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Ao analisar a transformagao do Rio de Janeiro durante a era dos impérios pelo seu viés de escombro, poeira e destruicdo, Raul Antelo descobre que a fachada moderna é méscara para atrair o inevitavel capital estrangeiro. Essa mascara tem um nome — cosmopolitismo. Ela tem uma cara humana — Paulo Barreto, que por sua vez eleva 0 gosto pelo disfarce 4 enésima poténcia com os inumeraveis pseud6nimos de que se vale. Ela encontra na literatura um género camaleénico — a cr6nica. Veiculo por exceléncia de critica a uma sociedade que se traveste de moderna para aparecer, a crénica dramatiza ‘tum campo estruturado de tensdes simbdlicas e imagindrias, histdricas e estéticas’’. Nesse desejo da mascara pela mascara, Raul desentranha o material basico da sua leitura de Joao do Rio: a potencializacao do nada e a vontade ag@nica de poder. O cronista € dancarino e viajante: Salomé e turista. Artista. O movimento ¢ a ubiqiiidade, a vida vertiginosa das ruas. Por outro lado, a escrita ficcional de Joao do Rio vai se valer de uma figura de retérica que tudo éngloba: a prosopolepsia. Explica-nos Raul: “Q desvio da prosopolepsia reside em considerar a mascara € nao 0 sujeito, a persona e nao a pessoa, JOAO DO RIO O DANDI E A ESPECULACAO. Raul Antelo Joao do Rio O dandi e a especulacdo Livrarias Taurus-Timbre Editores — Rio de Janeiro — 1989 © Rati Antelo, 1989 Direitos adquiridos por Livrarias Taurus-Timbre Editores Livraria Taurus Av. Ataulfo de Paiva, 1.321, lj. b Rio de Janeiro, RJ, 22440 Tel.: 239-5994 Livraria Timbre R. Marqués de Séo Vicente, 52, 1j, 221 Rio de Janeiro, RJ, 22451 Tel: 274-1146 SUMARIO Especulagao 7 . O Rioe as rugas 9 I; ll. IV. . Joao do Rio = Salomé 61 VI. Vil. VIL. A venda dos olhos 19 Apenas olhar, molhar a pena ¢ inocular = 31. Um belo em mascara 41. Sistema? Anti-sistema? 73 O homem que viaja 81 Niio hd vagas para os Barreto 89 Os dias = 93 Indicagao bibliografica 97 ABREVIATURAS Salvo no caso de A Alma Encantadora das Ruas, citada em sua segunda edigdo, as outras obras de Jodo do Rio foram lidas em primeira edigio, Usarei, para abreviar, o seguinte cé- digo: Alma — A Alma Encaniadora das Ruas Aspectos — Aspectos de Alguns Paises, vol. 2. Portugal — Portugal d’Agora Psicologia — Psicologia Urbana Ramo — Ramo de Loiro RI — Rosério da Iusao Crénicas — Crénicas e Frases de Godofredo de Alencar Celebridades — Celebridades, desejo ESPECULACAO No dia 5 de agosto de 1881, nascia no Rio de Janeiro Joio Paulo Alberto Coelho Barreto, Joao do Rio, No mesmo ano, Oscar Wilde publica seus Poemas. E neles, But that the roar of thy Democracies, Thy reigns of Terror, thy great Anarchies, Mirror my wildest passions like the sea And give my rage a brother — Liberty! Joao do Rio traduz: “Mas o rugido das tuas Democracias, os Reinos do Terror, as gtandes Anarquias, refletem como o mart as minhas mais ardentes paixdes ¢ dao 4 minha raiva um irmao — Liberdade!” Um irmao, um duplo no espelho — the mirror, Ele suporta “my wildest passions”. A alma anarquica € revoluciondria de Wilde. Mencionar 0 nome de Oscar Wilde — nos diz Borges — é também evocar “el fatigado crepiisculo del siglo XIX y esa opresiva pompa de inyernaculo o de baile de miascaras”. | | I. O RIO E AS RUGAS “Paulo Barreto, cronista admirdvel, tradutor de Oscar Wilde. redator da Gazeta de Noticias, de- fendia Portugal, cortava os cabelos a escovinha, para evitar possiveis indiscrigdes raciais, e era mem- bro da Academia de Letras. Nio foi propriamente uma gléria nacional. Nunca fez discurso na Ca- mara, nio praticou acdes notaveis, nfo deixou uma daquelas frases decisivas que atravessam os séculos e imortalizam um homem. Como escrevia bem, teve um reduzido ptiblico e esté hoje meio desco- nhecido. As suas obras nao se exibem nas vitrinas onde avultam numerosos livros estrangeiros ¢ abun- dante literatura indigena posterior ao modernismo, Sabemos perfeitamente que é autor do Bebé de Tarlatana Rosa, mas varios dos cidadiios que, no coneurso da Revista Académica, acharam esse con- to um dos melhores do Brasil, nao o leram. Paulo Barreto, falecido ha pouco tempo, desfruta uma reputacéo bastante moderada. Por isso a homena- gem que Ihe tributaram € modesta: ofereceram-lhe uma rua curta.” Graciliano Ramos — “Paulo Barreto, S. Joao Batista e D. Mariana”, in Linhas Tortas. “A civilizagio do Brasil divide-se em duas épocas: antes ¢ depois da Avenida Central. Entre a Rua do Ouvidor e a Ave- nida vai uma distancia assim como de Sabara a Marselha” — 9 anota Godofredo de Alencar em suas crénicas de 1916, Apoia- do na ditadura financeira do prefeito Pereira Passos, 0 bota- abaixo modernizador se pauta por um rigido normativismo. Olavo Bilac, em uma de suas crénicas (Kosmos n° 4, abr. 1904), considerava, euforicamente, que as possibilidades de a cidade se tornar auténtica metrépole se deviam a um “ato louvabilis- simo do governo, estabelecendo leis rigorosas para as novas construgGes — e abrindo esse belo ‘concurso de fachadas’, cujo resultado excedeu as mais otimistas previsoes, = Gragas sejam dadas a todos os deuses! O governo interyeio nesse descalabro — e os chalés, as platibandas com compoteiras, as casas com alcoyas, os sotéozinhos em cocuru- to, os telhados em bico, as vidragas de guilhotina, as escadi- nhas empinadas, os beliquetes escuros, os quintais imundos, os pordes baixos — tudo isso recebeu um golpe de morte”. O poeta Mario Pederneiras, por sua vez, lamenta que tudo pareca preparado para a expansio do pasmo exterior ¢ para a larga atragio do capital europeu. Ao que Godofredo de Alencar acrescenta um dos paradoxos: a sociedade fez a civilizagio que é a equagiio da inteligéncia e do crime. De fato, o ataque cerrado e constante exibe, em negativo, © auténtico trago de modernidade: 0 caco, 0 escombro, o en- tulho, a poeira, Redobra-se, entHo, a batalha que busca apa- gar todo yestigio de desiruigaéo, através de uma construgio afetada, Conseqiiéncia: homens e mulheres (se) produzem. ‘A méscara, porém, nao consegue ocultar seu contrapeso. Mesmo assim, todos acatam, docilmente, os ditames de Fi- gueiredo Pimentel, o “Bindéculo” da Gazeta de Noticias, para serem smarts e encantadores: 2 sobrecasaca de Lacurte ou a casaca de cores, cortada por Vale ou Almcida Rabclo; a car- tola ou os pingas — meias cartolas em castor; 0 chapéu- coco de Watson; o fraque fitado de Raunier ou o de brim branco A JoZo do Rio; coletes chocantes como os de Herédia de Si, de sarja ou seda — no yerio, de fustaéo branco; ca- misas da Coulon; uma faixa de seda em vez do colete; altos colarinhos; plastrons e cabochons, gravatas de Chavet, desenha- das, em furta-cor, com flores ou paisagens orientais e um bro- che de esmalte veneziano; no colete, correntes de prata e ouro; cigarreiras em madrepérola; anéis de lapis-lazuli; luvas, ben- 10 gala e monéculo; polainas do Incroyable e penteados da Dou- blet. Tais os ledes da moda, como os irmaéos Guerra Duval, auténticos guias da jeunesse dorée do Rio, Os elegantes se retinem, declamando ou cantando, nos sa- J6es: o de Pereira Passos, em Laranjeiras, tinha teatro de ama- dores e nao ficava longe do saldo de Heitor Cordeiro. Havia também o de Azeredo e o de Vieira Souto, na Praia de Bota- fogo, ou ainda o de Paulo Leuzinger, na Sao Clemente. O set carioca circula pela rua do Riachuelo, onde a casa do Conde de Figueiredo avista o bordel de Elvira. Botafogo era um dos pontos em que ainda se podia vagamundear sem risco de vida porque, como anota Bilac na Gazeta de Noticias (12 mar. 1895), a Botanical nfo estendera até 14 o dominio das for- midaveis e decepadoras miquinas dos elétricos. Era, pois, de bom-tom percorrer a Voluntérios da Patria, a Marqués de Sao Vicente ou, ainda, visitar a mansao de Dionisio Cerqueira, em Todos os Santos, animado promotor de festas que prendem os convidados por dias a fio. Eles tomavam sorvetes na Alvear ou na Colombo, sempre lotadas; 0 five o’clock tea fica para a Cavé ou a Lallet, antes do démi-monde invadi-las para o aperitivo, Café Belas Artes © Confeitaria Castelées, Café do Rio ou da Pascoal, Charuta- ria Paris, As noites, fervilham os cafés-cantantes, o Aledzar na rua da Vala ou o bar-cabaré Passatempo Internacional, na rua do Lavradio, onde os gays assustados galgam escadas inter- minaveis, na evocagio de Di Cavalcanti, Rio dos clubes alegres — Palace, High Life, Politicos, Boémios —, dos bailes de “esfrega-virilhas”, em prol dos al- bergues noturnos, ou dos grandes bailes no Monroe ¢ no Clu- be Naval, Rio das batalhas florais na Praga da Republica, das festas venezianas na enseada de Botafogo, das noites de teatro com a Duse, Italia Fausta ou Lyda Borelli, dos freqiientes e animados bota-foras do Cais Pharoux, Rio do tout Rio. Mas todo o Rio precisa trabalhar para manter 0 tout Rio. Théo Filho, cronista e escritor muito marcado pela literatura decadentista de fumadores de Gpio de Claude Farrére,! anota em 1911: “Que seria o Rio de Janeiro se todos trabalhassem? O comércio ganharia o duplo. Haveria trés vezes o niimero dos restaurantes existentes. Haveria mais dinheiro em cir- 11 culagio, mais alegria em generalizagio, mais ruidosidade em justaposig&io, A Avenida Central e as outras avenidas, sempre cheias de principio a fim, teriam animagio geral, A rua da Carioca seria 0 que a rua Reaumur é para Paris, centro do comércio secundério — constante vaivém de caixeiros apres- sados. O largo de $, Francisco seria o que a Praga da Repibli- ca é para Paris; menos movimento de operdrias ¢ mais movi- mento de operérios. A praga Tiradentes seria 0 que a praga do Louvre é para Paris; um deslumbrante encontro de pessoas diligentes, ao lado de um deslumbrante encontro de veiculos diligentes.” A tua do Ouvidor, a do Rosario, a rua Gongalves Dias viriam a ser ruas dos faubourgs, pontos dos cafés, das casas de cangonetas, e as avenidas — a Central, a ‘Uruguaiana — au- ténticos boulevards. Populagdo condensada em casas altas, em cada casa sete andares, em cada andar trés famflias, em cada familia, cinco ou seis trabalhadores. Botafogo precisaria se so- fisticar: ir ao teatro, gastar dinheiro para se assemelhar a Saint- Germain, pata a Beira-Mar lembrar a avenida do Bois. Nesse texto, escrito para 0 Almanaque do Correio da Ma- nha de 1912, Théo Filho raciocina que o trabalho ¢ a desor- dem constituem os dois pélos que organizam a vida de uma metrépole, O capitalismo desdenha a ordem; 0 Estado, porém, nao pode dispens4-la, Uma sociedade exclusiva como a que se estd formando no Brasil 6, por forga, excludente: nela, 0 mun- do do trabalho cresce a partir da miséria, 0 dcio a partir dos negécios. Em conseqiiéncia, dois espagos se delimitam: o privado dos salées e 0 ptiblico das ruas, As ruas sao 0 saléo da boé- mia, do fugitivo e do irrepetivel e, por isso mesmo, apenas reencontrével na eternidade. A vala é, ainda, corredor, por onde desliza a fugitiva beldade baudelaireana, reencontravel nas costureitinhas de Mério de Andrade — bonitas, moder- nas, brasileiras. As cinco vogais rimbaldianas se banalizam no cartaz do fixador de cabelos: Lu-go-li-na (U, loura; O, mo- rena; I, ruiva; A, mulata). “Quem corre — diz Godofredo de Alencar — goza como as abelhas, obtendo apenas o mel das rosas. E 0 corredor das cidades € esse cagador de mel, que s6 leva o bem entre risos e 12 nao vé tristezas, e nao guarda a agonia, que talvez oO esperas- se, se quisesse demorar para ir ao amago das coisas.” (Croni- cas, 219) A crénica, coletiva e aberta, € 0 género escolhido para fixar 0 semovente, Ela obedece aos panoramas, as fisiologias. Tende a desvendar o pacto que organiza o corpo social e bus- ca sondar na producao intima de cada um. E, portanto, o gé- nero hibrido das pontes e passagens. Ba-ta-clan!, crénicas mundanas em versos, de Olegario Ma- riano; Mademoiselle Cinema de Benjamin Costallat, livro de costumes da alta sociedade carioca, género de La Gargonne; Amores Doentes, de Eyaristo de Moraes, a narragao conscien- ciosa e veridica de extraordinarios casos de patologia sexual. Ban-ban-ban!, de Orestes Barbosa, interessantissimo flagrante dos costumes do has-fond carioca; Mundo, Diabo, e Carne, de José do Patrocinio Filho: a literatura torna-se mercadoria. Uma cultura moderna ¢ de massas rapidamente escolar: zadas, em funcao das necessidades comerciais e administrati- yas das metrépoles, produz um novo tipo de leitor e seu corre- lato inevitével: o sistema miscelaneo da crénica. Como desta- ca Beatriz Sarlo, a miscelinea da crénica consiste ma justapo- siglo de textos que respondem a retéricas € objetivos contras- tantes ou até mesmo contrapostos — a informagiio sobre 0 andamento da guerra, os casamentos ou enterros das familias reais, curiosidades da natureza ou extravagancias dos famosos, poemas sentimentais, cartas, didlogos, quadros de costumes, reportagens ou textos fantdsticos — tudo pautado pela brevi- dade ¢ a ilustragio do cotidiano, crigido agora a categoria ful- gurante da reflexao. Esta cole¢éo de instantaneos situa seu horizonte no coletivo dai que o aspecto multitudindrio das ruas ea miscelanea da crOnica sejam rigorosamente equivalentes. O cronista, embora alimentando-se do escandaloso ou do corriqueiro, para firmar o estatuto herdico da cotidiancidade, restabelece, em compensacdo, a harmonia universal e comete uma vilania. Em 1908, ao abrir A Alma Encaniadora das Ruas pata seu publico, Joao do Rio cifra a identidade comum entre © cronista e seu objeto, a rua, Ela transforma as normas e a gramatica, tudo acolhe e até consagra o mediocre. Alimenta- 13 se do sofrimento e conduz ao crime. “A rua sente nos nervos essa miséria da criagao, e por isso € a mais igualitaria, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. A rua criou todas as blagues e todos os lugares-comuns.” Para apreender sua esséncia, é preciso flanar: “Flanar é ser vagabundo e refletir, € ser basbaque e comentar, ter o virus da observagao ligado 4 vadiagem (...) Flanar é a disting’o de perambular com inteligéncia. Nada como o initil para ser artistico. Dai o desocupado fldneur ter sempre na mente dez mil coisas necessarias, imprescindiveis, que podem ficar adia- das.” (Alma, 12). Ou, como define Bilac em crénica ja cita- da, flanar é vagar sem destino, com as maos nas algibeiras e o nariz ao vento, dobrando esquinas, deixando a aten¢ao bor- boletear de ponto em ponto, Em sua perambulagio, o fléneur cria um tipo ambiguo, “com saltos de felino e risos de navalha”, Picaro da moderni- dade, dono de certezas provisérias, o pivete esté sempre dis- ponivel para a partilha, para a aventura. Irénico e andarilho, ele retoma a figuracio do viajante nietzscheano, que se tornaria um tépico dos modernistas. Va- gabundo, livre, pobre, humilde — eis 0 personagem que as crénicas adotam como inverso do boulevardien. Ele € a viti- ma do lucro — “essa miragem que tanto faz progredir os povos como as literdiuras” (Alma, 234) — e, apesar disso, patrio- ta, jacobino, pandego. Oswald de Andrade, que inaugura o Rio por esses anos, detecta o paradoxo; o contrario do burgués niio é 0 proletério. 0 boémio, “E por isso todos The sofrem a ingente fascinagfio, por isso a voz de um vagabundo, nas noites de Iuar, enche de légrimas os olhos dos mais frios, por isso ninguém ha que nfo a ame — flor de ideal nascida nas sarjetas, sonho perpétuo da cidade & margem da poesia, riso e lagrima, poesia da encantadora alma das ruas!...” (Alma, 244) Na rua, portanto, se abstrai o concreto e se condensa 0 ideal: “tem-se todos os horrores ¢ todas as delicias do mundo sentindo uma rua” (Psicologia, 224), opiniao por onde Paulo Barreto vem coincidir, paradoxalmente, com seu antipoda, Lima Barreto. E na vivéncia da cidade — confessa este em Margindlia — que se retinem “todas as magoas, todos os so- 14 nhos, todas as dores dos brasileiros, revelando tudo isso na sua arte anénima e popular”. Estudando Jodo do Rio e sua paixio pela rua, Helena Parente Cunha (O Estado de S. Paulo, 4 dez. 1983) destaca o recorte de dois Ambitos: de um lado, o espago do dandi, a rua do Ouvidor, os saldes e as futilidades; de outro, a popu- lado mitida de operarios, tatuadores, tropeiros, fumadores de pio, coristas, criminosos. Ora a confeitaria, ora o botequim, mas sempre a cidade e a rua, Nunca a casa, A casa revela um espaco regrado por hicrarquias de idade, sexo e condigao. Nada disso se verifica na variedade multitudinéria da rua, onde as diferengas se diluem ou, até mesmo, anulam. Porque, tempo- ralmente, a rua € 0 dominio da noite. Nela qualquer ilumina- gio deriva de artificio e reflexdo, Mancira enviesada de con- firmar que a tinica e auténtica emanagio é a doméstica: s6 as casas tém luz (vida) propria e plena, Elas sio 0 remanso pacato dos tormentosos sobressaltos da cidade, Sarduy: a casa € 0 lugar do Mesmo; a cidade, o do Outro. “A yida sensivel tem duas feigdes — a que se projeta e a que penetra. Uma € a rajada intrépida, outra o recolhimen- to; uma é o dia de sol, outra a noite, pedindo a luz; uma grita, outra ouve, uma ¢ alegria mesmo na dor, outra é dor mesmo no sorriso; uma € Zaratustra, outra é a Multidao, Am- bas sio entretanto feigdes da mesma alma — aquela virtude superior que anda pelo mundo esparsa no sonho de energia © de forga para o bem que é beleza.” (Adiante, 63-4) Mas, afinal, donde vem este deslumbramento cosmopoli- ta? Joao do Rio teria absorvido boa parte desta paixiio urba- na em seu colega e modelo, Enrique Gémez Carrillo? O es- critor guatemalteco registrou, em crénicas ligeiras, os feitos mundanos da Paris da Belle Epoque, vulgarizou os inquéritos e entrevistas literarias, revelou-se animado dialoguista das per- sonalidades européias do momento e até tentou um romance epistolar. Cartas de uma Turista, anterior a Correspondéncia de uma Estacéo de Cura. Nenhum aspecto, por mais banal que pudesse parecer, escapou a mira do cronista da Alma encan- tadora de Paris. Viajante impenitente, Gomez Carrillo nunca se deteve no Brasil porque s6 lhe interessava a rua, a alma da rua. Como lembra Brito Broca, ele era um despaisado, um 15 apatrida yoluntario, Repete-se, em escala nacional, o esquema urbano. A errancia pelas margens da civilizacao, onde as luzes brilham obliquas, torna ainda mais legitima a sedugao de Paris. A posicéo de um Gémez Carrillo ou de um Joao do Rio mostra que © cosmopolita é uma dimensio do imaginirio que se define como ponto que enlaca (e inverte) as relagdes cos- tumeiras. Nele se alucinam os indicadores: 0 id referencial (sempre Paris) aparece substituindo as experiéncias primarlas do cd Tenta, ainda, absolutizar-se como parimetro das trocas, con- trolando todo lugar, sem desdenhar os ecos mégicos de sua palavra de ordem: a expressdo vertiginosa, religiio do século. Sua conseqiiéncia légica ¢ a desterritorializagdo, processo transitivo da cultura moderna, NOTAS Claude Farrére (1876-1957), navegador e romancista, escreveu 17 historias de marinheiros; 14 hisiérias de soldados; O Homem que assassinou; Mademoiselle Dax, mocinha; A Batatha; Os Condena- dos & morte; A Ultima deusa e Feras e genies que se amaram. No preficio a Fumedores de Opio, 0 wildeano belga Pierre Louys, amigo de Debussy e da Antiguidade grega, se confessa enfastiado do épio, das bebedeiras, da prosa macabra, das mulheres saténicas e dos cheiradores de 6pio, preferindo a ciaridade e a simplici- dade modernas. No entanto — ressalva Louys —, a qualidade de um escritor depende da possibilidade de retomar um tema gasto, antigo, transformando-o: 0 bom escritor nfo pertence a Sua geracdo, mas a seguinte, Era, a seu ver, 0 caso de Farrére, futuro académico da Franca, modelo de Jo%o do Rio. Enrique Gomez Carrillo (1873-1927) ilustra que o modernismo hisparo-americano — cruzamento hibrido de Parnaso com Simbo- lismo — foi mais do que uma poética da modernidade: foi uma erética, uma ética, Erotica: na idéia de que a vida (0 corpo) é mais importante do que a obra. Etica: em seu contradit6rio anti- Positivismo (que nao deixa de ser antimodemismo) que o leva a 16 desprezar a maquina e 0 progresso material, preferinde o exotismo € 0 luxo, porque s6 0 bizarro € belo. Vagamundo a Loti, Gémez Carrillo ¢ autor de Grécia, Jerusalém, O Japdo herdico e galante; de cenas da guerra (Crénicas do front), novelas sentimentais (Pa- risiana) ou ensaios sobre seus mestres (Literatura estrangeira) nos quais descobre “prosas suntuosas, surtos de Flaubert em perfodos que se desdobravam como brocados constelados de pedraria: [eram] versos divinos de Mallarmé, imperfeitos, pesados ¢ luzindo como colares, eram ainda levianos e¢ perversos versos de Lorrain” (“Como Oscar Wilde sonhou Salomé”, prefacio A tradugéo de Sa- fomé feita por Joo do Rio). Assim como o exacerbado narcisismo mata aquilo que ama, o escritor modernista, nao raro, amou aquilo que mata, As vezes, sucumbiu as contradigées de sua revolta em suicidios glorificantes. Outras vezes, porém, preferiu elogiar 0 Po- der, como nos versos que Ruben Darfo dedicou a Mitre ou a dguia americana (“Bien yengas, magica guila de alas enormes y fuer- tes/a extender sobre el Sur tu gran sombra continental”). Foi o caso também do adandinado Gémez Carrillo, capaz de exaltar o ditador Estrada Cabrera (em A verdade sobre Guatemala) com a mesma naturalidade com que podia elogiar uma roupa elegante. corre que, muito freciientemente, os othares destes escritores, mais yoltados ao ocaso do Humanismo tradicional do que ao raiar do novo, ainda quando vistumbrassem a aurora da Modernidade, nao puderam sendo vé-la com “lentes crespusculates embacadas”, para retomar a expressio de Francoise Perus. Na defi do po- ligrafo mexicano Alfonso Reyes, Gémez Carrillo representa “uma geragdo de literatos para os quais Paris — mais ou menos exata- mente interpretada — os despertou 4 vida intelectual. Sua crénica de boulevards fez escola, Sua concepgéo de Paris teve a sua hora e despertou na América uma corrente de benéfica curiosidade. A literatura de Gomez Carrillo neste livro — escreve Reyes no prefacio a El Modernismo de 1914 — como, alids, nos outros, é Jornalistica; mas assim chamé-la ndo implica uma censura, antes, porém, uma definicéo de cardter. Hoje em dia a literatura joraa listica responde a uma necessidade evidente demais para que te- nhamos 0 direito de discutir-the a eficiéncia.” Outras obras; El alma japonesa; Almas y cerebros; Campos de ba- tallas y campos de ruinas; Cultos profanos; De Marsella a Tokio; Sensaciones de Egipto, la India la China y el Japén; Del amor de dolor y del vicio; Diccionario ideolégico; El encanto de Buenos Aires; Fez, ta andaluza; La gesta de la légion; El libro de las mu- jeres: Maravillas (novela funambulesea); El misterio de la vida y 17 = de la muerte de Mata Hari; La mujer y la moda; El teatro de Pier- rol; Pequerias cuestiones palpitantes; Por tierras lejanas; Romerias; La Rusia actual; Sensaciones de Paris y de Madrid; La sonrisa de la esfinge; La suprema yoluptuosidad; Tierras mértires; Treinta afios de mi vida; Vanidad de yanidedes (En 1a Conferencia de Paz de Haya) ¢ Whitman y oiras crénicas. Para compreender o valor da literatura de Gémez Carrillo, vale a pena ler o ensaio de Maria Luisa Bastos, “La erénica modernista de Enrique Gémez Carrillo o la funcién de la trivialidad” (Sur, Buenos Aires, num. 350-351, jan.-dez. 1982, p. 65-88.) 18 Il. A VENDA DOS OLHOS “Nao se iludam com o mérito de Joio do Rio. B defunto demasiado fresco ainda para ser julgado com isengao e clareza. O homem que era, munda- no e vicioso, perturbou a valorizagao real da obra, eivada de futilidades e de facilidades, impregnada do terrivel sal do mundanismo. E o Movimento Modernista contribuiu sobremodo para o momen- taneo esquecimento. Mas tempo vira, nao tenham davida, em que seremos obrigados a reconhecer a importancia da sua contribuigio. As Religides no Rio, Vida Vertiginosa e A Alma Encantadora das Ruas sao formidaveis documentérios, que nio pre- tenderam, quando escritos, ser mais que reporta- gens para jornal. Caramba, foi o nosso primeiro repérter, o reformador da nossa imprensa mam- bembe, dando-lhe vivacidade, trepidag&o, contato com 0 povo, com a realidade! Acham pouco? Mar- chamos sobre as suas pegadas, mas depreciamos o semeador — 6 irrisério!” Marques Rebelo — O Trapicheiro. E bem sabido que a imprensa periédica aparece como produ- to especifico do brilho burgués: o Jornal do Comércio — esse Times sem virilidade, em 1827; a Gazeta de Noticias, em 1874; A Tribuna, em 1890, ¢ 0 Jornal do Brasil, no ano seguinte, Os jornais eram pequenos: nao mais de quatro paginas. Duas delas (e, nao raro, até a primeira) reservavam-se aos antincios. E nao apenas de présperas empresas mas de pequenos ex- pedientes, cartomantes, feiticeiros, adivinhos, charlataes de 19 toda a sorte, como denunciava Lima Barreto. Os jornais defen- diam as grandes causas, polemizavam nos “a pedidos”, viru- Ientos sucltos ¢ verrinas, José do Patrocinio, agitador da ques- tio abolicionista, destaca-se, na Gltima fase da imprensa boé- mia, por varias campanhas na Cidade do Rio. Seria ele 0 pri- meiro patriéo de Joio Paulo Alberto Coelho Barreto — neto, curiosamente, do homem que Ihe dera o primeiro emprego. Para o adolescente Paulo Barreto, a rigidez normativa do pai € temperada pelos privilégios de Patrocinio, boémio irregular ¢ inventor de um aviio impossivel. Em sua estréia jornalisti- ca, 0 novo cronista parece obedecer & lei dos trés estados Abandona o amor por prinefpio, que recebera da mae, Dona Floréncia, morena alegre e vivaz, de sedutora teatralidade. pouco disposta a rentncia, e passa a obedecer o principio da ordem, base do velho Coelho Barreto, gaticho metédico e si- sudo. Chega, enfim, com Patrocinio, ao progresso como fim dltimo, provocagio e desafio, “Antes da tealizagaéo das ousa- dias da mecdnica — dizia — os poctas sonhavam 0 vapor, 0 telefone, o fondgrafo, a maquina, o automdyel, 0 aeroplano” (Psicologia, 220), idéia que desenvolve em conferéncia e em contos como “O Dia de um Homem em 1920”. Paulo se sente um deles, visionério como Patrocinio, Mas © utopismo obsessivo, que inflamava seu patrao, acabou con- sumindo a empresa do jornal, Os colaboradores, inconforma- dos com salarios tao crescentes quanto imagindrios, abando- nam a Cidade do Rio. Afinal, “um emprego pode ser um ideal mesquinho para os sonhadores. E sempre, entretanto, um ideal” (Psicologia, 201). Paulo Barreto sai do jomal e peregrina por varios outros, pequenos, como O Dia e o Correio Mercantil. Chega a pedir emprego ao Barfio de Rio Branco, otimo diretor de publicida- de que, para fixar os limites do pais, se empenha em contra- tar rapazes cultos © bem-apessoados, com fluente francés. E namoradas. Nao é 0 caso de Paulo, 22 anos, obeso, mulato, homossexual. Fica no Rio, com o milhao de pessoas que pas- seia pela Avenida, onde se enterraram os cito milhdes de libras esterlinas de empréstimo inglés. Nao fica s6: tem cinco mil leitores na folha todo dia. E entra, em 1904, para a Gaze- 20 ta de Noticias. Paulo Barreto foi 0 cronista da Cidade do Rio. Joao do Rio seria o cronista da cidade do Rio. Foi, de fato, nas paginas da Gazeta que comegou a usar © pseudénimo famoso, segundo Brito Broca, em homenagem a Jean Lorrain, Joao da Lorena, colaborador da Revue Blan- che e provavel modelo do Bario de Charlus, personagem proustiana. Com ele, a crénica deixa de ser o registro amiudado do cotidiano ou laboratério narrativo do tomancista, para se transformar em algo independente: a reportagem, o inquérito. Nele se perfila o proto-modemista. Oswald de Andrade, no pre- facio a Pathé-Baby, anota: “Como mudam tempos diria Mar- qués Maricd pensando Joao do Rio, De fato da tolice amavel esse scu malogrado amigo 2 seguranga seu estilo seu modo acertar véio diversos séculos. Brasil pais milagres acrescentaria Marqués ignorando grande literatura nossa época € reporta- gem.” Em sua revolugio literdria, Jo%o do Rio segue, de perto, modelos estrangeiros. Alguns anos antes, em The Pall Mall Ga- zette de Londres, Stead inaugurara as entrevistas de tom sensa- cionalista, marcado, por sua vez, pelo Petit Journal parisiense € a imprensa norte-americana, E 0 que vemos nas cronicas de As Religides no Rio, publicadas na Gazeta, série provavelmen- te inspirada nas Petites Religions de Paris de Jules Bois, Ou nos quadros de profissdes miseraveis apresentados em A alma encantadora das ruas. Dez anos mais tarde, em O Pais, vol- taria 4 cr6nica mundana, inaugurada pelo Binéculo, na nova segao “Pall-Mall Rio”. A coluna, assinada por José Antonio José, delata o trabalho especular de Jodo do Rio, tendo sem- pre um modelo “14 fora”. No caso, Michel Georges Michel na Franga. E como a pardédia alimenta a parédia, Humberto de Campos satiriza, como Jofo Francisco Joao, as veleidades de Pele-Mole. Nao € essa, entretanto, a Gnica restrigio ao trabalho do repérter. A diferenca de Machado ou Bilac, cujas carreiras, nas crénicas, correm paralelas e secundirias em relacio ao romance ou a poesia, Joio do Rio foi quase exclusivamente cronista. Antecipa, na conquista de prestigio literario a par- tit do género menor, o caso de Rubem Braga, narrador erran- 21 te de fatos diversos e mintcias afetivas, e sugere uma cisdo do campo entre escritores cronistas e escritores-repérteres que mostra a migracdo das referéncias: a Franca no século 19, os Estados Unidos neste século. A troca de modelos torna-se mais nitida entre os mais jovens. Bilac tem 21 anos quando escre- ve em A Semana, Joao do Rio, 23 ao publicar na Gazeta. Ambos, com enorme prestigio literério. E, no caso de Paulo Barreto, plena disposig&io de fayorecer os novos — como Ba- tista ¢ Diniz Jr. ou Nogueira da Silva. No inquérito sobre 0 momento literdrio, que publica em 1905 (homenagem obliqua, diga-se de passagem, a Jules Huret e sua Enquéte sur Vévolution littéraire), Joao do Rio inclui uma pergunta espinhosa: o jornalismo, especialmente no Bra- sil, 6 um fator bom ou mau para a arte literdria? Raimundo Correia, 46 anos, com sua obra poética ja publicada, nao se faz de rogado: “O jornalismo € um fator, é um subtraen- do.” E Elisio de Carvalho pontifica: o jornal perverte o estilo, rebaixa a linguagem e relaxa a cultura, corrompe, divide, sus- cita 0 espirito de céterie e mata todo estimulo. Se nio vale para Elisio (apenas um ano mais velho que Paulo), cabe ao poeta parnasiano a frase de Godofredo de Alencar: para um homem que pensa s6 h4 uma coisa mais triste que ter trinta anos: ter quarenta. Paulo, cronista moderno, luta contra os escritores mine- ralizados. Ele é o Artista wildeano, panestetista, neo-romanti- co, impressionista caprichoso e herdico. “Se por acaso apa- recesse no Brasil um Artista, esse homem teria de lutar com © espirito democratico do vulgar que desconhece os valores, confunde os poetas com os amanuenses, julga inutilidade pen- sar e faz da arte uma burocracia.” (Cronicas, 211). O en- frentamento é, em parte, um episédio da querela de antigos e modernos; mas revela, ainda, projetos divergentes da profis- sionalizagao do escritor, porque se Bilac assume cabalmente essa tarefa, Joio do Rio cai no pessimismo irreverente e po- lemista: “o horror da literatura como profissdo & que nio ha classe mais desunida, O fato explica-se, aliés: € a profisséo em que a mediocridade toma ma‘s viva a impossibilidade de ser medfocre” (Crénicas, 164). 22 Mas, na prevencgdo parnasiana, ha outro conflito emer- gente: o de a reportagem corroborar a veracidade e conceder, portanto, mérito artistico a textos que se limitam a categoria documental. E esta uma concepgao da literatura que se choca com outro enfoque, mais elaborado, que vé no literario uma construgio, mero suporte do circunstancial do enredo. A apa- rente falta de artificialidade do estilo jornalistico empresta, entdo, verossimilhanca as observag6es do cronista. Em que consiste a falsa transparéncia da linguagem do jornal? Em relatar como iluminando parcelas de verdade — esta, mais esta, agora esta — somando observagdes que mon- tam, enfim, o grande painel. O caminho é o das frases curtas e com poucos adjetivos, precisamente porque o mundo é o substantivo, “Adjetiva-lo é compreendé-lo, é interpreté-lo, é 0 relativo contra a insuficiéncia do absoluto (...) S6 os escri- tores verdadeiramente escritores 0 podem fazer. Nao ha para aferir o valor literdrio como o emprego do adjetivo.” (Créni- cas, 220). Verbos de agao, pardgrafos curtos, mais coordena- gio (e... e... e) do que subordinagao. O pulso da linguagem telegrafica. Claro que, 4s vezes, se corre o perigo de ganhar a corrida de cem metros rasos, para usar a expressio de Os- wald de Andrade em relacgdo a Marques Rebelo. © jornal, produto da sociedade moderna, reflete 0 mun- do teificado e a prdépria divisio do cronista que nele escreve. A maquina, promessa de libertagdo, logo se torna algo ime- diatamente arcaico. Walha, para ilustrar 0 fendmeno da cisdo do artista moderno, uma alegoria de Lima Barreto, Em Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sd, 0 filésofo conta que estava esperando um trem na estagio da Piedade. A maquina se anuncia e “dai a instantes apontou ao tempo em que um ho- mem atravessava a linha um pouco a montante da estacio. Avisos... gritos... O trem apita. O homem entontece, ata- ranta-se e 6 apanhado — mas de que maneira, meus Deus?! O limpa-trilhos levanta-o, atire-o sobre aquela espécie de plata- forma-proa — sabes? O animal agarra-se a um ferro e a lo- comotiva acaba parando, bem junto A estagio, trazendo o pobre homem de cabega partida, humilhado, ensangiicntado, mas vivo, vivinho, aparvalhado, sucumbido, completamente 23 esmagado de terror diante daquela besta paleontoldgica que ele mesmo inyentara”, Joao do Rio se debate nesse dilema. Vende, cotidiana- mente, a sua mercadoria mas prefere esquecer sua condigao de profissional da literatura, manter-se livre, descompromissa- do e disponivel — o Artista. Por outra parte, mesmo seduzido pelo brilho verbal da escritura artistica, as cintilagdes do pa- radoxo, a lamina da ironia e o poder da satira, ainda que cap- turado pelo sensualismo decadente — ou talvez por isso mes- mo —, € 0 primeiro cronista moderno, desbravador de certas trilhas que se afirmariam nos anos seguintes, Sua relagio com © jornal ¢, por esse motivo, ambigua. Alias, ele mesmo nos oferece os dois lados da moeda em uma das crénicas de Vida Vertiginosa, splendor e miséria do jornalismo”. Como re- porter, logo se convence que seus punhais perversos nao valem mais do que a navalha de um barbeiro e que a auténtica glé- ria se atinge na diregao do jornal, onde as pressdes sio mais fortes e as misérias morais mais evidentes. Além disso, numa sociedade de arrivistas, um motorista pode se ombrear com o patréo em pouco tempo (“A crise dos criados”, Vida Vertigi. nosa). Na diversificag&éo de fungdes, nas novas aptiddes exigi- das pela modernizagio, o escritor nao conquista prestigio du- radouro, Permanece vagabundo. E como ensina o tio do An- tenor, o homem da cabega de papelao, vagabundo é um su- jeito a quem faltam trés coisas: dinheiro, prestigio e posicdo. O conflito é velho. O divércio entre as letras e a noto- riedade social levou, no século passado, a que muitos escrito- tes adotassem o pseudénimo como disfarce protetor. Ja neste século, a motivag%o para o ocultamento do nome se tornou, parcialmente, mais amena. Conquistado o reconhecimento, o escritor-jomalista se vale do pseudénimo para poder vender seu produto em mais de uma ocasido, a mais de um compra- dor. Seja 14 como for, é sabido que a questio néo se resolve nem mesmo para os modernistas, Mudam as motivagdes — fama e prestigio no século anterior, simples sucesso nos dias atuais —, mas perdura, de fato, em alguns casos, a impossibi- lidade ou inconveniéncia de revelar a identidade, correndo riscos de desprestigio social. Um Marcondes Machado niio po- detia assinar crénicas em portugués macarronico. Além de 24 inoportuno, seria inverossimil: surge Jué Bananere, Um orador ¢ deputado, representante do Papa e da Academia Francesa, um Dunshee de Abranches, nao pode assinar sdtiras e poemas, Oculta-se, entao, atrés de uma prodigiosa série de méscaras: Oscar de la Tour, Hermano Fontes, Lobo Cordeiro, Severo Sétiro, Rui Bras, Proteu da Silva, Tacito Jr., Nonato Proteu, Pacifico Guerra. Os disfarces sio maiores do que a obra; sua obra, alias, é uma série de disfarces. Em alguns casos, é uma obsessiio tematica, como o culto penumbrista do Arlequim. em Bilac ou Alvaro Moreyra; ou de preferéncia literaria, como o Antonio Verde de Anibal Machado. Em outros, uma manei- ra obliqua de despotismo, por meio da qual o escritor se per- mite assumir os fantasmas onipotentes, Aluisio Azevedo é Acropolio, Menotti del P:cchia, Hélios; Bilac, demonizado em Asmodeu (= amo deus). As refragdes do nome auténtico na mascara podem, ainda, funcionar como ingénuo piscar de olhos que desmancha o disfarce, O prazer do ocultamento reside, precisamente, em logo desvelar o mistério: G, A.; Guy; Guidal sao as previsiveis rou- pas do principe Guilherme de Almeida. Em certas ocasides, entretanto, o nome oculto tem suas razdes na légica da indis- tria cultural: Cleico é Rubem Braga ou Adao Jr, e Emanuel Vao Gogo encobrem Millér Fernandes. Multiplicar-se para deter o mercado. Para os que se acolhem & sombra do Estado, nem sempre a observacao do cronista coincide com a do poe- ta e funciondrio ptiblico. Nesses casos, Carlos Drummond de Andrade se vale de outros eus. Antonio Crispim, por exemplo, cuida do cotidiano mineiro, em pendant montanhés de Joao do Rio (confirmando que o Rio — Paris da América e rival de Buenos Aires — tem, em Belo Horizonte, seu duplo urba- nistico, tao forjado como a novissima La Plata), Jé Belmiro Borba, amanuense, olha em redor e comenta leituras, tarefa esta que também entreteria a Policarpo Quaresma, neto. En- quanto isso José Joaquim ou José Maria sao alteri do herdi andnimo-anddino e coletivo — o desnorteado José. E 0 Gato Félix empresta as farpas com que atacar os inimigos na poli- tica municipal. O poligono (poli-agénico) desenha, em todos os lados, a mesma figura: Drummond, 25 Aguém da heteronimia, 0 recurso do pseuddénimo implica uma declinagao do ev. O pseudo-eu é um produtor de textos, um operdrio discursivo, que nfio se confunde com o sujeito da obra. Assim, o cronista preserva o Artista. Ele engana os leitores: vocés acreditam que me pondo a nu diariamente eu me exponho? Nada disso. Sou aquele que nao fala de si mesmo, Falo deles. Do que é exterior a mim, dos viventes, Maneira obliqua de afirmar que nfo tem nada de proprio para mostrar © que até mesmo o ew mais intimo esté sob ameaga, quase morto. O cronista nio fala de si por- que nao aceita falar de um reflexo, Assim, recortando a sua identidade, da mesma mancira que a prostituta limita seu corpo, num recurso de preservagZo, o cronista exibe a aliena- gio de sua voz. Os véus da mulher piblica, Os ews do homem que publica, Baudelaire: “Moi qui venés ma pensée et qui veut étre auteur.” Vendo meu pensamento porque quero ser autor. Mas se, etimologicamente, autor é aquele que faz progre- dir, na realidade, 0 mesmo processo que afianga a profissiona- lizagfio do escritor (tornando-o sujeito néo a amparos oficiais mas @ histéria que ele proprio for capaz de construir) esse processo é também o do seu desmoronamento individual: o jornalismo informa, isto quer dizer, apaga o perfil particular de escritores e leitores, ambos informes e degradados @ con- digdo de massa. Indiferenciados, indiferentes, Logo, a mu- danga n&o é s6 de qualidade mas de quantidade: 0 jornal nao produz novos sujeitos; produz mais massa. Eis a légica da mo- dernidade: convergéncia ¢ superposicao de tempos e experién- cias, que exaltam a atualidade e 0 cosmopolitismo. Paradoxal- mente, esta definigdo conota um inequfvoco trago corrosivo: 0 desamparo, A soma do antigo e do futuro (que € 0 atual) © do nacional com o internacional (que definem 0 cosmopolita ) yalem, na verdade, como despojamento simbélico do escritor modero, Pessoa, pela mao do desassossegado Bernardo Soa- res, anota em seu livro que ninguém o conheceu enquanto 2 mascara da igualha o defendia. Pior ainda: ninguém nunca soube que essa era uma mascara porque ninguém sabia que no mundo hé mascarados e que a personalidade rodopia feito 26 carrossel. “Ninguém supOs que ao pé de mim estivesse sempre outro, que afinal era eu. Julgaram-me sempre idéntico a mim, Vivemos todos longinquos e anénimos; disfargados, sofremos desconhecidos.”” Essas duas super-mascaras (0 moderno e o cosmopolita) nao fazem senao crispar, exasperar o paradoxo existencial. O cosmopolita ¢ 0 cidadiéo do mundo, aquele para quem Cos- mé6polis € seu lar. Mas o que é Cosmépolis sendo a irrisao do local, cidade de cidades, que sendo todas ao mesmo tempo nao é propriamente nenhuma? Em sua caricatura, 0 cosmopo- lita alcanga a desmesura solidaria, a pane das linhagens. O correlato temporal deste niilismo espacial é a moder- nidade vista como sagragio do instante, mito vazio em de- manda de uma plenitude perdida. E nestas mascaras que pro- tegem o rosto dvido e voraz do homem contemporaneo, ¢ no amor desmedido pelas formas redondas e plenas, pelas roupas suntuosas e os ambientes carregados que Octavio Paz lé o per- curso de uma obsessio — nao o amor 4 vida mas o horror ao yazio que prefere as metdforas brilhantes e sonoras. “A busca perpétua do estranho, sob a condigao de ser novo — e do novo, sob a condigao de ser unico — é avidez de presenga mais que de presente.” ! O pseudo-eu é 0 mano capeta do Iiberalismo (Roberto Schwarz); sua consciéncia cindida e internalizada como su- per-ego. Vejamos entao, por um instante, como Paulo Barreto re- solveu esta peculiar contradi¢io do escritor profissional. No periddico anarcéide de José do Patrocinio, Paulo ado- ta seu prime'ro pseudénimo. Raimundo Magalhies supde que © Claude com que se assina na época fosse porque trabalha- va, na Cidade do Rio, o estudante de medicina e futuro homem de letras Claudio de Souza, quem, por sua vez, se firmava Mirio Pardal. Outra hipétese 6 pensar numa homenagem a Claude Bernard, quem com sua biologia experimental ofere- ceria os subsidios positivistas para uma psicologia urbana, o projeto a mais longo alcance de Paulo Barreto. Como Claude, ele comentou livros, concertos, pegas de teatro, exposig6es de pintura, foi um elemento de contato com o piiblico, quase Ma- dame Claude da cultura moderna. Surge, nessa época de Clau- 27 de, a idéia de uma reportagem sobre misticismos. Assinou-se também Joe, otimista observador do Cinematdégrajo. Na Ga- zeta de Noticias publicou sob pscuddnimo compartilhado: Joao do Rio, inspirado por Jean Lorrain, que era também Paulo, Duval, Curiosa situagio: os Guerra Duval lutam nos salées; Paulo, nas ruas, nos vales, Godofredo de Alencar, por sua vez, foi o observador im- passivel marcado por Nietzsche — god, o fredo —, cultor dos paradoxos wildeanos e boutades de efeito. O préprio Autor nos explica, na nota que precede 0 vo- lume de crénicas e frases, que Antonio Maria Godofredo Pe- reira de Alencar nasceu no Rio, tem trinta anos e é solteiro, “Viajou em vez de ser bacharel. Temperamento lirico-irénico. A ironia é 0 lirismo da desilusao. Feliz porque quer ser feliz. Suficientemente desconhecido de seus amigos intimos. Talyez almejasse a fama, se nZo odiasse a pior das vulgaridades: a literdria, Nao quer nada porque quer tudo. Daf escrever algu- mas yezes por excesso de Gcios cheios de pensamento, Nao publicaria jamais, entretanto, uma pagina. Figura de romance como todas as figuras reais, que néo copiam os romances. Para tentar um criador de ficgGes que, decerto, dele faria outro personagem, inteiramente diverso do original. Assim pensando cuidaram os amigos em lhe publicar algumas frases, observa- ges, alegorias, Na vida sé as idéias e as imagens contam, O testo é realizagao. O ptblico ledor encontra destarte a hist6- tia de Godofredo de Alencar através das palavras que o seu cérebro e seu coragdo formaram em dois ou trés meses.” (Cré- nicas, 7). Gratuito e evanescente é, ainda, outro desdobramento de Paulo Barreto: José Antonio José, o frivolo cronista munda- no, admirador da divina Isadora, que borboleteava nos saldes e corredores politicos da Reptiblica Velha. No “Pall-Mal Rio” apareceu, ainda, o Baréo André de Belfort, personagem, tam- bém de sua pega A Bela Madame Vargas e do Bebé de Tar- latana Rosa, figura que, mais tarde, galgaria a herdldica até conquistar titulo de Principe da mais pura ascendéncia fran- cesa, Nio raro os outros dialogavam entre si, completando esta cisio do en. 28 Se aceitamos que a criatividade de Joao do Rio nao con- seguiu se ajustar as expectativas masculinas, ora na assessoria técnica, que se podia prever no filho de um matemético posi- tivista, ora no trabalho de representag&o politica das elites, no Itamaraty, € possivel entender a mutliplicagéo de méascaras como a potencializagio do nada ¢, ao mesmo tempo, como vontade agonica de poder, No disfarce se oculta a implicita adoragdo do outro. A teatralidade do recurso de representagao — Paulo Bar- reto representa Joao do Rio, que representa Joio de Lorena, que apresenta o dandi crepuscular, etc. — obriga a assumir a vida como um palco, em que a todo momento o Artista é chamado a representar. Embuste, ocultamento, escamoteacio, sindnimos de epifania. Confirmando 2 observagio de Oscar Wilde em The Truth of Masks, de que a verdade artistica accita sua antitese como verdadeira, Joao do Rio realiza a suprema vinganga: mostra © oco da respeitabilidade institucional ao inventar o farddo académico. “The truths of metaphysics are the truths of masks”, as verdades da metafisica sido as verdades das mascaras. NOTA 1. PAZ, Octavio — “El caracol y la sirena” in Los signos en rota- cidn y oiros ensayos. Madrid, Alianza, 1971, p. 96. 29 III. APENAS OLHAR, MOLHAR A PENA E INOCULAR “A opinido publica descansa no jornalismo que é a ignorancia envenenada da pequena inteligéncia.” “Era joralista, dando-me com burgueses respcité- veis © fiquei espectador.” Jofio do Rio “Escrever para jornal nao é tio impossfvel: é leve, tem que ser leve, e até mesmo superficial; o leitor, em relacdo a jornal, néo tem nem vontade nem tempo de se aprofundar.” Clarice Lispector A obra e o autor formam um par solidério, Impossivel detec- tar uma acidentada constituigo do escritor sem perceber uma relagio homéloga em secu produto, Paulo Barreto, cronista profissional, sente que seu trabalho se alicna na constante pro- dugao para o jornal. Até que ponto este conflito imanta sua obra de narrador? Tomemos “O homem de cabega de papeldo”, velho conto, como o chama seu Autor, que abre Rosdrio da Ilusio, coletanea de “histérias iniiteis mas verdadeiras”. O relato se passa em pais imagindério — o pais do Sol. Aj vivia Antenor que nao era principe. “Nem deputado. Nem rico, Nem jornalista, Absolu- tamente sem importancia social.” Sua peculiaridade consistia em ser sincero, por isso era exce¢ao mal vista, sempre em desacordo com a norma de seus concidadios. “No pais do Sol o comércio é uma magonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportavel, desobediente, anarquiza- 31 dor, nao pode em breve obter emprego algum. Os patrdes que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais fa- lavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado ti- nham-lhe raiva, E se Antenor sentia a triste experiéncia do erro econémico no trabalho sem a norma, a praxe no convi- via social compreendia o desastre da verdade, Nao o tolera- yam. Era-lhe impossfvel ter amigos, por muito tempo, porque esses s6 0 eram enquanto nao o tinham explorado.” Acuado, Antenor decide, um dia que passa frente a uma relojoaria es- pecializada em aparelhos de precisio, deixar sua cabega desar- ranjada, Troca-a por uma de papelao. “Antenor recebeu o nti- mero de sua cabega, enfiou a de papelfo, e saiu para a rua.” Dois meses depois, Antenor tinha uma porgaio de amigos, jo- gava o pOquer com o ministro da Agricutlura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijao bichado para os exércitos aliados. A respeitdvel mae de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que nfo era. Os parentes, porém, estimayam-no e os companheiros tinham garbo em recordar © tempo em que Antenor era maluco, “Antenor néio pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar, Exploraya, adu- lava, falsificava.” Antenor acaba se adaptando a cabega de papelio a tal ponto que chega a conservar a original apenas como reliquia. “E em vez de viver no pais do Sol um rapaz chamado Ante- nor, que nao conseguia ser nada tendo a cabega mais admir4- vel — um dos elementos mais ilustres do pais do Sol foi An- tenor, que conseguiu tudo com uma cabega de papelio.” Guardando certas caracieristicas da fabula e da sAtira que, rindo, corrige costumes, o conto explora uma atmosfera si- nistra de vaga reminiscéncia romantica, 4 Alvares de Azevedo. £ atitude comum na época, se lembramos que a temitica do duplo, talvez por via dostoievskiana, chega a ser ensaiada por Lima Barreto e Coelho Neto e que, de forma mais ampla, 0 sinistro aparece em contos de Viriato Correia e Monteiro Lo- bato. Com diferentes principios estruturais, o enfoque ha de passar ao Modernismo e Mario de Andrade chega a ensaiar uma parédia desse tipo de relato em Primeiro Andar até ter- mos, no Macunaima, 0 conhecido episédio da troca de cons- ciéncias, (O herdi, sentindo que sua cabega nao se ajusta A 32 experiénc:a da cidade, decide deixar sua consciéncia na ilha de Marapaté. Ao retomar, derrotado, nfo achando a original, pega outra, de um hispano-americano, e sai andando, sem sentir maior diferenga.) Note-se, entretanto, que os materiais, na rapsédia de Mario e no conto de Joao do Rio, sfio diversos. Mario se interroga sobre o sentido nacional da autoconsciéncia, Sente-se constru- tor de uma Nagao e pretende que a tarefa se complete em marcos independentes, Joio do Rio nos apresenta um ser in- dividual, excéntrico e marginalizado, apesar de sua laboriosi- dade e bons sentimentos. Em Mario, a troca de cabegas con- serva o tom maravilhoso; em Jofio do Rio, como mais tarde no romance de Thomas Mann (As cabegas trocadas), desta- ca-se a alegoria moralizante. O recurso causa estranheza mas ndo inquicta nem angustia. Em O Bebé de Tarlatana Rosa € que pulsa o verdadeiro diapaséo sinistro. O principio construtivo de O Homem da Cabega de Pape- lao & o da transformagdo. E até o do transformismo. HA troca de espagos. Rio, chama-se agora pafs do Sol. B recurso fre- qiiente da literatura satfrica desses anos.1 So diferentes, con- tudo, os atributos. Jambon, o pais imagindrio de Lima Barre- to, marginaliza pela concupiscéncia, pela febre do ouro, He- liépolis, no entanto, nfo aceita o cidad&o virtuoso, bom filho, homem livre e trabalhador. Além de se trocarem os espagos, transformam-se, eviden- temetne, os sujeitos, No conto de Joao do Rio, 0 Antenor bem- nascido, sujeito pleno, dé passagem ao cidadio alicnado, cor- rupto ¢ falsificador, o Antenor de antolhos. Com que materiais trabalha 0 conto? Com a idéia de que a consciéncia esta, de algum modo, ligada a uma estranheza que nos é familiar; com a possibilidade de desdobramento do sujeito e, portanto, com a nogao de metamorfose, que nos faz perceber 0 personagem — um trabalhador — e 0 espago em que se situa — o da ci- dade — como algo perturbador, compésito, bizarro. Estamos a um passo da estética primitivista do Modernismo. Por outra parte, o ser heterogéneo e, no entanto, uno suscita a reagao previsivel: a malandragem. Ela é a resposta adequada para a falta de transparéncia nas trocas reais e sim- 33) bélicas no pais do Sol. O sem-cardter pratica a ética da opa- cidade social. Mas o método com que Joao do Rio nos apresenta este conflito nao se esgota nas relagGes internas do conto nem nas reciprocidades do sistema literério. E preciso voltar os olhos a sociedade descrita pelo historiador. Em primeiro lugar, 0 mais Sbvio: o proprio pais est tro- cando de cabega. O cronista Machado de Assis escrevia, em 1896, que a questéo capital era o projeto do Dr. Belisdrio Augusto: declarar a cidade de Sao Sebastido do Rio de Ja- neiro capital da Reptblica. Além dessa transformagio, a so- ciedade sofre o impacto da dissolugéo dos vinculos escravo- cratas, Como é que este processo é visto ora pelo contista, ora pelo cientista social? De que recursos cada um deles se vale? E qual seria o espago da crénica, a meio caminho entre a construgiio do contista e a observagio causal do estudioso so- cial? Examinemos, em primeiro lugar, a visio do historiador. Tomo, por exemplo, um texto de Celso Furtado quem des- creve: “A grande depreciagdéo cambial do filtimo decénio do século, provocada principalmente pela expansio crediticia imoderada do primeiro governo provisdrio, criou forte pressdo sobre as classes assalariadas, particularmente nas zonas urba- nas. Essa presséo nao é alheia a intranqiiilidade social ¢ po- litica que se observa nessa época, caracterizada por levantes militares e brotes reyoluciondrios, dos quais 0 pais se havia desabituado no correr do meio-século anterior. A partir de 1898 a politica de Murtinho reflete um noyo equilibrio de forgas. A redugio do servigo da divida externa por meio de um empréstimo de consolidagéo (1898), a introdugaio da cldusula ouro na arrecadacao do imposto de importagio (1900), uma série de medidas de cardter deflaciondrio ¢ um substancial aumento no valor das exportagées — de 26 milhGes de libras em 1896-99, para 37 milhGes em 1900-03 — tornaram possivel a recuperacio do equilibrio externo. Os interesses diretamen- te ligados 4 depreciago externa da moeda — grupos exporta- dores — terfo a partir dessa época que enfrentar a resistén- cia organizada de outros grupos. Entre estes se destacam a classe média urbana — empregados do governo, civis e mili- tares, e do comércio — os assalariados urbanos e rurais, os 34 produtores agricolas ligados ao mercado interno, as empresas estrangeiras que exploram servigos ptblicos, das quais nem todas t&m garantia de juros, Os nascentes grupos industriais, mais interessados em aumentar a capacidade produtiva que em protecao adicional, também se sentem prejudicados com a depreciagao cambial.” Em outras palavras, a centralizagao, estimulada por novos atores sociais, de rendas nao derivadas da propriedade, veio enfraquecer o controle que os interesses exportadores do cam- po faziam sentir sobre o governo central, a cabega sem capi- tal. O historiador enumera sempre causas para explicar as ten- sdes: mao-de-obra abundante e controlada por organismos estatais, envolvidos na producio; inflagao interna; condigdes favordveis do mercado internacional. O escritor, no entanto, prefere encenar a tensio e exibir a falta de transparéncias, 0 deslocamento que cunha a imagem: Antenor e sua cabega de papelfio, ié., simples papel em vez de capital. Assim, 0 conto de Jofio do Rio e a andlise de Furtado se referem & mesma questdo mas seus discursos nao coincidem. A pressuposigio do discurso técnico é enorme; “a politica de Murtinho” se traduz: as medidas do ministro da Economia de Campos Salles para restabelecer o crédito externo, empenho, alids, paradoxal para © latifundiério da Mate Laranjeira, empresa monopolizadora do mate em Mato Grosso, dona de exército, moeda propria, campo de concentrag&o © escravos que, ao expirar seu contra- to de exploracéo com o Estado, propée a entrega das terras aos ingleses, para maior estabilidade e produgio, Toda esta trama hist6rica se concentrava em quatro palavras (a politica de Murtinho). O escritor, porém, € bem menos lacénico: cle expande e explora os siléncios do registro. Pode chegar 0 caso — € 0 da ficcao hist6rica do simbolista Marcel Schwob em Vidas Imagindrias — de construir um relato a patrir das en- trelinhas do documento. O historiador, em compensagéo, nao desce aos particulares: os sujeitos do seu enunciado sio os grupos exportadores, a classe média urbana, os assalariados. Seu coletivo € a multiplicagdo de sujeitos em classes. O escri tor interessa-se, sobretudo, pelos detalhes, Ha nisso uma di- ferenga de escala, Na descrigfo histérica, um grande periodo de tempo ou um sistema mundial (0 capitalismo) sao carac- 35 terizados em poucas frases. O contista, mais parcimonioso, pode ser abundante e até equivoco, pode se reiterar ou diva- gar, pode, até mesmo, perder-se nos meandros da fabula. Ademais, quem autoriza esses discursos? Quem os enun- cia? O historiador indefine: a pressfio, a depreciacfo, os inte- resses. O contista marca em singular: Antenor. E a crénica? A crénica se situatia na metade do caminho. Ela preten- de atingir o humano mas nao abdica da larga perspectiva. Por- menoriza sem deixar, por isso, de dar relevo histérico. Isto porque a crénica participa de curiosa heterogeneidade: 6 pe- recivel impress%io do presente, no momento de ser publicada no jornal; destaca sua categoria literfria no livro, que a reco- Ihe enquanto narrativa e passa, como meméria, ao dominio documental. Uma cronista bissexta como Clarice Lispector observou, certa feita, que, A medida que escrevia para o jor- nal ia se tornando pessoal demais, correndo o risco de publi- car a vida em forma de... didrio, Relato? Conversa? Impres- so? A cr6nica absorve, no entanto, forte dose de referencia- lidade que, em outro tipo de textos, encontra-se mediatizada de forma mais yelada. Vejamos, a titulo de exemplo, como em “Os que comegam”, Joio do Rio trabalha um t6pico tangen- cial ao do conto que nos ocupa: o da marginalidade infantil. Lemos, nessa crénica, que “Joao Silva, morador a rua Sena- dor Pompeu, com treze anos, também serve para esses servi- cos pouco asseados” da mendicdncia e que, logo no comeco da rua Uruguai, “hé uma mulher de cor branca, fisionomia torva, sempre embiocada em panos pretos. Chamam-na a Ca- maleao, alcunha que Ihe ficou do peralta do filho. Esse ente repelente tem uma estalagem, um prédio; é rica e pede esmo- la, proyando ser vitiva pobre, Quando encontra criangas, leva- as para a casa, um doloroso centro de lenocinio e velhacaria, a exiorqui-las”, Neste registro, o escritor apenas alude ao transformismo da mendiga-camaledo porque esta preocupado, sobretudo, com o depoimento, trabalho que a crénica compartilha com as his- t6rias de vida, as entrevistas, os inquéritos e relatérios. Ou até mesmo com formas visuais que podem acompanhé-la, tais como a vnheta ou a fotografia, 36 Embora os materiais jdeolégicos sejam diversos, € bom observar que nao hé grandes diferengas de formalizagao entre a cronica humanitarista de Joio do Rio e o libelo opressivo de Théo Filho, Para este tiltimo cronista, “s6 a velhice podia achar que os meninos, os pobres pequenos jrdgeis, nio se de- vem cansar nas oficinas.” Esta velhice traz no cérebro as idéias antiqiifssimas da idade média e no coragio a bondade esqui- sitissima do portugués. A proporgfio que ela for desaparecen- do, a mocidade, viajando, iniciaré reformas debutadas e 0 so- nho do Rio-Paris sera uma realidade e um orgulho brasilei- ro.” Em outras palavras, um dosado genocidio se oculta sob a mascara da modernidade. Os cronistas so pragmdticos e advogam por seus argu- mentos: integrar ou marginalizar. Partindo do pressuposto de que o caracteristico da sociedade é a produgio de desperdicios, as vezes, reaproveitados (dai 0 asilo, o orfanato, o depésito de lixo), pode-se prever que a légica implacdvel acabe trans- formando o conjunto do social numa simples acumulagao de restos, Ora, se todo o resto é literatura, nenhum género mais apto do que a crénica para fixar a miscelanea do social. A crénica apresenta-se, assim, como uma forma imanente, fe- chada e articulada em torno de dois principios que dio coe- réncia ao heterogéneo; a causalidade aleatéria e a coincidén- cia ordenada. O aleatério nos leva a idéia do acaso; 0 encon- tro previsivel, porém, nos conduz 4 matriz do plano. O olhar do cronista excita-se diante do inexplicdvel, ora seja prodigio, ora crime. A quebra da normalidade, porém, é para ele sempre menos importante do que se poderia supor. Dai a amena surpresa do género. Roland Barthes apontou um trago comum entre a crénica e 0 romance policial; nos dois se consagra o milagre do indicio porque ¢ sempre o mais irrelevante que acaba descobrindo o mistério. Assim sendo, a cr6nica reitera dois argumentos fundamentais para a socieda- de moderna, Primeiro, que o social se constitui gragas 4 pro- dugio de sentido. Vivemos o império dos signos; eles estéo em toda parte e cabe ao cronista decifrar, parcialmente, seu infinito poder, Segundo argumento, que a demanda constante 37 de sentido deriva sem parar, dai que até o objeto mais banal e anddino seja digno de atencaéo para o cronista, Se a causalidade se dilui na surpresa e no acaso do mundo dos objetos, é bem verdade que a repeticdo sistemdtica do banal cria uma causa estética: a curiosidade do bizarro que deixa, cada vez mais, de ser aleatério e toma-se, portanto, significativo. E légico, entéo, perceber a familiaridade entre as nocGes de crénica e modernidade: ambas sao sensiveis a circunstancia repentina, ao que surge sem regras e com urgén- cia, Ambas, porém, correm o risco de anulagéo na moda, ex- plosio do acontecimento que perde seu modo na medida em que acontece, passando a ser mera informagio, copiada, re- produzida, gasta. A antitese (relevante/irrelevante; social/privado; indi dual/coletivo) e 0 paradoxo (0 aleatério que se torna signifi cativo para tornar a ser banal) definem a crénica como esse espago ambiguo em que o que acontece (¢ © crime, surpresa do tempo, € exemplar nesse sentido) significa — embora o valor desse signo permanega muitas vezes incerto ou contra- ditério, Embora tome a concomitancia como fator de causalidade (o que relativiza a idéia construtiya de artificio literario), a crénica remete sempre 4 realidade inteligivel. Porém, mesmo quando documental, a crénica incorpora a estetizagio do es- critor porque ela observa o mundo externo literariamente, vale dizer, com os éculos emprestados pelas leituras do Autor. Para ele, 0 objeto da arte nfo é o que aconteceu mas o que julga que aconteceu, Daf, para o esteta, a superioridade da Arte em relagdo a vida, “A paisagem pintada é muito mais agradével que a natural. Sobra na primeira o que nio existe na segunda: a intengio, Talvez por isso certas paisagens na- turais chegam a ser toleradas quando lembram o estilo de um pintor notavel.” (Crénicas, 59). Assim, a cronica pode se orgulhar de excitar a surpresa, elemento central da literatura, Clarice: “ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. E na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo in- consciente, eu antes nfo sabia que sabia.” Afinados na sur- presa e na escritura, identificados em funcio do conhecimento 38 poético ¢ da acumulagdo de restos, 0 conto ¢ a erénica apre- sentam, no entanto, diferengas sensfycis, De fato, os mendigos de “Os que comegam” nao se comportam como os do conto. Em “O Homem da Cabega de Papelio”, os pedintes tornam-se vitimas da bondade de Antenor que busca, por todos os meios, atrumar emprego para todos, Neste ponto, Antenor esté préxi- mo de Théo Filho e do préprio Joao do Rio. (“Na ha nada que torne uma criatura mais honesta que o trabalho”, Adiante, 34) e, em iiltima andlise, do fascismo, para o qual, “quem trabalha sempre alcanga”. Revela-se, assim, uma falha estru- tural de Antenor. Sua bondade nao lhe permite ser completa- mente virtuoso porque ela desacata a honra de todo anarquis- ta aristocrata:; a desobediéncia, Antenor acompanha a norma do sistema — trabalhar. Logo, nao pode ser tao inteligente quanto o narrador pretende mostra-lo. Se hd, no caso de An- tenor, uma solugéo de compromisso entre o cinismo indivi- dualista e o desacato utépico, outra face de Joao do Rio, a do wildeano Godofredo de Alencar, sente-se mais 4 vontade para atitudes arrogantes e quase hipécritas. Em The Soul of Man under Socialism, Wilde sugere que € mais seguro men- digar que roubar, mas é melhor roubar do que mendigar por- que um pobre que for rebelde e que se recuse a poupar ter, muito provavelmente, personalidade mais verdadeira e maior tiqueza interior. Idéia que Godofredo de Alencar repete quase textualmente: “Os mendigos quase sempre t?m desprezo pelos que Ihes dio esmolas. A esmola humilha ttnto a quem a da como aos que a recebem. E é da parte dos primeiros sempre indicio de pusilanimidade” (Crénicas, 162). A rigor, Godofredo de Alencar despreza Joao do Rio por- que, como dizia Balzac, 0 homem acostumado ao trabalho nio pode compreender a vida clegante, O cronista é, a seu modo, um mendigo; vive de juntar observagdes e amontoar idéias de riso, pensamentos de esplendor (Prefdcio, RI), Godofredo de Alencar, o Artista Jofo do Rio, no pode admirar o cro- nista, quando muito, sentiré pena dele por ser um operdrio virtuoso “a quem o destino manda trabalhar, apesar de tudo...” (ibid.). A rebeldia de Godofredo consiste em preferir o intitil e alimentar o repouso. Valor que se dé ou se poupa, a Historia 39 circula nesse texto, em que a fungio estética, sempre em re- lagio com outras fungdes de dominio literério, vem @ tona com especial relevo. Assim, Paulo Barreto opera dupla pas- sagem: documenta a observacéo na crénica e estetiza 0 coti- diano no comportamento, Toma, neste sentido, seu proprio corpo como texto. E a légica do dandismo: produzir cortes, oposicdes. Milan Kundera: “a bengala era o toque que distin- guia o dandi mas que também o transformava num persona- gem moderno e na moda” (4 Insustentével Leveza do Ser). NOTA 1. Ou, ainda, como visio ut6pica da civilizacio tropical, oposta ao materialismo da vida ianque. No poema de Ruben Dario (“O pais do Sol”), a artista cubana a quem se dirige o poeta vive no des- terro da técnica, longe portanto do pais do Sol, onde o principe belo, a beira do Mar, pede liras, versos e rosas, que ela nao sabe mais ouvir. 40 Iv. UM BELO EM MASCARA “O melhor do novo é que ele sempre responde a um antigo desejo.” Valéry — Tel quel, 1. Na fabula de Antenor, Joio do Rio condena — de forma idealista, alias — © cinismo dos bruzundangas abastados, Se cabegas e mdquinas se querem conforme o clima e a moral de cada terra, no ha saida, além do comodismo adaptativo, para os habitantes de Frivola City. Os picaros progridem, sim, mas as custas de uma cabal consciéncia humana, O coroldrio dessa equag4o, no entanto, se encontra em outro conto do Autor. Em O Bebé de Tarlatana Rosa, Joo do Rio recusa o engano como embuste ofensivo 4 igualdade e, portanto, sujeito a con- denagao. Adota, assim, o critério evangélico de rechagar o esptrio, ie., a prosopolepsia, O desyio da prosopolepsia reside em considerar a mascara e¢ nfo o sujeito, a persona e ndo a pessoa, deixando-se enganar pela aparéncia de superficie, sem levar em conta a substéncia mais intima dos fendmenos. E exatamente a recusa da prosopolepsia — norma hegem6nica no pais do Sol — que justifica a indiscriminagéo de raga, pro- fissio ou condig&o, qualidades que suportam a ética ecuméni- ca das Escrituras. Os fatos: Heitor de Alencar reine no escritério seus ami- gos, o Baro de Belfort, Anatélio de Azambuja e Maria da Flor, para Ihes contar uma historia de mascaras acontecida no carnaval, Saira Heitor com quatro ou cinco atrizes e quatro ou cinco companheiros, percorrendo os bailes populares, deci- 41 dido a “acanalhar-se, enlamear-se bem”, O de sempre: negras desdentadas e fedorentas, trabalhadores da estiva ¢ perdidas palidas e mascaradas. “Nao havia nada de novo. Apenas, como o grupo parara diante dos dangarinos, eu senti que se rogava em mim, gordinho e apetecivel, um bebé de tarlatana rosa. Olhei-Ihe as pernas de meia curta. Bonitas. Verifiquei os bra- os, 0 caido das espaduas, a curva do scio, Bem agradavel. Quanto ao rosto era um rostinho atrevido, com dois olhos perversos e uma boca polpuda como se ofertando. S6 postigo trazia o nariz, um nariz tio bem-feito, tao acertado que foi preciso observar para verificd-lo falso.” Heitor passa a mao ¢ belisca o bebé melindroso, que lhe escapa da vista no baile do Recreio. No domingo, porém, ele reaparece na Avenida, vin- gando o belisciio da véspera e fugindo novamente. Na terga- feira, j4 desligado do grupo que 0 acompanhava, Heitor cai decidido na folia, apenas com uma roupa leve por cima da pele, tal como faria o jovem diplomata Milciades S4, com sua fantasia de baiana em “Um Baile de Carnaval”, (outro conto de Joao do Rio, incluido em Celebridades, Desejo). Trepidante ¢ mérbido, Heitor, de tao ansioso, nada con- segue, mesmo se esfregando com a ralé dos bailes populares. Voltando para casa, abatido e sozinho, topa com o bebé, pa- rado numa esquina, aguardando-o. Quer levé-lo para casa. oO bebé nfo quer. Quer tirar-lhe o nariz. O bebé se recusa, fir- me, Se agarram, se beijam e, no abandono das caricias, Hei- tor arranca o nariz de papelao, descobrindo, presa a seus labios, “uma cabeca estranha, uma cabega sem nariz, com dois bu- tacos sangrentos atulhados de algodio, uma cabeca que era alucinadamente — uma caveira com carne”. Foge, em corti- da desabalada, até a porta de casa quando descobre que na mao direita ainda apertava uma pasta oleosa e ensangiienta- da: o nariz do bebé. . A primeira constatagio que temos, ao ler o conto de Joao do Rio, 6 a emolduragdo dos fatos que torna O Bebé de Tar- latana Rosa um tipico relato de marcagfio teatral. Marcagao que provém, em grande parte, de Oscar Wilde, sugerida talvez pelo dialoguismo cénico utilizado em seus ensaios (nos quais Cirilo e Vivian polemizam sobre A Decadéncia da Mentira ou Gilberto e Ernesto discorrem sobre a fungao dO Critico como 42 Artista, todos eles confortavelmente instalados em bibliotecas que funcionam como pano de fundo desta convengio, ou até mesmo pelo preceito estetizante de Wilde para quem a gente deveria ser uma obra de arte ou usar uma obra de arte, Para viver a arte, portanto, urge estetizar a vida. Se arte e moral nao estéo apenas diferenciadas mas acima de tudo hierarqui- zadas, € coerente com esse raciocinio nao s6 que o artificial supere o natural mas que, além disso, a prépria reflexiéo se defina como representagfo artistica: desinteressada, contradi- téria, incidental. Assim sendo, no conto de marcagio teatral, © leitor se transforma na quarta parede. Nesse tipo de relato o Autor parte de um acontecimento cotidiano, recorta-o, ves- te-o apropriadamente e o apresenta reacondicionado. A rea- presentagio consiste nisso: na estilizagio do presente j4 que, para os wildeanos, 0 estilo (e nao a sinceridade) fundament? tanto os fatos banais quanto os mais relevantes. Esta concepgaio nos coloca alguns problemas. Ha, eviden- temente, um prazer que o leitor deriva do reconhecimento de uma situagdio proxima e que, no entanto, gragas 4 elaboracdo, retorna como “caso” distante, Nio mais 0 acontecimento — algo presente e performative — mas 0 acontecido, Desta ma- neira, 0 novo (0 bebé e, em sentido largo, 0 Moderno) nao deixam de ser meros travestimentos estéticos do j4 dado. No conto de marcacio teatral, portanto, o narrador aproveita o caso individual e corriqueiro (Oh, uma histéria de méscaras! Quem nao a tem na sua vida?) para hipostasiar o literdrio. Por outra parte, a autonomizacao do canone estético pressu- poe a livre combinatéria de elementos dai que o conto seja como 0 préprio carnaval: sem aventura, ele nfo é, Nao obs- tante, a sensibilidade agugada para o acontecimento — inde- finido, em progresso — faz com que esse tipo de conto se aprox me perigosamente do flagrante, do banal, da crénica, enfim. Vemos, portanto, que o conto de marcagao teatral vem associar duas tendéncias da escrita de Joo do Rio — teatro e crénica. Nessa reunido, ainda, transparece o sentido para- doxal da produgio textual de Paulo Barreto: entregar textos para a circulag&o; fazer com que o escritor se transforme, na sociedade racionalizada, num profissional da palavra. 43 Curioso e contraditério processo: em primeira instancia, o Artista estetiza a vida, adotando o valor de arte como padrao de medida. Em seguida, e cada vez mais decididamente, cle se vé forcado a abandonar o papel passivo de quem aguarda a ilu- minagio inspiradora e recorre & técnica como mecanismo me- diador dessa transformagao. Se, no inicio da caminhada, o dandi se afastava do boémio, 0 tempo mostrar4 que o escritor profissional iri se separando gradativamente do criador. De um lado temos a Obra; de outro, a ago. Joao do Rio tinha conscigncia do fendmeno quando escreve “a minha obra sé poderd ser vista, em conjunto, dentro de dez anos, Ai verao, talvez, que eu tentei ser o reflexo tumultudrio das transforma- ges € que nos meus livros nao esté a obra-prima mas em todos os seus aspectos morais, mentais, politicos, sociais, mundanos, ideolégicos, préticos — a vida do Rio...” (citado por Bezer- ta de Freitas no prefacio A segunda edicio de O Bebé de Tar- latana Rosa, p. 20). A marcagio teatral deste conto exemplifica bem as duas vertentes do processo estético. Gragas a esse recurso, verifica- mos que 0 conto se explica por uma decisio deliberada de submeter a vida A arte, consagrando a representagdo. Entre- tanto, no € menos certo que a marcagao cénica é uma solu- fo técnica que se origina no processo oposto de mercantili- zagao dos bens culturais, em que as comédias ¢ 0 jornal ocupam lugar de destaque. Nao ha nisto impasse algum. A eyolugao do sistema, nos anos que seguiram, mostrou que a cstética se alimentaria, de forma cada vez mais decidida, da experiéncia cotidiana, Aliés, surrealismo, pop-art, transvanguarda, isso comprovam, De tal modo que a imagem complexa do bebé — promessa de Vida, pressagio da Morte — complementa um nao menos complexo percurso ideolégico: nem tanto o inicio eufético de uma nova sensibilidade mas sobretudo 0 esgota- mento de uma revolugio cultural que, a rigor, ainda nem co- megou... Dentro da relativa rigidez estimulada pela marcagao cé- nica, nos defrontamos, no relato, com a fluéncia de uma fi- gura recorrente: a viagem. O conto é, em primeira instancia, a narrativa de uma viagem — alids, uma bad. O proprio Hei- tor tem consciéncia disso: ele mesmo se vé como um navega- 44 dor fenicio descendo A pornéia da cidade liderando uma ex- pedigio 20 bas-fond, cocrente com uma vida de lances tio herdicos quanto insélitos, Sao precisamente as vagamundagens de suas extravagancias que Ihe abrem a fruigéio dos transpor- tes do gozo. Nesse sentido, o Carnayal ¢ a moldura apro- priada desse curioso bon vivant. Sua viagem admite triplice leitura: cla equivale a passar, transgredir, penetrar, Heitor, o viajante moderno, passa ape- nas: seu esforgo € leve e superficial e pode, nesse sentido, lembrar o trabalho do cronista mais do que o de seu épico antecessor. Quem Jé um jornal também encara o texto como uma paisagem fugitiva e evanescente, uma distragdio sem con- seqiiéncias, uma desculpa para matar 0 tempo. Mesmo assim, quem viaja atravessa fronteiras e derruba limites, Para Joao do Rio, porém, essas marcas sao imposigdes externas ao individuo, meras determinagies sociais, fruto de convencfio, as quais o sujeito se amolda passivamente, Para nosso autor, o desejo sempre vem de fora, Nao estranha, por- tanto, que Heitor acredite que o desejo quase doentio “é como incutido, infiltrado pelo ambiente”. O sentido da dominagao se 18 nesse percurso: de fora para dentro: incutir, infiltrar. Os homens se dobram ao ambiente; os meios, aos sistemas. Forcgando a norma no espaco estrito do tolerado, a viagem de Heitor de Alencar busca aflitivamente limites, definigdes precisas, mas tudo o que ele encontra se dilui na vagueza e na ambigitidade. Quase nada conserva nitidez em meio a essa atmosfera embagada de cabaret vital. O grupo — a partida — funciona para Heitor como seu wnico marco de referéncias. Entretanto, 0 préprio grupo é crivado de incertezas. Antes de sair, por exemplo, Heitor nos fala de “Quatro ou cinco atrizes e quatro ou cinco compa- nheiros” mas, no meio da aventura, apés o primeiro encontro com o bebé, Heitor se sente preso aos colegas, principalmente as “cinco ou seis damas elegantes”. Aquelas que, no inicio, eram mulheres equivocas (atrizes) agora so certissimas, au- ténticas damas. Antes quatro ou cinco, agora seis, Quantas, quais, ao certo? O grupo — seu salva-vidas — no era por isso menos yolivel, abandonando-se, também, ao “vagalhfo de volipia”. 45 Inflavel e portatil, o salva-vidas se transforma num incémodo quando se quer algar do, O grupo é coercitiyo, Admite as mais ousadas excursdes, tanto aos clubes de jogo, onde rola a champanha, quanto aos fedorentos maxixes populares, Su- bir e descer, sé com seu controle. Voragem regulada, eis a sua pauta, escondida por trés da aparente liberalidade, Se o grupo é vivido como salva-vidas, é licito entender que, ao poupar experiéncias, ele libere, no entanto, a energia em bus- ca de identificagio que passa a flutuar entre os membros do proprio grupo, A identidade, imprecisa, boia entre eles, Os indices de indefinigéio nfo séo menores no caso do bebé. Ele surge de leve, rogando apenas o entediado Heitor, Sua figura bonita, atrevida e perversa é caracterizada sem precisio, mas sempre no masculino: é wm bebé, gordinho e apetecivel. S6 mais tarde é que aparece a primeira marca fe- minina, porém, desvalorizada — 0 bebé nao passa de uma teles jreqiientadora dos bailes do Recreio, Em meio a essas estranhas figuras “‘de larva diabolica, de incubos em frascos de alcool, que tém as perdidas de certas ruas”, o bebé surge na descrigao, num suspiro que nos reyela a sua primeira masca- ra: ele € yitima, Tudo é tato, rostos amassados, o rogar dos vestidos de belbutina, a curva do seio. O som apenas se in- sinua no suspiro do bebé e no guizo diabdlico que agita as figuras itreais numa desrepressfo anénima e desconhecida. No segundo encontro, 0 bebé se apresenta novamente por tras, deixando ouvir sua voz sem brilho, rouca, Segunda més- cara: o vingador. O fantasma, porém, adquire aos poucos rea- lidade, Na véspera era simplesmente “um bebé de tarlatana rosa”; no domingo “era o bebé rosa”. A vitima pode ser qual- quer um mas s6 ele faz sofrer. E exatamente o sadismo 0 que permanece encoberto nesse paulatino desmascaramento. “Nao o vi mais nessa noite, e segunda-feira nao o vi também”. Sadismo que excita Heitor por sabé-lo ubiquo, embora invisivel, quase tio abusivo como uma divindade 4 qual ele Se entrega. Eis a esséncia do poder porque, como dizia Valéry, © poder que nao abusa perde o charme. Cagador desastrado, Heitor admite sentir-se como que to- mado pelo “caiporismo dos defuntos indios”, Novo indicio 46 heterogéneo; o Caipora, Figura contraditéria (em principio protetora do cacador, transformando-se, a seguir, em regula- dor da caca e, mais ainda, em ser temivel e persecutério), o ins6lito Caipora, meio gigante, meio anao, vem desvendar noyo desdobramento do protagonista. Heitor nao ¢ mais, linearmen- te, 0 curioso do vicio nem mesmo um perseguido pelo anjo exterminador. Sua busca ganha agora determinagdes sociais. Como tensor dos movimentos encontrados da narrativa, 0 ¢s- pirito agreste das matas vem contrastar com 0 estilo civiliza- dissimo de Heitor, Nem mesmo o artiffcio de uma identidade vinda de fora — a sina da guigne — consegue abafar 0 Cai- pora. Aparece no caso um sintoma;: figura transacional entre © campo e a cidade, que dé uma solucdo de compromisso ao conflito entre a sociedade transatlantica e os defuntos indios. O mural e o urbano, o nacional e o estrangeiro reinem-se, transfigurados, na emergéncia problemitica do estranho. A sintomatica irrupgio do desconhecido redobra a neces- sidade de coordenadas precisas e, assim sendo, o narrador nos obriga a percorrer 0 seu espago, aquele espago urbano que esté prestes a perder: “cmbarafustei pelo Sao Pedro”, “dei para andar pelo Largo do Rocio — a atual Praga Tiradentes — e ia caminhando para os lados da Secretaria do Interior” quando se depara com o bebé, O percurso agora € a dois: param na estrada defronte 4 rua Leopoldina e frente ao Mu- seu de Belas Artes, “desolador e ligubre”. Atravessam a rua Luis de CamGes e se escondem embaixo das sombras fechadas do Conservatério de Miisica. Tudo se passa na regido moder- na da cidade, em torno 4 Avenida Central e sob a prote¢ao das instituigdes que guardam o passado — 0 Museu, o Con- servatério. Lentamente o tom da narrativa vai se modificando. O que de inicio prometia aventura passa agora a ser instigante ameaca tragica. Ha algo de Laforgue nessa pandega carnava- lesca atrafda mas atemorizada pela vulgaridade do baile popu- lar ou, ainda, do paraiso maldito de Verlaine, crispado por Le bruit des cabarets, la fange du trottoir, Les platanes déchus s’cffeuillant dans lair noir, L’omnibus, ouragan de ferraille et de boues, 47 Qui grince, mal assis entre ses quatre roues, Et roule ses yeux yerts et rouges lentement, Les ouvriers allant au club, tout en fumant Leur brile-gueule au nez des agents de police, Toits qui dégouttent, murs suintants, pavé qui glisse, Bitume défoncé, ruisseaux comblant I’égout (...) (La Bonne Chanson, XV1) Ora, 0 encontro com o noyo, associado A vivéncia angus- tiada do ligubre, evoca uma certa pagina das Cancées sem metro de Raul Pompéia, em que o a Morte repta por baixo do brilho diumo, o que nos ilustra essa estrutura de sentimento compartilhada pelos escritores do 900: ente-se na epiderme a caricia do calafrio; envolve-nos um clima glacial; estranha brisa penetra-nos, feita de agulhas de gelo. Em vao flameja o sol a pino. Sente-se dentro na al- tura a noite negra, invernosa, polar; sofre-se 0 contacto da Sombra. Tudo trevas, sinistramente trevas. O dia resplandes- cente na alvura dos edificios produz o efeito de prata nos catafalcos, Vemos as flores, o prado, Monstros! Reclamam a carne do pé que os pisa; 0 verme sOfrego espreita-nos através da terra... Ri?! Mas o riso tem a cruel vantagem de acentuar, sob a pele, a cayeira...” No conto de Joo do Rio o clima é mais acentuadamente fim-de-festa: siio trés horas da manha e a iluminagdo do espa- go — ptiblico; nao ha interiores — € toda artificial: “as pra- gas, horas antes incendiadas pelos projetores elétricos e as cambiantes enfumadas dos fogos-de-bengala, cafam em som- bras — sombras ctimplices da madrugada urbana”. Esse am- biente de completo repouso, apenas filtrado por “uma cor vagamente ruga com a treva espancada um pouco pela luz dos combustores distantes”, é quebrado, vez ou outra, pela estridente passagem de um carro de mascarados, tocando guizos: “Oh! a impressio enervante dessas figuras irreais na semi- sombra das horas mortas, rogando as calgadas, tilitando aqui, ali, um som perdido de guizo. Parece qualquer coisa de im- palpavel, de vago, de enorme, emergindo da treva aos peda- 48 gos... E os dominés embugados, as dangarinas amarfanhadas, a colegao indecisa das méscaras de iltimo instante arrastan- do-se extenuados!” E um quadro de fortes contrastes: 0 cagador nervoso en- frentando 0 deboche anénimo e coletivo; o andarilho solitério sacudido pelo burburinho colossal dos carnavalescos, que pro- fanam o siléncio das horas mortas; a agitagio dos passantes diante do estatismo do bebé. Ao se exasperarem as tensdées, a narrativa aponta uma brecha de descarga: eis que aparece novamente o bebé parado e expectante. O terceiro lance & 0 definitivo. Agora nfo é mais wn bebé nem o bebé rosa mas uma jndicag%io precisa e econémica: “Era ele”. Esquivo, o bebé se nos reapresenta ritmico e pulsional com sua vor “As- pera e rouca”, “arfante e ltibrica”.1 Se a voz permite alimen- tar o mistério (mulher? homem? A leitura de Di Cavalcanti reforga esta interpretagdo, mostrando, num canto do baile — bloco geometricamente desconstruido —, um bebé barbudo ¢ de chapéu-coco) o toque desfaz fantasias: “‘as maos estavam timidas mas bem tratadas”. O beb? é sempre duplice: cle se apdia em Heitor mas, na yerdade, dirige-Ihe os passos. Em redor, a penumbra do ambiente — sombras espessas @ trevas interrompidas por luzes fugitivas — s6 néo € completa por- que os olhos do mascarado brilham intensamente. O discurso, por sua vez, direto e entrecortado, sofre a imantagdo do de- sejo, interrompido apenas ao contato do nariz que, expressio- nistamente, parece crescer, como antevendo um obstdculo ao livre fluxo do instinto. Mas aqui, como em outras situacdes, nenhum atributo € constante e pode remeter a seu contrdrio. Assim, se, em certos momentos, o nariz parece representar a contengao simbdlica ¢ 0 bebé, o desregramento natural, nado deixa de surpreender que o mascarado tenha pressa, como que obedecendo a um plano que Heitor (e leitores) ignoram, em- bora suspeitem.? Arrancar a mfscara, deparando-se com uma cabega sem nariz descortina a imagem alucinante de contemplar a pr6- pria morte, Antenor: uma cabega com faro; o bebé, uma ca- beca sem nariz. A prosopolepsia parece levar a dissolugao fi- sica, obrigando a acatar o preceito moral, 49 Ha, nos dois casos, a certeza de acesso traumatico ao mundo social. Heitor corre, estabanado, pata a seguranca do lar ¢ s6 as portas de casa — perante a lei — repara que con- tinua apertando, na mao direita, “uma pasta oleosa e san- grenta”, o nariz. Em “Histérias de gente alegre”, outro conto de Dentro da Noite, 2 mundana Elsa caminha para seu fim “agarrando com um desespero de bacante a pastosidade oleo- sa e alourada da miserdvel que a queria”, Elisa, sua assassina. Nio custa observar que Heitor elabora seu conflito de identidade com um certo primarismo; o dandi julga ter tido apenas uma aventura — uma bela aventura empolgante, no dizer cinico do Barao de Belfort —, o que lhe reforga a idéia de que seu porto seguro se encontra mesmo no grupo social dos pares, do qual nunca devia ter se afastado. No entanto, 0 constante reyezamento dos contrérios que tece a estética do conto — as nuances, nunca as cores — permite uma compreensio mais rica da questio, Os atributos — sabemos — aparecem deslocados, de tal sorte que o tinico mascarado da histéria € o préprio Heitor. Com efeito, no conto, como 2liés no teatro de pantomimas, nem sempre o grotesco esté ligado A mascara, Arlequim, Leporello, Pierrot, Petrushca, Polichinello, apesar de suas mascaras, mostram tragos mais humanos que os Amorosi, que recitam a cara lim- pa ¢ que sao, entretanto, um prodigio de estulticia, Determi- nados pela acdo, os amantes da comédia podem ser linguidos ou vaidosos mas sao sempre belos e jovens, elegantes e mun- danos, falam corretamente e com estilo, conhecem as artes e as belas letras. Vivem conforme o figurino. Em outras pala- vras, sAo as tinicas e yerdadeiras mAscaras do teatro primitivo porque n&o tendo personalidade, como seus pares populares, apresentam as mil méscaras cotidianas e contraditérias do ci- dadio burgués. O bebé pode ser Eros ou Tanatos; pode ser a Musa ou até a propria Loucura (Ruben Dario: “Musa, la mascara apresta/ensaya un aire jovial/y goza y rie en la fies- ta/del carnaval”), Mas quem é mesmo Heitor de Alencar? Ele € 0 cinico, aquele que aparenta ser pior do que é porque pratica a moral de anti-moral. Sua ética — se aceita- 50 mos a reflexdo do fildsofo francés Vladimir Yankélevitch — se traduz em alguns principios bAsicos. Em primeiro lugar, Jendo as pretensdes de Heitor a con- tra-pelo, temos que a auténtica virtude esta no vicio, Por outra parte, esta constatagao nos leva a anular qualquer movimento dialético, qualquer tensdo entre os fatores, Assim, o vicio é a virtude, 0 Mal é o Bem: “a inverséo, a perversao cinica, nado provoca, por sua vez, intervengao alguma capaz de pér nova- mente pelo direito aquilo que estava do avesso, de dar um sentido aquilo que nfo tem sentido algum, de situar o contra- senso na trilha do bom senso”.? Eis o extremismo do desafio cinico. Por tiltimo, a ma vontade, tio evasiva ¢ fugaz como a boa vontade, fundamenta a vontade perversa ou maldade, por meio da qual a consciéncia se vé atraida e desgarrada por dois modos contraditorios de querer; de um lado, a saudade da abnegagao, hoje invidvel; de outro, a sedugio do egofsmo. E por isso que se pode dizer que o cinico experimenta, a seu modo, as dilaceragdes do parricida (mata 0 generoso € em compensagio s6 gera morte em redor), Ou ainda, que essa angistia que irriga o relato de Heitor manifesta um ensaio de elaborar o sentimento do sinistro que dele sc apossa, Nesse momento, Heitor tenta, precisamente, resolver a ansiedade pela perda do antigo e quer, ainda, prepatar o terreno para a percepgio do novo. Cindido entre a cuforia do progresso continuo e a ameacga de degradacéo que ronda em cada aven- tura, Heitor forma e elabora a violéncia que é sua arma de conquista. Violéncia que constatamos na privagao ¢ nas restri- ces sociais, violéncia que se desdobra em duas figuras logica- mente complementdrias: a demanda e a provocagio, verda- deiros modelos organizacionais do mundo, A agressividade dos atos de Heitor — espiar, cacar, beliscar, chupar — pa- rece compensar, a primeira vista, uma caréncia de origem. No entanto, ela néo é senfio uma vinganga por aquilo que faltou e frustrou o capricho todo-poderoso do bebé-Heitor. Se dele dependesse, Heitor mataria em nome do amor. (E, alids, o caso de Elsa/Elisa, em que até o nome coincidente das amantes reforga a idéia de um narcisismo primdrio e en- carcerado). A rigor, Heitor nao transp6e normas mas se vale delas para atingir seu objetivo, que é transformar o sofrimento 51 alheio em proprio beneficio, Ora, nao € outra coisa o que ele recebe do seu amigo, o Barao de Belfort: cinismo. Nem seria diferente a reagéo do proprio Heitor se o episddio tivesse ocorrido ao melifluo Anatélio, Heitor nao é, por acaso, um desdobramento do gélido Godofredo de Alencar? Mas ha, além da perversao e do cinismo, um terceiro uso que capitaliza o sofrimento alheio em proprio beneficio: a arte racionalizada e convertida em industria. Heitor de Alen- car, 0 Bardo de Belfort e Joao do Rio: trés mascaras coinci- dentes e complementares — 0 libertino, o cinico, o escritor profissional, Instrumentalizagio da violéncia — eis outro nome da vanguarda, Por ser um crepuscular, Jodo do Rio esta aquém do ma- nifesto, que 6 a acio programdtica de agressio ao mercado escolhida por um grupo criador homogéneo e hegeménico. Ainda cedo para isso e seré necessério aguardar os moder- nistas de 1922 para termos uma atividade de conjunto visando ao desacato e a desobediéncia. Joao do Rio é um boémio em transito A modernidade mas sua obra j4 revela a matriz des- trutiva do espirito novo. A basculagio do bebé, oscilando entre vida e morte, adquire o sentido de uma busca agressiva do novo transe. Contraditoriamente, antigo e moderno esto indissociavelmen- te ligados na medida em que se reconhece como nova aquela porgiio perecivel dos objetos, Ou por outra, é nova precisa~ mente porque caduca, A violéncia esté inscrita na vanguarda: no parto e na perda do impeto. Tentar resistir a essa perda nao deixa de ser um ato contra 0 novo, que se naturaliza na convengao. Sé uma ética extremada do trabalho, alienada ao conce- bé-lo como mera produtividade, continua e irrefredvel, pode- ria censurar a busca do novo, assunto que sé desvelaria as classes ociosas que tém tempo para perder. Q novo é tempo mas € tempo amassado. Hé, a propésito, um curioso quadro de um artista também transicional, Arthur Timéthco da Cos- ta, coeténeo de nosso autor (nasceu em 1882 ¢ morreu em 1923), que nos apresenta a figura languida de um Pierrot, bé- bado e amarfanhado, sem forgas sequer de bater & porta de 52 sua casa. Segurando-o pelo brago, um varredor do servigo publico, enquanto outros trés operarios ¢ o motorista de praga, estacionado em frente 4 residéncia, contemplam a cena e ten- tam desimpedir 0 passeio coberto de serpentina. O que vem n’“O dia seguinte” € o mundo do trabalho varrendo a festa dos acomodados, Tanto na provocagio do comportamento quanto na expresséo de sensagdes novas (aqui, no conto, o neologismo “carne chamina” por “carne em chamas”), ora vinculada ao uniyerso do 6cio, ora ao do trabalho, a moder- nidade pressupde enfrentamento. Também o bebé se destaca em meio a um baile. Qual o sentido dessa irrupg&o? Metéfora da vida (que remcte clas- sicamente a seu oposto, nas igualitérias dangas macabras me- dievais), 0 baile é a associacio transit6ria de parceiros cujo {nico objetivo se esgota no proveito ¢ no prazer, E & dessas dangas e contradangas que se faz a historia. O préprio Joao do Rio observa que “a civilizagéo repu- blicana foi sempre marcada, na sua vertiginosa evolugdo, por etapas dangantes, No baile da Tiha Fiscal, em que caiu a Monarquia, estavam todos os democraticos admirados da ceia com faisOes e pavoes emplumados; no baile de inaguracgio do Catete, os convidados levavam no bolso recordacées de bibelés, mas Manuel Victorino dava a nota de uma elegancia a Felix Faure. E dai por diante, baile da paz sul-americana ao general Roca, primeiro baile dos “Diarios” com os aristo- cratas do cimbio querendo reconstituir a tradigio do ex-Casi- no, baile do presidente Nilo, baile do Jéquei — cada baile ¢ uma etapa ascendente na largueza dos costumes republica- nos”, (Celebridades, 145) Quase nunca to radical a ponto de dissolver a tradicao, © novo destaca a ambigiiidade do extremismo e a exceléncia da mediania: ele pode muito bem ser o mero retorno, masca- rado, do j4 conhecido. A felicidade do convencional reside neste ponto: a total jgnordncia dos préprios limites, condigao superiativa do burgués, Essa felicidade aponta ao dtimo e fun- da uma filosofia, o otimismo. Esbogam-se, assim, dois con- ceitos extremos, univocos e equivocos, ao mesmo tempo: 0 maximo, valor quantitatiyo dos maximalistas, que pressupd= distribuicio € participagio, ¢ © dtimo, valor de qualidade que 53 | | | solicita heroismo mas nao sinceridade. O otimismo, filosofia do justo meio, expulsa o sofrimento, Ele quer ¢ luxo. A an- gustia moderna provém, no entanto, dessa consciéncia dila- cerada das transformagoes que nao esgota o desejo e, em compensagio, nos ensina que 0 bebé vive no dandi, a dor no gozo © o antigo no novo. Vale a pena reparar na imagem que aponta a transigao neste relato de Joao do Rio. © nariz postigo do bebé é um. auténtico nariz-de-cera da modernidade. Sendo © contista um homem de jornal, ele nao pode senio moldar a sua imagem com os materiais de sua ideologia pratica. O nariz-de-cera — conyém jJembrar — € um texto com- posto em tipo menor que o da coluna em que se insere € que, a titulo de introdugao, antecede a entrada na matéria. E este preambulo, quase sempre enfatico, vago e até mesmo pres- cindivel, prepara uma nova cristalizagio estética, defendendo, jntransigentemente, a jdeologia da “vida de artista”, Como Joao do Rio deixa claro no prefacio a Celebridades, Desejo, a completude humana — “a Unidade espiritual do Cosmos, € a sua integragio no Bom € no Mau” — 86 se alcanga mediante a Arte, “guia dos homens ¢ prolongamento jdeolégico da Na- tureza”. A arte nao ¢ apenas superior 4 natureza, ela ultra- passa todos os outros saberes que nao sio senio manifestacdes parciais da Unidade estética superior, Vemos, em conseqiién- cia, que a prosopolepsia denunciada no conto nao combate 0 principio religioso da justiga distributiva mas ataca, acima de tudo, o engano estético da representagao. fi essa a sua religido. "‘Talvez convenha destacat que Joao do Rio era conscien- te do papel que lhe coube na fixagdo e modernizagio do cam- po intelectual de inicios do século, consciéncia essa que o le- you até o limiar militante do manifesto. £ assim, como um libelo programatico, que deve ser lida uma crénica em forma de carta, publicada postumamente e que aqui transcrevo de forma parcial, por entender que explica, com brilho ¢ ousadia, que “A superioridade do Artista” reside em um otimismo axiolégico corrofdo pelas contradigées. “Em primeiro lugar, ev sou absolutamente superior a Vocé. Nao por causa do embaixador, do ministro que 54 me corteja, do chefe de policia que me odeia, nem da pérola da minha gravata, Tudo isso ¢ muito mais Vocé pode ter amanha pelo bolchevismo, por um bilhete de loteria, por um excesso de esperteza ou pelo excesso de estupidez. Eu sou superior a Vocé pelo dom da Inteli- géncia, apenas. O presidente de qualquer Estado pode me mandar prender e torturar. Eu sou superior a esse individuo pela Inteligéncia, Vocé pode amanha reben- tar-me. Eu serei sempre superior a Vocé, quer Vocé quei- za, quer nao. Em geral, nem 0 presidente nem Vocé querem. Mas cu sou. (Sse “A Inteligéncia zoolégica, a esperteza, fez uns se- rem dominados pelos outros, baralhando egoismos, es- cravizando e protestando. “A Inteligéncia-Luz, generosa pelo seu orgulho, manteve, porém, em todos os espiritos 0 mesmo ideal a realizar, Por causa desse ideal de perfeigio os homens olharam o céu ¢ inventaram os deuses; por causa desse ideal de perfeigéo os homens fizeram a arte; por causa dessa Ansia dilatadora do prdprio “eu” eles dilataram pelos descobrimentos a terra; por causa dessa fGria de liberdade eles descobriram na ciéncia meios de liberta- ao. Mas porque na raga existem © édio, a rapina, a inyeja, a manha, a hipocrisia, a raga sempre julgou que a felicidade se consegue para os oprimidos oprimindo Os opressores, “B dificultoso e torna as libertagoes prisdes, preci- samente porque a Multidao n&o ouve a pequena super raga, a guardadora da Inteligéncia Celeste, os Artistas, limitando a obra de entendimento de cada um, obrigan- do geragdes sucessivas da mesma super-raga A repeti- aio da obra de agitac&o transformadora. “Vocé é por exemplo, um carneito que quer virar lobo, Algumas raposas organizaram Vocé no bando, a ver se a quantidade estragalha os lobos fatigados de gozos. Vocé no fundo quer muito justamente o seu di- reito de homem. Mas nfo s6 se conyenceu de que o seu direito tem de esmagar o do alarye que come ali adian- te, como acha uma grande novidade regeneradora da 55 56 humanidade essa imaginagfo restrita. Se forem dizer a Vocé que os seus agitadores sio uns priticos insidiosos, Vocé fica furioso. E na sua teimosia Vocé comega por nao ver a vida, e por nao realizar completamente a sa- tisfagdo da sua existéncia, criando partidos, sendo de um partido social, 0 que indica oposicéio, politica, hi- pocrisia. Os Artistas dotados de Inteligéncia estfio aci- ma dessa miséria — porque querem a igualdade geral da raga, e agem nesse sentido sempre, “Assim, nesse ponto de vista, o unico verdadeiro, dé-se um fenédmeno curioso: Diante de um Artista, é téio conservador o chefe de policia como o matador do dito chefe, pela simples razio de que nem o chefe cruel, perseguindo por medo e¢ apelando para a pilhéria la- gubre que denominam “ordem social”, nem o anarquis- ta matando para libertar a humanidade, convencido das “reivindicagdes sociais” -— conseguiram o inatingido bom senso de se libertar dos préprios egoismos, que sao os das suas classes, os das suas ordens sociais. E diante desse quadro de dolorosa estupidez, o Artista que yé e interpreta a aspiragéo de bem geral, acima dos erros e dos impetos, dos egoismos e da covardia humana de ser bom — tem de repetir através dos séculos a mes- ma acao e tentar contra a ma vontade geral um pouco mais de compreensio dos simples homens, sem desani- mar, apesar de ter conseguido muito pouco praticamente. “Ainda outro dia, Vocé vinha da greve e mostra- va-me uma tentativa de artigo no seu érgao, onde Vocé repetia pretensiosamente uma série de tolices, amputan- do o pensamento do que Vocé chama “os seus auto- tes”. Logo eu Ihe quis notar que Vocé me mostrava o artigo porque reconhecia a minha superioridade. Quan- do, porém, vi Vocé a chamar os camponeses bébedos de “yogda”, que ignoram Vocé e o Brasil, como igno- ram o que pensa Lénin — “de caros irmaéos da Ris- sia”, dei uma imensa gargalhada, Vocé ofendeu-se e in- sultou-me: “__ Burgués! “Eu continuci a rir, porque Vocé em 1789, com a mesma inconsciente falta de sinceridade para com “os nossos irmaos da Riissia”, que o intercssam tanto co- mo os nossos irm&os da {ndia, teria ou gritado “Aris- tocrata!”, ou me denunciado ao Comité de Salvagado Pu- blica. E principalmente eu via Vocé cheio de teias de aranha, cheio de preconceitos revoluciondrios, tio atra- sado no seu egoismo sem luz que, se Ihe dessem o car- go de chefe de policia ou de diretor do Banco, Vocé sem esforco me mandaria prender em nome da ordem. “Porque nada para se confundir tanto com a tal ordem social, como a tal reivindicagaéo das classes. “Isso que eu Ihe disse fez Vocé responder, como os pirralhos mentais da nossa literatomanis “Nada de paradoxos! Quem sabe se Vocé quer passar por bolchevista? “E de fato, meu caro camarada, eu sou muito mais — porque eu sou um Artista. Por menor que 0 Artista seja, é uma explosdo no ritmo, é uma forga de corrup- gio do conservadorismo, é um transformador, é a bom- ba que abala as conviccdes. O Artista pode chamar-se Jesus e dar a esperanca do céu para melhorar os ho- mens. Pode ser Sécrates indagando para tentar o inicio da verdade no homem com o “conhece-te a ti mesmo”, E pode ser um artifice simples que ponha o coragéo no que diz. Em qualquer caso é sempre temido — porque existe acima do torvelim. “Vocé acredita no Lénin, de ouvido. O novo-rico tem medo de Lénin, também de ouvido. Pela simples razio de que nao pensam por conta prépria e ha a su- balternidade dos interesses capaz de Vocé ouvir 0 novo- rico clogiar Lénin, desde que seja preciso. O Artista vé em Lénin um repetidor daquilo que tem sido dito mi- Thares de vezes e um executor inteligentissimo do con- trério, Mas se Lénin é apenas um Tzar vermelho, co- mo o Tzar cra um imbecil assustador pelo medo, e Ke- rensky 0 sujeito que deixou de ser Lénin por ser um tagarela apenas — a aspiragio de harmonia humana existe, apesar dos guardas vermelhos, apesar dos assas- 57

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