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fa ri pl Colegéo ELOS Dirigida por J. Guinsburg Nicolas Boileau-Despréaux A Arte Poética Introdugao, Tradugio e Notas de Célia Berrettini IW EDITORA PERSPECTIVA Produg&o: Plinio Martins Filho 1 . N SUMARIO Copyright © Editora Perspectiva, 1979 Preficio........ Notas ao Prefécio . Primeiro Canto ...... Notas ao Primeiro Canto . Segundo Canto ...... Diseitos em Iingua portuguesa reservados & : EDITORA PERSPECTIVA S.A. Hotes 20 eeundo Canto Av. Brigadeiro Luis Anténio, 3025 cients 01401 — So Paulo — Bra Notas ao Terceiro Canto Telefone: 288-8388 Quarto Canto... ... 1979 Notas ao Quarto Canto PREFACIO Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711), autor de A Ar- te Poétiea, 6, sem divida, a testemunha de uma resplandes- cente época literdria, que viu surgirem grandes vultos em dife- rentes géneros, sob a protegio do “Rei Sol”, o Rei Luts XIV, que, em pleno absolutismo, soube ajudar escritores como Ra- cine, Moliére ¢ tanto mais, favorecendo-lhes..o.trabalho-e,-ob-~ tendo em troca, conseqiientemente,-elogios nem sempre ime- recidos, ainda que as vezes inoportunos. Longe de ser um orientador para a elaboragdo das grandes obras de seu tempo — Moliére na comédia, e Racine na tragédia jf haviam criado suas obras-primas, quando da publicagdo de A Arte Poética (1674) — 6, sim, um definidor da doutrina chamada.cldssica. ‘Mesmo antes de ser publicada, j4 vinha sen- do conhecida a sua obra através das leituras feitas, nos sal6es, pelo préprio Boileau, correspondendo suas idéias ds dos parti- cipantes das reunides que 1d se realizavam. Como a Poética de Arist6teles, a de Boileau 6, pois, uma reflexio sobre obras-pri- mas anteriores, e ndo um cOdigo com leis a serem seguidas pelos renomados autares que ja entdo haviam composto suas imortais criagGes; pretende divulgar idéias bem conhecidas dos doutos: a arte literdria é uma imitagdo da natureza, sendo pois a verdade © seu ideal — o homem na sua verdade eterna; @ arte néio pode prescindir da razéo. Nada inventou Boileau no seu poema diddtico-artisti seguiu modelos antigos como Aristoteles (modificado pelos terpretadores), Longino, Quintiliano, mas sobretudo Horécio, na sua Epistola aos Pisdes (a Terceira do Segundo livro das Epistolas), a que a tradiggo deu o nome de Arte Poética, Nao ignorou, no entanto, os trabalhos modernos que doutrinavam no dominio das Letras, como 0 do Pe. Rapin: Reflexdes sobre a Poética de Aristételes (Réflexions sur la Poétique d’Aristote). Alids, Boileau e o Pe, Rapin freqiientavam as famosas reuniGes do Primeiro Presidente Lamoignon. Boileau, que compés varias obras — Epistolas, Sétiras, entre outras —, € 0 sempre recordado tedrico do classicismo francés. E bem verdade que muitos autores, atualmente, j4 n@o mais aceitam o termo Classicismo, preferindo, a exemplo de Helmut Hatzfeld, empregar a expresso Barroco Perfeito ou Alto Barroco, e considerar Racine o grande dramaturgo barroco. Como diz esse erudito autor, nos seus Estudios sobre el Bar- roco: “El clasicismo francés es el estilo de la generacion barroca en Francia”, e foi “un error de los crfticos franceses” a con- fusio do “dirigisme organizado del Barroco en Francia hacia un pretendida Clasicismo con un estilo auténticamente nuevo, diferente por completo del Barroco y opuesto a él”#, Deixemos, porém, de lado esse tipo de problema, pois intmeros so os trabalhos que tratam da doutrina literdria do século XVII, com 0 titulo contendo o termo Classico, sendo suficiente recordar- mos a importante La formation de la doctrine classique, de René Bray?, ou a conhecidissima e ndo menos valiosa obra La dramaturgie classique en France, de Jacques Scherer*, Mas falemos de nossa tradugdo*. Se bem que em prosa, (numerando, no entanto, a margem esquerda, 0 equivalente aos versos de Boileau, de cinco em cinco), pretende este trabalho ser fiel ao original — e esse é talvez 0 seu mérito —, propor cionando ao estudante, sem grandes conhecimentos do idioma francés, 0 acesso a obra. Ha, por exemplo, na Biblioteca Munici- pal de S. Paulo, uma tradugao de A Arte Poética, feita em 1697, em Portugal, por D. Francisco Xavier Menezes, Conde de Ericeira’. Embora seja inegdvel seu valor histérico e literdrio, e 0 proprio Boileau tenha elogiado o trabalho, em carta transcrita no final do volume, quando diz: “Tudo é da mesma forma justo, exato, fiel em vossa tradugio; e ainda que vos af me tenhais embele- zado, nao deixo de reconhecer-me por toda a parte”, é bem verdade que “a traducdo” dista muito de ser fiel, ora modi- ficando, ora eliminando ou acrescentando elementos, Alids, o proprio Boileau, no comego da referida carta, confessa seu “conhecimento muito imperfeito” da lingua portuguesa, ¢ no ter realizado “nenhum estudo particular nesse campo”. E ne- cessario ainda notar que, nessa versdio portuguesa, os 1100 ver- sos alexandrinos de Boileau passam a 1280 versos, distribuidos em 160 oitavas, podendo-se depreender que, a0 usar a oitava- -rima — 0 metro consagrado em portugués aos assuntos ele- vados, desde Os Lustadas —, desejava o tradutor conferir ao seu texto maior pompa e sonoridade. Sem nenhuma preocupagdo artfstica e, — repetimos —, ptetendendo apenas facilitar ao estudante 0 acesso 4 obra que teoriza ‘sobre o Classicismo, abandonamos os versos — traba- tho acima de nossas possibilidades — ¢ preferimos também em- ptegar a forma de tratamento senhor ou senhores (conforme 0 Boileau se ditige a um autor ow leitor ou aos autores, em geral) que, sem ter a solenidade do vés, evita no entanto a familiari- dade do vocé ou vocés que ndo coadunaria com Boileau. Focalizemos A Arte Poética, Apresenta quatro cantos, cujo desenvolvimento em principio € metédico, pois para dar- ahe maior atrativo Boileau varia o tom, intercalando hist6ricos, digressdes ¢ até mesmo anedotas (é 0 caso do mau médico de Florenga, que se tornou arquiteto — Canto IV, v. 1-24), As- sim, embora certos pontos — a necessidade da inspiracdo @ a de submeter as obras 4 critica, por exemplo — sejam tratados no Canto I e retomados no iiltimo canto; e as digressoes se fagam presentes, quer no Canto I — histérico da poesia fran- cesa —, quer no Canto IV ~ evocacdo das origens da poesia —, a matéria se distribui, de maneira geral, de acordo com a se- guinte ordem: No Canto I, trata 0 autor dos Principios gerais que devem nortear o métier do poeta. Este deve: sentir auténtica inspi- racdo (v. 1-26), ter em elevado apreco a razdo (v. 27-38), evr tando excessos, como o preciosismo (v. 39-48), a prolixidade (v. 49-63), 0 desiquilfrio no verso (v. 64-68), a monotonia no tom (v. 69-78), o burlesco (v. 79-97) e a énfase (v. 98-102); cultivar 0 aspecto formal, preocupando-se com o ritmo e os sons (v. 103-112), com 0 bom uso da Ifngua que deve primar pela clareza (v. 141-154), pela corrego (v. 155-174), pelo r- gor da composigéo em cada obra (v. 175-182), e ser esta sub- metida a critica, uma crftica imparcial e fria (v. 183-232). E neste Canto que, como assinalamos, se situa 0 hist6rico da poe- sia francesa, com apreciagdes nem sempre justas (v. 113-140). No Canto II, sio focalizados os pequenos géneros ou os géneros secundirios, como 0 idilio (v. 1-37), a elegia (v. 38-57), a ode (v, 58-81), 0 soneto (v. 82-102), 0 epigramu (v. 103-138), 0 rond6, a balada, o madrigal (v. 139-144) e a sdtira, que é tratada de maneira mais pormenorizada, na Antigiiidade Latina, e em Régnier (v. 145-180), terminando Boileau com a defi- nigdo do vaudeville (v, 181-190) e da cangao (v. 191-204). No Canto II, trata Boileau dos grandes géneros literdrios: @ tragédia, a comédia e a epopéia. Comega pela tragédia (v. 1+ 159), cujos principios so logo estabelecidos: agradar ao ptbli- co (v. 1-8); despertar o terror e a compaixio (v. 9-26); obe- decer as regras — exposigao concisa e clara (v. 27-35); submis- so as trés unidades (v. 36-46), a verossimithanga (v. 47-50), a conveniéncia (v. 51-54), a progressiio dramdtica (v. 55-60). Apés 0 hist6rico da poesia (v. 61-94), aponta os defeitos que devem ser evitados: 0 romanesco excessivo (v. 95-102) e a presenga de herdis perfeitos (v. 103-112); e as qualidades que devem ser cultivadas: a verdade psicoldgica e historica (v. 113- 134), a emog&o sincera (vy. 135-144) ¢ a pureza da forma (v. 145-159), Focaliza, em seguida, a epopéia (v. 160-334), com atengao especial ao merveilleux (v. 160-192), sendo que 0 mer- veilleux cristio € condenado (v. 193-244); termina com elo- gios a Homero (v. 295-334), ap6s haver assinalado as regras do género épico: a escolha do heréi (v. 245-252); a auséncia de complicagaéo (v. 253-256); 0 cuidado com os relatos ¢ as descrig6es (v. 257-268); a naturalidade do comego (v. 269-286); a multiplicidade de ficgdes que devem ser agradaveis (vy. 287- 294). Passa, finalmente, @ comédia (v. 335-428), desde a gre- ga (v. 335-358), estabelecendo o grande princfpio do género — @ imitagdo da natureza (v, 359-360), que exige a verdade na pintura dos caracteres (v. 361-372), das fases da vida (v. 373- 390) e dos costumes (v. 391-392). Refere-se a Molidre e a seu indevido uso dos elementos farsescos (v. 393-400) e indica as regras da comédia: a existéncia de um tom que lhe ¢ proprio. (v. 401-405), a necessidade de bem desenvolver a ago, segundo li © modelo de Teréncio (v. 406-420), e a proibicgo da comi- cidade grosseira (v. 421-428). No Canto IV, apresenta Boileau seus conselhos de bom senso e de moralidade aos que pretendem cultivar a poesia: a necessidade de auténtica vocagdo (v. 1-40), de bem aceitar a critica e nfo apenas os elogios dos amigos (v. 41-84), de pro- porcionar prazer e utilidade ao leitor (v. 85-90), de ser o autor um homem virtuoso, agraddvel na sociedade e desinteressado (v. 91-132). Apos uma dissertagdo sobre as origens da poesia (v. 133-172), em que exprime o valor da atividade poética, louva Boileau a atuagdo do Rei Lufs XIV (v. 173-222). Histo- ri6grafo do rei — como também foi o caso de Racine, apés a composigao de Fedra e o abandono do teatro — nao. poderia Boileau eximir-se de fazer a apologia da figura real, o que rea- liza j4 quase no final da obra, com prejuizo — reconhegamos — das demais partes, que artisticamente tratam do ideal classico ou do “barroco perfeito”, como preferem muitos, Os versos, que encerram 0 poema, expressam a sua talvez dissimulada mo- déstia, pois declara, muito humildemente, ser “mais propenso a censurar que sabio em bem compor” (v. 223-236). A sempre citada formula de Boileau — “o que bem se concebe, se enuncia claramente; e para dizé-lo, vém as palavras com facilidade” — poderia dar-nos a impressio de que a arte literdria tem necessidade apenas da verdade e da razio. Reme- ditando, porém, o assunto, no Prefacio de 1701 redefine Boileau © seu ideal; declara que a boa obra deve ter “um certo sal proprio a estimular o gosto geral dos homens”, “um ndo sei o que que se pode muito mais sentir que dizer” (0 grifo € nosso). E assinala ainda que a opinido da maior parte do publico e o julgamento da posteridade so, para ele — como para muitos de nds — 0 critério definitivo para avaliar, na sua justa medida, 0 12 Peso de uma obra, Teérico, mas também obra de arte, 0 poema de Boileau contém, como dissemos, as idéias da época sobre a criagao lite- raria, idéias que perdurariam ainda durante um longo perfodo. No teatro, por exemplo, as regras 1d expostas vao tiranizar mui- tas geragdes de autores, no apenas na Franca, negando-lhes 0 direito do génio: a liberdade na criag&o. Se o século XVII fran- és conheceu um Corneille, dotado de tendéncias independen- tes, que soube defender a liberdade criadora, tendo assinalado “quantas belas coisas” s4o proscritas do palco, em nome da estrita observancia das regras, pretensamente fundadas na razdo e na verossimilhanga; se conheceu um irteverente Moliére, que protestou contra o excesso de disciplina, tendo dito na Critica da “Escola das Mulheres”, cena 6, que “‘gostaria muito de saber se a grande regra de todas as regras no é a de agradar, ¢ se uma pega que atingiu seu objetivo nao seguiu o bom caminho”; se conheceu um Racine que mesmo tendo se curvado, com naturalidade, as regras, assim se manifestou no Prefacio de Berenice: “A principal regra é agradar e comover. Todas as outras so apenas feitas para chegar a primeira” (os grifos so nossos), s6 9 século XIX, com a revolucdo romantica — que teve precedentes em varios pafses — fara explodir, de maneira definitiva, 0 repadio 4 excessiva disciplina, 4 castradora regu- laridade estética. © Romantismo, esse movimento renovador que se algou contra a estreiteza dos princfpios classicos — afinal a obediéncia coga as regras estéticas nunca foi garantia para o surgir de obras de valor, quando faltam ao criador a centelha da inspiragdo ou a chama do talento — e que proclamou a plena expansio individual, teria sua doutrina brilhantemente e ardentemenie exposta por Victor Hugo, no Prefacio da pega Cromwell, em 1827. 13 NOTAS.AO PREFACIO fe dos, 1973, 38 ed. aumentada. Versin espafiola de nga Figuera 1 96 RENE BRAY. La formation de la doctrine classique. Paris, Nizet, Nia, JACQUES SCHERER. La dramaturgie classique en France. Pats, 4. Para a presente traducdo utilizamos: Oeuvres Poétiques de Boile Pati. Lib. Armand Cotin, 1924, pp. 166-209 eL ‘Art Podliue Chea s. D. FRANCISCO XAVIER MENEZES, A i Lisboa, Papelaria Fernandes Livraria, 5.4. Ane Potica de Boas, 20 PRIMEIRO CANTO No Parnaso', um poeta temerdrio pensa em vio atingir as alturas da arte dos versos; se nao sentir a in- fluéncia secreta do céu, se sua estrela nfo o formou poeta por ocasidio de sou nascimento, estard sempre ata- do A sua estreita disposicao natural’: para ele, Febo 6 surdo®; e Pégaso indécil*. + © senhor, pois, que consumindo-se num ardor pe- rigoso, se langa na espinhosa carreira da poesia, no se gaste em versos sem fruto, nem tome por génio um simples versificador®: tema as enganadoras iscas de um prazer futil, ¢ consulte longamente o préprio espirito eas forgas, A natureza, fértil em espfritos de valor, sabe par- tilhar os talentos entre os autores: um pode pintar em versos uma chama de amor‘; outro pode afiar o epigrama com um trago divertido’; Malherbe pode celebrar as proezas de um herdi®; Racan® cantar Filis'®, os pastores @ os bosques, Mas, freqiientemente, um espfrito que se ilude e € admirador de si mesmo, desconhece sua apti- dio e ignora sua natureza. Assim, aquele"! que outrora foi visto com Faret'? a escrever seus versos, com carvao, nas paredes de uma taverna’, se vai, com uma voz au 1 25 30 35 40 45 50 daciosa e fora de propésito, cantando a fuga triunfal do povo hebreu, e ao perseguir Moisés através dos deser- tos, corre com Fara6 a afogar-se nos mares. __ Qualquer que seja o assunto que tratemios, ou divertido ou sublime", que o bom senso concorde sem- pre com a rima: parece que ambos se odeiam inutil- mente. A rima € uma escrava e deve apenas obedecer, Quando, desde 0 infcio, nos esforgamos por bem pro- curar a rima, 0 espirito facilmente se habitua a encon- tréla’: ela se curva, som dificuldade, ao jugo da razio ¢,'longe de perturbé-la, serve-a e, com isso, a enriquece!®, Mas quando € negligenciada, ela se torna rebelde!”. ¢, para alcangéla, 0 sentido corre em seu encalgo. Por. tanto, ame a razdo: que todos os.escritos procurem sem- pre o brilho e o valor apenas na razio"8, __ Os autores, na sua maioria, levados por um impe- to insensato, vio procurar sempre 0 pensamento longe do bom senso, Acreditarse-iam rebaixados, nos seus Versos estranhos, se pensassem que outro poeta pode pensar como eles. Evitemos tais excessos: deixemos 4 Itélia a deslumbrante loucura de todos esses falsos bri- lhantes"®, Tudo deve tender ao bom senso. Mas, para af chegarmos, o caminho a ser seguido é escorregadio © penoso; logo nos afogamos, por pouco que nos afas- temos. A razdo, para andar, tem muitas vezes apenas uma via”, Um autor, obcecado as vezes com 0 objeto de seu trabalho, nunca abandona um assunto sem esgoté-lo. Se encontrar um palécio, pinta-me sua fachada; em se- guida, passeiame de terrago a terrago, Aqui se apre- senta uma escadaria; Id reina um corredor; acolé se fe- cha um balcdo numa balaustrada de ouro. Ele conta as 55 65 70 75 80 85 superficies redondas e ovais dos tetos: “Nao so senfio festdes, no so senZo astrégalos””!. Salto vinte folhas para encontrar 0 final, e s6 consigo escapar através do jardim. Fuja da abundancia estéril desses autores, ¢ nao se sobrecarregue com um pormenor inttil. Tudo o que dizemos a mais é insfpido ¢ desagradével; o esptrito saciado repele instantaneamente 0 excesso”*. Quem niio sabe moderar-se jamais soube escrever”, . 0 medo de um mal nos conduz. freqiientemente a inal ainda pior”*: um verso era fraco demais e o senhor © toma duro; evito ser prolixo e me torno confuso; um verso ndo est omamentado em demasia, porém sua mu- sa estd excessivamente nua; outro tem medo de rastejar e se perde nas nuvens. Quer merecer as simpatias do piblico? Quando escrever, varie sempre as palavras. Um estilo por demais igual e sempre uniforme, brilha’em vao aos nossos olhos ©, obrigatoriamente, nos adormece. Lemos pouco esses autores, nascidos para nos entediarem, e que usando sempre 0 mesmo tom parece que esto salmodiando. Feliz 6 aquele que, em seus versos, com uma voz flexivel, sabe passar do tom grave a0 doce, do divertido ao severo!5 Seu livro, amado pelo céu e apreciado pelos leitores, sempre aglomera compradores ao seu redor, na Livraria do Paldcio”®, Qualquer que seja 0 tema sobre 0 qual o senhor escreva, evite a baixeza: o estilo menos nobre tem en- tretanto sua nobreza*’. Sem levar em consideragdo o bom senso, o burlesco descarado enganou imediatamen- te os olhos e agradou, por sua novidade®®, Nao mais se viram em versos senZo engenhosidades triviais; o Parnaso falou a linguagem dos mercados”; a liberdade de rimar 17 90 95 100 nao teve entdo mais freio; Apolo fantasiado™ se tornou um Tabarin*", Este contégio infectou 0 interior do pais e passou do secretdrio de um homem da lei e do bur- gués até aos principes*”. O pior ator comico teve seus admiradores; ¢ até d’Assourcy®, todos enfim encontra- ram leitores. Mas a corte, finalmente desenganada com esse estilo, desdenhou a extravagancia facil de tais ver- sos, distinguiu o natural do vulgar e do bufo, e deixou que provincianos admirassem o Tifdo™. Que esse estilo n&o macule jamais sua obra. Imitemos a elegante graga de Marot®* e deixemos o burlesco aos farsistas do Pont-Neuf**, Mas nfo v4 tampouco, seguindo as pegadas de Brébeuf, mesmo numa Farsdlia, amontoar nas margeris “De mortos e de agonizantes cem montanhas lamurien- tas”3”, Use melhor 0 tom. Seja simples com arte, su- blime sem orgulho, agradavel sem artificio. Nada oferega ao leitor sendo 0 que pode agradé-lo. Tenha ouvidos exigentes para com a cadéncia: que em seus versos, cortando as palavras, o sentido sempre sus- penda o hemistiquio e lhe marque a pausa®®. Tome cui- dado para que uma vogal, apressada demais em correr, nao se choque em seu caminho com outra vogal®*, Existe uma feliz escolha de palavras harmoniosas; fuja do odioso encontro dos maus sons: quando os ouvidos so feridos, o mais acabado verso e o mais nobre pensamen- to néo podem agradar. Durante og primeiros anos do Parnaso francés, 0 capricho fazia, sozinho, todas as leis*®. A rima, no final das palavras reunidas sem medida, fazia as vezes de ador- nos, de nimero e de cesura. Villon foi o primeiro que soube, naqueles rudes séculos, desenredar a arte confusa 120 125 130 135 140 145 150 de nossos velhos poetas*”, Logo depois, Marot fez flo- recer as baladas”’, compés triolés, rimou “mascara des’, sujeitou os rondés“* a refrdos regulados e mos- trou caminhos totalmente novos a arte de rimar“*, Ron- sard*7, que o seguiu, regulando sua obra por outro mé- todo, baralhou tudo, fez uma arte 4 sua moda, e teve, no entanto, durante muito tempo, um destino feliz. Mas sua musa, falando grego e latim*® em francés, viu na época seguinte, por um retorno grotesco, cair 0 fasto pedante de suas palavras enfaticas®’. Esse poeta orgu- Thoso, despencado de tio alto, fez que Desportes® ¢ Bertaut®! se tornassem mais contidos. Veio enfim Ma- lherbe e este foi o primeiro que, na Franga, fez sentir nos versos uma cadéncia justa, ensinou 0 poder de uma palavra posta em seu devido lugar, ¢ reduziu a musa as regras do dever’?. A I{ngua, assim reparada por este sd- bio esoritor, nada mais ofereceu de rude aos ouvidos depurados. As estrofes aprenderam a cair com graga®, e 0 verso ndo mais ousou encavalar em outro verso™. Todos reconheceram suas leis; esse guia fiel ainda serve de modelo aos autores atuais. Sigadhe, pois, as pega das; aprecie-lhe a pureza, € imite a clareza de sua forma . Se 0 sentido dos versos que o senhor compés tarda em fazer-se entender, logo meu espirito comegaa distrair- -se ¢, pronto a desprender-se de palavras vazias, ndo mais segue um autor que deve sempre ser procurado®®, Hi certos espiritos, cujos pensamentos sombrios so sempre perturbados por uma nuvem espessa; o dia da ra- zo nfo poderia atravesséla, Antes, pois, de escrever, aprenda a pensar®’, Conforme nossa idéia seja mais ou menos confusa, a expresso a segue, ou menos nitida ou mais pura, O que bem se concebe, se enuncia clara- 15S 160 75 180 mente; e, para dizélo, vém as palavras com facilidade. Principalmente, que em seus escritos, a lingua ve- nerada até seus maiores excessos, seja sempre sagrada ao senhor®®, Se o termo é improprio ou a construgio & viciosa, o senhor me impressiona inutilmente com um som melodioso; meu espirito no admite um pomposo barbarismo, nem o orgulhoso solecismo de um verso empolado. Resumindo: sem a lingua, 0 autor mais di- vino, por mais que se esforce, & sempre um mau escri tor®, Trabalhe com vagar, mesmo que uma ordem o apresse; ¢ no se jacte de compor com louca veloci- dade®: uma pena téo répida e que corre rimando, in- dica menos excesso de espirito que pouco bom senso. Prefiro um regato que, num prado repleto de flores, sobre a areia mole passeia lentamente, a uma torrente transbordante que, sobre um terreno lodacento™, com um curso tempestuoso, rola, repleta de cascalhos. Apres- se-se lentamente™, ¢ sem perder a coragem; reponha sua obra vinte vezes sobre a mesa de trabalho®*: retoque-a e torne a poli-la, sem descanso; as vezes, acrescente al- g0; e, freqientemente, apague™. Em uma obra em que os erros pululam, nfo bas- ta que crepitem tragos de talento semeados de vez em quando. E necessério que cada elemento seja posto em seu devido lugar; que o comego e o fim harmonizem com o meio®; que, com uma arte exigente, as pecas adequadas nao formem senZo um tinico todo de diver- sas partes®; e que 0 desenvolvimento, afastando-se do assunto, nfo v4 nunca procurar demasiadamente longe algum vocdbulo brilhante. Tem medo, para seus versos, da censura publica? 185, 190 195 200 205 210 215° Seja severo critico para consigo mesmo®. A ignorancia est4 sempre propensa 4 auto-admiracio®®. Faca amigos prontos a criticé-lo®, Que eles sejam os confidentes sin- ceros de seus escritos e os adversarios zelosos de todos os seus defeitos. Despoje-se, diante deles, da artogincia de autor; mas saiba distinguir 0 lisonjeador do amigo”. Tal pessoa parece aplaudi-lo; e est, no entanto, zom- bando de sua obra e enganando-o. Goste que 0 acon- selhem ¢ no que o elogiem. Um lisonjeador procura logo exclamar, admira- tivamente; cada verso que ouve 0 faz extasiar-se. Tudo é encantador, divino; nenhuma palavra o desagrada. Tri- pudia de alegria; chora de ternura. Rodeia-o, por toda a parte, de elogios pomposos. Mas a verdade nunca tem este ar definitive”. Um amigo sabio, sempre rigoroso e inflextvel, ja- mais 0 deixa tranqiilo quanto aos defeitos”: nao perdoa 0s pontos falhos; corrige os versos mal dispostos; repri- me a énfase ambiciosa das palavras; aqui, 0 sentido o choca e, mais longe, é a frase”. Parece-Ihe que sua cons- trugGo se obscurece um pouco; ¢ que este termo & equivoco, sendo necessério esclarecé-lo. E assim que Ihe fala um verdadeiro amigo. Freqiientemente, porém, um autor intratavel quan- to ao que se refere a crftica de sua obra, se cré interes- sado em proteger todos os seus versos e, desde 0 infcio, assume 0 direito do ofendido. “‘A expressiio deste verso & baixa, dird o senhor. — Ah! Senhor,-eu lhe peco misericérdia para com este verso, responderd ele ime- diatamente. — Esta expresso me parece fria; eu a cortaria, — E a parte mais bela! — Esta construgad nao me agrada, — Todos a admiram!” Assim, sempre constante em nio 21 220 225 230 retratarse, se uma palavra na sua obra pareceu atingir © ouvido critico, considera’ isso um titulo para nfo ser obrigado a apagéla™, Ouvindo-o, porém, ele aprecia a critica e 0 senhor exerce um poder despético sobre seus versos. Mas todo esse belo discurso, com o qual ele vem lisonjedlo, nada mais € que uma hébil arma- dilha para poder recitar-lhe seus versos. Logo depois, ele se afasta. E, contente com sua musa, vai-se embora _ para procurar em outsa parte algum tolo que ele possa enganar, pois 0 encontra amitide: nosso século é fértil, tanto em tolos autores como em tolos admiradores. E, sem contar os que fornecem a cidade e 0 interior”, existem entre os duques e existem entre os principes”®. A obra mais vulgar tem encontrado, entre os cortesdos, em todo tempo, partidarios zelosos. E para terminar enfim com uma nota de sdtira: um tolo sempre en- contra um mais tolo que 0 admira. ee NOTAS AO PRIMEIRO CANTO 1. Monte da Grécia consagrado a Apolo e as Musas, cuja dificuldade de ascensio é comparada As dificuldades da arte poética, 2. Boileau emprega 0 termo génie no sentido etimol6gico: a1 naturais inatas. 3. Febo; isto é, Apolo, é 0 Deus da poesia Iitica. 4. Pégaso é 0 cavalo alado que conduz 0 poeta inspirado. Este co- eo do poema,’ora traduzido em prosa, tem sido muito criticado; a ficuldade de comegar era alids, uma caracterfstica de Boileau. s. Boileau faz distingdo bem nitida entre o poeta e o versificador. 6. Trata-se da elegia amorosa, que Boileau estudaré no Canto II, vy. 41-43. 7. Boileau focalizard o epigrama no Canto I, v. 103. 8. Boileau considera Malherbe (1555-1628) o primeiro poeta, ainda que depois tenha modificado sua opinigo. Malherbe deixou apenas um pequeno volume de versos, em que se nota pouca imaginagao poética € limitado vocabul : 9. Racan (1589-1670), autor de pastorais, nas quais imita o Pastor Fiel de Guari 10. Filis é a pastora das Bucélicas de Virgilio (III, 78). Tratase de nome muito usado nas pastorais e nas poesias galantes. Ver o soneto 118 de S4 de Miranda (Obras Completas, I, ed. Sd da Costa). u Saint-Amant é poeta original, mas a quem faltava bom gosto. Eo autor de Moise Sauvé. (Moisés Salvo). 12. Faret amigo de Saint-Amant. Os estatutos da Academia France- sa foram redigidos por ele. 13. Boileau recorda Marcial, que apresentou “um poeta ébrio que es- creve poemas com carvao ou giz nas paredes de uma taverna enfumaca- da” (, XL, v. 61). 14. Sublime significa o que “desperta os sentimentos nobres”. Is. ileau retoma sempre a idéia da dificuldade de versificar. E do que trata na Sétira IT (A Moliére) © na Epistola X7 (A meu jardineito). Tulga que o poeta deve, desde o inicio, esforgarse por encontrar a rima que deve sempre estar sacrificada ao sentido. 16. Essa idéia nao é seguida por todos os criticos da época. des 23 17. Boileau, dominado por esta idéia, comega cada distico pelo se- gundo alexandrino. 38. Reminiscéncia de Hordcio, na Arte Poética, v. 309: “0 fundamen- to e a fonte da arte de escrever bem é a razfo.” Boileau, no entanto, exagera o seu pensamento, 20 afirmar que s6 a razdo é necesséria. 18. O preciosismo, isto é, 0 excesso de elegincia e afetagdo, tinha sido levado para a Franca, no século XVI, e tornou-se moda. O maior representante deste mau gosto foi Marino, Na Franca, certos autores Prejudicaram seu talento com o emprego de refinamentos combatidos por Boileau, em nome do bom senso. 2. La Bruyére, nos Caracteres, XI, 156, ¢ Pascal nos Pensamentos, art. VIL, tém a mesma idéia. : 21, Verso de Scudéry, em Alaric (Alatico). Na Sétira II, Boileau idade do poeta Scudéry, autor de dezesseis peas de tea- tro © que se vangloriava de sua capacidade literdria, podendo escrever, seja um poema de mil ¢ quinhentos versos, seja outro de cem Godeau, Magnon, Boyer © outros eram também prolixos demais para © gosto de Boileau. 2. Consta que a descrigio do palicio é feita com quinhentos versos, © a do jardim, com igual extensio. Hordcio, na Arte Poética, v. 331, diz: “Todo o supérfluo é repelido por um estomago repleto”. 23. E um verso proverbial que Voltaire imitou: segredo de ente- diar € 0 de tudo dizer”. Pascal e Vauvenargues, entre outros, expressam a mesma idéia. 24. Reminisoéncia de Hordcio, na Arte Poética, v. 25-28, 31, 230. na Arte Poética, v. 34: quele que soube mesclar © itil ao agradavel obtém todos os sufi 26. Barbin era o livreiro do Palécio. 27. Boileau, na IX® Réflexion sur Longin (Nona Reflexio sobre Lon- gino) diz que um estilo é nobre quando evita as palavras baixas, idéia que é aprovada por Racine. 28. O estilo burlesco esteve muito em voga a partir do comeco do século XVI até 1669. Florescente na Itilia, desde o século XVI, foi importado para a Franga por Scarron (1610-1660), entre outros. O bur- lesco fazia que os herdis falassem a linguagem trivial da farsa. 29. Ainda que 0 poeta Malherbe dissesse que os amantes da boa Tinguagem deveriam ouvir as conversas dos carregadores, ¢ que o proprio Boileau apreciasse 0 sabor da I{ngua popular, 0 tedrico e defensor do classicismo ndo podia aceitar a grosseirice no falar. 30, Alusio @ obra de Scarron: Virgile Travesti (Virgilio disfarcado). 31. O famoso Tabarin se chamava Jean Salomon e nasceu aproxime- damente em 1584, tendo falecido em 1633. Suas farsas, aplaudidssimas, foram publicadas um ano antes de sua morte. 32. O esnobismo das classes elevadas e ricas levowas 4 adogio da gitia do populacho. 33. Trata-se de um imitador burlesco das Metamorfoses de Ovidio, em sua obra, de 1653: Ovide en belle humeur (Ovidio de bom humor). Era chamado o “imperador do burlesco”. 34. Le Typhon ou la Gigantomachie (0 Tiféo ou a Gigantomaquia), de 1644, €'0 poema de Scarron que conta a guerra entre os gigantes € 03 deuses, Trata-se do primeiro poema longo que parodia a epopéia, sen- do uma reagdo contra os humanistas e os poetas da Renascenga. 35. Marot (1496-1544) compés epistolas, baladas, rondés, epigramas, ‘que sdo ainda admirados. 36. “Pont Neuf” é a Ponte de Paris construfda entre 1578 e 1607. Estava orlada de estabelecimentos em que reinava 2 animagio. Foi, du- rante muito tempo, 0 local mais concorrido de Paris. Vendedores de panacéias e manipuladores de marionetas, cOmicos grosseiros, com pala- vras € gestos, atraiam grande piblico. 37. Brébeuf traduziu em versos 0 poema de Lucano, Farsdlia. Boileau cita 0 verso 897 do Canto VII do referido poema. 38. Boileau atribui uma grande importancia a cesura do hemistiquio, ‘© que acarretou uma certa monotonia nos poemas clissicos. 39. O hiato, na poesia, foi proibido desde Malherbe. E 0 Romantismo também nao 0 aprovou, 40. Boileau aqui comeca a resumir a Hist6ria da poesia francesa, ain- da que de maneira muito incompleta. Como todos os autores de sua época, no valotiza a poesia medieval; apenas Frangois Villon merece clogios. Despreza também 0 século XVI e o grupo da Pléiade, ao qual pertencem Ronsard e Du Bellay, entre outros. 41. A tima s6 se impde_a versificagdo francesa no século XII; foi precedida pela assondncia. E preciso reconhecer que os velhos poetas se preocupavam com o niimero de silabas e com o ritmo, a0 ponto de supervalorizé-los. A renovacdo pregada ¢ realizada pelos poetas da Pléia- de, que tinham 2 frente Ronsard e Du Bellay, representa um marco na ia da poesia francesa. 42. Frangois Villon (1431-1465 2), 0 primeio, em data, dos grandes poetas Ifricos franceses da época moderna, é 0 autor do Pequeno ¢ do 25 Grande Testamento, Soube valerse da inspiragdo pessoal ¢ das formas poéticas mais simples. 43. Marot nao inventou a balada, poema de versos de oito ou de dez pés. Composta de trés estrofes de dez ou de oito versos, com as mes- mas rimas, seguidas de uma quintilha e de um quarteto, cuja construgio 6 a mesma dos cinco aitimos versos das estrofes de dez para a quintilha ‘ou dos quatro iiltimos versos das estrofes de oito para o quarteto. A quintilha ou o quarteto & chamado “envoi", A Pléiade abandonou a balada, que foi muito admirada no século XV. 44, Marot ndo compés triolés nem “mascarades”. Triolé é um poema de oito versos, sendo que o primeiro é reproduzido pelo quarto ¢ sétimo versos; 0 segundo e 0 tltimo sfo iguais. Quanto & “‘mascarade”, € um poema sem forma especial, composta para os balés. Foi dan- ge de pestoas mascaradas; depois, vexos e ‘misica acompanharam essa a. “45. O rondd, que é bem anterior a Marot, é um poema de treze versos distribufdos em trés estrofes (cinco-trés-cinco) com duas rimas. O refra0, constitufdo pela primeira ou pelas primeiras palavras do verso inicial, aparece no fim da segunda e da terceira estrofes. Seus versos so octossf- labos ou decassflabos. 46. A afirmagGo de Boileau nao é correta. 47. Ronsard (1524-1585) ¢ seus companheiros da Pléiade renovaram a inspiragdo ¢ forma da poesia francesa. Se Ronsard exagerou suas teo- rias, soube manter 0 equilfbrio, tendo raramente ultrapassado os limites. So famosos muitos dos sonetos que dedicou 3s suas amadas. Boileau ndo soube bem avaliar o papel deste autor na evolugdo da poesia fran- cesa, ignorando-Ihe a importancia e ndo o vendo como o primeito talvez dos grandes cléssicos. 48, Boileau exagera e é injusto para com o poeta, pois Ronsard, embora grande conhecedor e admirador da cultura antiga, foi inimigo dos seguidores cegos do latim e do grego. 49. A opiniéo de Boileau sobre Ronsard tem apenas valor episddico, pois a gléria do poeta néo caiu no ridfculo, mas no esquecimento. O sécnlo XIX, reconhecendo o valor de Ronsard, anula 2 injustien de Bot leau. 50, Desportes (1546-1606) compés elegias ¢ sonetos bem inferiores aos de Ronsard. s1. Bertaut (1552-1611), discfpulo de Ronsard, compés sonetos ¢ epfstolas inferiores aos do grande mestre. 52. Com Malherbe comegou a depuragio da Ifngua francesa, no que foi seguido pelos preciosos. Tal trabalho seria um dos mais rudes argu mentos usados pelos roménticos contra os cldssicos. 53. Boileau exagera novamente, pois Malherbe no que se refere aos recursos ritmicos. s4. © século XVI, inabilmente, usou muito rompe © ritmo normal de um verso. La Fontaine mostrou que jambement™ pode ser uma fonte de beleza poética. E os roménticos dele fizeram uso, as vezes excessivamente. ss. A afirmativa de Boileau ndo corresponde realidade, pois varios poetas protestaram contra a tirania de Malherbe. Racan ¢ Maynard, + discfpulos de Malherbe, exerceram pouca influéncia. Foi, pois, Boileau que fez triunfar a doutrina do poeta. 56. O pensamento do autor escapa a todo momenito, exigindo ser procurado, 7. Reminiscénica de Hordcio, na Arte Poética, v. 40-41 ¢ 311: “As préprias palavras seguirdo, quando 0 dssunto for bem meditado.” s8. E 0 problema da corregéo gramatical. Considerando-se que Mal- herbe deve servir de “guia fiel”, pensa-se a que ousadias se refere Boileau. 89. O autor divino é 0 inspirado pelos deuses. 60. Boileau zomba de Scudéry, de Liniére e de outros autores que compunham com rapidez extraordindria. . ‘1, Reminiscéncia de Horacio, na Sétira I,.X, 72, em que o ctftico chama Lueflio de lutulentus (lamacento). 62. Adagio do imperador Augusto. 63. ReminiscSncia de Hordcio na Arte Poética, v. 291-294. Os melho- res escritores do século XVII aplicaram essa teoria as suas obras: La Bruyére, La Rochefoucauld e Pascal, entre outros. 64. Reminiscéncia de Quintiliano, na Instituigdo Oratéria, X, acteditou-se, com razo; que o estilo ndo age menos quando apaga’ 65. Reminisc&ncia de Hordcio, na Arte Poética, v. 93 cada coisa ocupe convenientemente o lugar que Ihe cabe” haja desacordo entre 0 comeco eo meio, entre 0 meio € 0 fi 66, Reminiscéncia de Hordcio, na Arte Poética, v. 2. ‘outras qualidades, tenha pelo menos sua obra a simplicidade, 61. Reminiscéncia de Hordcio, na ptstola H, I, v. 107: “Aquele que desejar compor um poema segundo as rogras, tomard em relagdo & sua obra 0 estado de espitito de um eritico justo”. 27 68, Reminiscéncia de Hordcio, na Epistola I, U, v. 106: “Zombamos dos maus poetas; mas eles mesmos esto contentes com o que escrever, admiram-se, ¢ na sua satisfacdo louvam o que escreveram”. 69, Sabe-se que Racine muito devia a Boileau, ouvindé-lhe 0s con- selhos literérios. H4 cartas que comprovam tal atitude, 70, Reminiscéncia de Horacio, na Arte Podtica, v. 424: “Nao me surpreenderei se, na sua felicidade, sabe distinguir 0 verdadeiro amigo do falso”. 71, So frases traduzidas quase literalmente de Hordcio, na Arte Poé- tica, v. 428-430. 72. Reminiscéncia de Horécio, na Arte Poética, v. 445-449: “Um homem avisado censurard os versos linguidos, condenard os versos rudes, apagard com um trago de pena os versos mal feitos, cortard os adornos supérfluos, indicard as modificagdes que devem ser feitas, exigird mais clareza no que est obscuro, perseguird tudo 0 que é ambiguo”. 73, Boileau estabelece oposigo entre o pensamento (0 sentido) e a expresso do pensamento (a frase). 74, Pensase em Oronte diante de Alceste, personagens de Moliére, em O Misantropo, 1, Il. 75. Na peca As Preciosas Ridfculas, de Moligre, encontramos as pre- ciosas do interior. 76. Tem-se aqui visto uma alusio a Cotin, recebido na residéncia dos Longueville ¢ dos Nemours, bem como a Chapelain, amigo do duque de Montausier. 15 20 SEGUNDO CANTO Tal como uma pastora que, no mais belo dia de festa, ndo carrega sua cabeca com soberbos rubis, ¢ que, sem misturar a0 ouro o brilho dos diamantes, colhe num campo vizinho seus mais lindos omamentos, assim um elegante idflio', com ar amével, mas com estilo sim- ples, deve brilhar sem pompa. Sua forma natural ¢ es- ponténea nada tem de luxo e nfo aprecia o orgulho de um verso presungoso. Sua dogura deve afagar, agradar, despertar e jamais espantar os ouvidos com palavras grandiloquentes. Mas, muitas vezes, um versificador em apuros nes- se estilo, joga fora por despeito a flauta ¢ 0 oboé?. E, desvairadamente pomposo, na sua veia indiscreta, entoa a trombeta no meio de uma égloga®, Com medo de es- cutélos, PZ foge para os canigos*; ¢ as Ninfas, de pavor, se ocultam sob as 4guas®, Este outro, ao contrdrio, ab- jeto em sua linguagem, faz com que seus pastores falem ‘como se fala nas aldeias. Seus versos triviais grosseiros, despojados de adornos, sempre beijam a terrae rastejam tristemente, Dirse-ia que Ronsard, com seus pffaros risticos’, vem ainda cantarolar seus idilios barbaros & mudar, sem respeito aos ouvidos ¢ ao som, Licidas em Pierré, e Filis em Tonha’. 29 30 55 Entre esses dois excessos, a estrada ¢ dificil. Para encontré-la, siga Tedorito e Virgilio®. Que suas mos nfo m de folhear, dia e noite, os ternos escritos dos dois poetas®, ditados pelas Gragas. S6 eles, com seus. doutos versos, poderao ensinarlhe por que arte pode um autor descer sem baixeza; cantar Flora, os campos, Pomona, os vergeis"; incitar dois pastores ao combate de flauta’'; celebrar a doce isca dos prazeres do amor; transformar Narciso em flor e cobrir Dafne com casca’, E por que arte, ainda, a égloga as vezes torna o campo © os bosques dignos de um consul’®, Tal é a fora e a graca desse poema, Com um tom um pouco mais elevado, mas entre- tanto sem auddcia, a plangente elegia"*, com longas ves- tes de luto e cabelos esparsos, sabe gemer sobre um caixdo’*. Pinta ela a alegria’® e a tristeza dos apaixona- dos; afaga, ameaga, irrita, acalma uma amante!”. Mas, Para bem exprimir esses felizes caprichos'®, nao basta ser poeta; & necessdrio estar apaixonado!®. Odeio esses autores frivolos, cuja musa forcada, sempre fria e gelada, me entretém com seus amores ardentes; esses autores que se afligem na arte, e, loucos de senso ponderado, se erigem, para rimar, em apaixo- nados transidos. Seus mais doces arrebatamentos séo apenas frases vas. Nunca sabem sendo carregar-se com cadeias, abengoar seu martirio, adorar sua prisao, e fazer que os sentimentos e a razo disputem?®, Nao era nesse tom ridfculo que, outrora, 0 Amor”! ditava a Tibulo 0s versos que este suspirava”’, ou ainda animava os doces sons do terno Ovidio, dando-the as lig6es encan- tadoras de sua arte”®. $6 0 coragdo deve falar na clegia. A ode™, com mais brilho ¢ nfo menos energia, e- 65 70 75 80 85 90 levando seu ambicioso véo até 0 céu*, mantém, através de seus versos, relacdo com os deuses®®, Ela abre, em Pisa, a barreira aos atletas; canta um vencedor empoei- rado, no final da corrida*’; leva Aquiles ensanguentado as margens do Simoide du faz Escaut inclinar-se sob 0 jugo de Luis’. Ha pouco, como uma abelha ardente em seu trabalho, ela se vai para despojar as margens de flores”, Pinta os festins, as dangas e os risos; celebra um beijo colhido nos labios de Iris®, que resiste debil- mente € que, por um doce capricho*, algumas vezes © recusa, a fim de que Iho arrebatem. Seu estilo impe- tuoso, com freqiiéncia, caminha ao acaso: nela, uma linda desordem € um efeito da arte™, Retrocedam esses versificadores temerosos, cujo espitito lento para criar conserva nos seus momentos de inspirag4o poética uma ordem didatica; versificadores que, secos historiadores, cantando as brilhantes marchas de um her6i, seguirdo a ordem dos tempos. Nao ousam, um momento sequer, perder de vista um assunto®*: para tomar Déle, é necessdrio que Lille j4 tenha cafdo™, e que seu verso, exato, assim como a obra de Mézerai°®, ja tenha feito cair as muralhas de Courtrai®. Apolo Ihes foi sempre avaro de seu fogo. Dizem, a esse respeito, que um dia esse deus ca- prichoso, querendo exasperar todos os rimadores fran- ceses, inventou as rigorosas leis do soneto; desejou que, em dois quartetos de medida semelhante, a rima com dois sons ferisse oito vezes os ouvidos, e que, em se- guida, seis versos artisticamente dispostos ficassem, pelo sentido, divididos em dois tercetos. Baniu sobretudo, desse poema, a licenga poética: ele mesmo mediu o metro e a cadéncia; proibiu que um verso fraco pudesse 95 11s 120 af jamais entrar, e que uma palavra j4 empregada ousasse mostrar-se novamente. Além disso, enriqueceu-o com uma beleza suprema: um soneto sem defeito vale, so- zinho, um longo poema. Mas mil autores em vo pensam consegui-lo; ¢ essa fénix feliz esté ainda para ser encon- trada*”. Apenas podemos admirar em Gombauld, May- nard e Malleville®®, dois ou trés sonetos entre mil: 0 testo, tio pouco lido como os de Pelletier, nao deu sendo um salto da casa do livreiro Sercy 4 do merceei- ro", Para encerrar seu sentido no limite prescrito, a medida & sempre longa ou pequena demais, O epigrama, mais livre em sua forma mais limi- tada, ¢ muitas vezes apenas um dito espirituoso ornado de duas rimas", Outrora, as expressdes engenhosas e sutis*?, ignoradas por nossos autores, foram atrafdas da Itélia para nossos versos. A vulgaridade, deslumbrada pelo falso adorno, correu para esse novo atrativo, com avidez. O favor do pUblico excitou sua auddcia e um nimero impetuoso inundou o Parnaso. Primeiro, 0 ma- drigal foi envolvido pelo novo atrativo™; o proprio so- neto orgulhoso foi por ele atingido; a tragédia fez com ele suas mais caras delfcias*®; a elegia com ele ornou seus dolorosos caprichos; um herdi, no paleo, teve 0 cuidado de apossar-se dele, e um apaixcnado nao ousou mais suspirar sem usé-lo; todos os pastores foram vistos, nas suas novas lamentagGes, ainda mais figis a tal em- prego que as suas amadas; cada palavra teve sempre duas faces diversas e a prosa, tanto quanto os versos, acolheu 0 novo uso; 0 advogado, no Palécio da Justiga, com ele erigou seu estilo, e o predicador, no pilpito, com ele semeou o Evangelho*, ‘A 1a2%0, ultrajada, abriu enfim os olhos ¢ o ex- 125 130 135 140 145 150 155 pulsou para sempre dos discursos sérios; ¢, declarando-o infame em todos esses escritos, permitiu-he, por favor, a entrada no epigrama, mas com uma condigao: sua en- genhosidade, surgindo adequadamente, deveria rolar so- bre © pensamento e nao sobre as palavras. Foi assim que cessaram as desordens, por toda a parte. Na corte, restaram no entanto os Turlupins, insfpidos comicos, infortunados bufées, que so desbotados partidérios de um: jogo de palavras grosseiras*”. Nao quer isso dizer que uma musa um pouco fina, as vezes, de passagem, nag, jogue e brinque com uma palavra, e que no abuse com éxito de um desvio de sentido. Mas evite, nesse ponto, um excesso ridiculo; ¢ ndo v4 sempre, com um dito frivolo, afiar pela cauda um louco epigrama. Todo poema ¢ brilhante por suas qualidades parti- culares*®, O rond6, de origem gaulesa, tem a simplici- dade. A balada, submetida a suas velhas regras, deve muitas vezes todo o seu brilho ao capricho das rimas*?. © madrigal, mais simples e mais nobre em sua construgdo, respira a dogura, a ternura e o amor.” O ardor de mostrar-se, e nfo de difamar, armou a Verdade com o verso da sétira®. Caio Luctlio foi o primeiro que ousou mostré-la'; apresentou o espelho aos vicios dos romanos; vingou a virtude humilde con- tra a riqueza altiva, pondo o homem da sociedade a pé e 0 escravo na liteira®, Hordcio misturou sua joviali- dade a esta acidez: N4o mais se foi fétuo ou tolo sem impunidade; e infeliz daquele cujo nome, proprio a crf: tica, pudesse entrar num verso sem quebrar a medida! Pérsio, em seus versos obscuros, mas concisos & apertados, empenhou-se em encerrar menos palavras que sentido™. 33 160 165 170 175 180 185 190 Juvenal, educado a moda da escola, impeliu sua mordaz hipérbole até o excesso®S. Suas obras, repletas de terriveis verdades, fafscam, no entanto, com belezas sublimes: quer através de um escrito oriundo de Capri®, ele quebre a estétua adorada de Sejano®, quer cle faga que os senadores, palidos aduladores de um tirano sus- peitoso, corram ao conselho®*, ou, com todos os por- menores da luxiria latina, venda Messalina aos cafre- gadores de Roma®, todos os seus escritos, plenos de fogo, brilham por toda a parte. S6 Régnier, engenhoso disefpulo desses mestres eruditos, ¢ entre nés formado por tais modelos, tem ainda novas gragas no seu velho estilo, E feliz se seus discursos, temidos pelos castos leitores, nfo se ressen- tiam dos lugares que ele freqiientava, ¢ se nao alarmava muitas vezes os ouvidos pudicos com o som ousado de suas rimas cfnicas! O latim desafia a honestidade com as palavras; mas o leitor francés quer ser respeitado. Ofende-o a liberdade do menor sentido impuro, se 0 pudor das palavras ndo suavizar sua imagem. Quero en- contrar na sétira um espirito de franqueza, e evito um descarado que prega 0 pudor. francés, que nasceu esperto, a partir de um tra- go desse poema tao fértil em expressGes vivas e sur- preendentes, criou o “vaudeville”®, esse indiscreto agra- davel que, levado pelo canto, passa de boca em boca ¢ vai crescendo no caminho®. A liberdade francesa se des- dobra em seus versos: esse filho do prazer quer nascer na alegria. NZo v4, no entanto, trocista perigoso, fazer de Deus o assunto-de uma brincadeira horrenda. No final, todos esses jogos que o ateismo exalta conduzem tristemente o gracioso 4 Praca de Gréve™. Bom senso 195 200 e arte so necessérios mesmo nas cangdes; mas viu-se, no entanto, 0 vinho e o acaso inspirarem as vezes uma musa grosseira e fornecerem, sem genialidade, uma co- pla a Linigre®’, Porém, se uma felicidade vi fez 0 se- nhor rimar, preserve-se contra um orgulho tolo que ve- nha embriagé-lo®, Muitas vezes, 0 autor orgulhoso de haver composto alguma cancdozinha, julga no mesmo instante ter o direito de crer-se poeta: nfo mais dor- miré a nao ser que tenha feito um soneto e, todas as manhis, copia de maneira clara e legivel, seis improvi- sos”, Serd ainda um milagre se, nas suas loucuras, man- dando logo imprimir suas tolas quimeras, nao se faz gra- var, pela mao de Nanteuil, a frente da coletdnea, com a cabeca toda coroada de louros®, 35, 36 NOTAS AO SEGUNDO CANTO 1, Boileau quer exprimir talvez que 0 idflio deve ter brilho, sem no entanto, ter a pretensfo de ser rival dos géneros nobres. Etimologica- mente, idflio € 0 “pequeno quadro” e entre os gregos ndo era somente tum pooma campestre, como a éeloga; Boileau, porém, confunde as duas formas. 2. A flauta ¢ 0 oboé sio instrumentos campestres. intoar,a trombeta” equivale a cultivar a poesia épica. 4. Pi é a divindade campestre protetora dos rebanhos e dos cantos, e que teria inventado a flauta. 5. As Ninfas sfo as divindades das forgas da natureza, da terra, das aguas e do céu. 6. Os pifaros simbolizam a poesia pastoral. 7. Ronsard fez do idflio um género muito artificial e simbélico. Boileau, porém, o censura de maneira diferente, dizendo, entre outras que Ronsard mudou os nomes poéticos de Licidas e Filis, em nomes vulgares como Pier e Tonha (assim traduzimos a forma “Toinon”). 8. Tedcrito (II século aC.) ¢ célebre por seus idflios e Virgilio (70-19 a.C.) & sempre recordado pelas églogas, ¢ pelas Geérgicas, além de o ser pela Eneida. 9, Reminiscéncia de Hordcio na Arte Poética, v. 268: “Folheiem de dia, fotheiem de noite seus exemplares gregos 10, Flora é a deusa das flores e dos jardi E Pomona é a deusa dos frutos, 41. Reminiscéncia de Virgilio, na Egloga HL, v. 5! trofes alternadas::as Musas gostam dos cantos alternado: 12. Reminiscéncia das Metamorfoses de Ovidio (I, v. 549 ¢ I, v. 500). Dafne transformada por Jipiter em loureiro e Narciso em flor nfo per- tencem propriamente a égloga. 13. Reminiscéncia de Virgilio, na Egloga IV, florestas, que as florestas sejam dignas de um consul”, 14. A elegia latina serve para exprimis sentimentos muito diferentes. Caracteriza-se pelo distico elegiaco, estrofe formada de um hexametro e de um pentémetro. 18. Entre 0s romanos, a cabeleira esparsa € 0 signo da dor. 6a mie da Primavera. je cantamos as 16. Se pinta.a alegria, ndo estd mais com “iongas vestes de luto”. 17. A elegia exdtica tem Tibulo e Propércio como grandes represen- tantes em Roma. Boileau toma de Hordcio, na Arte Poética, v. 75, a definigZo da elegia como canto de tristeza e canto de alegria. 18. Boileau emprega “caprichos” com 0 sentido de “movimentos sibitos”, “{mpetos”, “impulsos”. Conservamos o termo por ele empre- gado. 19. Boileau considera que a sinceridade é imprescindivel a0 composi- tor de elegias. 20. Boileau critica as metiforas galantes muito empregadas por Cor- neille; ¢ também por Racine, nas suas primeiras pecas. 21.’ O deus do amor. 22. Tibulo (43-17 .C.), poeta latino, legou-nos grande nfimero de elegias graciosas e ternas. 23. Boileau se refere a0 Ovidio (43 a.C. - 17 d.C) de A Arte de amar e de Os Remédios contra o amor, 24. A ode & 0 poema litico por exceléncia. Etimologicamente, signi- fica “canto” e, na origem, era acompanhada pela lira ou pela cftara. Exprimia 0 sentimento religioso, a alegria da vitéria e outros sentimen- tos; depois, cantou assuntos menos importantes. Boileau refere-se aqui ode herdica e & anacre6ntica. 2s. Trata-se da ode herdica. 26. Reminiscéncia de Horécio, na Arte Poética, v. 53 © seguintes: “A musa permitiu lira falar dos deuses e dos filhos dos deuses (nos hinos ¢ nos ditirambos), do atleta vitorioso, do cavalo que chegou em primeiro lugar na corrida, das preocupagSes dos jovens e da liberdade que 0 vinho dé”. 27. Os jogos olfmpicos eram celebrados em Pisa, na Elida. 28. Simoide é um rio de Tréada. E Escaut é um rio da Franca, Bélgica e Holanda; trata-se de uma alusio 3s grandes vitdrias de Luis XIV em Flandres. Boileau compord uma ode: “Ode sobre a ,conquista de Namur” (1693). 29, Reminiscéncia de Hordécio, na Ode IV, Il, v. 28: “Eu, como a abelha do monte Matinus, mastigando com reconhecimento © timo no meio do seu grande trabalho, 20 redor das moitas ¢ das margens do Tibre rico em dgua, apesar de minka pequenez, componho laboriosos mas”. peso. Boileau faz alusSes aos poemas de Catulo (87-542), Tibulo (50-18? a.C.) e Propércio (47-15%a.C.), que cantaram suas amadas. 37 31, Reminiscéncia de Hordcio, na Ode II, v. 25-28. 32, Cré Boileau que a aparéncia de desordem da ode é casual. Essa desordem, porém, se deve as associagSes de sentimentos, de imagens ou de idéias. 33, Boileau que havia proibido a digressio (Canto I, v. 181), agora aceita uma leve liberdade. 34. Lille foi conquistada em 1667; Déle, em 1668. Nova alusio as campanhas de Flandres e de Franche-Comté. 38. Mézerai (1610-1683) precedeu Boileau como historidgrafo do rei. € uma cidade belga conquistada em 1667. 0 é de origem italiana e foi importado da Itélia por Mellin de Saint-Gelais. Muito apreciado pela Piéiade, teve os preciosos como seus maiores admiradores. 38. Gombauld (1588-1666), Maynard (1582-1646) ¢ Malleville (1597- -1647), so poetas sem grande valor. 39. Pelletier é um poeta desconhecido, que apenas recebeu mencio por parte de Boileau. 40. Sercy 0 livreiro do Palécio. 41. O epigrama é geralmente de pouca extensfo, mas pode ter mais de dois versos. Etimologicamente signific i 42, Boileau emprega o termo “poin que’ surpreende por alguma sutileza da imaginagao, por algum jogo de palavras”, 43, Mellin de Saint-Gelais foi o introdutor da “pointe” na literatura francesa, Provém da literatura italiana, dos “‘concetti™; estes se tornaram populares gragas a Marino, Preti, Aci E impossivel ignorar sobre- tudo a influéncia do “estilo culto” espanhol, do qual Géngora é 0 maior representante. 44. O madrigal, nome de origem italiana, foi cultivado na Franga a partir do século XV. Sem estar preso a uma forma fixa, desenvolve de maneira répida um pensamento engenhoso ou espirituoso. O preciosismo compés, além dos muitos sonetos, um grande nimero de madrigais. 48. Boileau se refere a uma tragédia de Mairet (1604-1686), drama- turgo que abriu caminho a Corneille. Tanto Corneille como Racine s vezes fizeram uso da “pointe”, em muitas de suas tragédias. 46. Pensou-se no Padre André, da ordem de Santo Agostinho. A exitica de Boileau se dirige, no entanto, a muitos pregadotes da época. 47 Turlupin & 0 comediante que fazia rir 0 piiblico diante dos ta- blados da feira, ¢ no teatro “Hotel de Bourgogne”, sendo que aqui era leville”. Seu nome real era, porém, Henri terizavam pelo espirito equfvoco © gros -Garguille ‘eram seus companheiros de conhecido pelo nome de le Grand. Suas piadas se care seiro. Gros-Guillaume e Gat trabalho. 48, Cada género poético apresenta qualidades que the so préprias. 49, Ronsard e sua escola nfo apreciavam a balada, mas ela tornou a florescer no século XVII. so. A sétira, segundo Quintiliano, é um género muito latino, ainda que a Grécia nao tem na Franga uma forma nitida- mente determinada por regras. Boileau deu a ela uma vida nova, se bem io Stimos exemplos de Lucilio, Hordcio, Pérsio ¢ Juvenal. de Caio Lucilio (149-103 a.C.?) que foi o primeiro autor jo, em Sétira IT, 1, 62. das pelos escravos. 53. Hordcio substituiu, nas suas sétiras, a violéncia pela jovialidade. Zombando dos vicios ¢ tidfculos humanos, cita nomes proprios; mas so personagens ficticias ou pseud6nimos escolhidos para caberem nos metros poéticos. 54, Pérsio (34-62) & o autor satfrico de inspiragdo estéica, Caracte- riza-se pela extrema concisao e esta 0 torna, muitas vezes, pouco claro. ss. Juvenal (60-1402), cujas sitiras so plenas de energia e de indig- nagdo contra os vicios da Roma imperial, caracteriza-se por um exagero surpreendente, . 36. Na X (71 e 72), lemos: “Uma longa e pormenorizada carta chegou de Cépreas” (ou Capri). Quando o Senado recebeu esta carta, (© ministro Sejano foi condenado & morte e 0 povo que antes incensava © favorito, logo arrastou suas estatuas na lama, . 57. Juvenal assim narra o acontecimento: “Queima-se uma cabega até entio adorada pelo povo e o grande Sejano estala sob as chamas”. 6. Na Sétira IV (72-75), lemos: “Chamam a0 conselho os grandes, odiados por Domiciano, e suas faces pélidas trafam essa amizade grande @ perigosa”. Trata-se da reunido do Senado que deliberou sobre 0 peixe rodovalho, num epis6dio 20 qual também Victor Hugo se referiu, no Preficio de Cromwell 9. Na Sétira VI (Ul, 132). 60. Messalina foi a primeira muther do imperador Claudio, famosa pelos escindalos de sua vide particular. _ 61. Mathurin Régnier (1573-1613) é 0 criador da forma da sétira 39 clissica, imitada dos poetas latinos, se bem que 0 espfrito satfrico ja se fizesse presente em Ronsard ¢ Du Bellay. 62, O vaudeville, espitituoso e zombeteiro, é uma composicéo sati- rica que se prende, conseqiientemente, 20 poema focalizado por Boileau. E. “uma cangio que corre através da cidade e ct tualmente com base em alguma aventura da época” (Dictionnaire Acad, 1694). O nome indica sua origem normanda: Vau de Vire. 63. O vaudeville ia sendo ampliado, pouco a pouco, pelo piiblico. 64, Boileau alude 20 poeta Petit, que foi queimado com 25 anos de idade em Paris, na “Praca de Gréve”, em 1665, por ter composto um poema burlesco: Paris ridicule (Paris ridfculo). Naquela praga, hoje eram executados os criminosos, 65. Liniére (1628-1704) que, parece, tinha qualidades; foi no en- tanto vitima das zombarias de Boileau, 66. Os vapores do orgulho so comparados aos do vinho. 67. Os improvisos eram muito admirados, pelos preciosos, como é possivel ver sobretudo na peca de Molire: As Preciosas Rid culas (XI). 68. Possivel alusdéo ao escritor Ménage, que tinha conseguido para suas obras um frontisp{cio gravado pelo famoso artista Nanteuil. 20 TERCEIRO CANTO Nio existe serpente nem monstro ddioso que, imi- tados pela arte, no possam agradar aos olhos: a habi- lidade agradavel de um pincel delicado transforma o mais horrendo objeto num objeto fascinante', Assim, para cativar-nos, a triste tragédia de Edipo todo ensangiien- tado fez com que as dores falassem?; exprimiu as vivas inquietagdes do parricida Orestes®, e, para distrait-nos, arrancou-nos lagrimas. O senhor, pois, que atrafdo pelo teatro com um belo ardor, vem disputar 0 prémio*, com versos mag- em multidio, traga seus sufrdgios? E que sempre mais belas, quanto mais so examinadas, sejam essas obras ~ ainda solicitadas a0 fim de vinte anos*? EntZo, que em todas as suas palavras, a paixdo comovida v4 procurar © coragdo, 0 aquega e 0 agite. Se a agradavel® exaltagao de um belo sentimento nio nos domina muitas vezes com um doce terror, ou no excita em nossa alma uma piedade? que agrada extremamente, o senhor est4 exi- bindo em vo uma cena erudita®: seus frios raciocfnios conseguirdo apenas entibiar um espectador sempre in- dolente nos aplausos, e que, justificadamente cansado 41 50 5S com.os esforgos vazios de sua retérica, adormece ou 0 critica’, O segredo consiste em, de infcio, agradar co- mover'®: crie incidentes que possam prender-me!!, Que a marcha da pega preparada desde os primei- ros versos aplaine, sem dificuldade, a introdugdo do assunto. Rio-me de um ator que, com expresso lenta, ndo sabe antes de tudo informar-me sobre o que deseja, © que, desenvolvendo mal uma intriga penosa, faz que um divertimento se torne para mim uma fadiga’?, Pre- feriria ainda que ele declinasse seu nome, dissesse: “Sou Orestes, ou entdo Agamemnon” e nao fosse atordoar os ouvidos, com um monte de confusas maravilhas, sem contudo nada dizer ao espirito: 0 assunto nunca é ex- plicado suficientemente cedo. Que o lugar da cena 14 esteja indicado, uma vez por todas. Um versificador, sem perigo, para além dos Pirineus, encerra no teatro, muitos anos em um dia: lé, com freqiéncia, 0 her6i de um espetaculo grosseiro é crianga no primeiro ato ¢ velho no ultimo’®, Mas nos, que a razio engaja as suas regras, queremos que a ago se. desenvolva com arte: em um lugar, em um dia, um tinico fato, acabado, mantenha até o fim o teatro reple- tol, Nunca oferega algo de inacreditével ao espec- tador'®: a verdade pode as vezes nao ser verossimil. Uma maravilha absurda € para mim sem atrativos'®; o espi- rito ndo se emociona com aquilo em que nfo cré!”,O que ndo deve ser visto, que um relato nolo exponha’®: se os olhos 0 vissem o captariam melhor; mas ha objetos que a arte judiciosa deve oferecer aos ouvidos e afas- télos dos olhos!®, . Que a complicagZo da intriga, sempre crescente, 60 65 70 75 80 85 de cena em cena, se desenrede sem dificuldade, ao chegar ao ponto culminante. O espirito no se sente mais vi- vamente atingido do que quando envolvido por um se- gredo, em um assunto da intriga, de repente a verdade se torna conhecida e tudo muda, dando-lhe uma face imprevista™, A tragédia, informe e grosseira ao nascer, nfo era sendo um simples coro, em que cada um, dangando e entoando elogios ao deus das vinhas, esforcava-se por atrair férteis vindimas”!. Entdo o vinho ¢ a alegria des- pertavam os espfritos e um bode era o prémio do mais. hébil cantor. Téspis, enlambuzado de borra™, foi o pri- meiro que fez passear pelas aldeias essa loucura feliz”: e, carregando uma carroga com atores mal ornados, vertiu os passantes com um espetéculo novo. Esquilo langou as personagens no coro™, cobriu os rostos com uma mascara mais decente”*, e sobre os tablados de um teatro levantados a vista de um certo mimero de pessoas, fez aparecer 0 ator calgado com um borzeguim”*. S6fo- cles, enfim, dando expansio ao seu génio, acrescentou ainda a pompa, aumentou a harmonia””, fez 0 coro par- ticipar®®, poliu a expresso dos versos asperos demais, ¢ deu A tragédia grega essa elevagao divina 4 qual jamais a fraqueza latina ascendeu”?, ‘Abjurado por nossos devotos antepassados, 0 tea- tro foi durante muito tempo um prazer desconhecido na Franga®. Dizem que uma companhia grosseira de pere- grinos foi a primeira que encenou em Paris; e, tola- mente zelosa, em sua simplicidade, representou, por pic- dade, os santos, a Virgem e Deus*. O saber, dissipando por fim a ignorancia, fez ver a imprudéncia devota desse projeto*®, Expulsaram ent&o esses doutores que prega- 43 30 120 vam sem missdo; viram renascer Heitor, Andromaca e Tlio™. $6 que os atores deixaram a mascara antiga e 0 violino ocupou 0 lugar do coro ¢ da mtisica®®, Logo 0 amor, fértil em ternos sentimentos, se apo- derou do teatro, bem como dos romances*®. A sensivel pintura dessa paixdo é 0 caminho mais seguro para atin- gir 0 coracdo, Pinte, pois, — consinto —, os hersis apai- xonados; mas no me componha pastores melosos; que Aquiles ame de maneira distinta da de Titsis e Fileno™”, nao v4 fazer de um Ciro um Artameno**; e que o amor, combatido freqiientemente pelo remorso, parega uma fraqueza e nfo uma virtude®, Evite as mesquinharias dos herdis do romance: dé, no entanto, algumas fraquezas aos grandes coragdes”, Desagradaria um Aquiles menos ardente e menos pron- to*!; gosto de vé-lo derramar légrimas por uma afronta®®. E por esses pequenos defeitos assinalados na sua pintura que © espirito reconhece, prazerosamente, a natureza. Que cle seja tragado em seus escritos, segundo este mo- delo: que Agamemnon seja altivo, soberbo, interesseiro; que Enéias sinta um respeito austero por seus deuses. Conserve em cada um 0 cardter que lhe é proprio”. Estude os costumes dos séculos e dos pafses: os climas produzem muitas vezes diferentes humores. Abstenha-se, portanto, de dar, como em Clélia, 0 ar e 0 espirito franceses a Itdlia antiga’; e, tragando nosso retrato sob nomes romanos, evite pintar um CatZo galante e um Bruto agraddvel para com as damas*S, Des- culpa-se tudo, facilmente, num romance frivolo; basta que a ficgfo irta, numa leitura rapida, pois o rigor excessivo estaria entdo fora de propésito. Mas 0 teatro exige uma razZo exata; a estrita conveniéncia af quer 125 130 135 140 145 150 155 ser mantida®, senhor inventa uma nova personagem? Que ela, em tudo, se mostre de acordo consigo mesma e que seja até o fim tal qual foi vista no inicio. Muitas vezes, sem pensar, um escritor que se ad- mira cria todos os seus heréis semelhantes a ele: em um autor gasco tudo tem humor gascdo; ¢ Calprenéde ¢ Tuba falam com o mesmo tom*7, ‘A natureza é, em nés, mais diversa .mais sébia. Cada paixo fala uma linguagem diferente: a cdlera soberba e quer palavras altivas; a depressfio se explica em termos menos altaneiros®®, Que Hécuba, desolada, nao venha lancar, diante de Tréia em chamas, um la- mento empolado; nem venha, sem motivo, descrever em que horrenda regido o Euxino recebe, por sete bocas, © Tanaide*®. Todos esses amontoados pomposos de ex- pressdes frivolas sfo proprios.de um declamador apaixo- nado pelas palavras.'O senhor deve adotar um tom mais simples na dor, Para provocar-rie prantos, deve chorar®, Essas palavras grandiloqentes com as quais entio 0 ator enche a boca ndo partem de um coracao atingido pela miséria®’, O teatro, fértil em criticos exigentes, para fazer-se conhecer entre nés, é um campo perigoso. Um autor af no faz conquistas faceis; encontra bocas sempre prontas a vaiélo. Todos podem traté-lo de fatuo ¢ de ignorante; é um direito que se compra 2 porta, ao entrar. E neces- sdrio que, de cem maneiras, ele se dobre para agradar; que ora se eleve e ora se abaixe; que seja, por toda a parte, fértil em nobres sentimentos; que seja natural, sblido, agradvel, profundo; que nos desperte, sem ces- sar, com Tasgos surpreendentes; que corra, nos seUs ver 45 6 160 165 170 175 180 185 190 sos, de maravilha em maravilha; e que tudo o que diz — de facil retengdo — deixe em n6s uma longa lembranga de sua obra, Assim age, anda e se desenvolve a tragédia. A poesia épica®, com um ar ainda maior, no am- plo relato de uma longa ago, se sustenta pela fabula e vive de ficgdo®®, Tudo é ai usado para fascinar-nos. Tudo toma um corpo, uma alma, um espitito, uma face. Cada virtude se torna uma divindade: Minerva é a prudéncia; e Vénus, a beleza. Nao é mais a nuvem que produz 0 trovdo, mas Jupiter armado para assustar a terra. Uma terrivel tempestade, aos olhos dos marinheiros, é Netuno colérico que repreende as ondas; Eco no é mais um som que ressoa no ar, porém uma ninfa em prantos que se queixa de Narciso, Assim, nesse conjunto de nobres ficgSes, 0 poeta se regozija com mil invengSes, enfeita, eleva, embeleza, engrandece tudo, e encontra, sob suas mos, flores sempre desabrochadas. Que Enéias e seus navios, separados pelo vento, sejam levados as margens africanas por uma tempestade; € apenas uma aventura usual e comum, um golpe pouco surpreendente dos atos da fortunaS*, Mas que Juno, constante em sua aversio, persiga nas ondas os restos de Ilio; que Eolo, para ser agradavel a cla, expulsando-os da Itélia, abra aos ventos amotinados as prisGes da Eélia’*; que Netuno em célera, elevando-se sobre o mar, acalme as ondas com uma pa- lavra, apazigue o ar, liberte as embarcagdes, arranque-as das sirtes. E isso que surpreende, atinge, arrebata, pren- de. Sem todos esses ornamentos, o verso cai de langui- dez; a poesia esté morta ou rasteja sem vigor e 0 pocta nao é mais que um prosador timido, um frio historiador de uma fabula insfpida. E, pois, de maneira bem vd que nossos autores de- 195 200 205 210 215 220 225 siludidos‘”, banindo de seus versos esses adornos admi- tidos pelo uso®®, pensam fazer agit Deus, seus santos ¢ profetas, como esses deuses safdos do cérebro dos poe- tas®®; pdem a cada passo 0 leitor no inferno e nada ofe- recem sendo Astaroth, Belzebu e Lucifer®. Os mistérios terriveis da {6 de um cristo ndo sao susceptiveis de or- namentos alegres*'. O Evangelho s6 oferece a0 espitito, por todos os lados, peniténcia que deve ser cumprida ¢ tormentos merecidos. E a mistura criminosa das fic- Ges dos senhores dé o ar da Fébula mesmo as verdades do Evangelho®. Que objeto enfim a ser apresentado aos ‘olhos sendo o diabo, sempre uivando contra os o¢us™ querendo rebaixar a gloria do herdi e que muitas veze: estd a ponto de vencer Deus! ; Dir-se-4 que Tasso 0 fez com éxito. Nao quero cri- ticélo, aqui: mas, qualquer que seja a coisa que nosso século’ publique em sua gloria, é preciso reconhecer que no teria tornado ilustre a Itélia com seu livro se seu devoto her6i, sempre em ora¢io, nao tivesse enfim sendo vencido Sata®*, e se Rinaldo, Argante, Tancredo e sua amada ndo tivessem alegrado a tristeza da luta de Satd contra Deus®, Isto ndo quer dizer que aprovo, num assunto cris- to, um autor loucamente pagdo e idélatra®’. Mas, numa pintura profana e divertida, ndo ousar empregar as fic- gOes mitoldgicas; expulsar os Trit6es do império das aguas’; tirar a’flauta de Pd e a tesoura das Parcas®; impedir que Caronte, na barca fatal, transporte tanto © pastor como o monarca”: é proprio de inquietudes religiosas vis o alarmar-se tolamente e o querer agradar aos leitores sem 0 emptego de adormos. Logo proibi- rio pintar a Prudéncia”', dar a Témis venda e balan- 47 230 235 240 245 250 255 260 ga”, representar a Guerra com a fronte de bronze”, ou o Tempo que foge, com uma ampulheta 4 mio; e discursos, no seu falso zelo, irdo por toda a parte expul- sar a alegoria como se fosse uma idolatria. Deixemo-los que se regozijem com seu piedoso erro; mas, quanto a nés, cristios que misturamos a ficoHo as verdades da religiio, expulsemos um terror inétil e ndo vamos, em nossas imaginagdes absurdas, fazer do Deus de verdade um deus de mentiras. A Pabula oferece ao espfrito mil atrativos diversos; 14, todos os nomes felizes parecem ter nascido para a poesia: Ulisses, Agamemnon, Orestes, Idomeneu, Helena, Menelau, Péris, Heitor” e Enéias”®. Que cémica idéia a de um poeta ignorante que, entre tantos herdis, vai escolher Childebrando!”* ° As vezes, 0 som duro ou estranho de um nico nome toma burlesco ou bérbaro um poema inteiro. © senhor quer, durante muito tempo, agradar jamais cansar? Escolha um her6i capaz de interessar-me € que seja brilhante no valor e magnifico nas virtudes: que nele, tudo se mostre herdico, até mesmo os defei- tos; que suas surpreendentes proezas sejam dignas de serem ouvidas; que cle seja tal qual César, Alexandre ou Lufs’’, e nfo como Polinice e seu pérfido irma0”. Entediamo-nos com os feitos de um conquistador vul- gar. Nao apresente um assunto excessivamente carre- gado de incidentes. S a oblera de Aquiles, conduzida com arte, preenche com fartura, uma [fada inteira™: muitas vezes a riqueza excessiva empobrece a matéria®. Seja vivo e no lento em seus relatos; seja rico pomposo em suas descrigées. E af que se deve ostentar a elegancia dos versos; nunca apresente circunstancias 265 270 275 280 285 290 baixas. Nao imite esse louco que, descrevendo os mares, e pintando, no meio das ondas entreabertas, o Hebreu salvo do jugo de seus injustos dominadores, chega @ por os peixes as janelas para que 0 vejam passa"; e pinta a crianga que vai, salta, retorna, “E alegre 4 mie oferece um cascalho que segura”, E deter a vista em objetos demasiadamente sem importancia, Dé 4 sua obra uma tensio proporcionada. ue o comego seja simples ¢ sem nenhuma afe- tagdo. Nao v4 desde 0 infcio, montado em Pégaso, gri- tar aos leitores com uma voz de trovdo™: “Canto o vencedor dos vencedores da terra”™. Que fard 0 autor apés todos esses altos brados? A montanha, parindo, da A luz um rato. Oh! Como aprecio muito mais esse autor cheio de habilidade que, sem fazer de infcio tio elevada promessa, me diz com um tom natural, doce, simples, harmonioso®’: “Canto os combates e esse ho- mem piedoso que, das costas frigias®’, conduzido & ‘Ausonia®”, foi o primeiro que abordou aos campos de Lavinia!"® Sua musa, a0 chegar, nfo poe tudo em fogo; e, para dar-nos muito, no nos promete sendo pouco. Logo o senhor a ver prodigalizando os milagres: pro- nunciar os ordculos do destino dos latinos, pintar as negras torrentes do Styx e do Aqueronte, ¢ jd os Cé- sares etrando no Elfsio™. ‘Alegre sua obra com inmeras imagens posticas; que nela, tudo oferega aos olhos uma imagem risonha: pode-se ser pomposo ¢ agraddvel, a0 mesmo tempo. Odeio um sublime tedioso e pesado, Prefiro Ariosto suas fabulas cOmicas a esses autores sempre frios ¢ me- Iane6licos que, no seu humor sombrio, pensariam ficar desonrados se as Gragas algumas vezes Ihes desenrugas- 49 295 300 305 310 315 320 325 sem o cenho™, Dir-se-ia que para agradar, Homero, instrufdo pe- la natureza, tenha furtado 0 cinto de Vénus”, Seu livro é um tesouro fértil em atrativos. Tudo o que ele tocou se converteu em ouro™; tudo, em suas mios, recebe uma nova graca: diverte por toda a parte e jamais cansa, Um calor feliz anima suas palavras: néo se perde em circunl6quios longos demais. Sem conservar uma ordem met6dica em seus versos, faz que 0. assunto se arranje e se desenvolva por si mesmo, Sem que sejam feitos pre- parativos, tudo nele se prepara naturalmente: cada ver- so, cada palavra, corre em dire¢do do desenlace™. Gos- te, pois, de seus escritos; mas com um amor sincero. Saber sentir satisfagdo 6 aproveitar™, Um poema excelente, em que tudo anda ¢ pros- segue, no é desses trabalhos produzidos por um capri- cho: exige tempo, cuidados. E essa obra penosa nunca foi aprendizagem de um escolar’, Mas, entre nés, com freqiiéncia, um poeta sem arte, que foi algumas yezes casualmente aquecido pelo belo ardor da inspi- rago, infla seu espfrito quimérico com um orgutho foma altivamente, entre as maos, a trombeta he- : sua musa, irregular, em seus versos que v0 ao acaso, jamais se eleva sendo por saltos e pulos: e seu ardor, desprovido de sentido e de leitura, se extingue a cada passo, por falta de alimento. Mas 0 pblico, pron- to a desprezélo, quer debalde desenganélo do mérito que ele cré falsamente possuir. Aplaudindo seu débil génio, ele proprio se dé, com suas maos, os elogios que Ihe recusam: por comparagio a ele, Virgflio néo tem invengdo ¢ Homero no entende a ficcd0 nobre®”. Se © século se revolta contra esse julgamento, ele primeiro 330 335 340 345 350 355 360 apela para a posteridade; mas enquanto espera que ° bom senso aqui retorne e traga & lume suas obras triun- fantes®, na livraria, aos montes, ocultas 4 luz, essas ‘obras combatem, tristemente, as tragas e @ poeira™. Deixemos, pois, que esses autores se esgrimam entre cles, em repouso; e, sem nos extraviarmos, sigamos nos so propésito'®®, Dos sucessos afortunados do espeté- culo trégico nasceu em Atenas a comédia antiga'®’. Af, © grego, que nasceu zombador, destilou o veneno de seus datdos maledicentes, através de mil jogos cOmi- cos. A sabedoria, o espirito, a honra foram presa dos acessos insolentes de uma alegria bufa, Viu-se, com a aprovagio do publico, um poeta enriquecer-se as cus- tas das burlas ao mérito®?; ¢ Sécrates, colocado pelo autor num coro de nuvens'®*, atrair as vaias de um desprezivel amontoado de pessoas!§, Deteve-se, enfim, © curso da liberdade!°®: 0 magistrado'©” foi buscar 0 so- coro das leis, e tornando, por meio de um edito, os poetas mais sdbios, proibiu que indicassem os nomes ¢ os rostos das pessoas visadas'°®, O teatro perdeu seu antigo furor. Através dos versos de Menandro!°”, a co- média aprendeu a rir sem acidez; soube jinstruir © re- preender, sem fel ¢ sem veneno; ¢ agradou, sem ferir. Cada pessoa, pintada com arte nesse novo espelho, af se viu, com prazer, ou acreditou no se ver: o avarento, entre os primeiros, iu do quadro fiel de um avarento tracado muitas vezes, segundo seu proprio modelo!!®, um tolo, finamente descrito milhares de vezes, desco- nheceu © retrato nele baseado. Portanto, autores que pretendem as honras da comédia!!?, que a natureza seja seu Gnico estudo!?, ‘Aguele que vé bem o homem e que, com um espfrito Si

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