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Colesdo ESTETICAS iregae: Roberto Machado Kallias ou Sobre a Beleza Friedrich Schiller Ensaio sobre 0 Trigico Peter Szondi Nietzsche e a Polémica sobre “O Nascimento da Tragédia” Roberto Machado (org,) Nietzsche e a polémica sobre O nascimento da tragédia Textos de Rohde, Wagner e Wilamowitz-Méllendorff Organizagao e mtrodugao: RosenTo MacHapo Traduca do alemao e notas: PEDRO SOssekiND Jorge ZAHAR Editor Rio de Janeiro Copyright da selesio de textos introdugao © 2005, Roberto Machado Copyright ds edigio brasletra © 2005: Torge Zabar Editor Lida rug México 31 sobrelojs 2031-144 Rio de Tanero, RI tele (21) 22400226 / fax: (21) 2262-5123 ‘email: je@zaharcom.br site: worwaahsrcom.be “Taos os diretos reservados. Ateprodugio nio-autorizada desta publicagio, no todo fou em part, consti voiagio de ditertos autora, (Let 9.610/98) (Capa: Mieam Lerner Hsttagdes da capt: Dionso (acina), gua vermelhs sobre undo regio clD0 aC. Apolo (abso, copra em mirmore de eit grey dec 350.4. 1P-Brasl, Catlogazso-na-fonte Sindicata Nacional das Editores de Livros, Rl nud Dietsche € a pole sobre © nascmento da trait | textos de Rohde, Wagner e Wilimowit-Millendorf mniroduyio ¢ orginaio Roberto Machado: tradi do alemio ¢notasFedro SUsekind. Rio de Janeiro: Forge Zahar Ea,,2005 (Estcas) ISHN #5-7110-861-7 | tvitasche, Pediich Wilhelm, 1844-1800, O nascimento da tage dia’ 2, © Trigho, 3. Tapédis. 4. Teatro prego (Trapédia)- Histon € ttitica, 5. Milica ~ Filosofia e estetica, 6. Estetica. 7. Filosofia lems Te Roe, Erwin, 1845-1898, TL. Wagner, Richard, 1813-1985. Hit, Wilimow-MollendorS, Ulrich von, 1848-1931. IN. Machado, Roberto, 1942. V. Stssekind, Pedro, 1873- VI. Sere epD 193 910 oe cpu 143) Sumario Introducao: Arte, ciéncia, filesofia, por Roberto Machado = 7 Erwin Rohde: Resenha (recusada) para a Literarische Zentralblatt editada por Zarncke, a 35 Erwin Rohde: Resenha publicada no Norddentsche Allgemeine Zeitung de 26 de maio de 1872 = 43 Utrich von Witamowitz-Méllendorff: Filologia do futuro! Primeira Parte, Berlim, 1872 55 Richard Wagner: Carta aberta a Friedrich Nietasche, publicada no Norddeutsche Allgemeine Zertung de 23 de junho de 1872 # 79 Erwin Rohde: Filologia retrégrada |Afterphilologie|. Esclarecimentos acerca do panileto “Filologia do futuro!” Publicado pelo doutor em filologia Ulrich von Wilamowitz-Mollendorff. Leipzig, 1872 = 87 Ulrich von Wilamowitz-Méllendorff: Filologia do futuro! Segunda parte. Berlim, 1873 m 129 Notas a 149 Introducéo Arte, ciéncia, filosofia ROBERTO Machado O nascimento da tragédia apresenta trés idéias principais, as quais todas as outras estdo subordinadas. A primeira é uma explicagio da origem, composigao e fina~ lidade da arte tragica grega. A base dessa teoria da tragédia sio os conceitas de apalineo ¢ dionisiaco, elaborados a partir das cate- gorias metafisicas de esséncia ¢ aparéncia ou, mais precisamente, da dualidade schopenhaueriana vontade e representagio, 0 apolineo é para Nietzsche o principio de individuagao, um processo de criagio do individuo, que se realiza como uma expe- riéncia da medida e da consciéncia de si, E se Nietzsche daa esse proceso o nome de apolineo é porque, para ele, Apolo, deus da beleza, cujos lemas so “Conhece-te a ti mesmo” ¢ “Nada em de- ‘asi’, € a expressio,a representacdo, a imagem divina do princi pio de individuaco. O que se pode compreender pelas duas pro- priedades que ele encontra em Apolo: o brilho e a aparéncia. Por ‘um lado, Apolo é 0 brilhante, o resplandecente, o solar. Proprie~ dade que pertence nao s6 a Apolo, mas aos deuses olimpicos em geral e até mesmo aos homens, quando se tornam gloriosos por seus feitos herdicos. Por outro lado, intrinsecamente ligada a idéia de brilho esta a de aparéncia, Pois conceber 0 mundo apolineo co- mo brilhante significa ndo 66 criar uma protesio contra 0 com- brio, o tenebroso da vida, mas principalmente criar um tipo espe- cifico de protegao: a protegdo pela aparéncia. Os deuses ¢ herdis apolineos sto aparéncias artisticas que tornam a vida descidvel, encobrindo o sofrimento pela criagio de uma ilusdo. Essa iluséo € 0 principio de individuagao. Nietzsche e a poléemica Id dionisiaco é pensado por Nietzsche a partir do culto das bacantes: cortejos orgidsticos de mulheres que, em transe coleti- vo, dangando, cantando e tocando tamborins em honra de Dio- niso, a noite, nas montanhas, invadiram a Grécia vindos da Asia. Em vez de um processo de individuacZo, trata-se de uma expe~ rigncia de reconciliagdo das pessoas com as pessoas com a na- tureza, uma harmonia universal. um sentimento mistico de uunidade, A experiéncia dionisiaca ¢ a possibilidade de escapar da Aiviséo, da individualidade, e se fundir a0 uno, 20 ser: éa possi- bilidade de integracao da parte na totalidade. Ao mesmo tempo, ‘0 dionisiaco significa o abandono dos preceitos apolineos da me- dida e da consciéncia de si. Em vez de medida, delimitagio, cal~ ‘ma, tranguilidade, setenidade apolineas, 0 que se manifesta na experiéncia dionisiaca é a hybris, a desmesura, a desmedida. Do ‘mesmo modo, em vez da consciéncia de si apolinea, 0 produz a desintegracio do eu, a aboligio da subjetividade: pro- duz o entusiasmo, 0 enfeiticamento, o abandono ao éxtase divi- no, a louctira mistica do deus da possessao. ‘Mas a tiltima palavra de Nietzsche a respeito do nascimen- to da tragédia nao ¢ 0 antagonismo entre o apolineo ¢ 0 dioni- siacot ¢ a alianga, a reconciliagio entre os dois principios. Neste sentido, um dos pontos mais importantes da interpretagio é a ligagdo que ele estabelece entre 0 culto dionisiaco e a arte trd a, defendendo a hipétese de que a tragédia se origina dessa multidao encantada que se sente transformada em sitiros esile- nos, como se vé no culto das bacantes; ou, mais precisamente, de que, no momento em que é apenas coro, a tragédia imita, sim- boliza o fendmeno da embriaguer dionisiaca responsével pelo desaparecimento dos principios apolineos criadores da indivi- duagéo: a medida e a consciéncia de st, Para que essa hipétese se revele em toda sua forga e origin: lidade, ¢ preciso salientar os dois principais componentes dessa teunia da trayedia, Primeiro, o que torna a arte trégica possivel é amiisica,A tragédia nasce do espirito da miisica;a origem da tra- sgédia é a possesstio causada pela miisica. Inspirado em Schopen- hhauer ¢ erm Wagner, que interpretaram a miisica como expressio imediata e universal da vontade entendida nao como vontade in- dividual, mas como esséncia do mundo, Nietzsche pensard a mi sica como uma arte essencialmente dionisiaca ¢, portanto, 0 ‘meio mais importante de se desfazer da individualidade. Mas, se a musica € o principal elemento que permite explicar 0 nasct mento da tragédia, para dar conta totalmente desse fenémeno artistico Nietzsche acrescenta & musica, seu componente dioni- siaco, 05 componentes apolineos: a palavra e a cena. O que o faz definir a tragédia como um coro dionisiaco que se descarrega em um mundo apolineo de imagens. Esse mundo de unagens criado pelo coro é o mito tragico, que apresenta a sabedoria dionisiaca através do aniquilamento do individuo herdico e de sta uniéo com o ser primordial, 0 uno originério, que é, em tiltima andlise, © que Schopenhauer chamou de vontade. Com que finalidade? Para fazer 0 espectador aceitar 0 sofimento com alegria, como parte integrante da vida, porque seu préprio aniquilamento co- mo individuo em nada afeta a esséncia da vida, o mais intimo do mundo. Assim, fundada na mtisica, a tragédia, expressdo das pul- s6es artisticas apolinea e dionisiaca, unigo da aparéncia ¢ da cs- séncia, da representagdo e da vontade, da iluséo e da verdade,¢ a atividade que dé acesso as questdes fundamentais da existéncia A segunda idéia importante de O nascimenta da tragédia éa dentincia da morte da arte trigica perpetrada por Euripides. Pois,diferentemente de todas as outras artes, que tém uma mor- te natural, 2 tragédia grega teria sucumbido por suicidio. Suici- dio que, segundo Nietzsche, tem duas causas. A primeira éa pre- valéncia, em Euripides, do homem teérico, do pensador racional, sobre 0 artista, o poeta, Esse Euripides tedrico € 0 critico de Bs quilo, aquele que viu nas tragédias de seu antecessor uma preci« so enganadora, uma profundidade enigmitica, além de achar contestivel sua solucio dos problemas éticos, duvidosa sua utili- zagio dos mitos, desigual a reparticao da felicidade e da infelici- dace, Mas esse Euripides tedrico é também aquele que, como juiz de sua propria arte, faz de sua poesia o eco de seu pensamento consciente, reavaliando todos os elementos da tragedia: a lingua gem, os caracteres, a construgio dramitica,o coro. Postura criti- ca que o leva a excluir, com a mtisica, 0 componente dionisiaco da tragédia. O que Nietzsche chama “tendéncia de Euripides” é a reconstrugio da tragédia com uma arte, uma ética e uma visio do mundo nao-trigicas. Um misto de “frios pensamentos para- Intraduio 2 polémica Mewsche oxais ¢ afetos ardentes” que sacrificam tanto 0 apolineo quanto © dionisiaco. A segunda causa, ou melhor ainda, a razio principal. do chamado suicidio da tragédia € 0 socratismo de Euripides. Pois, para Nietzsche, Euripides foi apenas uma mascara, no sentido de que quem falava por ele ndo era Apolo nem Dioniso, era Sécra- tes, 0 protétipo do homem tedrica, aquele que faco em arrancar o véu da aparéncia, aquele que acredita ser possivel penetrar no fundo das coisas, separando 0 conhecimen- to verdadeiro da aparéncia, Se Nietzsche critica a “estética racio- nalista” socritica ou “socratismo estético” como 0 principio mortal que destruiu a tragédia, por ter introduzido na arte al6- gica,a teoria, 0 conceito, subordinando 0 poeta ao tebrico, @ be~ 6 encontra satis- leza a raza. Aeesséncia do socratismo estético pode ser resumida numa formula: “Tudo deve ser inteligivel para ser belo” ou “Tudo de- ve ser consciente para ser belo”, principio estético paralelo a0 principio ético socratico: “S6 aquele que sabe € virtuoso” ou “Tudo deve ser consciente para ser bom’ Concepcao que teria levado a se considerar a tragedia irracional, isto é, um compro- isso de causas sem efeito e de efeitos sem causa, ¢ a desvalori= var 0 poeta tragico por no ter consciéncia do que faz € nao apresentar claramente 0 seu saber. © que desvaloriza totaimen- te uma sabedoria instintiva ou inconsciente, levando a pensar que, por no ter consciéncia do que fazia, Esquilo nao criava nada de justo, nada de correto. Pois, seo critério se torna o grau. de clareza do saber ou a consciéncia tedrica do artista, a arte tragica, que expressa um saber inconsciente, estaré conseqiien- temente desclassificaca. Assim, 0 “socratismo estético”, ou a “tendéncia socra foi, para Nietzsche, o principal responsével pela morte da tragé- dia ou pelo desaparecimento de seu saber trigico. Pois enquanto 1 metatisica do artista trgico, em que a experiéncia da verdade dionisiaca se faz indissoluveimente ligada a bela aparéncia apoli- nea, € capaz, com sta miisica e seu mito, de justificar a existéncia do “pior dos mundos’. transfigurando-o, a metafisica racional socritica, criadora do espirito cientifico, é incapaz de expressar 0 ‘mundo em sua tragicidade, pela prevaléncia que daa verdade em detrimento da ilusao e pela crenga de que é capaz de curar a fe- rida da existéncia. A terceita idéia importante do livro é a tentative de encon- trar o renascimento da tragédia, ou da concepgio tragica do mundo, em algumas manifestagdes culturais da modernidade. Por um lado, a mtisica de Wagner, grande motivador e inspira- dor de suas anzlises, a quem 0 livro & dedicado, ¢ em que Nietz- sche vé a volta da arte da Antigiiidade, ou, mais precisamente, 0 retorno do sentimento trigico do mundo; por outro lado, a flo sofia de Schopenhauer, que teria brotado da mesma fonte diont- siaca que a mtisica e aniquilado 0 otimismo socratico. O nascimento da tragédia, que se refere aos gregos como “nossos luminosos guias”, dé continuidade ao projeto de Win- ckelmann, Goethe e Schiller de pensar 0 que deve ser a obra de arte moderna a partir de uma reflexdo sobre a arte grega. Como eles, o jovem Nietzsche também se sente um pensador que po- de entender melhor sua época a partir do mundo grego. Mas ha tuma grande diferenga entre ele e 0s pensadores que iniciaram a politica cultural alema de valorizacdo da arte grega como mode- Jo do que deve ser a arte moderna. & que, negando que os gre- gos tenham sido exclusivamente ou essencialmente apolineos ~ como pensava Winckelmann com sua célebre “nobre simplici- dade ¢ calma grandeza" — Nietzsche relacionard a serenidade apolinea com um aspecto mais profundo da Grécia, o dionisia- co, que nao tinha sido pensado por eles. Se Winckelmann, Goc- the e Schiller fizerarm o espirito alemao entrar na escola dos gre~ gos, Nietzsche pensa que eles “no conseguiram abrir a porta magica que di acesso a montanha encantada do helenismo” porque nao usaram a boa chave para isso: a musica, ou melhor ainda, a tragédia musical. A originalidade de Nietesche nao é propriamente sua con- cepgdo da musica, bastante semelhante, na época, a de Scho- enhauer, Sua originalidade foi, inspirado na concepeao schope- haueriana das artes, valorizar 2 miisica para pensar a tragédia grega como uma arte Fundamentalmente musical, ou como ten- do origem no espirito da miisica,articulando Schopentiauer com ‘9 movimento de utilizagio da Grécia como modelo para pensar a cultura alema, através de um renascimento do espirito tragico. Inteducio Eo elo que possibilitow isso for certamente a idéia wagneriana de drama musical. Isso significara para Nietzsche que a obra de arte moderna 196 pode ser o renascimento da arte apolinco-dionisiaca da tragé- dia. Mas significara também ~ e a esse respeito a influéncia das operas de Wagner é fundamental ~o renascimento de mitos ger mianicos. que, segundo O nascimenito da tragéidia, conservam “o espirito alemao intato em sua espléndida satide, profundidade ¢ forca dionisiaca”, Assim. 0 renascimento do espirito tragico gre- go vincula-se, em Nietzsche, ao renascimento do génio alemao que, mesmo que tenha vivido “a servico de pérfidos andes”, no mais profundo de si mesmo se conserva intato, com toda a sua forca dionisiaca. Como se o espirito trigico existente na Grécia pré-socritica, em vez de ter sido totalmente aniquilado pelo es- pirito socritico, embora reprimido, se tivesse mantido vivo na profundeza adormecida do espirito alemao. Continuidade entre ‘0 mito trigico grego ¢ o mito alemao que faz do nascimento de tuma era trigica do espirito alemao “apenas um retorno a ele ‘mesmo, um bem-aventurado reencontrar-se a si préprio, depois que, por longo tempo, enormes poderes conquistadores, vindos de fora” o haviarn reduzido a escravidao. Se O nascintenta da tragedia é um livro profundamente ale- milo, sendo levado a falar de “problema alemao”, “esperancas ale- ‘mies’, “génio alemio’,“espirito alemao’, “ser alemao’,é pela im- portincia que dé a miisica ou pela idéia de que a muisica é a forga 4 partir da qual Nietasche faz sua critica a cultura alernd, Pois nfo é le quem diz que na Antigiidade helénica “reside a esperanca de uma renovagio e de uma purificagdo do espirito alemio pelo jogo radgico da miisica”? Esse vinculo entre o renascimento alemio da Antigilidade grega ea mmisica alemi, considerada como a condigao cessencial do despertar do espirito dionisiaco, ¢ tio importante no ‘Nascimento da tragédia que ele aparece no 36 na interpretacio de Bach, Beethoven e Wagner como etapas desse despertar do tundo lo espirito alemio, mas até mesmo no curioso elogio zo “coral de Lutero, como primeizo chamariz dionisiaco”, Assim, O nascimento da tragédia estabelece a origem musi- cal da tragédia grega, e sua importancia como ume metafisica de artista, sobretudo para legitimar a arte wagneriana, sugerindo {que 0 renascimento do espirito dionisiaco tem como sua expres- io mats forte o drama musical wagneriano, [déia que jé motiva Nietasche a escrever com toda énfase no fragmento 9134], de 1870; “Reconhego na vida grega a tinica forma de vidas € consi- dero Wagner a tentativa mais sublime do ser alemio na direcio de seu renascimento.” Essas idias, elaboradas sobretudo em 1870 ¢ 1871 por um joer filélogo, professor da Universidade da Basiléia, mesmo nao sen- do inteiramente originais, jamais haviam sido enunciadas desta maneira. E surpreenderam os filélogos da época. ‘Umm dos motivos é 0 estilo em que sto expostas. E que, pelo menos desde 1867, ainda estudante de filologia em Leipzig, cons~ tatando que escreve sem estilo, Nietzsche busca uma maneira de redigir seus textos que seja diferente dos escritos flol6gicos, inclu- sive de seus trabalhos anteriores, sobre Tedgnis e Didgenes Laércio, Essa recusa do estilo filolégico significa duas coisas: primei- ro,em ver de escrever de maneira seca e morta, subjugada pela 16- gica, fazer uma exposicao rigorosa das provas de forma agradavel ¢€ clegante, evitando a gravidade, o pedantismo, a tradicao osten- tatdria, cheia de citagdes, que caracteriza a filologia. Escrever co- mo se estivesse improvisando ao piano, jé diz-o jovem estudante de filologia. Segundo, significa criar um estilo que, sem se limitar a0 exame de fragmentos isolados, seja capaz de situat os fatos em um horizonte mais amplo, mais abrangente. Assim, opondo-se a estreiteza cientifica da filologia — uma atividade cega, de toupeira, como diz —, Nietzsche confessa que, enquanto a maior parte dos fildlogos ¢ incapaz de ter uma visio de conjunto da Antigtiidade, por se manter muito perto do quadro, seu maior prazer &" lesco- brir um ponto de vista novo sobre uma questéo, multiplicar os ontos de vista ¢ juntar o material com essa intengao”. A flologia deve abarcar um conjunto mais vasto ou produzir pontos de vis- ta mais elevados do que geralmente tem feito.’ Ora, Nietzsche pensa que aquilo que Ihe possibilita essa cri- tica da filologia ¢ a filosofia; pensa que, para que a realidade in- dividual dé lugar a unidade do todo, a atividade filologica deve Introdusao Nietzsche e a polémica estar inserida em uma visio filosdfica do mundo. Assim, se ele gosta mais de seu trabalho filolégico sobre Demécrito do que dos dois primeiros sobre Tedgnis e sobre Diogenes Laétcio, € pe- la base filosofica que ele contém, Essa idéia, que desponta quando ¢ estudante em Leipzig, de uma subordinacio da filologia a filosofia, pela visio global que es- ta possibilta, ganha ainda mais forg2 no momento em que ele se torna professor dessa diseiplina na Universidade da Basia, Isso pode ser notado em sua aula inaugural, de 1869,“Homero e a fi- lologia clissica” Essa conferéncia parte da falta de unidade concei- tual e da multiplicidade de atividades cientificas da filologia para defender que, se ela é uma disciplina estética ~ além de historica ce cientifica ~ é por ver na Antighidade classica um mundo ideal, tum modelo eterno onde o presente deve se espelhar. Posiglo que 6 faz observar, ainda bastante influenciado por Winckelmann, que, se 0s filélogos devem contar com 0 apoio dos artistas, é por- ‘que apenas cles “podem compreender o quanto a espada da bar- brie ameaga todos aqueles que perdem de vista a inefivel simpli- cidade, a dignidade e a nobreza dos gregos" Mas também o leva, depois de haver citado a frase de Schiller segundo a qual os filélo- gos destrogaram a coroa de Homero, a esclarecer aos “artistas amigos da Antigidade, adoradores das belezas helénicas ¢ de stia nobre simplicidade’, que toda atividade filologica — indispensével para fazer ressurgit 0 mundo das obras primas imortais do espi- rito grego que estava ocuito sob uma montanha de preconceitos = deve ser impregnada de uma concepalo filoséfica que dé conta de uma unidade global Essas mesmas posigbes podem ser notadas no curso de 1871 intitulado Introducao aos estudos de filologia classica, em que Nietasche chega a estabelecer que so quem € filésofo ¢ artista es- td predestinado a ser filélogo. E que, segundo ele,a compreensio historica dada pela filologia consiste em interpretar os fatos a partir do classicismo da Antigilidade, com suas leis eternamente vvlidas e sua superioridade em relagio ao mundo moderno. Ora, o classicismo da Antigitidade é, para ele, uma pressuposi¢ao filo- séfica, e implica que, guiado pela filosofia, 0 fldlogo se liberte dos detalhes, considerando as coisas com amplitude, como um todo.' O que s0 se realizari se o filélogo assimilar o ensinamen- to dos grandes modernos, como Winekelmann, Lessing, Goethe, Schiller, sobre o que éa Antigdidade, Assim. o principio que possibilita a critica nieteschiana da filologia é que esta nao é uma ciéncia autonoma, devendo estar ‘em constante interagao coma arte ea filosofia. Uma filologia pu- ramente cientifica nos faz perder o “verdadeiro perfume” da Antigtiidade. Ao julgar que a filologia tem sido indiferente aos verdadciras ¢ mais urgentes problemas da vida, ¢ utiizat-se da ciéncia da Antigitidade para pensar filosoficamente, Nietzsche, i nesse primeiro momento de sua reflexdo, € muito mi fildlogo. ssa presenca da filosofia é tio grande na época em que es- creve O nascimento da tragédia que, em janeiro de 1871, Nietz- sche propée sua candidatura a uma das duas catedras de filoso- fia da Universidade, que tinha ficado vaga. A proposta ¢ feita por carta a seu protetor, © conselheiro Vischer-Bilfinger, fldlogo, professor e presidente do Conselho da Universidade da Basiléia, ‘que havia sido o principal responsével por stia nomeagio como professor, depois da consulta a seis renomados académicos ale~ mies, entre os quais Ritschl, professor de Nietzsche em Bonn € Leipzig. Ora, nessa carta, Nietzsche confidencia a Vischer que os estudos de filologia o interessavam principalmente pelo que ti- ham de significative para a histéria da filosofia, informando- Ihe nao s6 que durante seus estudos académicos esteve em per manente contato com a filosofia, organizando seus interesses principais em torno dela, como também que, ao se tornar pro- fessor, chegou até mesmo a dar cursos sobre temas filossficos. E nio deixa de ser curioso o argumento que utiliza para convence- {o da importéncia de sua transferéncia da catedra de flologia pa- ra a de filosofia: a causa da estafa que o afeta regularmente no is que um meio de cada semestre é o conflito pessoal entre sua inclinago & meditagao filoséfica ¢ suas multiplas atividades cotidianas de professor de filulogia. Niewstlie 130 yauhard 9 cargo, provavel- mente devido & oposigio que seu nome suscitaria no outto pro fessor de filosofia da Universidade, que havia reagido negativa~ mente a suas conferéncias sobre “O drama musical grego” ¢ sobretudo “Socrates ¢ a tragédia’, que faz a critica da racionalida- de socritica ¢ de seus “efeitos antiartisticos” sobre a tragédia. Inredugio Nietasche e a polémica Mas, antes de saber que sua solicitagio nem foi levada em consi- deragio, escreve a Rohde, em 29 de marco de 1871, dizendo que std terminando um pequeno trabalho intitulado “Origem ¢ ob- jetivo da tragédia” que lhe pode dar legitimidade como fil6sofo.* Esse interesse pela filosofia, que vern do tempo de estudan- te, acompanhando seus estudos e escritos flolégicos, consistit fem algumas leituras de filsofos historiadores da filosofia. Schopenhauer, que lera com entusiasmo em outubro de 1865, quando estudava filologia em Leipzig, e foi sua primeira desco- berta da dimensio tragica da existéncia. A Critica da faculdade de jugar, de Kant, Didgenes Laércio, Lange ¢ Kuno Fischer, que lhe deram o conhecimento da histéria da flosofia, Platdo e 0s fil6so- fos “pré-platonicos”, sobre quem deu alguns cursos. Essas leituras significaram sem diivida pouco para que Ihe fosse confiada uma cétedra de filosofia. Blas traem, no entanto, um interesse tio grande pelas questdes filoséficas que. no momento em qu de fazer carreira como professor de filologia, esta ja significa pa- ra cle mais um trabalho do que propriamente uma vocagao. E se esse interesse, como se sabe, s6 faz crescer, ¢ ele que leva Nietz~ sche, logo depois de escrever O nascimento da tragédia, ¢ ainda como professor de filologia, a comecar a abandonar a temética ¢ ‘os métodos da filologia. buscando um compromisso entre stia paixo pela filosofia e stas obrigagdes profissionals, como se n0- ta pelos cursos que deu em 1873 sobre os filésofos pré-platoni: cos, sobre Platdo e sobre a Retdrica de Aristételes.* deci- O nascumento da tragédia ~ embora ainda seja pouco para as exi- géncins posteriores de seu autor, que na autocritica de 1886 0 con- sidera um livro “estranho’, “dificil”, “problematico” e até mesmo “impossivel” ~ é a grande realizacio desse projeto, acalentado ha alguns anos, de utlizagao da filologia para uma reflexio flosofica Dai por que, temendo pela recep¢ao do livro, antes mesmo que este seja publicado, Nietzsche escreve a Rohde — seu grande amigo desde 1866, quando ainda estudavam em Leipzig, e que na época em que elabora O nascimento da tragédia ele considera, de todos os jovens filélogos que encontrou, de longe o mais capaz? — sugerindo que dé sua opiniao sobre o livro, pois, diz ele, “terno que 0s fildlogos, por causa da misica, os musicos, por cause da filotogia, ¢ 0s filésofos, por causa da miisica e da filologia, se re- cusem a lero livro..”" Temor que é uma decorréncia do que ele pensava de seu livro enquanto 0 escrevia, como se pode ver pela carta enderegada ao mesmo Rohde, ne final de janeiro de 1870, que contém a bela e, & primeira vista, intrigante afirmacio: “Atualmente ciéncia, arte efilosofia se unem em mim tao forte- mente que um dia conceberei centauros.” Dai também por que, quando o livro € publicado, Nietasche se preocupa com o silencio de seus pares, sobretuda o de Ritschl, escrevendo-the que estranha nao ter recebido nenhuma palavra a seu respeito, e que esse siléncio o inquieta. Aproveita, entio, pa- ra dizer que O nascimento da tragédia é um manifesto, cheio de esperancas para a ciéncia da Antighidade e para a germanidade, e que pretende com ele agir sobre a jovem geracdo de fildlogos." Ritschl foi o professor que teve mais influéncia sobre Nietz- sche em Leipzig, apesar de sua hostilidade a contaminagao da filo- logia pela filosofia, pois, seguidor de Wolf, para quem a flologia deve dar uma explicago gramatica exata, sem nada de estética ou de postica, reduz a ciéncia da Antighidade a critica do texto." Es- sa influéncia € confessada por Nietzsche em carta a0 amigo Paul Deussen, de 4 de abril de 1867, nesses termos: “Voce néo imagina a que ponto estou pessoalmente ligado a Ritschi, nao posso nem quero me destigar dele... 0 menor de seus julgamentos reflete tal bom senso, tal vigortal respeito pela verdade que ele se tornou pa- ra mim uma espécie de consciéncia cientifica.” Ritschl fot 0 res- ponsivel por sua passagem da teologia para a filologia, depois de seu primero semestre em Bonn; foi quem publicou em sua revis- ta seus primeiros trabalhos floldgicos: sobre Teégnis, em 1866, ¢ sobre Didgenes Laéscio, em 1867. Além disso, for Ritschl quem conseguiu seu doutorado honoris causa ¢ 0 indicou para a cétedra de filologia da Universidade da Basiéia, declarando entusiasmado ‘que. entre os jovens talentos que viu se desenvalver, jamais conhe- ceu alguém tio precace e tio completo quanto Nietzsche, predi- zendo inclusive ~ como se sabe equivocadamente— que ele figura- ria um dia no primeiro time da filologia alema. Nietasche e 2 polémica Ritschl responde a Nietzsche em 14 de fevereiro de 1872, deixando claro que seu ex-aluno jamats teria nele um aliado pa- ra sua interpretagio da Grécia e sua defesa da importancia da Grécia para @ Alemanha, Dizendo-se velho demats, a0s sessenta e cinco anos, para seguir caminhos tio novos quanto os indica~ dos por Nietzsche ¢ distanciando-se da relagdo estabelecida por cle entre filologia, arte e filosofia, Ritschl defende na carta, como sempre fizera, a interpretaglo histérica como o itmago da filolo- gia, Postura metodolégica que o leva a varias crticas de fundo a O nascimento da tragédia, Primeiro,a lembrar que um cientista, como ele, nio pode condenar 0 conhecimento e ver na arte a tinica forga libertadora. Segundo, a salientar que a salvagio do mundo nao vem de um sistema filoséfico, no que reconhece a fi- losofia de Schopenhauer como a base para a compreensio do Nascimento da tragédia, mas confessa nao ser capaz, de com- preendé-la. Terceiro,a discordar do privilégio que tragédia grega e da importancia que ela teria para a humanida- de, pois, embora o helenismo seja a eterna fonte da cultura uni- versal, as formas ¢ as forgas espirituais de um povo, como 0 gre- go. néo podem servir de modelo ou de regra para outros povos (ou outros periodos. Finalmente, Ritschl é levado a se questionar se as reflexes de Nietzsche poclerdo realmente servir como fun- , carregando tudo pelos ares como um abutre . Atordoados, nossos olhares procuram pelo que acaba de desaparecer, ois 0 que vemos como que se alga de uma imersio em luz dourada e é tio pleno e verde, tfo transbordante de vida, to incomensurivel em sua imensa nostalgia. A tragédlia se assen- ta em meio a essa abundancia de vida, sofrimento e prazer, escutando com um arrebatamento sublime o canto distante € melancélico , que fala das maes do ser, 55 Nietzsche e @ potémica cxjos nomes sio: delirio, vontade, dor. — Sim, meus amigos, acre- ditem como cu na vida dionisiaca e no renascimento da trageéd ‘tempo do homem socritico passou. Acompanhem 0 cortejo de Dioniso da India para a Grécia. ‘Armem-se para um duro combate, mas acreditem nos milagres de seu deus.” ($20) Isso para dar uma prévia do gosto e uma amostra tanto do tom quanto da orientagio do livro. Sem divide, ambos deveriam ser julgados por si mesmos: todavia nao acredito estar fazendo algo indtil ao critica-lo e 20 advertir a seu respeito, até onde me cabe. ‘Uma vez lido o livro, eu mesmo senti necessidade de expressar 20 autor 0 devido agradecimento. De fato, 0 aspecto mais chocante do livco diz respeito ao seu tom e & sua ortentagio, O senhor Nietzsche nio se apresenta como um pesquisador cientifico: sua sabedoria, conseguida pela via da intuigio, é exposta ora no esti- lo de um pregador religioso, ora em um raisonnement! que s6 tem parentesco com 0 dos jornalistas,“escravos da folha do dia” (620), O senor Nietzsche anuncia, como um epopta, os mila- igres pussudus © futuros de seu deus: sem diivida algo extrema- mente edificante para os “amigos” figis. & claro que néo falta, nesse “evangelho da harmonia universal” ($1), 0 tipico andtema de toda crenca que se pretende a tinica a proporcionar bem- aventuranca, Agora, apés o renascimento da tragédia e do mito tragico por intermédio de Richard Wagner, o “sublime precur- sor” a quem o senthor Nietzsche dedicou o seu livro (Euripides assassinou a tragédia; Shakespeare, Goethe ¢ Schiller parecem ter escrito, segundo o pardgtafo 12, apenas poemas épicos dramati- zados: outras obras de natureza totalmente dramética, como as de Kalidasa e Calderén, mereceram...o siléncio), quando “Dioniso fala a lingua de Apolo ¢ Apolo finalmente fala a de Dioniso’? quem “no se sente elevado acima do processo patoldgico ¢ ‘moral apds essas espléndidas experiéncias na contemplagao da tragédia, pode perder a esperanca em sua natureza estética” ($22). Evidentemente, Aristételes e Lessing ndo entenderam 0 drama. O senhor Nietzsche entendeu. Ao senhor Nietzsche “foi concedida uma visio tao estranha e singular do mundo helénico que toda a orgulhosa ciéncia de nossos helenistas ckissicos neces- sariamente Ihe pareceria te wentado até agora s6 de jogos de sombras e de superficialida- des” ($16). Mas 0 senhor Nietasche também é, como ele mesmo esclarece ($19), “um filho querido ¢ mimado da natureza, forma- do no seio da beleza”. de modo que nao preciso me aviltar com as investidas contra Otto Jahn: a lama langada contra o sol cai na cabeca de quem a lancou. Quanto 2 mim, sei que incorro na maldigdo dionisiaca ¢ gostaria muito de ser digno do insulto de “homem socratico” ow pelo menos de merecer o titulo de homer “saudavel” ($1). ygiainein men driston andri thnatdil {“Comportar-se bem, nada melhor para um mortal”].’ Também nao quero ter nada a ver com 0 metafisico e apdstolo Nietzsche. Se ele fosse apenas 1sso, dificilmente eu me manifestaria como um “novo Licurgo” contra o profeta dionisiaco, pois nem mesmo teria ficado saben do de suas revelagdes. Mas 0 senhor Nietzsche também é profes- sor de filologia clssica, trata de algumas des mais importantes questdes da historia da literatura grega, gaba-se de que, gragas a fle. arquretrn dover ce see tum enigma ($8), gaba-se cle quie“o surgimento da tragédia se expressa para efe com uma clareza Juminosa” ($17), ¢ introduz uma concep¢io inteiramente nova a respeito de Arquiloco e de Euripides, além de outras descobertas igualmente desconcertantes. £ isso que pretendo elucidars é fécil provar que aqui também a genialidade quimérica e a inso- no Wilamowitz-Hallendorff ruovoci, 09 ruTupol ‘Netsche e a polémica lencia das afirmagdes séo diretamente proporcionais i ignorin- cia ¢& falta de amor pela verdad, Apoiando-se em dogmas metafisicos, que precisaram do “assentimento de Richard Wagner para a confirmacto de sua eterna verdade” (§16), 0 senhor Nietzsche reconhece o que pode ter de insélito a comparagdo com os fendmenos do presente ($15); alids, essa comparagio foi justamente a origem de suas “espléndidas experiéncias”. B possivel confessar ingenuamente uum proton pseudos erro primordial)” Assim, porque Richard Wagner “atestou como eternamente verdadeira, por meio de seu assentimento’,a posigao excepcional que Schopenhauer atribui a midsica em relagdo a todas as outras artes, era preciso encontrar a mesma concepeio na tragédia antiga, Esse caminho é direta~ mente oposto ao que os herdis da nossa ciéncia ¢, enfimn, os de toda verdadeira ciéncia percorreram, sem se deixar afetar por uma presuncio a respeito do resultado final, honrando apenas a verdade de avancar de conhecimento em conhecimento, de com- preender cada fendreno histérico somente a partir das condi da epoca em que cles se desenvolveram e de ver sta justificativa na prépria necessidade histérica, De fato, esse método histérico- ritico, pelo menos em principio um bem comum da contrapée-se diretamente a uma maneira de consideragdo que, ligada a dogmas, tem sempre que buscar a confirmagio de tais dogmas. O senhor Nietzsche também nao podia escapar a essa contraposicdo. Sua saida € denegrir o método histérico-critico (523), mjuriar toda concepgao estética que se afasta da sua ($22), atribuir @ época em que a filologia se elevou na Alemanha a uma altura nunca imaginada, sobretudo com Gottfried Hermann Karl Lachmann,’ “um total desconhecimento dos estudos anti- .g03" ($20). No entanto, aquela que caminha levemente mesmo pelas cabegas mais duras, Ate, té pantas datat {a que induz a0 erro|, também o atinge.!” Entre os que “ce eeforgaram a0 mix mo para aprender com os gregos", em contraposigo aos que “desconhecem a Antigtlidade” o senhor Nietzsche inclui,além de Schiller e Goethe." apenas Winclelmann. Certamente ele escre- ve s6 para aqueles que, como ele, nunca Jeram Winckelmann. Quem aprendeu com Winckelmann a ver a esséncia da arte helé- nica unicamente no belo se afastard, com repugnancia, do “sim- bolismo universal da dor original do uno original”, da “alegria com o aniquilamento do individuo’, da “alegria da dissonancia’ Quem aprendeu com Winckelmann a conceber historicamente a cesséncia da beleza segundo suas diferentes manifestagdes em épocas diversas, mais ainda, a fazer justiga aquela duplicidade da beleza que Winckelmann enuncia de modo to magistral* ~ quem aprendeu com ele, enfim, jamais falaria de uma “degenera- cio surpreendente do espitito helénico”. Muito menos de uma esséncia hostil a arte em uma época na qual Zéuxis © Apeles, Praxiteles e Lisipo criaram uma beleza certamente diferente da de Fidias e Polignoto, uma beleza que para mim é sem étlos, des~ comhecida até entdo, mas admirada e eternamente admuravel. E ‘um contraste inteitamente andlogo, embora menos acentuado, separa a arte de Euripides e Menandto da de Esquilo ¢ Aristéfanes, ‘final, ndo foi justamente Winckelmann quer mostrou, em um exemplo imperecivel, que as regras gerais da critica cientifica também sio necessarias tanto para a hustéria da arte quanto para a compreensio de cada obra de arte em particular? Nao foi ele quem mostrou que 2 avaliagdo estética é possivel unicamente a partir das concepgbes da época em que obra de arte surgitia par- tir do espirito do povo que a produziu? E 0 senhor Nietzsche se atreve a afirmar que conhece Winckelmann! Ble, que demonstra uma ignordncia infantil assim que menciona qualquer tema arqueolégico; ele, que concede pés de bode aos sitiros. seus “homens estupidos” ($8), e que nao sabe distinguir Pa de Sileno ow dos sitiros:” ele, que faz. Apolo brandir a cabeca de Medusa em ver da égide ($2) e, a0 se propor de modo bastante “titinico ¢ barbaro” a “desmontar pedra por pedra a cultura apolinea’." encontra as estatuas dos deuses olimpicos “sobre o teto € 0 fron~ tio" e vé “seus atos apresentados em brilhantes baixos-relevos ornando 05 frisos ¢ as paredes”. Nesse caso, s6 se pode citar 0 aluno do pastor de Laublingen. E aliés, para compreender 0 gosto artistico do senhor Nietzsche, basta olhar a vinheta utiliza da no frontispicio, 0 simbolo do “mito ressurgido”, cuja visto “convenceu imediatamente Richard Wagner de que 0 autor tem algo de grave e urgente a dizer" Trata-se daquele “her6i da tragé- Vilamowitz-Mallendortt riotocia vo avruno! Niecasche e a polemica dia pessimista”, Prometeu, na “gldria da atividade” e daquela ave sobre a qual, “quando ele aparece diante do juiz infalivel, Diomiso", o deus da arte tem de exclamar novamente: file por'on ara cpnotnyktésdiegrfomesa ton southon hnppalektryin 20 ts esta ors ("Durante muato tempo permanect sem descanso unna nose procuran= do saber que ave podria ser esse galo-cavalo marron” (Arstéfanes, As 15,5, 932)] “Voltando do tom de exortagio & disposigao que convém ao ato contemplative”, pretendo considerar a seguir a situagéo das “eternas verdades do apolineo ¢ do dionisiaco” £ a essas duas “divindades da arte” que se liga a sabedoria nietaschiana da “opo- sigéo de estilos na arte grega’,“Os dois impulsos artisticos (Apolo Dioniso, aos quais correspondem o sonho € a embriaguez) encontram-se na maior parte das vezes em oposigao, incitam- ‘mutuamente a gerar obras cada ver mais vigorosas, até que final- ‘mente, no momento florescente da vontade helénica, fundem-se para dar nascimento a tragédia.” Surge entio 0 perverso Euripides, incitado pelo perverso Sécrates,e mata a tragédia, Dioniso “refu- gia-se nos refluxos do culto secteto” ¢ assim continua até 0 advent da “visio estranhamente singular” do mundo helénico que foi concedida ao senhor Nietzsche. Fica claro que, se as ver- dades eternas se revelarem como figuras de fumaga, extrema- mente transitdrias, toda a construgo que se baseta nelas se di sipard no ar. Tambem posso citar aqui Mefistofeles, que “tenta capturar as Lameas encantadoras’ ¢ “de fato sob a luz difusa elas parecem belas mulheres", mas quando as segura arrebentam como bolhas de ar." O que é 0 “mundo da arte” de Apolo? O somho. Apolo, cleus do sonho! Seria 0 caso de cantar uma profe- cia do “dragio” Euripides? Como Apolo tomou posse do ordct- fo de Delf nehia/ Cte etkndsnt fismnaonetron hol pales menipon ite prota 17 pit hos éele yc Ino hat ort ex fo (ep At essen komina/ (Zeus) pausen nychiousonelrous op aha uykto- ‘pon esi brown" kas tus palin the ea ™ [7 Terra gerava as vsdes noturnas dos sonhos, que revelavam ao mime- ro dos mortars. no fundo obscure de seu sono. 0 passado eos eventos por ‘ur .. Ao sacudir seus cabelos, ele Zeus} afastou dos mortas 0 esquecr mento noturno e restarow os prviégios de Lox") Certamente ¢ uma enorme ousadia fazer de Apolo, que “pela raiz de seu nome é 0 brithante’, gracas a um jogo de pala~ vras, “o deus da aparéncia’, isto é, da aparéncia da aparéncia, “da verdade superior do sonho da realidade diurna pouco com- preensivel”” Mas, em todo caso, por ser héstis ta sigont’ onémat’ cide daiménon [aquele que sabe 0s nomes ocultos dos deu- ses”]." “Apolo se mostra como o génio transfigurador do pri ciptuun individuationis® (§16)2" Esse Apolo “deu a luz 0 mundo olimpico’, “ele deve ser considerado seu pai” Dinds basifetiewt {oti Dids tethbekstos {"Turbilhao reina uma vex que Zeus mor- Foi da teoria cinza do conceito schopenhaueriano que teria crescido a érvore dourada do mundo dos deuses helénicos. A assim chamada cultura apolinea permitiu aos gregos, “que sentiam os terrores e as atrocidades da existéncia”. permititt “a esse povo especialmente dotado para o sofrimento” que “triun- fasse sobre a terrivel profundidade de sua visio de mundo ea sua exacerbada capacidade de sofrer’, gracas a “poderosas mira- gens ¢ agradaveis ilusdes’, ou seja, gracas aos deuses homeéricos, que“sio apenas a divinizagdo do que existe”. Essas “miragens de beleza e ilusdes” sao, na verdade, seres criados de maneira semni- consciente etidos por criaturas verdadeiras de carne ¢ 0ss0, nas- cidas dos metéora ["fenémenos celestes”| ¢ de peri ten psychén symbainonta (“afeegies acidentais da alma”, como disse Aristételes,2 modernos. Elas surgiram, pelo menos em seu primeiro impul- 0, quando 0 povo helénico ainda nao tinha se separado de seus povos irmios, portanto na mais tenra infancia da espécie huma- na, Os deuses tinham, para os gregos homéricos, uma realidade plena, mais completa do que aquela que o fildlogo do futuro, Fel seguidor cle Dioniso, atribui aos milagres de seu deus. © Apolo da época homérica mal carregava o germe do poder politico- religioso que passou a possuir a partir do século Vill. Mas 0 senor Nietzsche nao pode saber nada disso, porque niio conhe- alias com mais precisio do que @ maioria dos Wilamowite-villendortt reotoci 90 rato! itzsche e a polémica ues ce Homero, ou no maximo 0 conhece como aquele mendigo cego mencionado no agén Homérou kai Hesiéedan (disputa de Homero ¢ Hesiodo|.:* Pois, se conhecesse, como poderia atri- buir 20 mundo homérico pleno de juventude, jubiloso na exuberincia do deliciaso prazer de viver, uma sensibilidade pessimista, uma aspiragzo senil pelo ndo-ser, uma auto-ilusao consciente? Como poderia atribuir tal sensibilidade a um mun- do que alivia todo coragio inocente por meio de sua juventude ¢ naturalidade, a essa primavera do povo que verdadeiramente sonhou do modo mais belo o sonho da vida? E quais so suas provas do softimento que, naquela época, os gregos, criangas eternas que se alegravam de modo inofensivo ¢ inconsciente coma bela luz, devem ter experimentado, ou melhor, clever ter gozado, e com uma vohipia impotente? “Aquela Moira que reina sobre tudo o que se conhece, aquele abutre do grande amigo dos homens, Prometeu, aquele destino tertivel do sibio Edipo, aquela maldigio da estirpe dos Atridas, aquelas Gérgonas Medusas, em resumo tod aquela filosofia do deus silvestre que causou a derrocada dos melancélicos etruscos.” Que ninho de asneiras! Os melanclicos etruscos, ora, basta ler Ateneu, XI 517. Gérgonas e Medusas! Chreson sy maktran, et dé botilet kir= dopon (Por favor, empreste-me a masseira e também a game- la]. Ea maldicao da estirpe dos Atridas etc. seria entéo homé- nica, ou mesmo pré-homéricat Que ofensa, senhor Nietesche, & nossa mae Pforta! Fica parecendo que nunca Ihe deram para ler a Tliada, 11, 101, ou a passagem referente a esse trecho no Laocoonte de Lessing; € a introdugao de Schneidewin ao Edipo 101 de Sofocles também & um saber que os alunos de Pforta adquirem logo no primeiro semestre. © senhor ainda hi de argumentar que errou a conta em apenas alguns séculos e que riimeros sao algo de puramente matematico: entretanto, desde Platdo esta escrito sobre © portal da filosofia, a despeito de Schopenhauer: “medeis ageométretos enthdd’ eisito” {“que nao entre aqui quem nao for gebmetra” |. E cu queria apenas que se tivesse mantido o respeito a sen- tenga, pelo menos na versio euthénd’ exito [que saia daqui”|. Mas, além 4 algo na crenga helénica do periodo da epopéia popular que pode caracterizar um progressivo “olhar profundo para os horrores da natureza”: 0 “reino dos tits” que os deuses em torno de Zeus, quer dizer o proto-Apolo nietzschia- no. tiveram de destronar. S6 que devemos considerar como deci- dido 0 fato de que a titanomaquia, assim como as dinastias e genealogias de Hesiodo, por um lado se encontrava muito mais afastada da consciéncia helénica do que 0 citculo dos deuses olimpicos de Homero, por outro, eta comprovadamente mais recente, Isso sem discutir se realmente teria havido um tempo no qual um heleno, ignorando Zeus, Atena e Apolo, teria ofere- cido sacrificios a Urano ou Cronos, ou mesmo a Ericapero ¢ a Fanes. E, no entanto, 0 parigrafo 4 de O mascimento da tragédia remete a um “periodo artistico” da Idade do Bronze. Abstracées ¢ alegorias desse tipo tém valor apenas para teosofias dogmiti- cas, como a hesiddica-ferecidico-érfica. $6 que a ignorancia do senhor Nietzsche no que diz respei- toa Homero mostra-se, de modo mais incisivo, em sua concep- fo da historia da literatura antiga: para ele, Homero 6, “como individuo’, um “sonhador mergulhado em si mesmo”, um “artts- ta apolineo, ingznuo”; de Arquiloco, “a historia grega” relataria “que cle introduziu na literatura a cangdo popular”, A primeira afirmacio é um delirio,a segunda ¢ uma inverdade, Pois mesmo (mais fiel partidatio da unidade” nao pretenderia negar, no que diz respeito a primeira afirmagzo. que os dois poemas incompa~ raveis tem como pano de fundo uma tradicao rapsédica suma- mente fecunda, que floresceu durante séculos, antes e depois de seu autor (basta pensar nos hinos homéricos, cuja critica nao dew nenhum passo adiante desde Hermann). O senhior Nietasche nao pretenderta negar que Homero, “como individuo’, s6 podia sur- gir de uma tradicao extremamente difundida de candies poéticas. E quem poderia, na medida em que os fendmenos andlogos de ‘outros povos nfo the fossem desconhecidos (e 0 senhor Nietzsche teve 2 oportunidade de ler. quando era um secundarista, os vinte cantos dos Nibelungos), quem poderia confundir a esséncia da arte ingénua, como exposta por Schiller, com as fantasias de sonho e as miragens de beleza nieteschianas? Em sua concep¢ao, tum sérvio ou um finlandés, uma vez tena “observado com seu lamowltz Vallendorff reetaan oo rurenl a

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