, 20 praticar papeis subordinados, os estudantes aprendem a subordinagio, Em contraste, as escolas dirigidas aos trabalha- dores dos escalées superiores da escala ‘ocupacional tendem a favorecer relagGes sociais nas quais os estudentes tém a opor- wnidade de praticar atitudes de comando e autonomia. E, pois, através de uma cor- respondéncia entre as relacdes socials da a escola e as relacées socials do local de trabalho cue @ educacio contribu para a reprodugio das relagées socials de producéo da sociedade capitalista, Tra» ta-se de um processo bidirecional, Num primeiro movimento, a escola & um r flexo da economia cepitalista ou, mais es- pecificamente, do local de trabalho capitalista, Esse reflexo, por sua vex, ga- rante que, num segundo movimento, de retorno, © local de trabalho capitalista receda justamente aquele tipo de traba- Ihador de que necessita. A critica da escola capitalista, nesse es- ‘gio inicial, nao ficaria limiada, entretan- to, 4 anilise marxista. Os socidlogos franceses Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron 1m deserwolver una eritica da educagao que, embora centraca no con: ceite de “reproducio”, afastavacse da ande lise marxista em varios aspectos, Além do conceito de “reproducio”, a anélise de Bourdieu ¢ Passeron desenvolvia-se atra- vés de conceitos que eram devedores, embora apenas mecaforicamente, de con= ceitos econémicos, Mas, contrariamente a andlise marxista, 0 funcionamento da es- cola € cas instituicées culturais nio deduzido do funcionamento da economia, Bourdieu © Passeron véem, entretanto, © funcionamenco da escola e da cultura através de metéforas econdmicas. Nessa anilise, a cultura nio depende da econo- a: a cultura funciona como uma econo- mia, como demonstra, por exemplo, a utilzagio do conceite de “capital cultural”. Para Bourdieu e Passeron, a dindmica a reprodusao social esté centrada no pro- cosso de reproducio cultural. E através da reprodugao da cultura dominante que a reproducio mais ampla da sociedade fica garantida. A cultura que tem prestigo e valor social &justamente a cultura das elas- ses dominantes: seus valores, seus gostos, seus costumes, sous habitos, seus modos. de se comportar, de agir. Na medida em ‘que essa cultura tem valor em termos s9- dais; na medida em que ela vale algumna coi- sa; na medida em que el fz com que a pessoa que a possul obtenha vantagens imaterizis e simbélicas, eh se constitui como capitol cultural. Esse capital cultural exisce ‘em diversos estados. Ela pode se manifes- tar em estado cbjetivador as obras de arte, as obras literdrias, as obras teatrais etc. A cultura pode existir também sob a forma de titulos, certifiados e diplomas: & 0 ca- pital culcural inseitucionalizado. Finalmen- 12, 0 capital cultural manifesta-se de forma incorporada, introjetada, incernalizada, Nessa iltima forma ele se confunde com © habitus, precisamence o termo utlizado 34 por Bourdieu e Passeron para se referir as estruturas socials e culturais que se tor- ram internalizadas © dominio simbslico, que é 9 dominio por excelénca da cultura, da significagso, atin através de um ardiloso mecanismo, Ble adquire sua forca precisamente 20 de- finir a cultura dominance come sendo a cultura, Os valores, 0s hibitos e costumes, 0s comportamentos da chasse dominante slo aqueles que s20 considerades como constituinde a cultura. Os valores e habi= tos de outras classes podem ser qualquer ‘outra coisa, mas nfo so a cultura, Agora que vom 0 truque. A eficacia dessa defi- nigio da cultura dominance como sendo a ‘cultura depende de uma importante ope- ragio. Para que essa definigio alcance sua maxima eficicia € necessério que ela nao apareca como tal, que ela nfo apareca jus- tamente como o que ela ¢, como uma de- finigho arbitraria, como uma definigio que rio tem qualquer base objet, como uma definicio que esta baseada apenas na forca {agora propriamene econémica) da clas- se dominante, E essa forca original que permite que a classe dominante possa de- finir sua cultura como « culwira. mas nes- se mesmo ato de definigéo oculta-se a forca que torna possivel que ela possa im- por essa defirigio arbiuriria. Hi, portanto, aqui, dois processos em funcionamento: de um lado, a imposicao e, de outro, a ocukagdo de que se trata de uma imposi- cdo, que aparece, entio, como natural, E a e3:¢ duplo mecanismo que Bourdieu & Passeron chamam de dupla violéncia do proceso de dominagéo cultural. ‘Agora, onde entram 2 escola 6 a edu- cagao nesse processo? Em Bourdieu e Passeron, contrariamente a outras andli- ses criticas, a escola nio atua pela incul- ‘cagio da cultura dominante as criangas @ jovens das classes dominadas, mas, 20 contririo, por um mecanismo que acaba por funcionar como um mecanismo de exclusio. © curriculo da escoh asté ba- seado na cultura dominance: ele se ex- pressa na linguagem dominante, ele é transmitido através do codigo cultural dominante. As criangas das classes domi- nantes podem facilmente compreender ‘esse cédigo, pois duranto toda sua vida las estiveram imersas, 0 tempo todo, naxse cédigo. Fsso cédigo & natural para elas, Elas se sentem a vontade no clima cultural 9 afetive construido por esse cédigo. E 0 seu ambiente native, Em contraste, para as criangas e jovens das classes dominadas, esse cOdigo ¢ sim- plesmente indecifrivel. Eles nio sabem do que se trata. Esse codigo funciona as como uma linguagem estrangeira: 6 incom= preensivel. A vivéncia familiar das crian- ‘as € jovens das classes dominadas nio 05 acostumou a esse cédigo, que thes aparece como algo estranho e alhelo, resultado 6 que as criangas @ jovens das lasses dominantes sio bem-sucedidas na escola, © que Ihes permite © acesto a0 graus superiores do sistema educacional, As criancas ¢ jovens das classes domina- as, em troca, 50 podem encarar o fra+ asso, ficando pelo caminho, As eriangas ejovens das classes dominantes veem seu capital cultural reconhecide e fortalecido, As criangas e jovens das classes domina- chs tém sua cultura nativa desvalorizada, a0 mesmo tempo que seu capital cultural, if inicislmente baixo ou nulo, nfo sofre qualquer aumento ou valorizagio. Com- pleta.se 0 ciclo ch reproducio culeural/e essencialmente através dessa reprodugao cultural, por sua vez, que as classes sociais se mantém tal como exiscem, garantindo © processo de reproducio social. Em geral, tense deduzido da andlise de Bourdieu ¢ Passeron (e, particularmen- te, das analises individuais de Bourdieu) uma pedegogia ¢ um curriculo que, em oposigdo a0 curriculo baseado na cultura dominante, se centrariam nas culturas dominadas. Trata-se, provavelmente, de um mal-entendido, Sua andlse no nos diz que a cultura dominante & indesejével € que a cultura dominada seria, em troca, desejével. Dizer que a classe domirante define arbitrariamente sua cukura como desejavel nfo 6 a masma coisa que dizer que a cultura dominada ¢ que é desejével. O que Bourdieu e Passeron propéem. atra- vés do conceito de pedagogia racional, & que as eriangas das classes dominadas te- ham uma educagio que Ihes possibiive ter — na escola — a mesma imersio du- radoura na cultura dominance que faz parte — ra familia — da experiéncia cas crian as das classes dominantes. Funcamental- mente, sua proposta pedagégica corsiste tem advoger uma pedagogia e um curriculo que reproduzam, na escola, para as crian- 62S das classes dominedas, aquelas condi Bes que apenas as criangas das classes dominantes tém na familia Em seu conjunto, esses toxtos formam 1 base da teoria educacional critica que iia se desenvolver nos anes seguintes. Fles podem ter sido amplamente criticados ¢ questionados na explosio da literatura crf tica ocorrida nos anos 70 e 80, sobretudo por seu suposto determirismo econdmi- co, mas, depoisdeles,a teoria curricular seris radicalmente modiiicada. A teorizagio cur- ricular recente ainda vive desse legado. Leituras ALTHUSSER, Louis, Aparehos ideoigics de Estado Ric: Graal, 1983 BOURDIEU, Pierre e PASSERON, ean-Clude A reprodigdo, Ri Francisco Alven, 1975. BOURDIEU, Pierre. Escros de educecda. Petropolis Voss, 1999, (Organizacie da Maria Alice No- guoim @ Mario Catan) BOWLES, Samuel e GINTIS Herbert Lainstracdiin fexcoiar en fo América copitaliza, México: Siglo >, 1981 SILVA, Tornaz Tadou da O que froduze oq reproduz ‘em edvcarde. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992 36 Contra a concep¢ao técnica: os reconceptualistas No final dos aos sessenta, pocia-se ji dizer que a hegemonia da concepeio téc- nica ¢o curriculo estava com seus dias contados. Come vimos, esbogavam-se, em varios palses, a0 mesmo tempo, movimen- tos de reagio as concepydes burocraticas administrativas de curriculo, Em paises como Franca € Inglaterra, os contornos mais gerais de uma teoria edueacional eri= tica vendiam a partir de campos nao dire- tamente pedzgégicos ou educacionais, como a sodoiogia critica (Bourdieu, por exemple) @ a filcsofia marxista (Althusser, per exemplo}, Nos Estados Unidos e Ca- adi, entretanco, © movimento de critica as perspectivas conservadoras sobre cur riculo tinha origem ne préprio campo de estude da educacdo. (Os antecedentes da rejeigio dos pres- supostos da concepefo técnica de curri- culo tal como consolidada pelo modelo de Tyler esbosevam-se jd nos escritos de au- tores como James McDonald e Dwayne Huebner. Um movimento mais organiza- do e visivel, entretanto, somente ia ganhar impulso sob a lideranga de Wiliam Pinar, 37 com a | Conferéncia sobre Curricilo organizada pelo grupo, na Universidade de Rochester. Nova York, em 1973. O movimento de reconceptualizagie ex: primia uma insatisfacao crescente de pessoas do campo do curriculo com os pardmetros tecnocriticos estabeleci- dos pelos modelos de Bobbitt © Tyler. As pessoas identificadas com © que passou & ser conhecido come “movimento de re- conceptualizagao” comegavam a perce ber que 2 compreensio do curriculo como uma atividade meramente técnica @ administrativa néo se enquadrava mule to bem com as teorias sociais de origem sobratude européiz com as quais alas estavam familiarizadas: a fenomenologia, a hermenéutica, © marxismo, 2 taoria crit cada Escola de Frankfurt, Aquilo que, nas perspectivas tradicionais, era entendido como curriculo era precisamente © que, de acordo com aquelas teorias sociais, precisava ser questionado e criticado, ‘Assim, por exemplo, do ponto de vista da fenomenologia, as categorias de apren: dizagem, objetivos, medicto ¢ avallagio nada tinham a ver com 08 significados do “mundo da vida” através dos quais as pessoas constroem e percebem sua ex: periéncia. De acordo com a perspectiva fenomenologica, essas categorias tinhain que ser “postas entre parénteses", ques- tionadas, para se chegar 4 “esséncia” da educacao e do curriculo. Oo ponto de vista marxista, para tomar um outro exemplo, a énfase na eficéncia e na racionalidade administrativa apenas refletia a dominacio do capitalismo sobre a educacio e 0 cur riculo, contribuindo para a reprodusio das desigualdades de classe. Esses dois exemplos relexem, alas, am antagorismo entre os dois campos nos uals, nos Estados Unidos, dvidiu-se a erk tica dos modelos tradicionais. De um lado, estavam aquelas pessoas que utlizavam os conceitos marxistas, filtrados através de andlises marxistas concempordneas, como as de Gramsci e da Escola de Frankfu para fazer a critica da escola e do curricalo existentes, Esses anilises enfatizavam 0 papel das estruturas econdmicas e polt- €as na reproducio cultural e social atra- vés da educagio e do curriculo, De outro lado, colocavam-se 2s criticas da educacdo edo curriculo tradicionais inspiradas em ‘estratégias intarpretativas de investigacto, como a fenomenologia e a hermenéutica, Aqui, a &nfese no estave no papel das estruturas ou om categories tebricas abs- ratas (como ideologia,capitaismo, contro- le,dominacio de classe), mas nos significados subjetivos que as pessoas dio As suas ox. periéncias pedagdgicas e curriculares. Em ambas as perspectivas tratava-se de desa- fiar os modelos técnicos dominantes; em ambas as perspectivas procurava-se langar mio de estratégias analtcas que permicis- sem colocar em xeque as compreensées naturalizadas do mundo social e, em parti- cular, da pedagogia ¢ do curriculo. No caso da fenomenologia, da hermenéutica, da au- cobiografia, ertretanto, desnaturalizar as categorias com as quais, ordinariamente, compreendemos ¢ vivemos 0 cotidianc, significa focalz-las através de uma perspec- tiva profundemente pessoal e subjetiva. Ha um vinculo com 0 social, na medica em que ‘essas categorias #50 criadas e mantidss, in- tersubjetivamente ¢ através da linguagem, rmas, em titima andlise, © foco esti nas ex: periéncias e nas significagdes subjetivas. Em contrasts, na evtica de inspiragio rrarxista, desnaturalizar 0 mundo “natural” da peda- ‘gogin € do curriculo significa submeté-lo a uma andlise cientifica, centrada em conce- tes que rompem com as categorias de sen- 50 comum com as quis, ordinariamente, ‘vernos © compreendemos aquele mundo, 38 ‘© movimento de reconceptuaizacio, tal como definido por seus préprios ini- ciadores, pretendia inciuir tanto as verten- tes fenomenolégicas quanto as vertentes marxistas, mas as pessoas envolvidas nes- sas dltimas recusaram, em geral, uma iden- tificaggo plena com aquele movimento, Na vercade, procuraram até distanciar-se de um movimento que via como excessi- vamente centrado am quastées subjetivas, como um movimento muito pouco politi co. Para autores de inspiragio marxista, como Michael Apple, © movimento de re conceptualizagio, embora constituisse um questionamento do modelo tecnico do- minante, era visto como um recuo 20 pes- soal, a0 narcisistico © a0 subjetivo, Ao final, © rétuio da “reconceptualizacio” que ca- racterizou um movimento hoje dssolvide no pés-estruturalsmo, no feminismo, nos estudos cultures, ficou limitado as concep- ¢6es fenomenolégicas, hermenéuticas © autobiograticas de erica acs modelos tra- dicionais de curriculo. € por isso que, nesta secko, limizaremos nossa discussio a 65+ sas concepcGes, As perspectivas mais mar- xistas estruturais, como a de Michael Apple ea de Henry Giroux, serio trata- das em outra sesio. A concapeio contemporanes de fe- nomenologia tem origem, como sabemos, ” em Edmund Husserl, sendo posterior: mente desenvolvida por autores como Heiddeger e Merleau-Ponty. O ato feno- menoldgico fundamental consiste em sub- meter 0 entendimento que normaimente temos do mundo cotidiano a uma sus: pensio. A invastigagio fenomenologica comega por colocar os significado: ordi narios do cotidiano “entre parénteses”” Agqueles significados que tomamos come haturais constituem apenas a "aparéncia”” das coisas, Tomos que colocar essa apa- rencia em duvida, em questo, para que possamos chegar & sua “esséncia”. A in= Vestigagao fenomenoldgica coloca em ‘questo, assim, as categorias do senso co- mum, mas elas nao sao substituidas por ‘eategorias tedricas © cientifieas abstratas, Ela esta focalizada, em ver disso, na expe- riéncia vivids, no “mundo da vida”, nos significados subjetiva e intersubjetivamen- te construidos. O conceito de “signifiea- do” ngo tem, para a fenomenclogia, mesmo sentido que, depois, teria para uma semiologia estruturalista, @ qual sur ge © se desenvolve, de cersa forma, pre- cisamente em reacdo € oposigao © “significado”, para a fenomenologia, no pode ser simplesmente determinado por sou valor “objetivo” numa eadeia de opo> sigbes estruturais, como na semiologa,

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