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Trabalho apresentado no IV Encontro Anusl de Associeedo Ne- IGREJA E O ESTADO NOVO: O ESTATUTO DA FAMILIA ‘Simon Schwartzman Centro de 998, Flo de Janeiro, Do Instituto Universitério de Pesquits do Rio de Jandiro # do esquisa e DocumentaSo da FundapSo Getillo Var- RESUMO 0 srtigo analisa © projeto do decreto-ei “Estatuto da Fa ‘ili, de autoria de Gustavo Capanema, na década de 30. Er: bora assinedo por Getalio Vargas, 0 projeto no chegou 2 ser promulgado @ a polémics que seriou em torne dele, polerizan- {do alguns dos setores mais conservadores da sociedade Sqvela ‘S0ca, entre eles a laeja,reflete » importéncia de normatize¢ se {da familia para 0 Estado astorterio, SUMMARY This ticle analyses legistation on the family during Getulio Varge’s Government, in the thirtis, Although signed by president Vargas, Copancma's project was not enected. Conservative forces, among them the Catholic Church, expressed themselves pro and ogolnst it. Controverse reveals the reation- Ship between family normative policy and authoritarian State. ess A década de 30 foi um perfodo de intensa mobili zago dos grupos mais militantes do catolicismo brasiei ro, que tratavam de imprimir a0 pais algumas caracter ticas que consideravam indispenséveis para a consecucio de seus ideais. O sistema educacional e a legislacdo refe- rente a instituiggo da familia eram, possivelmente, suas ‘reas principais de preocupacio. O acesso desses grupos catélicos a virios setores do governo era tdo facilitado {que alguns analistas do perfodo chegam a dizer que havia uma verdadeira alianga entre o Estado Novo ea Igraja Catélica, esta representada pelo Cardeal Leme e, mais Cad, Pesq., Séo Paulo, (37): 71-77, Mai. 1981 explicitamente, pela pessoa de seu Ifder leigo mais ex- pressivo, Alceu Amoroso Lima, & frente do Centro D. Vital. O episédio da definiggo de uma politica estadono- vista para a familia ilustra com bastante clareza a forma pela qual se dava e até onde ia este rel mostra que, apesar de it particularmente junto 20 Ministério da Educagdo — os setores catélicos nfo conseguiam fazer prevalecer seus pontos de vista contra a orientacdo predominantemente secular e no confessional da lideranga de entdo. Em 19 de abril de 1941, GetGlio Vargas assina o 7 1e “dispe sobre a or- ganizagio e protepSo da familia’. O decreto regula 0 ceasamento de “colaterais do terceiro grau”, dispée sobre (08 efeitos civis do casamento religioso, estabelece incen- tivos financeiros ao casamento e & procriagio, e facilita © reconhecimento de filhos naturais. Em sua aparéncia modesta, o decreto é o resultado, ‘no entanto, de um projeto muito mais ambicioso, que, a Pretexto de dar protecdo a familia brasileira, teria tido profundas conseqUéncias em relacdo a politica de previ- déncia social, a0 papel da mulher na sociedade & educa Gio @ até, eventualmente, om relacdo politica popula ional do pais. E este projeto, e a discussio por ele gera- dda, que nos interessa examinar. Ele nos permite uma visio bastante rica das mentalidades que circulavam os altos escaldes do governo brasileiro de entéo, assim como algo do processo decisério pelo qual projetos deste tipo tratados. © ponto de partida é 0 Projeto de um decreto:le: de um “Estatuto de Familia” que seria assinado por Var gas em 7 de setembro de 1939, oriundo do Ministério Capanema, mas que no chega a ser promulgado. Antes, ele sofreria as eriticas de Francisco Campos e Oswaldo Aranha, haveria uma réplica de Capanema, outros pare- ‘ceres seriam elaborados, e finalmente seria constituida uma “‘Comissio Nacional de Proteg3o da Fam(lia”, da qual uma série de projetos especificos se originariam. © Estatuto proposto por Capanema € um docu: mento doutrinério que busca combinar duas idéias para fle indissocidveis: @ necessidade de aumentar a popula cio do pais e 2 de consolidar e proteger a familia em sua estrutura tradicional. A prosperidade, o prestigio e 0 po- der de um pafs dependem de sua populacdo e de suas forgas morais: a familia é a fonte geradora de ambos. No dizer do preambulo do projeto, “a familia é a maior base dda politica demogréfica e a0 mesmo tempo a fonte das ‘mais elevadas inspiragdes de estimulos morais ‘A moral e a conveniéncia esto, por conseguinte, totalmente conjugadas. A familia 6 definida como uma “eomunidade constituida pelo casamento indissolivel ‘com 0 fim essencial de gerar, criar ¢ educar a descendén- cia", @ por isto considerada como “o primeiro funda- mento da Nago". Seria um equivoco pensar, no entan- to, que ela de fato “fundasse”’ o Estado, ou tivesse, de ‘alguma forma, precedéncia sobre ele. Ao contrério, af milia vista como uma planta tenra, bastante vulnerdvel 18 sob a ameaca constante de corrupedo degradacio. E por isto que ela € colocada sob a tutela e “a protecio es- Pecial do Estado, que velaré pela sua formacdo, pelo se desenvolvimento, pela sua seguranca e pela sua honr Daf uma série de corolérios inevitéveis que so explicita- dos no projeto. ‘A primeira medida 6 facilitar 20 méximo 0 casa- mento, Existe uma providéncia jur‘dica para isto ~ 0 re- conhecimento civil do casamento religioso — e uma série de providéncias de tipo econdmico: 0 casamento é incen- tivado por-emprést impostos so pro- ostos para solteiros e casados ou vidvos sem filhos e um ‘abono ¢ sugerido para recompensar financeiramente as famflias de prole numerosa. Outras medidas constartes no Estatuto incluem 0 amparo & maternidade através da 72 subvengdo a instituigdes de assisténcia na érea privade, 0 amparo & infincia e & adolescéncia, a protesao legal 20s filhos ileg(timos, e 2 concesséo de prémios de nopcias, de natalidade, de boa criagéo e outros. Néo falta, no pro- jeto, a criago do Die Nacional da Familia, ‘Além dessas medidas, voltadas especificamente pa- +a 0 niicleo familiar; existem varias outras com repercus- sBes muito mais profundas. Uma delas se refere a0 mer- ado de trabalho. © Estatuto previa que os pais de fam’ lia tivessom preferéncia ‘em investidura e acesso a todos (8 cargos e fungSes piblicas”, na competi¢ao com os sol- teiros ou casados sem filhos, exceto em cargos de respon sabilidade. Mais ainda, o artigo 14 previa que “o Estado adotara medidas que possibilitem a progressiva restriglo dda admissio de mulheres nos empregos publicos e priva- dos. Nao poderdo as mulheres ser admitidas sendo aos empregos préprios da natureza feminina, e dentro dos estritos limites da conveniéncia familiar”. Esta restriggo a0 trabalho feminino estava ligada & tese da mais absoluta divisso de papéis e de responsabili dades dentro do casamento. Isto se refletia, também, na rea da educagio, onde estava previsto que "o Estado educaré ou faré educar a infancia e a juventude para a familia. Dever ser os homens educados de modo a que se tornem plenamente aptos para a responsabilidade de cchefes de familia. As mulheres seré dada uma educago ‘que as torne afeicoadas 20 casamento, desejosas da ma- tetnidade, competentes para criago dos filhos e capazes. da administrago da casa” (art. 13). Esta divisio de pa- péis precisava, evidentemente, ser garantida e protegida. Para isto, seria necessério fortalecer a comunidade fami- liar, “quer pela elevaco da autoridade do chefe de fam’- fia, quer pila maior solidificagio dos lagos conjugais, quer pela mais extensa e imperiosa obrigagdo de assis: téncia espiritual e material dentro do nicleo familiar” Nao bastariam, entretanto, estas medidas, porque a ‘ameaca a famflia parecia vir de todas as partes. Por isto, impGe-se a necessidade da censura generalizada: 0 artigo 15 previa que “O Estado impediré que, pela cétedra, pe- lo livro, pela imprensa peri6dica, pelo cinema, pelo tea- two e pelo rédio, ou ainda por qualquer meio de divulge io, se faca, direta ou indiretamente, toda e qualquer propaganda contra o Instituto da familia ou destinada a estabelecer restricdes & sua capacidade de proliferacdo”. Mas nio basta proibir, & necessério incentivar: assim, 0 Estatuto estabelecia para 0 Estado a responsabilidade de favorecer, ‘de modo especial, 0 desenvolvimento das {letras e das artes dignamente inspiradas no problema e 1a existéncia familiar, e utilizaré os diferentes processos de propaganda para criar, em todos os meios, o clima moral propicio & formagio, & duraeio, & fecundidade e 20 prestigio das familias”. (© casamento incentivado, @ prole numerosa pre- ‘miada, a mulher presa ao lar e condicionada ao casamen- to, a chefia paterna reforcada, a censura moral estabele- cida em todos 0s niveis, as letras e as artes condicionadas pela propaganda governamental: tal € 0 projeto que sai do Ministério da Educacdo e Side. © arquivo Capanema contém inimeros estudos & subsidios para a elaboracdo deste projeto. Dentre estes, ressalta um documento do Padre Leonel Franca intitu- Cad. Pesq., Sd0 Paulo, (37): Mai, 1981 lado ““O problema da denatalidade”. Nele, Leonel Fran- 2 comera por afirmar que “a diminuicdo da natalidade & ‘© maior flagelo que pode ameacar uma naco na sua vita- lidade. Leva diretamente ao suicidio social”. Além disto, festa seria uma doenca de cura quase impossivel, sendo ecessirio, portanto, previni-la. Dai, uma série de suges- Bes, entre as quais: — “reducdo progressiva do trabalho feminino fora do lar (a mulher que trabalha fora, funciondria ‘ou operéria, ou nao 6 mae, ou no 6 boa mie, (ou no & boa funcionéria). O saldrio familiar permite a volta da mulher & casa, com mentali- dade renovada"’. = “luta contra 0 urbanismo. Os grandes centros sio hostis as familias numerosas. Rumo a terral Rumo ao campo!”” ipfo de instrumentos e drogas destinados ‘2 préticas anticoncepcionais (veja anexa a lei francesa, de 31 de julho de 1920)". — "proibiggo de livros, folhetos, cartazes, filmes, pecas de teatro e de qualquer propaganda anti- ‘concepcional”. — "proibigéo legal eficiente do aborto”’. = “conservar o clima espiritual e cristo em que respiram as familias brasileiras e lutar contra 0 ‘materialismo que alimenta a concepedo egofsta da vida estéril”. ‘A inspiragio dos setores catélicos mais militantes 20 projeto fica ainda mais patente quando nos depara- ‘mos no arquivo Capanema, com 0 texto de um artigo assinado com 0 nome de Tristéo de Athayde, e em lin- ‘guagem pretérita. € um artigo de elogios sem reservas a ‘Vargas e @ Capanema: “O governo nacional comemorou 0 dia da pétria, este ano, de maneira excepcional. Houve um movimento unénime de opinigo. Organizaram-se fem todos os recantos do pals grandes solenidades ‘As demonstragdes escolares e militares foram impressio- nantes. E nio faltou 2 colaboragdo fraterna de grandes rnagdes vizinhas, mostrando que a América entende © aprecia devidamente 0 que 6 0 valor supremo da Paz com Dignidade’.. De todos os eventos da data, continua 0 ar- ‘igo, “'nenhum excedeu, a meu ver, em importéncia, o da romulgacdo da lei a que se deu nome to expressivo de Estatuto da Familia’. Por este ato, 0 Sr. Getilio Vargas @ 0 Sr. Gustavo Capanema merecem os aplausos incon- dicionais da opinio publica brasileira. Depois de elogiar a lei e sumariar seus principais dispositivos, o artigo levanta uma possivel divide, mas ‘que 6 logo desfeita: “A dnica restriedo que the poderia ser aplicada, isto é, a do temor de uma ingerBncia exage- Tada do Estado na vide privada das familias, esté excluf- da pela leitura de todos 0s dispositivos da lei que visa, todos eles a dignificar e a ampliar a posi¢fo da Familia no Conjunto das atividades nacionais, sem que nenhum vio- le 0s seus direitos naturais e primaciais". Estabelecido desta forma que a intervenco do Estado é para o bem, A igreja e 0 estado novo: 0 estatuto da familia resta a tarefa de evitar que 0 decreto néo se efetive: “o ‘que nos deve inquietar & que o despeito dos divorcistas, dos anticoncepcionistas, dos feministas libertérios, dos regadores confessados ou disfarcados do anarquismo sexual, consigam langar sobre este admirdvel monumento legislative 0 véu do siléncio, do descrédito, da letra mor- ao AA vitéria, no entanto, fora cantada antes do tem- po. Vargas sente, evidentemente, as dificuldades de um Estatuto dessa natureza, e prefere ouvir outras opiniGes. A critica feita em conjunto por Oswaldo Aranha e Fran- cisco Campos é bastante negativa na forma, mas, curio- samente, no apresenta maiores divergéncias de fundo. Assim, muitos dos artigos propostos so criticados por- que jf estariam implicitos na legislago ou na Constitut ‘cdo de 1937. Do artigo 13, por exemplo, que previa uma ‘educacdo diferenciada para os sexos, reduz @ uma tirada puramente literéria’, jd que “esses fins j8 estdo implicitos na legislaggo". O'artigo 14, que restringia 0 trabalho feminino, foi considerado “de card: ter puramente regularmentar, visto que os regulamentos, relativos 8 admissio ao servigo pblico compreendem a restricdo recomendada no artigo": a parte sobre a cen sura é também considerada supérflua, jS que “a propa- {ganda contra a familia {4 6 considerada pelas leis em vi- ‘gor como atividade subversiva’, of empréstimos fami liares, Finalmente, sf0 considerados como um ince ‘monetério a0 “‘casamento de pessoas incapazes ou mise- raveis, ndo cabendo evidentomente 20 Estado estimular (ou favorecer este tipo de casamento Capanema néo teria maiores dificuldades em reba: ter ponto por ponto este tipo de objegées, e isto Ihe dé ‘oportunidade de explicitar melhor seus pontos de vista. Em sua “anélise do parecer oposto ao projeto de Estatu- ‘to da Familia”, ele reafirma a importancia da familia pa ra o crescimento demogréfico do pais, tendo em vista, principalmente, que “as boas correntes imigratérias vo ‘escasseando, e, de outro lado, a nossa legislacéo adotou, fem matéria de imigracio, uma politica restritiva. E no haveria divida de que a grandeza de um pais depende, em grande parte, do namero de habitantes que contém”. Para confirmar isto, cita Daladier, e também Mussolini poténcia militar do Estado, 0 futuro e a seguranga da Nagao estdo ligados ao problema demogréfico, presente em todos of parses de raca branca e também no nosso. E preciso reafirmar uma vez mais, e da maneira mais cate- gorica — e ndo seré a Gltima —, que uma condigéo insubs- titufvel da hegemonia é 0 nimero”. Ora, a familia, base para o poder nacional, est sob ameaga: “também entre nbs", escreve Capanema, “con: tra a estrutura material e moral da familia conspiram os, costumes”, ¢ isto exige ir muito além do que prescrevia a legislacao existente. E sabido que, apesar da declaracéo constitucional da indissolubilidade do casamento, apesar do cardter antidivorcista da nossa legistaggo civil, a so- ciedade conjugal aqui e ali se dissolve, no para o mero efeito da separacio inevitével, mas para dar lugar a novos casamentos, celebrados alhures, sem validade perante ‘nossas leis, mas praticamente com os mesmos efeitos do ccasamento verdadeiro. Neste ponto da defesa da comuni- dade conjugal, no pode o Estado cruzar os bragos e di- 73 zer que 0 que cumpria fazer esté feito. Uma das medidas propostas, a restric#o a0 trabalho feminino, também é justificada como. inovacéo importante: a restricdo de ‘que cogita 0 artigo criticado se refere também aos om- ppregos de ordem privada”, diz Capanema, observando que, até entdo, “as mulheres (eram) continuamente ad- mitidas, sen nenhuma restrigdo, em quasi todos os servi- {G08 pblicos do pats". ‘A réplica de Capanema conclui, finalmente, com ‘uma visio clara das profundas implicagdes do Estatuto que propunha, “é necessério realizar uma grande reforma na nossa legislago sobre tudo que diz respeito a0 proble- ma da familia, Esta reforma deverd consistir em modi ‘cagées a serem feitas no direito civil e no direito penal, nas leis relativas & previdéncia e a assisténcia social, nas Ieis dos impostos outras: hd de consistir sobretudo na introdugio de inovacdes substanciais de grande impor- tancia como sejam o abono familiar, 0 voto familiar, a educacdo familiar, etc. E de notar que medidas parciais no basta’. Esta legislagdio ndo passaria, entre outras razles, pe- lo fato de que o Governo Vargas preferia sempre a legis- lagdo pragmética e casufstica & legislagdo doutrinéria e ideolégica, Nao faltaram, além disso, outras vozes discor- dantes, Uma delas, cuja influéncia real 6 diffcil avaliar, foi a de Rosalina Coelho Lisboa, jornalista ¢ diplomata extremamente ativa nos anos 30, e identificada com o fe- minismo, por uma parte, e com as ideologias de direita, por outra. Em 1939, ela escreve a Oswaldo Aranha uma longa carta sobre a questo feminina no Brasil, provoca- da, sem divida, pelo préprio Aranha, no contexto da discussdo sobre 0 Estatuto da Familia, Rosalina Lisboa atribui_a Vargas um papel importante ne melhoria da ‘condigo feminina no pais. “Antes delle no Brasil a mu- ther era uma coisa que geralmente estava a venda como ‘objeto de matriménio (prego: casa, roupa, tecto, dinhei- ro para alfinetes e, /ast but not Jeast, garantia para os fi Ios); ou na venda avittante da escravatura branca”. Li- mitar hoje seu campo de trabalho, impedir que ela possa competir, “leal e limpamente”, com os homens, voltar atrés na emancipagio politica que Vargas havia da- do 8 mulher. E Rosalina Lisboa rebate argumentos do proprio Aranha: “Como é possivel que si limite a possi- bilidade de trabalho de milhdes de mulheres porque ‘hd paafses que néo as aceitam e ridicularizam’? Mas voce diz: {qual tratamento devido a0 marido? Vaidede dos homens, terrivel e cruel! (.. .) Pois o marido teré a posi¢ao a que ganhar direito — egualdade si 6 de valor pelo seu lado, ¢ inferioridade si é inferior”. “O elemento melhor do ca- sal 6 que deve se impér naturalmente’” (Arquivo Oswal- do Aranha, OA. 39,00.00/6). ‘A carta de Rosalina Lisboa desvenda um aspecto central da legislacdo proposta por Capanema, que néo tem a ver nem com a questéo demogréfica, nem com os prinetpios religiosos, mas, simplesmente, com os precon- ccaitos e a “vaidade dos homens”. Uma critica mais pro- funda a0 projeto, feita por um assessor qualificado de Vargas, que se mantém andnimo, leva este desvendamen- to ainda mais longe. Esta critica tem muitos pontos em comum com um texto de Oliveira Viana, intitulade "Politica da Populacio”, elaborado ainda na fase preli 4 rminar do projeto, cujas idéi Produzir. Perguntado sobre as medidas que o Estado deveria ‘tomar para 0 “répido e progressive aumento da popula- 40", por um lado, e para a “protegdo da familia", por utr, Oliveira Viana deixa de lado as preocupagdes mo- rais dos setores catélicos para abordar os dois temas em conjunto com © de uma politica da populaeso, para ele uma “politica de quantidade, mas, também, uma politi 2 de qualidade, no sentido eugénico do palav ‘Seu ponto de partida 6 a pr6pria observacio da realidade brasileira: 0 Brasil no teria nem um problema de reducdo de nupcialidade, nem de redugio de nat de. Em relago 20 primeira, diz ele, “minha impressio 6 que 0 brasileiro, seja da cidade, seja do campo, seja da baixa, seja da alta classe, casa cedo, mesmo cedo de- mais e som aquelas cautelas e garantias (dotes, et.) tdo, Comuns nos povos europeus”. A Gnica coisa que dificul taria 0 casamento seria a falta de empregos: conseqiien- temente, 0 problema seria meramente econémico. Ou, em suas palavras, “a nossa politica da populaglo, no que toca ao aumento da nupcialidade, seré uma decorréncia imadiata de nossa politica de fomento de noves fontes novos campos de trabalho, de creagéo de , ou da abertura de novas teas 8 colo nizagéo". A nupcialidade poderia ser ainda estimulada por alguns incentivos especificos de tipo econdmico, ‘como preferéncias para empregos e nomeapSes & emprés: timos e aciantamentos financeiros, principalmente para 4 aquisigdo de moradia ... Estas medidas s6 teriam efi +o, no entanto, se estivessem vinculadas a uma politica mais ampla, que inclufsse a) 0 barateamento do custo de vide; b) © desenvolvimento da estrutura industrial ¢) a colonizago do hinterland e o fracionamento da pro- priedade rural’ A ratalidade poderia também ser estimulada por ‘medidas de tipo econémico, como prémios a familias nu- rmerosas, reduces de impostos,faclidades educacionsis, ¢ inclusive pelo “estimulo de correntes migratoria de etnias prolificas (como a portuguesa e a italiana)”. No entanto, nada disto seria muito importante, j6 que, em relagdo 0 casamentos e natalidade, “‘pecamos por exces: 40, @ nfo por falta: estamos, neste particular, dentro do determinismo de todos os demais povos, semelhantes 20 nosso, que habitam climas tropicais e amenos, em paises conde @ terra sobra e a vida 6 fécil sem exigéncias”. O problema real 6, a seu ver, 0 da mortalidade infantil: “os brasileiros como que surgem da terra aos cardumes; mas, dstes recém-nascidos 56 ume pocentagem reduzida so brevive @ chega & 2% inféncia © a adolescéncia, Eis 0 facto". © problema 6, pois, novamente econdmico, principalmente rural. Nas cidades jé existiriam institut ‘960s providenciérias ¢ assistenciais em grande némero, ‘que deveriam ser reforcadas e ampliadas. No campo, no entanto, a situagéo seria dramética: nesta populacio do interior, 90% dos brasileiros, segundo seus céleulos, "6 que esté a base de nosso povo, a sua fonte demogénica preponderante, Ora, 6 nela, entretanto, que encontramos 0s ccoeficientes mais altos de criangas cacogénicas ou ‘mortas na primeira infancia. A solugio proposta € 2 principais vale a pena re- Cad. Pesq., So Paulo, (37): Mai. 1981 criagio de uma série de instituigdes assistenciais para o campo, incluindo 0 seguro-maternidade, a protegio 8 ‘mulher grévida, maternidades @ ambulatérios em todos 2 muniefpios, dispensérias,croches, ete. ‘A questéo seria como financiar ¢ organizar todo este programa Oliveira Vianna reconhece o problema, ¢ prope como solugso a mobilizaeio de “dois sistemas de ue nao tinham, por assim dizer, sendo um ento rudimentar no periodo anterior & re volugio de 30”, quais sejam as intituigdes de previdén ia social as associages sindicais. Quanto as primeiras, “tudo depende de um sistema de coordenagéo e colabo: ragdo a estudar ¢ a estabelecer”; quanto aos segundos, isto seria relativamentefécil “tanto mais quanto estBo es: tas associag6es pela nova lei de sindicalizaglo, obrigadas a obediéncia as diretrizes do governo e subordinadas 30 controle orgamentério do Ministério do Trabalho, que thes poderé fixar contribuigdes no sentido daquela po- Iitica governamental’. ‘Além destes dois pilares do sistema corporativo, Oliveira Viana menciona uma terctra forca social, “que também poderia ser utilizada nos campos — e 6 0 grande roprietério rural”. E afirma: “no seria despicienda a sugestio de forcar os proprietérios rurais a uma contr! buiego para fins de asssténcia social nos campos, contr buigo a ser paga pelos elementos mais ricos dos munici Bios. Seria chamar 20 cumprimento de novos deveres so: ciais estes cidadd0s, que sS0 0$ ‘chefes naturals’ da popu- Jago rural”. E conclui: “na verdade, este admirével orga- nizador de nossas populagtes rurals para efeitos mera: mente partidérios¢ eleitorais bem pode ser chamado a ‘organizé-las para fins mais altos — para fins socials. © parecer anénimo mantém a mesma linha de ra Ciocinio. Segundo ele, nenhum dos projetos em conside: ragfo, 0 de Capanema ou o substituto Aranhe-Campos, mmereceriam ser aprovados. Este Ultimo, por ser muito limitado e modesto; 0 primeiro, por ser, “reelmente, um amontoado de disposiges legais sem objetivo, inaceit vel mesmo como base de discussfo. Os seus consideranda so truismos @ 0s artigos de lei bem merecom a critica Aranha-Campos, que é ainda benevolent © Ponto bésico de critica 6 estabelecer a dissocie- ‘edo entre 0 problema demogréfico, que o Estatuto pro- cura resolver, e a solugéo proposta, que sf0 0 fortaleci- mento da familia tradicional e os incentivos econémicos 4 familia e 8 natalidade. O parecer no se preocupa em entrar no mérito das concepgdes a respeito da familia de um ponto de vista moral, e procura mudar 0 foco da ‘questo para o exame das condieées sociais e econdmi- ‘cas da populacéo brasileira. “€ ingénuo citar o recente estatuto da Franca’, diz 0 toxto: “Basta lembrarmos dois ou trés fatos da geografia humana e social desse pais para verificarmos que no é 0 nosso caso, também dife- rente do que apresenta a Inglaterra e a Bélgica’’. O pare- cer néo cita estes fatos, mas néo é dificil imaginar quais sejam: o tamanho reduzido das familias européias, em contraposicao as numerosas familias brasileiras; a alta ‘mortalidade infantil em nosso pafs, em contraste com a Europa; @ composigéo etéria das populagies dos dois Pafses. ‘A consideragdo destes fatos lev A igreja e 0 estado novo: 0 estatuto da familia #80 Sbvia, que o parecer, por motivos também evidentes, deixa implicita: que @ preocupagso com a manutencao dda familia tradicional, com a restrigio 20 trabalho fem rhino, com a proibiggo a0 uso de anticonceptivos, a plantacZo da censura, etc., tem na realidade pouco a ver ‘com a questéo demogréfica, e muito com as preocupa: ‘ges dominantes entre os setores catélicos mais militan- tes do pais. O parecerista vé nas propostas de Aranhi Campos e Capanema implicagées politicas e orcamen- ‘arias profundas, que neéessitariam melhor andlise: “pa- rece-me que a Uni8o ndo dispde nem de meios finance! ros nem de aparelhamento burocrético capaz de fazer ‘cumprir a legistago que se pretende decretar. Em segun- do lugar, os beneficios do anteprojeto Aranha-Campos viriam a afetar de modo vario as. rendas da Unido e, da- da a impossibitidade de uma fiscalizacdo séria,cons riam, em numerosos casos, instrumentos politicos em mios de municipios em encargo quase total da Unio” (© caminho alternativo que o parecerista aponta 6 fazer da questo demogréfica parte da legislagdo social e trabalhista: “auxiliar a natalidade deve ser auxiliar a pro- pobres para que ipalmente, melho- ‘em a qualidade da populacio, tornando-o mais higida e forte". Assim como a populacdo é diferenciada, seria ne- cessério tratar diferentemente os trabalhadores da indas- ‘05 do campo e os demais. Para os primeiros, sfo su- feridos auxilios pecuniérios para o casamento e a criagdo de filhos. No campo, o bésico seria o desenvolvimento de servigos de assisténcia médico-higiénicos, e a “distr bbuigdo de terras piblicas e pequeno empréstimo de ins- talagdo 20 trabalhador rural que tena 6 ou mais filhos”. Para os demais, uma série de medidas mais indiretas, co- mo a isencio de certos tipos de impostos, facilidade de empréstimos, etc, para 0 casamento, E 0 parecer conclui: “ tentativas como a que pre tende 0 projeto Capanema dificultam mais do que facili tam as solugées certas. A participagéo das mulheres no proceso econdmico néo é um mal. Qualquer observador objetivo, atento as estatisticas, sabe que no Brasil o mal 0 reduzido numero de produtores ue sustentam 0 peso do orcamento far Este parece ter sido, ao que tudo indica, o golpe ‘de misericérdia. Uma "Comisséo Nacional de Protego Familia foi estabelecida em 10 de noverhbro de 1939, seguindo sugestio do préprio Capanema em sua réplica & critica de Aranha-Campos, em 9 de julho de 1940 ela cconclui seus trabalhos. Composta por pessoas ilustres de vérias origens — Levi Carneiro, Stela de Faro, Oliveira Viana, Cindido Motta Filho, Paulo Sé, Jogo Domingues de Oliveira e Ernani Reis — ela propée uma gérie de me- didas jé aventadas pelos projetos Capanema e Aranha: Campos, sem entrar em temas.mais controversos, e sem adotar @ defesa tdo intransigente da familia tradicional Na érea do trabalho feminino, ela pretendeu assegurar 8 mulher funcionéria pGblica garantia de manutengo de lemprego e salério em caso de transferéncia do marido, indo assim contra a legislacio restritiva que se propunha. E dos trabalhos desta comissdo que resulta o Decre- n® 3.200, de abril de 1941, encaminhado a sancao dda Justica, Francisco Campos. Um ano antes havia sido assinado outro Decreto-lei, de nimero 2.040, que tinha ‘como objeitvo “a coordenacdo das atividades de prote- ‘do a maternidade, ia e & adolescéncia”. Este decreto criava mais um érgio da burocracia federal, 0 Departamento Nacional da Crianca, que complementa- Tia, pelo menos em intengdo, a obra assistencial a ser realizada pelos institutos previdencidrios e outras, cias governamentais. © decreto 3.200 abandona todo © contetido dou- trinério da proposta original de Capanema, ¢ adota, pra- ticamente, todas as recomendagbes da Comissfo. A ques- ‘0, no entanto, teria ainda um epflogo agitado. Um més apés assinado o decreto, em 19 de maio de 1941, ele & modificado por um outro, de nlimero 3.284, que visa regulamentar e precisar as vantagens que haviam sido concedidas aos funcionérios piblicos de pro- le numerosa. Em seu artigo. primeiro 0 novo decreto es- tabelece que “ter preferéncia, em igualdade de condi- ‘Bes: a) 0 candidato casado ou vitwo que tiver maior nie mero de filhos; b) 0 candidato casado; ¢ ¢) o candidato solteiro que tiverfilhos reconhecidos". Era uma afronta direta 205 principios da lore, cujareacio no se faz por esperar Do Ministério da Educagdo sai uma proposta de republicagso do decreto 3.284, tendo como principal alteragdo que seja omitida a referéncia a solteiros com fithos naturais. “Se 0 objetivo principal da lei deve ser dar protecio moral e juridica & familia, se a familia tem.como base 0 casamento, no se deve considerar um titulo, como uma regalia jurfdica, em um funcionério, o fato de ter ele fos naturais. Cumpre a lei, como jé 0 fez assegurar a0 préprio filho natural toda a protecéo moral @ material: no porém, ir além disto”, diz a exposicao de motivos, A proposta de modificagso 6 enviada para apre- ciagdo do Departamento Administrativo do Servigo PU blico (DASP), ¢ recebe extensa e detalhada critica, em parecer assinado por Luiz Simées Lopes, com data de 23 de setembro de 1941. Toda a argumentacdo é no sen tido de mostrar que a tradigao juridica brasileira tem si- do a de equiparar progressivamente os direitos dos filhos legitimos e ilegitimos, e que negar os beneficios aos sol- teiros com filhos seria na prética prejudicar e discriminar ‘contra estes. “O mal no esté na existéncia dos filhos espirios, mas no desvio dos pais sem respeito: conde- rnem-se as causas, ndo as conseqiiéncias. O temor as ‘ruti- lancias do escandalo’ 6 a f6rmula cémoda para exculpar (05 pais culposos e, gritantemente, incriminar os filhos sem crime”. “O Estado”, diz em outra parte 0 parecer, "que € hoje “érado bio-ético’ (sic) ndo deve, por forca de preconceitos e apriorismos deixar de entrosar essa crianca (ilegitima) na comunidade, como elemento inocente € itl, Esse menor constitui um dos tantos casos que a Vi- da — e no a Regra — materializa e para os quais exige solugdo”. Mais ainda, discriminar contra os pais solteiros seria ir contra os préprios principios cristdos: “depois do nascimento, no hé motivo para que se eriem hierarquias 76 legitimistas, incompativeis com os sentimentos humanos e cristéos, jé que a prépria lgreja, com toda sua respeité- vel autoridade espiritual, nio distingue a espuriedade, ou no, dos que the buscam a pia ou dos que Ihe defendem ate" parecer é publicado no Diério Oficial de 21 outubro, ¢ sairia resumido também na Revista do Serv Poblico de dezembro do mesmo ano (volume 4, n? 3), sob 0 titulo “A filiagio ilegitima em face da Lei de Pro- ‘tego a Famfli Caberia, ainda, 0 recurso & pressio da opinio po- blica. No final de dezembro um memorial encabecado "Associago de Pais de Familia 6 enviado a Vargas, ‘com cépia para Capanema, apoiando 0 projeto do més e combatendo © parecer do DASP, que, “fazendo con- sideragdes sociolégicas, procura demonstrar que a dis- tingdo entre filhos legitimos e ilegitimos tende, atual- mente, a desaparecer”. “A exigéncia da condigéo de casado, nas propostas de promorao”, diz em outra parte (© documento, seria “‘um estimulo a realizago do casa- mento de solteiros com filhos, mormente naquelas si- tuagdes em que o egoismo, a esquivanga, @ indiferenca ©u 0 desleixo prolongam indefinidamente simples liga- 962s, com grave prejuizo da protecgo 4 mulher e & pro- le”. “\Jamais teorias, por mais bem arquitetadas, poderdo superar a sabedoria humana, fruto da experiéncia de sé ‘culos. As inovagdes em materia social demandam longo tempo para decantar os prinefpios pelos quais hi de re- ger a Sociedade do futuro”. “As normas morais”, conclui ‘© memorial, ‘so a consciéncia dos povos, cristalizam sua sabedoria, por isso zombam de exotismos tebricos, {que tem apenas um brilho efemero”. Além da Associagio dos Pais de Familia, assinam o documento representan- tes do Centro Dom Vital, Confederago Nacional de Ope- rBrios Cat6licos Federaggo das Congregacées Marianas, ‘Associacio das Senhoras Brasileiras, Federago das Ban- deirantes do Brasil, Associago dos Jornalistas Catélicos, Unido dos Catblicos Militares, e varias outras entidades de cunho claramente catélico, Alguns meses depois (marco de 1942) surge um outro documento, este do Instituto do Direito Social de So Paulo, com 0 mesmo objetivo do anterior. O docu- mento afirma que ninguém ignora como em nosso pals, merc da formacio moral de seu povo e da perdurével influéncia religiosa que presidiu seus primeiros movi- mentos hist6ricos, 6 absolutamente intolerével, para 0 convivio doméstico ou ainda para as relagdes mais am- plas dos grupos sociais, “a familia ilegitimamente consti- tuida”’. € neste sentido que o reconhecimento de igual: dade de direitos a solteiros com filhos seria um ato imo: ral, anti-eligioso e atentatério de nossos habitos socials i seculares”, além de anticonstitucional. O parecer do DASP, “embora longo e erudito, abandonou por comple- 10 todos os aspectos de direito constitucional e adminis: trativo de que 0 caso se revestia, para ater-se a considera- ‘es de ordem socioldgica, e até certo ponto sentimen- tal, quanto & protecdo dos filhos ilegitimos”. Esta pro- Cad. Pesq., Sao Paulo, (37):Mai. 1981 tego, no entanto, no deveria ser confundida com o reconhecimento legal das unies ilfcitas: “dar aos funcio- nérios que as mantém uma vantagem, pela comprovagio da existéncia de filhos esparios, 6 afirmar, contra a Cons- tituigSo, a desnecessidade da familia legitima resultant do casamento"”. Os protestos no seriam, aperentemente, levados ‘em consideragSo, e a norma de equiparacdo seria manti- da, Seria necesséria uma pesquisa minuciosa, para avaliar (© impacto real desta legislacdo sobre a famili A igreja e 0 estado novo: 0 estatuto da familia 1941, a concesso de abonos familiares, previstos no De- creto-lei n? 3.200, & suspensa pelo Decreto-lei 93.741 (de 23/10/41), até sua regulamentacdo. Novas entidades, ‘como 0 Departamento Nacional da Crianca, uma vez es- tabelecidas, continuaram a existir mas com atuaglo lim tada. O papel assistencial dos sindicatos no chegaria a adquirir corpo, e 0 da previdéncia social, s6 muito lenta- mente. A mobilizago dos senhores de terra no apoio 8 infncia do campo, preconizado por Oliveira Viana, ja- ‘mais seria tontada. 77

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