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| José Guilherme Merquior O Marxismo Ocidental Tradugao de Raut DE Sk Barsoss “its ea: Were Marian 30 Meu 86 A Palin Peptack oi! 198 Dis eee ae ing pores o Bra adgios pea EDITORA NOVA FRONTEIRA SA. ‘us Hambin,9#25—CEP 22281 Boog te: 26782 Ende eis: NEOFRONT — 695 ENFS BR Reso ino ‘hia Tews iP-eaCumopt aoe Sines Nicional ds Eos de Uo. Mera, Jot Germ 14, saan “Sasa adeno Cate Mera edi de Ral Sh uhm Rio no Nova Fosters 187, op “Taduto de Woven man eps 1. Mar Ka 6886 {Tl She cop —354 tera ot tas Para Leandro Kender, que no concordaré com tudo. (ORAS DO ALTOR Rasdo do pooma (esaioe cen esta), Rio, Civiltasso Brat 185, Arte sociedade om Marcie, Adorn Briain (cso ekico sobre sicla neodejelians de Frankfurt), Ri Teepe Drei, 1968 ‘A asta do mimese (ensio bre re), Ro, Jost Om, 1872 ‘Saudades do carnaval (roduedo ete da cule), Blo, Frew, (72 Fermalimo vaio moderea(o problema dt une cise ds elit) Forse Univestrie/USP, Rio, 1974 0 exracwalono dos pores e ouras quests, Ro, Tempo Beso, 1975 Versa univers Drammen (ad. 0 frosts por Mary de Olives), ‘lo, fxe Olypi, 1973) 2 ed, 1576. ahdaue de Livi Sos, Pacis, PUF, 197 (ead, bra Ri, Tempe Bee siio/Univ. de Brat: tad, expanls, Baretlns, Desig), De Avchits « Eudes reve hits de Blears bras, I, Ri, Joe ‘Olsmpi, 1977, 2 ed 1973 The vel andthe mos etae on clare ond idekoy, Londres, Rede 4 Kegmn Pol. 1979, 0 Jontama ron © cues ens, Papo, Vrs. 1980, Rowton: and Weber: two sisi in he theory of lepimacy, Londres, outedye fe Kegen Pad, 1980. ‘Aside 2 forms, Rio, Nova roma, 1981; 2 ed, 1982. ‘A natures do proceso, Rio, Nove Proce, 382 © argumonto liber, Ro, Nova Fons 1983 0 elvir do epoclipse (ce Merit), Ris, Nova rie, 18, Michel Foscat ou 0 wills de cede, Rio, Nova Frome, 198%: 2 ed, 388 From Prove 10 Pores a erigue of srucuralit and possrwcueist ‘hough Londres, Ver, 1988 Western Marsan, Lone, Paladin, jr de 1988. er ee, SUMARIO I, Um conceitoe seu background II. Os fundamentos do marxismo ocidental IIL, © péeguerra ........0+ IV. Algumas conclusbes gerais ...... Notas: ' Bibliografia .... u 1 156 257 218 292 PREFACIO Na sua citadissima undécima tese sobre Feuerbach, Marx concitou a filosofia a mudar o mundo em ver de limitarse a interproté-lo. © problema do marxismo pés Marx € que, historicamente, cle seguiu & risca a pres cris: sem divida nenhuma, alterou a face do mundo moderne — mas néo se pode dizer que o tenha inter pretado de maneira intelectualmente satsfatria. Quan do o marxismo ocidental, nascido, na década de 1920, do espirito revolucionério, ganhou impulso, nos trinta anos que se seguiram & TI Grande Guerra, passou a pro- lamar a necessidade premente de repensar tanto a te0- ria marxista quanto a sua relagdo com a praxis social © presente estudo 6 uma tentativa de avaliar eritica- mente os resultados principals desse esforso teérico. Reflete, espero, intimeras e vigorosas trocas de idéias sobre 0 marxismo © seus problemas com mentes de pri- teira ordem, nenhuma das qusis, nataralmente, respon sivel polas opiniGes aqui expressas: Raymond Aron, Leszek Kolakowski, Ernest Geliner, Femando Henrique Cardoso, Perry Anderson, Leandro Konder, Roberto Schwarz, Carlos Nelson Coutinho, John A. Hall, F. A. ‘Agradego a Hclio Jaguaribe & hospitalidade do w de Estudos Poliicos e Sociais (Ric), onde exbocei, em 1984, a maior parte da minha anélise da escola de Frankfurt, Gracas a uma oportuna sugestéo ’ de Celso Lafer, pude precisar melhor, nesta edigio, a ppsido histérica do conceito hegeliano de sociedade civil. De certo modo, pensei este livro anos a fio — mas jamais teria conseguido escrevé-lo em apenss um outono sem a ajuda € 0 estimulo dos meus amigos ¢ da minha familia, Jom Londres, junho de 1985 1 UM CONCEITO E SEU BACKGROUND 1, © QUE E MARXISMO OCIDENTAL? Geralmente se entende por ‘marxismo ocidental’ um corpo de idéias, principalmente filoséficas. que aberca obra de autores tio diversos quanto Georg Lukécs € Althusser, Walter Benjamin ¢ Jean-Paul Sartre. Abran- ge também intervengdes te6ricas e anélises historicas to distantes umas das outras no tempo, no escopo € no espirito quanto as de Antonio Gramsci (morto em 1957) e Jlrgen Habermas, 0 qual, nascido em 1929, co- ‘mecou a publicar hé apenas trinta anos. E, ao mesmo tempo, um produto tipico da criativa cultura do primeiro és-guerra e uma teorizagio em curso, reconhecivel como tal (embora profundamente transformada) na producto da segunda geracio da chamada escola de Frankfurt, ‘agrupada em torno de Habermas, ou, ainda, naquilo que acabou conhecido como marxismo estruturalsta frances. Tal diversidade dificulte a interpretacdo critica. Mas pelo menos se sabe, grasso modo, quem sio os mar- istas ocidentais: Lukacs, Gramsci, os frankfurtianos, Sartre, Althusser, alguns teGricos da ‘nova esquerda’ ¢ ‘assim por diante. Jé quando chega a hora de definir ‘ul, até, de descrever 0 marxismo ocidental em bloco, tomado como denominador comum entre diversas ten- déncias no marxismo do século XX, o rotulo se revela Mm bem traigoeiro, Por exemplo, tradicionalmente, denota © pensamento marxista néosoviético, ou diferente do pensamento soviético. Entretanto, tomado em sentido por demais literal, esse significado geogréfico engana. Di- versas tendéncigs marxistas no Ocidente, conquanto apartadas do cdinon soviético, estiio longe de enquadrar- se no ‘marxismo ocidental’, no seu sentido filos6fico, Considerem-se uns poucos exemplos a esmo: um trots- kista como 0 influente economista belga Ernest Mandel; tum te6rico da revolugdo como 0 Régis Debray dos pri ‘meiros tempos; ou um dissidente da Repablica Demo- cexética Alem, como Rudolf Bahro — possivelmente 0 ‘mais importante caso de heresia comunista desde A nova classe (1957), de Milovan Djilas. Todos esses, nas suas cobras mais notéveis: Revolucdo na revolugio (1969), de Debray; Capitatismo tardio (1972), de Mandel; ¢ A alternativa na Europa Oriental (1977), de Bahro — en- traram em choque com o credo soviético. Todavia, nun- ca se atribuiu ao pensamento de qualquer um deles 0 rétulo de ‘marxismo ocidental’, Logo, € claro que néo basta ser marxista no Ocidente para transformar uma pessoa em ‘marxista ocidental’, Sob esse aspecto, a ct queta é uma impropriedade. Todavia, se considerada em perspectiva histdrica, a expresso se torna muito mais significativa, Pois 0 ‘mar xismo acidental’ nasceu, no comego da década de 1920, como um desafio doutrinério, vindo do Ocidente, a0 _marxismo soviético. Seus principais fundadores — Lukacs e Ernst Bloch, Karl Korsch e Gramsci — estavam em spero desacordo com 0 materialismo hist6rico deter- minista da filosofia bolchevique, tal como definida por Lenin ou Bukharin. Tanto Lenin quanto Bukharin, © 2 antes deles Engels ¢ Plekhanov, acreditavam em leis eco- némicas objetivas como forga motriz da histria. Tem- bbém entendiam que a consciéncia era essencialmente um reflexo da realidade natural e social. Na década de 1920, essas posigSes-chave foram sustentadas, no campo le ninista, em tratados marxistas muito lidos, como a Teo- ria do materialismo histérieo (1921), de Bukharin; ©, no campo antibolchevique, em A interpretagdo mate- rialista da histéria (1927), de Kautsky. Mas foram ener- ‘gicamente combatidas por pensadores como Lukécs © Gramsci, que discordavam do aberto naturalismo das formas mais deterministas de marxismo, ‘Apesar de tudo isso, nada seria mais erréneo que pensar nos primeiros marxistas ocidentais como anti- Teninistas. Desde a II Guerra Mundial, @ auto-imagem do marxismo ocidental tende a pintar o movimento como ‘uma espécie liberal ou libertéria de meraismo, infini- tamente mais proxima da visio humanista do jovem Marx do que da sombria posicao politica do ‘realismo socisliste’, .e., dos regimes comunistas implantados sob ‘a bandeira do “marxismo-leninismo'. Na verdade, a pré- priu expressio ‘marxismo ocidental” parece ter sido ‘cunhna, por Maurice Merleau-Ponty, num espirito at {ileninista. Por volta de 1930, Korsch ié descrevia a si 8 Lukécs e @ outros opositores do Comintern unistas ocidentais”. Mesmo antes disso, segui- {inham estigmatizado Korsch & Co. ypa Ocidental”. Mas a voga da tal? ndo € anterior is controvér- tismo francés em meados da década 1 a verdade histérica € que os gran- do pensamento marxista ocidental, s0- 3 bretudo Lukées e Gramsci, demonstraram a vida inteira uma lealdade a toda prova ao movimento comunista € — a0 contrério dos sociais democratas alemies — sem- pre se orgulharam do triunfo bolchevique, na esteira da Revolugdo de Outubro. A despeito de todos os seus des- vios em relacdo a filosofia de Lenin, tanto Lukécs quan- to Gramsci permaneceram até o fim impecdveis leninistas cm politica. Os fundadores que, como Bloch ou Korsch, romperam com 0 leninismo néo tiveram nenhuma ine fluéneia decisiva na formulagao da teoria do marxismo ‘ocidental maduro, Quem quer que considere as eredenciais do leninismo bastante pobres, do ponto de vista libertério, chegaré inevitavelmente @ mesma conclusio com respeito &s fon- tes do marxismo ocidental. Os marxistas ocidentais eo- ‘megaram como militantes ou simpatizantes das diversas formas de comunismo de esquerda (viz. as inclinagBes sindicalisias de Lukées, o periodo de comunismo de so- vietes dle Gramsci et.); ¢ depois marcharam firmemente para o modelo ortodoxo de controle partidétio vertical $6 mais tarde, com a emergéncia da escola de Frankfurt, ‘o marxismo ocidental deixou de ser leninista e, até, de ser comuista, Mas mesmo entio, pelo menos um grupo ppoderoso, os althusserianos, conservou um nitido de- sejo de manter estritafidelidade ao Partido Comunista, Portanto, heresia politica néo serve, nem de longe, para caracterizar de mancira global o marxismo ociden- tal. A fim de captar seu sabor peculiar, cumpre recorrer a dissensto tedriea. Aqui, a primeira coisa que salta aos thos €-um interesse absorvente pela cultura. Enquanto © foco do marxismo cléssico estava na historia econ’ mica © na politica da luta de classes, o marxismo oci- “ dental se preocupou em primeiro lugar com cultura ¢ ideologia. Em vez de analisar processos de acumulagéo de capital, a mecénica da crise ou a reprodugdo das re- lagées sociais, os marxistas ocidentais, na maior parte, esereveram abundantemente sobre os problemas da alie- nnagio € reificagio no scio da sociedade capitalista. Na- turalmente, nem tudo sob a mirada do marxismo oci- dental foi cultura, em oposicao a politica e economia. Gramsci, por exemplo, era dado a esmiucar variedades hhist6ricas da Iuta de classes ¢ aliangas de classe. E os althusserianos deram grande atengao a modos de pro- ugio © formacées sociais. De modo geral, porém, nic 6 inexato descrever o marxismo ocidental como um mar- xismo da superestrutura, porque, mesmo quando suas andlises esto voltadas para a dominacao de classe, ‘las tendem, muita vez, a ser conduzidas (como em Gramsci) sem especificar fatores localizados na infra- trutura teeno-econdmica —- 0 mundo daquilo a que o Imarxismo cldssico chamou forcas ¢ relagdes (sociais) de produyfio. De regra, nas anélises que leva a cabo, 0 marxismo ocidental exibe pouco senso de condiciona- tmentos sociais, especialmente de natureza econémica ou yndmica. Na verdade, © que distingue o marxis- al, além da énfase na cultura antes que na 6 a combinacdo de uma temética cultural lase inexisténcia de peso infra-estrutural na yndmenos culturais e ideoldgicos. is, Bernstein ¢ Kautsky, Lenin © Bur tras palavras, os dois fundadores do I revisionista, o sumo sacerdote da dda Il Intemacional, o lider da pri #xista, eo melhor tebrico do regime 5 bolchevista —, todos sustentaram, no interior do mar- xismo, 0 ideal de uma cincia soberans. Mas no os marxistas ocidentais. Estes preferem ver no marxis ‘mo néo uma cigncia mas uma critica. Decerto 0 pré- prio Marx, como Korsch se dew pressa em mostrar, intitulara ou subintitulara assim todas as suas obras prin cipais, desde a juvenil Critica da flosofia do direito de Hegel (1844) até a Contribuicdo @ critica da economia politica (1859) ¢ last, but not least, © proprio O capital (1867). E todavia tudo 0 que Marx quis fazer fot ume sociologizago do que fora até entio tratado por disci- plinas menos voltadas para o social, como a filosofia politica ideslista ou a economia politica cléssica. Essa logizago marxista constituia, por sua vez, uma ten- iva de aprofundar aquela perspectiva hist6rica gene- izada que veio a ser a marca registrada das cincias is no século XIX. A critica da economia politica por Marx era uma tentativa de introduzir 0 determinis- ‘mo social na explicacdo dos processos econémicos ¢ da ‘mudanga econémica. Mas em Marx ‘critica’ positiva- mente néo deve ser entendida como uma alternativa para ‘ciéncia’ — muito pelo contrério, Em Marx, o papel da critica era limpar o terreno para uma exposiglo verda- dciramente cientfica da evolucao social e do destino do € injetou o principio comunista da politica revolucioné- ria na tradiglo produtivista do socialismo. Ao fazélo abandonou 0 costume paleossocialista de arquitetar uto- pias, Le, sociedades-modelo Segundo a argumentagéo usada no Manifesto comu- nista (1848), a rezio principal para que Marx escolhesse tuma posigéo final comunista, © ndo socialist, foi uma imperfeigio fatal no que ele Engels chamaram, no final da terceira seco do Manifesto, a escola ‘citico- t6pica’ dos socialistas primitivos (Saint Simon, Fourier, Owen). © primeiro adjetivo era, naturalmente, uma aprovagio © um cfogio, negados, em especial, a Prou- hon, o Proudhon da Filosofia da miséria (1846), a quem Marx eritcara, impiedosamente, meses antes, na sua Mistria da filasofia (1847), primeira formulaséo ime pressa do ‘materilismo histrico', pois a anterior, A ‘deologia alema, escrita em 1846 & quatro mos com Engels, s6 foi publicada depois da morte de ambos. Mas — ut6pica — mostrava que os soci 2 inevitabilidade da revolusio social e politica; ¢ tam- n pouco reconheciam o papel hist6rico do proletariado como agente de tais transformagbes. Escrevendo numa época em que a classe trabalhadore era ainda subdesen- volvide, néo € de admirar que tivessem desprezado politica de masses © que se tivessem concentrado em Indcuas experiéncias socisis em pequena escal, Quer dizer, entfo, que 0 Manifesto comunista era wma ‘bomba radical? Longe disso. A rigor, na sua pars cons- truens, a segunda seco, 0 Manifesto era surpreenden- temente moderado, pedindo 0 que soa aos noss0s ouvi- os como parte do que 0 estado modemo, cénscio das suas responsabilidades sociais, prove: escola pablica, leis trabelhistas, imposto de renda... Mesmo as medidas ropriamente anticapitelistas — nacionalizagio da in- distria, abotigao da heranga — figuravam, havia muito, nos velhos ideérios socialistas (por exemplo, no saint simonismo) e no eram vistas como motivo para qual- ‘quer terremoto revolucionério. A retérica da revoluedo i estava, aquela altura, defasada com relacso a0 pro- ‘grama politico — situagdo que o marxismo politico co- mheceria muito freqiientemente no periodo que medeia entre as diversas revolugdes de 1848 ¢ a Revolugdo de Outubro (1917). Seja como for, a verdadeira singularidade do pensa- mento de Marx no residia no seu programa politico. Ele acebou nfo deixando nenhum projeto coerente para a sociedade comunista. O que, de fato, distinguia Marx fra um modo especial de encarar a revolugdo. Mas, @ fim de compreender isso, € preciso ter em mente 0 que cra especificamente marxiano na temética dos hegelianos, de esquerda. O leitor estard, com certeza, lembrado de que o tema geral da esquerda hegeliana era o conceito,~ n de uma alienacdo mé, em oposigo a0 sentido positive de alienagao em Hegel, de alienagdo como saudével x: teriorizagao. Todo mundo sabe que a contribuigio de ‘Marx, nesse particular, foi sua teoria do trabalho alie- nado, Mas, naturalmente, Marx nfo se limitou a repetir, como um papagaio, as insfpidas generalidades de Hess sobre a pendria do proletariado como Paixfo da Huma: nidade. Ao contririo: produziu uma visio dindmica da, alienagio econdmica. A descrig8o do trabalho alienado nos Manuscritos de Paris tomou-se um roteito da explo- aco de um ‘exército reserva’ de trabalhadores desde, pelo menos, Salério, trabalho e capital (1849). Mais ta de ainda, a noglo de mais-valia parece ter permitido a Marx explicar « exploregfo como uma espécie de bom- ba-relégio, u’a méquine infernal, capez de levar 0 capi- tal & sua cova. Nos Manuscritos de Paris, © motivo do trabalho alie- nado se insere numa visio prometéica, em que a inds- tria € saudada como grande conquista da humanidade, "o livro aberto das faculdades humanas”. Marx e Engels sempre se sentiram préximos do ethos prometéico dos economists liberais da escola de Manchester. © profe- tismo industrial de Saint Simon também thes era muito caro, © jovem Marx colheu as idéias de SaintSimon — que estavam no ar aquele tempo — em varios circulos progressistas — do seu proprio pai, do seu principal professor em Berlim, o hegeliano de centro Eduard Gans, do seu sogro, € de Moises Hess. Raymund Aron disse que Marx sonhou uma sintese de Saint‘Simon e Rousseau, dda indistria com a democracia — um autogoverno de produtores, Poder-se-ia acrescentar que Marx sonheva também com outra siniese, a de SaintSimon e Hegel: w ‘© erescimento industrial como medium da hist6ria dia- ltica, da histéria como processo impulsionado pela con- ttradigdo a patamares mais altos de organizacéo social. Hegel escreveu, em justficagio da sociedade moder- na, que ela era, que ela é 0 objetivo, o fim iltimo da histéria, Marx, também, via o comunismo — para ele, f futura sociedade modema — como uma epoteose. Chamao (nos Manuscritos) a “solugdo do enigma da hist6ria”. A aboligio da propriedade privada “e, assim, da auto-alienagdo humana” significa para ele uma “real apropriacfo da esséncia humana pelo homem e para 0 hhomem’. Um Eden social sobreviria, em que liberdade ¢ igualdade seriam irmas gémeas. No entanto, as histo- riosofias — ldgicas da hist6ria culminando em bem- ayenturanga social — eram freqiientes entre velhos so- cialistas € jovens hegelianos como Hess. O que fazia toda a diferenca era a capacidade de entender o eschaion como fruto do préprio proceso hist6rico em vez de contrapé-lo simplesmente, como ideal abstrato, 20 pre- sente social. Hess, por exemplo, nunca deduziu de ma- neira apropriada seu ‘comunismo do amor’ do curso atual da histéria modema. Marx, a0 contrério, parece haver compreendido logo a necessidade de um leventamento do processo. Tinha s6 dezenove anos de idade quando disse ao pai, num balango do seu primeiro ano de estudos em Berlim, que a leitura de Hege! the tinha ensinado a ir além da simples oposigéo entre o ser € 0 dever ser. Na opinido de Hegel, tal oposicio — 2 divisio kan- tiana entre sein ¢ sollen — apenas espelhava a impotén- cia do Espirito (die Ohnmackt des Geistes). Em conse- giiéncia, convicto, como era, do poder do Espiito, pas- sou a vida mostrando que @ divisio sein/sollen era su- “ \ perada na hist6ria. Da mesma forma, para Marx o maior erro consistia em coneeber a revolucio como um dever ‘ou um ideal — quando se trata de uma tendéncia, uma forca historica_inevitével. Nes palavras de A ideologia alema: “‘o comunismo no é... um ideal ao qual a rea- Tidade deva ajustarse. Chamamos comunismo 20 movi- mento real que abole 0 atual estado de coisas.” Nao ‘adimira que Marx tivesse amadurecido esposando da ma- neira to natural o determinismo econdmico. Com a for- 1a hegeliana do seu pensamento, isso the era muito fécil. E forgoso concordar com Iring Fetscher: “em termos filosdficos, Marx mio se desviou de Hegel, mas apenas deu uma inflexio pragmética © revoluciondria a0 seu pensamento.”™ Segundo a feliz observagéo de Ferdinand Lassalle, Marx foi a0 mesmo tempo um Ricardo socia- lista e um Hegel feito economista (Lassalle a Marx, 12 de maio de 1851). ‘Como economista hegeliano, Marx levava uma gran- de vantagem e uma desvantagem muito série com rela: co & teoria do processo do proprio Hegel. A vantagem cra de caréter cognitivo. Seu nome era matetialismo his- t6rico, e sua melhor, mais clissica, formulagso, o Prefé- cio & Contribuicao a critica da economia politica (1859): “nfo é consciéncia dos homens que determina seu ser, mas, a0 contrério, seu ser social que determina a sua consciéncia.” Isso representa um avango no conhecimen- to por oferecer, a0 contrério da fébula hegeliana do Es- pitito em expansio, uma hipétese causal de, no minimo, genuino poder heuristico. A ‘estrutura econdmice da sociedade’ (0s ‘modos de producdo’) como ‘fundamento real’ subjacente a uma ‘superestrutura legal e politica’ \, com ‘frgas de conssincia socal” correspondentes — 8 para continuar citando famosa terminologia do alu- ido Preficio — fornece a0 historiador e a0 cientista social um fio condutor para tracar correlagdes altamente significativas que revelam um conjunto de fatores fada- dos a ter um papel nas condigies, necessérias senfo sufi-

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